Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2748/08.2TBBCL-B.G1
Relator: MANSO RAÍNHO
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
RECONHECIMENTO DE PROPRIEDADE
CONTRATO-PROMESSA
TRADIÇÃO DA COISA
POSSE
PRESUNÇÃO
REGISTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/29/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I. O contrato promessa, só por si, não é susceptível de transferir a posse ao promitente comprador.
II. São concebíveis, todavia, situações em que a posição jurídica do promitente comprador preenche excepcionalmente todos os requisitos de uma verdadeira posse.
III. É o que sucede quando o promitente comprador, a quem foi traditada uma fração autónoma, mantém a fração sob a sua alçada há pelo menos 10 anos, sobre ela praticando e sendo chamado a praticar atos que são próprios do proprietário, tais como colher os rendimentos da fração, dispor livremente da fração, pagar todos os encargos inerentes ao condomínio, pagar a quota parte relativa a obras gerais sobre o prédio, pagar seguros, taxas e impostos.
IV. O pedido de reconhecimento da propriedade do executado, a que alude o nº 2 do art. 357º do CPC, é uma espécie de reconvenção enxertada no processo de embargos de terceiro, competindo ao embargado que se quer prevalecer da qualidade de proprietário do executado alegar e provar os fatos que integram o direito de propriedade.
V. Apesar do executado ser o titular inscrito no registo predial, improcede o pedido de reconhecimento da sua qualidade de proprietário e procedem os embargos de terceiro do promitente comprador que é possuidor, se o início da posse deste é anterior à data do registo a favor do titular inscrito.
VI. Tal conclusão impõe-se visto que o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, que neste caso prevalece sobre a presunção conferida pelo registo.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 1ª Secção Cível da Relação de Guimarães:

Manuel e mulher Teresa deduziram, por apenso aos autos de execução que Casa… Lda. instaurou contra Ilídio, oposição mediante embargos de terceiro, pretendendo que fosse levantada a penhora que, no âmbito da dita execução, incidiu sobre a fração autónoma que descrevem.
Alegaram para o efeito, em síntese, que, na sequência de contrato promessa de compra e venda com tradição da fração que celebraram oportunamente na qualidade de promitentes compradores, entraram na posse da dita fração, de sorte que, por compra e venda e por usucapião, são donos da fração e, em todo o caso, titulares da posse efetiva e real sobre a mesma. A penhora ofende tais direitos, pelo que deve ser levantada.
Contestou a Exequente, concluindo pela improcedência dos embargos.
Mais pediu, invocando o nº 2 do art. 357º do CPC, que fosse reconhecido que o Executado, titular inscrito do direito de propriedade, é o legítimo proprietário da fração.
A final foi proferida sentença que julgou improcedentes os embargos.

Inconformados com o assim decidido, apelam os Embargantes.

Da sua alegação extrai as seguintes conclusões:

