Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1348/19.6T8VCT.G1
Relator: GONÇALO OLIVEIRA MAGALHÃES
Descritores: REPRESENTAÇÃO SEM PODERES
RATIFICAÇÃO
DECLARAÇÃO TÁCITA
TESTAMENTO
CONDIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Os poderes de representação do curador especial nomeado para representar menor de idade em juízo caducam ipso facto no momento em que este completa os dezoito anos de idade ou é emancipado pelo casamento, adquirindo, então, plena capacidade de exercício de direitos.
II - O representado passa a estar por si em juízo. Em decorrência, os subsequentes atos processuais, entre os quais se incluem aqueles que assumem um conteúdo negocial, devem ser praticados pelo próprio – ou por um seu representante voluntário. Qualquer ato que o representante pratique depois daquele momento corresponde a uma situação de representação sem poderes, sendo assim inoponível ao representado, salvo se este o ratificar.
III - A existência de uma declaração negocial de ratificação pode ser tácita, quando resulte de factos que com toda a probabilidade a evidenciem, tendo em conta o sentido que lhe daria o declaratário normal colocado na posição do real.
IV - A transmissão para terceiro do direito de propriedade que adveio ao vendedor por efeito de uma partilha em que interveio um seu representante sem poderes exprime de forma indireta a declaração de ratificação deste ato, que é pressuposto da aquisição do direito transmitido.
V - A falta de consciência do declarante quanto ao sentido negocial indiretamente transmitido apenas retira eficácia à declaração tácita quando, no concreto contexto, se conclua que o declaratário não podia razoavelmente contar com ela.
VI - Sem prejuízo, a declaração tácita que não corresponda à vontade real do declarante pode ser anulada no quadro do erro-obstáculo.
VII - A liberdade de testar apenas pode ser limitada quando o fim pretendido pelo testador seja contrário à lei, à ordem pública ou aos bons costumes.
VIII - A cláusula de ordem pública diz respeito aos princípios e valores fundamentais para a salvaguarda da coexistência social e indispensáveis para a paz pública que todos os seus membros devem atender, independentemente de afloramentos positivos, entre eles se incluindo a proibição de discriminação de uma pessoa ou de um grupo de pessoas em razão da sua ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.
IX - Já as razões da formação da vontade do testador situam-se na antecâmara dos motivos, espaço próprio para que ele, enquanto titular do património, forme a sua vontade, orientando-se apenas pelas suas representações do mundo e pelas suas idiossincrasias.
X - Nesta medida, não é nula a disposição testamentária através da qual o testador institui o seu filho primogénito como legatário, por conta da legítima, de um determinado bem do seu património, ainda que o fator determinante da sua vontade tenha sido o de respeitar o que entendia serem os valores tradicionais da Monarquia Portuguesa que em matéria sucessória davam prevalência ao filho varão do sexo masculino.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I.
1) AA intentou a presente ação declarativa, sob a forma comum, contra BB, CC, DD, EE e FF pedindo que, na procedência:
- Seja declarada a ineficácia das deliberações tomadas na conferência de interessados do dia 11 de julho de 1989, realizada nos autos do inventário obrigatório n.º ...6, que correu termos pela 2.ª Secção do ... Juízo do extinto Tribunal Judicial da Comarca de ...;
- Seja declarada a nulidade de todo o processado praticado naqueles autos de inventário, a partir do dia 30 de novembro de 1988, data em que a Autora atingiu a maioridade;
- Seja declarada a nulidade das disposições do testamento outorgado por GG, no dia 13 de junho de 1967, mormente na parte relativa ao legado da Casa das ...;
- Seja, em consequência, declarada a nulidade da partilha de bens realizada no citado inventário obrigatório n.º 7/86, que correu termos pela 2.ª Secção do ... Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de ..., bem como decretado o cancelamento de todos os registos de aquisição dos imóveis aí relacionados.