1. De acordo com o disposto no artigo 1285.º do Código Civil, o possuidor cuja posse for ofendida por diligência ordenada judicialmente pode defender a sua posse mediante embargos de terceiro, nos termos definidos na lei do processo. Porque a lei confere ao possuidor a presunção da titularidade do direito (artigo 1268.º, n.º 1, do Código Civil), atribui-lhe coerentemente os meios para defender a sua posse de qualquer diligência judicial que a ofenda.
2. Devem os embargos de terceiro (promitente comprador) prosseguir e levantada a penhora contra um bem penhorado em execução (no caso relação creditícia) movida contra o promitente vendedor, em determinadas situações, nomeadamente quando tendo havido “traditio”, tenha o promitente comprador pago a totalidade do preço e se comporte como um verdadeiro possuidor em nome próprio, isto é, como titular do direito correspondente.
3. Estamos perante uma situação em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche excepcionalmente todos os requisitos de uma verdadeira posse.
Pois foi paga já a totalidade do preço, a coisa é entregue ao promitente-comprador como se sua fosse já e que, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos atos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade.
Tais atos não são realizados em nome do promitente-vendedor, mas sim em nome próprio, com a intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real.
O promitente-comprador atua, aqui, com o corpus e com o animus, não havendo, por conseguinte, qualquer razão para lhe negar a defesa e a acessão na posse.
Assim,
Hipóteses fácticas existem nas quais, havendo sido paga já a totalidade do preço, a coisa é entregue ao promitente-comprador como se sua fosse e, nesse estado de espírito - nesses casos, verifica-se acessão na posse por via da mera celebração de um contrato promessa.
Subsumindo a factualidade provada, mal andou a sentença recorrida que violou os preceitos legais constantes dos artigos 1251.º e 1285.º do Código Civil e 351.º, n.º 1, 357.º, n.º 1 e 784.º do Código de Processo civil, devia ter sido proferida decisão distinta.
Salvo melhor entendimento, os fundamentos estão em oposição com a decisão verificando-se erro de julgamento violando assim o preceituado no artigo 668.º, n.º 1 al.s b) e c) do Código de Processo Civil.

Terminam dizendo que deve ser revogada a sentença recorrida, a ser substituída por outra decisão que “reconheça que o recorrente pagou os valores constantes do contrato promessa e a posse que os recorrentes exercem sobre a fracção como verdadeiros proprietários, declarando o ato de apreensão do sujeito creditício no caso concreto, incompatível com o direito que o embargante goza, determinando-se o levantamento da penhora, e de resto, tudo com as legais consequências”.

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A parte contrária contra-alegou, concluindo pela improcedência da apelação.

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Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir, tendo-se sempre presentes as seguintes coordenadas:
- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;
- Há que conhecer de questões, e não das razões ou fundamentos que às questões subjazam;
- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

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São questões a conhecer:
- A da nulidade da sentença recorrida por oposição entre a decisão e os fundamentos;
- A da consideração do fato do pagamento do preço da prometida compra e venda;
- A de saber se os fatos provados devem levar à procedência dos embargos.

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Da nulidade da sentença recorrida:

Argúem os Apelantes a nulidade da sentença, dizendo que “os fundamentos estão em oposição com a decisão verificando-se erro de julgamento violando assim o preceituado no artigo 668.º, n.º 1 al.s b) e c) do Código de Processo Civil”.
Mas é por demais óbvio que carecem de razão.
Desde logo, anote-se que se o vício decorre de uma suposta oposição entre os fundamentos e a decisão, não se compreende a alusão que é feita à alínea b), que nada tem a ver com tal temática. Consideramos assim que tal alusão não passa de um lapso.
À parte isto, há que ver que as nulidades de sentença são vícios intrínsecos da peça processual que é a sentença (error in procedendo), nada tendo a ver com os erros de decisão, seja em matéria de direito seja em matéria de fato (error in iudicando). Os erros de decisão provocam a ilegalidade (e consequente revogação) da decisão, não a sua nulidade. Ora, basta ler a arguição dos Apelantes para ver que estes confundem as coisas, pois que reconduzem precisamente a um suposto “erro de julgamento” a pretensa nulidade de sentença. O que só por si implica a improcedência da arguição.
Ex abundanti, sempre diremos que a suposta oposição entre os fundamentos e a decisão inexiste de todo, visto que a decisão que foi tomada (improcedência dos embargos por o proprietário da fração ser o executado) é plenamente coerente com a fundamentação vertida ao longo da sentença.
Improcede pois a arguida nulidade de sentença.


Quanto à questão do pagamento da totalidade do preço:

Dizem os Apelantes, tanto no corpo da alegação como nas conclusões, que foi já paga a totalidade do preço da prometida fração, pretendendo mesmo (v. parte final da alegação) que se reconheça agora tal pagamento.
Ora, os recursos servem para reapreciar as questões que foram colocadas à decisão da instância recorrida, e não para apreciar questões novas.
Leia-se agora a petição inicial: ver-se-á sem dificuldade que tal suposto pagamento não foi alegado, e sobre ele se não pronunciou, consequentemente, o tribunal recorrido. Trata-se assim de uma questão fatual nova, suscitada apenas neste recurso, e de que não se pode tomar conhecimento.
Na realidade, o que os Embargantes alegaram foi tão-somente a celebração de um contrato-promessa, onde, é verdade, se convencionaram certos pagamentos sobre o preço da compra e venda prometida. Mas isto, como é óbvio, só significa que tal convenção foi feita. Não significa que os contratados pagamentos foram efetivamente cumpridos.
Improcede pois a pretensão recursiva neste particular.

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Quanto ao mérito da causa:

Sustentam os Apelantes que a decisão recorrida é ilegal, pois que havia que julgar os embargos procedentes.
Para vermos se deve ser assim, importa recuperar os fatos que estão provados, e que são os seguintes:

i) Nos autos de execução a que estes vão apensos foi penhorado, a 7 de Outubro de 2009, o seguinte imóvel: Prédio Urbano - Fracção Autónoma designada pela letra "T", correspondente ao quarto andar, composto por hall de entrada, com dois quartos, uma sala de jantar e estar, dois quartos de banho e cozinha, fracção sita no Lugar de Paranho da Areia, freguesia de A-Ver-O-Mar, Concelho de Póvoa de Varzim, Distrito do Porto, com superfície coberta de 71,27 m2. Inscrito na respectiva matriz sob o artigo …, Fracção "T", descrito na Conservatória de Registo Predial de Póvoa de Varzim sob o número …, Fracção "T".
ii) Por documento escrito datado de 9 de Novembro de 1998 e designado de “Contrato-Promessa de Compra e Venda” - cujo teor consta de fls. 9 a 12 e aqui se dá por integralmente reproduzido - Ilídio e mulher Maria declararam prometer vender ao aqui embargante Manuel o prédio referido em i) .
iii) A escritura notarial de compra e venda prevista naquele contrato não foi ainda outorgada.
iv) O embargante vem usando e fruindo as utilidades do aludido imóvel, colhendo os seus rendimentos e livremente dispondo dele.
v) Desde há pelo menos 10 anos o embargante paga todos os encargos relativos àquela fracção, desde despesas de condomínio, às obras de conservação e melhoramento do prédio, o que faz ininterruptamente, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, tudo com ânimo de verdadeiro proprietário.
vi) É o embargante quem paga as prestações mensais de condomínio, o seguro de responsabilidade civil, os encargos com obras – incluindo as gerais sobre todo o prédio - as taxas e os impostos.
vii) À data da penhora o identificado prédio era habitado pelos embargantes, sendo estes quem o utilizam, servindo de meio de satisfação de necessidades de alojamento no Verão e fins-de-semana.