Alegou, em síntese, que: Autora e Réus são os filhos de GG e de HH, falecidos, respetivamente, a ../../1986 e ../../2017; os pais de Autora e Réus foram casados entre si sob um regime de bens, convencionado através de escritura de 28 de abril de 1956, nos termos do qual permaneceram próprios os bens que cada um deles tinha ao tempo da celebração do casamento e, bem assim, os que lhes adviessem depois por sucessão ou por qualquer outro título gratuito; o pai da Autora e dos Réus deixou testamento cerrado, datado de 13 de junho de 1967 e aprovado no dia seguinte, no ... Cartório Notarial ..., no qual declarou “[d]eixo a Casa das ... ao meu filho BB, e se este casar e não tiver filhos legítimos, a casa com o seu recheio e terreno anexo com todas as suas pertenças ficará para o filho legítimo mais velho do meu filho FF. Se ainda nenhum dos meus filhos varões tiver filhos legítimos, a Casa das ... ficará nos descendentes das minhas filhas, ou antes, naquele que descendendo delas represente a minha família como era uso e costume fazer-se nos tempos recuados da nossa Monarquia, começando na mais velha CC e acabando na mais nova, EE”; após óbito do pai de Autora e Réus, houve lugar a inventário para partilha da respetiva herança; quando esse inventário teve início, a Autora, nascida a ../../1970, era ainda menor de idade, pelo que foi representada por uma curadora ad litem; foram relacionados, para além da Casa das ..., a Quinta de ... e 19/36 partes indivisas do Jazigo n.º ..., em forma de capela, no Cemitério ...; este último foi avaliado num valor seis vezes superior à Casa das ...; na conferência de interessados, realizada no dia 11 de julho de 1989, foi deliberado, por unanimidade, adjudicar a Casa das ... ao Réu BB e os restantes bens à mãe de Autora e aos Réus CC, DD, EE e FF, em comum, na proporção de metade para a primeira e de 1/10 para cada um dos segundos, prescindindo todos de tornas; a Autora, apesar de ser já maior de idade, não foi convocada nem participou nessa conferência, continuando a ser representada pela curadora ad litem adrede designada; não lhe foi dado conhecimento do deliberado; de então para cá, a Casa das ... e os demais bens relacionados continuaram a ser usados em comum, como antes sucedia, tanto pela Autora e Réus, como pela progenitora comum; isto criou na Autora a convicção de que a herança aberta por óbito do seu progenitor nunca tinha sido objeto de partilha; essa convicção manteve-se até que o Réu BB, depois do óbito da progenitora comum, reclamou para si a Casa das ...; a Autora só então tomou conhecimento do testamento e da partilha; o acordo da partilha é ineficaz em relação à Autora, uma vez que, quando foi feita, já haviam cessado os poderes de representação da curadora ad litem designada para a representar no processo de inventário; por outro lado, a referida disposição testamentária é nula, pois viola o princípio da igualdade entre os sexos e o princípio da não discriminação entre os filhos, ambos consagrados na Constituição da República de 1976; finalmente, a partilha é nula uma vez que os valores atribuídos aos bens que compunham o património foram simulados para beneficiar o Réu BB.
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2) Feitas as citações, contestaram os Réus BB, CC e DD dizendo, também em síntese, que: invocando a Autora a simulação do acordo de partilha, devia ter proposto uma ação de emenda da partilha e não uma ação comum, pelo que ocorre erro na forma de processo; tendo já decorrido mais de 30 anos desde que a Autora atingiu a maioridade, extinguiram-se, por prescrição, os direitos que a mesma pretende fazer valer através da presente ação; o direito de propor a ação caducou uma vez que, aquando da apresentação da petição inicial, já havia decorrido mais de um ano sobre o momento em que a Autora teve conhecimento do vício na formação da vontade de que enferma o acordo de partilha; a Autora praticou, ao longo dos anos, atos de administração e disposição dos bens que lhe couberam, o que demonstra o seu conhecimento do testamento e do acordo de partilha e, bem assim, a confirmação do primeiro e a ratificação do segundo; tendo decorrido mais de dois anos desde a prática de tais atos, caducou o direito de pedir a anulação do testamento; sem prejuízo, sempre haveria abuso do direito, na modalidade do venire contra factum proprium. No mais, impugnaram os factos alegados pela Autora no que tange à simulação dos valores atribuídos aos bens que compunham a herança do progenitor comum, sustentaram que o testamento não padece do vício alegado pela Autora e acrescentaram que o Réu BB é possuidor da Casa das ... desde que aceitou o legado feito pelo progenitor comum, tendo assim adquirido o direito de propriedade por usucapião.