Quid juris?
Contrariamente ao que foi alegado na petição inicial, não se mostra que os Embargantes se tenham tornado donos (proprietários) da fração autónoma em causa por efeito de uma compra e venda (aquisição derivada) ou por efeito da usucapião (aquisição originária). Em termos de aquisição derivada não são donos, visto que o contrato promessa de compra e venda a que aludem não representa qualquer venda, não vale como um ato translativo da propriedade da fração. Representa, isso sim, o propósito (rectius, a vinculação) de uma futura contratação de uma compra e venda. Contratação esta que, como os próprios Embargantes reconhecem (e está provado), jamais se concretizou. Em termos de aquisição originária também os Embargantes não adquiriram a propriedade, na medida em que, estando embora na posse da fração, não se mostra que tenha transcorrido o prazo (que seria de 15 anos, ut art. 1296º do CC) necessário à verificação da usucapião. Acresce dizer que, contrariamente ao que se aduz no ponto VII b) do corpo da alegação de recurso, a fatualidade provada não permite concluir por qualquer acessão na posse (art. 1256º do CC). Isto é assim porque para que se pudesse falar de acessão na posse seria necessário que a posse a acrescer à dos Embargantes tivesse sido transmitida a estes mediante o título estabelecido por lei para o pressuposto negócio translativo (de propriedade), e este título é a escritura pública (que jamais foi celebrada), nos termos dos art.s 80º do Código do Notariado e 875º do CCivil, e não um qualquer contrato-promessa ou uma qualquer convenção de tradição (como sucedeu in casu). O que se passou foi apenas que os donos da fração deram azo a que, por efeito da tradição da coisa, os ora Embargantes tenham iniciado uma posse própria sobre a fração, e não que os Embargantes sucederam realmente na posse de proprietários daqueles. Trata-se de situações juridicamente diferentes, exatamente como se explica na sentença recorrida. Daqui que a questão da validade ou da nulidade do contrato promessa (por carecer do reconhecimento presencial das assinaturas [nulidade essa que, aliás, só poderia ser apreciada se tivesse sido suscitada pelos promitentes compradores, e não foi]) nada tem a ver com o que está em causa.
Donde, a conclusão a retirar é a de que não se mostra que os ora Apelantes se tenham tornado, pelos títulos que invocam (compra e usucapião), proprietários da fração em causa. Deste modo, e a este nível, jamais os embargos poderiam proceder. De resto, e se atentar bem nas conclusões do recurso (as quais, repete-se, balizam o conhecimento deste tribunal ad quem), os Apelantes deixaram pura e simplesmente de sustentar que compraram a fração ou que a adquiriram por usucapião, direcionando a sua pretensão unicamente para a questão do direito de posse que invocaram e de que se querem titulares.
E que dizer então em termos de direito real de posse?
A nosso ver, e como de resto se aceita claramente na sentença recorrida (v. a respetiva p. 10), a fatualidade provada deve levar à conclusão de que os Embargantes têm possuído em nome próprio a fração e, como assim, que gozam do inerente direito de posse tal como configurado no art. 1251º do CC.
E sobre isto interessa observar, na sequência aliás de abundante jurisprudência e doutrina (v., por todos, os dois mais recentes Acórdãos do STJ que, publicados, se pronunciaram sobre o assunto: os de 29.11.2011 e de 7.1.2010, disponíveis em www.dgsi.pt, e jurisprudência e doutrina aí recitada), que é de entender que a qualificação da natureza da posse do beneficiário da traditio no contrato promessa de compra e venda depende essencialmente de uma apreciação casuística dos termos e do conteúdo do respetivo negócio. Sem dúvida que o contrato promessa, só por si, não é susceptível de transferir a posse ao promitente comprador, e daqui que se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus possessório, mas não adquire necessariamente o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero possuidor ou detentor precário. São concebíveis, todavia, situações em que a posição jurídica do promitente comprador preenche excepcionalmente todos os requisitos de uma verdadeira posse. Os exemplos que têm sido aventados são os de, havendo sido paga já a totalidade do preço (ou, pelo menos, parte significativa dele) ou não tendo as partes o propósito de realizar o contrato definitivo (a fim de, v.g., evitar o pagamento de encargos fiscais ou precludir o exercício de um direito de preferência), a coisa ser entregue ao promitente comprador como se sua fosse já e que, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade. Tais actos não são realizados em nome do promitente vendedor, mas sim em nome próprio, com intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real. O promitente comprador atua, aqui, uti dominus, não havendo, por conseguinte, qualquer razão para lhe negar o acesso aos meios de tutela da posse.
Ora, embora no caso vertente se não mostre que o preço foi pago, a verdade é que o já longo tempo (pelo menos 10 anos) por que perdura a manutenção da fração sob o encargo e domínio dos Embargantes e o tipo de atos que estes têm praticado com relação à mesma fração (atos que são próprios do proprietário e de quem se perceciona como proprietário), caraterizam mais um caso excecional em que se deve concluir por uma autêntica posse (concorrem o corpus e o animus) e não por uma simples detenção ou posse precária. Posse aquela que leva à presunção da titularidade do concreto direito à imagem daquele que os Embargantes vêm possuindo, qual seja, o direito de propriedade. Tudo conforme o estabelecido no nº 1 do art. 1268º do CC.
Entretanto, aqui chegados, há que atentar em que a Exequente fez enxertar no processo, ao abrigo do nº 2 do art. 357º do CPC, a questão da propriedade da fração (exceptio dominii), alicerçada no fato do Executado (Ilídio) ser o “titular inscrito do direito de propriedade” (sic) e, em consequência, formulou pedido no sentido de ser reconhecido que a propriedade da fração pertence ao dito Executado. Este enxerto traduz-se numa ação petitória (v. Durval Ferreira, Posse e Usucapião, 3ª ed., p., 438), a fazer valer mediante uma espécie de reconvenção (v. Alberto dos Reis, Processos Especiais, I, pp. 457 e 391; Augusta Palma, Embargos de Terceiro, p. 84), competindo ao embargado que se quer prevalecer da qualidade de proprietário do executado alegar e provar os fatos que integram o correspetivo direito de propriedade (como diz Lopes Cardoso, Manual dos Incidentes da Instância em Processo Civil, 3ª ed., p. 231, referindo-se ao caso de ser o embargado executado a levantar a questão da sua propriedade, “o embargado há-de provar que efectivamente é ele o titular do direito”). Da mesma forma que compete ao tribunal, no dispositivo da sentença que conheça dos embargos, tomar decisão expressa sobre o pedido enxertado, reconhecendo ou não o direito de propriedade do executado (decisão que, aliás, até faz caso julgado material, como resulta do art. 358º do CPC). Procedendo a questão da propriedade invocada pelo embargado, os embargos naufragam, pese embora a posse que se possa verificar, pois que no conflito entre o direito de propriedade e o direito de posse, aquele prevalece sobre este (v. a propósito o art. 1278º do CC; cfr. Alberto dos Reis, ob. cit., p. 457 e Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, I, anotação ao art. 357º). Tudo, porém e bem entendido, sem prejuízo para o disposto no art. 1268º do CC quando o pretenso direito de propriedade do executado se fundar numa mera presunção.
Ora, relativamente a esta questão da propriedade do Executado Ilídio sobre a fração em causa, e como acima se diz, a Exequente/Embargada limitou-se a alegar que o Executado era o titular inscrito do direito de propriedade (subentende-se que pretendeu significar que o Executado era o titular inscrito em sede de registo predial). Não alegou a Exequente/Embargada quaisquer outros fatos de que pudesse derivar o suposto direito de propriedade. Portanto, terá porventura querido significar que havia de concluir-se pelo direito de propriedade do Executado por decorrência da presunção de dominialidade conferida pelo registo predial.
E sobre o assunto, a sentença recorrida disse o seguinte: “Conclui-se, em suma, que não tendo os embargantes adquirido a fracção objecto destes embargos por qualquer modo válido de aquisição derivada, nem tendo logrado demonstrar factos que permitissem integrar a forma de aquisição originária da usucapião, a propriedade daquela mesma fracção autónoma continua a radicar na esfera jurídica do executado. Como tal, necessariamente improcedem estes embargos de terceiro”.
Mas este entendimento não está correto.
Pois que dá-se por adquirido o direito de propriedade do Executado, esquecendo-se porém que a posse dos Embargantes constitui presunção da titularidade do direito de propriedade dos mesmos Embargantes (art. 1268º nº 1 do CC) e que os fatos provados em sítio algum revelam a existência do direito de propriedade do Executado que a Exequente quis ver reconhecido. Na realidade, a sentença raciocinou de forma assaz simplista: não tendo os Embargantes provado a aquisição da fração, logo o proprietário é (continua a ser) o Executado.
Mas não é assim que as coisas podem ser vistas.
Efetivamente, só se poderia concluir pela existência do direito de propriedade do Executado se acaso tivesse sido feita prova dessa existência, e não foi, sendo certo que, para além da singela afirmação de que se tratava do “titular inscrito”, nada foi alegado atinentemente pela Exequente.
Entretanto, e conforme decorre designadamente da certidão de fls. 57 do processo principal (processo executivo), é verdade que a aquisição da fração está inscrita no registo predial a favor do Executado.
E tal inscrição registral faz presumir a titularidade do direito de propriedade do Executado, de acordo com o disposto no art. 7º do CRPredial.
Simplesmente, tal inscrição existe apenas desde 6 de Maio de 2009. (Não há qualquer elemento documental disponível nos autos, nem a Exequente o apresentou, que mostre uma qualquer inscrição a favor do Executado anterior a tal data).
Sucede porém que a posse dos Embargantes iniciou-se muito antes daquela data, como revelam claramente os fatos provados.
Donde, face ao disposto no nº 1 do art. 1268º do CC, a presunção da titularidade do direito (de propriedade) dos Embargantes prevalece sobre a presunção dominial registral que existe a favor do Executado.
Como assim, têm razão os Apelantes quando sustentam que, como possuidores que são, gozam da presunção da titularidade do direito de propriedade, de sorte que a penhora que incidiu sobre a fração em causa ofende o seu direito e, por isso, não pode manter-se.
De outro lado, e em consequência, improcede o pedido da Exequente/Embargada ao reconhecimento do direito de propriedade do Executado.
Procede pois a apelação.