Concluíram pedindo a improcedência da ação e a condenação da Autora, como litigante de má-fé, em multa e em indemnização não inferior a € 10 000,00. O Réu BB pediu ainda, em sede de reconvenção, a declaração de que é titular do direito de propriedade sobre a Casa das ....
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[…]
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16) Realizou-se a audiência final e, após o seu encerramento, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu os Réus dos pedidos formulados pela Autora.
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17) Inconformada, a Autora (daqui em diante, Recorrente) interpôs o presente recurso, através de requerimento composto por alegações e conclusões, estas do seguinte teor (transcrição):
[…]
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18) O Réu BB respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.
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19) O recurso foi admitido pela 1.ª instância como de apelação, com subida nos autos e efeito meramente devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal ad quem.
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20) Foram colhidos os vistos das Exmas. Sras. Juízas Desembargadoras Adjuntas.
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II.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, ambos do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Tendo isto presente, as questões que se colocam no presente recurso podem ser sintetizadas nos seguintes termos, de acordo com a ordem do seu conhecimento:
1.ª Erro de julgamento quanto à afirmação de facto, considerada não provada, segundo a qual, “[d]epois de ter terminado o serviço militar em 17/11/1988, o Réu FF passou a apresentar um comportamento que evidenciava profunda perturbação mental, com distanciamento da realidade, sendo este comportamento, demonstrado em tribunal no próprio dia da conferência de Interessados, em 11/07/1989, do conhecimento dos intervenientes na conferência de interessados”, a qual deve ser considerada como provada (conclusões P), Q) e R));
2.ª Erro na subsunção dos factos ao direito aplicável no que tange à ratificação do acordo relativo à composição dos quinhões pela Autora (conclusões A) a O) e AA));
3.ª Erro na subsunção dos factos ao direito aplicável no que tange à anulabilidade do acordo relativo à composição dos quinhões com fundamento na incapacidade do Réu FF (conclusões S) a V) e AA));
4.ª Erro na subsunção dos factos ao direito aplicável no que tange à nulidade do testamento (conclusões W) a Z) e AA)).
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III.
1).1. Na resposta às questões enunciadas, começamos por respigar a fundamentação de facto da sentença recorrida, destacando (itálico) o segmento objeto de impugnação:
“a) A Autora nasceu no dia ../../1970, filha de GG e HH, conforme resulta da certidão do assento de nascimento junta aos autos a fls. 41v e 42 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
b) GG faleceu no dia ../../1986, conforme resulta da certidão do assento de óbito junta aos autos a fls. 41 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
c) No dia 14 de Junho de 1967, no ... Cartório Notarial ..., mediante a apresentação de manuscrito datado do dia precedente, o supra mencionado GG, outorgou testamento cerrado, conforme se retira da certidão junta a fls. 38 a 45 do processo de inventário obrigatório nº 7/1986, que correu termos na extinta 2ª Secção, do extinto ... Juízo, do Tribunal Judicial da Comarca de ..., apenso por linha aos presentes autos, em que foi inventariado GG e inventariante e cabeça-de-casal HH, e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
d) No dia 10 de julho de 1986, no ... Cartório Notarial ..., o supra referido testamento cerrado foi aberto, conforme se retira do instrumento de abertura, cuja certidão se encontra junta a fls. 38 a 45 do processo de inventário obrigatório nº 7/1986, que correu termos na extinta 2ª Secção, do extinto ... Juízo, do Tribunal Judicial da Comarca de ..., apenso por linha aos presentes autos, em que foi inventariado GG e inventariante e cabeça-de-casal HH, e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