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Decisão:

Pelo exposto acordam os juízes nesta Relação em julgar procedente a apelação e, revogando a sentença recorrida, julgam procedentes os embargos, com o consequente levantamento da penhora incidente sobre a fração em causa. Em estrita decorrência, mais julgam improcedente o pedido da Exequente/Embargada ao reconhecimento do direito de propriedade do Executado Ilídio sobre a fração.

Regime de custas:
Custas da apelação e de 1ª instância pelos Embargados (Exequente e Executado), que nelas são condenados.

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Sumário (art. 713º nº 7 do CPC):
I. O contrato promessa, só por si, não é susceptível de transferir a posse ao promitente comprador.
II. São concebíveis, todavia, situações em que a posição jurídica do promitente comprador preenche excepcionalmente todos os requisitos de uma verdadeira posse.
III. É o que sucede quando o promitente comprador, a quem foi traditada uma fração autónoma, mantém a fração sob a sua alçada há pelo menos 10 anos, sobre ela praticando e sendo chamado a praticar atos que são próprios do proprietário, tais como colher os rendimentos da fração, dispor livremente da fração, pagar todos os encargos inerentes ao condomínio, pagar a quota parte relativa a obras gerais sobre o prédio, pagar seguros, taxas e impostos.
IV. O pedido de reconhecimento da propriedade do executado, a que alude o nº 2 do art. 357º do CPC, é uma espécie de reconvenção enxertada no processo de embargos de terceiro, competindo ao embargado que se quer prevalecer da qualidade de proprietário do executado alegar e provar os fatos que integram o direito de propriedade.
V. Apesar do executado ser o titular inscrito no registo predial, improcede o pedido de reconhecimento da sua qualidade de proprietário e procedem os embargos de terceiro do promitente comprador que é possuidor, se o início da posse deste é anterior à data do registo a favor do titular inscrito.
VI. Tal conclusão impõe-se visto que o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, que neste caso prevalece sobre a presunção conferida pelo registo.

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Guimarães, 29 de Novembro de 2012,
José Raínho
Carlos Guerra
Conceição Bucho