e) No texto do referido testamento pode ler-se: “Instituo herdeira da parte dos meus bens de que posso legalmente e livremente dispor à dita minha Mulher que escolherá o que mais for de sua conveniência, mas se resolver casar outra vez, terá previamente de fazer doação dos bens que agora lhe deixo, aos filhos nascidos do nosso casamento. (…) Deixo a Casa das ... ao meu filho BB, e se este casar e não tiver filhos legítimos, a casa com o seu recheio e terreno anexo com todas as suas pertenças ficará para o filho legítimo mais velho do meu filho FF. Se ainda nenhum dos meus filhos varões tiver filhos legítimos, a Casa das ... ficará nos descendentes das minhas filhas, ou antes, naquele que descendendo delas represente a minha família como era uso e costume fazer-se nos tempos recuados da nossa monarquia, começando na mais velha CC e acabando na mais nova, EE”;
f) E ainda: “Também ficará incluído na parte disponível que deixo a minha mulher o uso, digo, o usufruto da Casa das ... enquanto viver e se não voltar a casar”;
g) Correu termos na extinta 2ª Secção, do extinto ... Juízo, do Tribunal Judicial da Comarca de ..., um processo de inventário obrigatório, sob o nº 7/1986, em que foi inventariado GG e inventariante e cabeça-de-casal HH, conforme se extrai do próprio processo de inventário apenso por linha aos presentes autos, sendo a aqui Autora representada pela curadora II;
h) No âmbito do referido processo de inventário, a cabeça-de-casal, HH, juntou aos autos, em 15.02.1987, a relação de bens, conforme se retira de fls. 28 a 37 do mencionado processo de inventário e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
i) No referido processo de inventário, o Ministério Público promoveu a avaliação dos bens móveis, o que foi determinado por despacho do juiz do processo de 17.03.1987, conforme resulta de fl. 163 desse processo de inventário e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, o que foi feito conforme se retira de fls. 190 e 191 desse mesmo processo e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
j) No referido processo de inventário, em 18.05.1987, a cabeça-de-casal veio relacionar adicionalmente 19/36 partes indivisas do jazigo nº ..., em forma de capela, no Cemitério ..., tendo-lhe atribuído o valor de € Esc. 50.000$00, conforme se retira de fl. 193 do referido processo de inventário e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
k) No referido processo de inventário, em 19.05.1987, o Ministério Público promoveu a avaliação do direito supra referido, o que foi determinado por despacho do juiz do processo em 20.05.1987, conforme resulta de fl. 194 desse processo de inventário e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, o que foi feito, conforme se retira de fl. 203 desse mesmo processo, tendo o direito em causa sido avaliado em Esc. 2.400.000$00;
l) No referido processo de inventário, em 12.05.1988, o escrivão de direito procedeu à descrição de bens, conforme resulta de fls. 230 a 235 desse processo de inventário e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
m) No referido processo de inventário, em 06.07.1988, realizou-se uma conferência de interessados, na qual, entre outras deliberações, os interessados “mais deliberaram por unanimidade com a anuência do digno Magistrado do Ministério Público que os bens móveis das verbas números um a catorze e os imóveis das verbas números quinze a 39 (trinta e nove) sejam adjudicados pelos valores constantes da descrição, em comum e na devida proporção, a cada um dos interessados, para lhes ficarem a pertencer”, conforme resulta de fls. 239 a 240 desse processo de inventário e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
n) Na referida conferência, “pelos interessados maiores foi dito prescindirem do depósito das tornas a que venham a ter direito e da composição dos seus quinhões”;
o) No decurso dessa conferência de interessados, “ele Senhor Juiz ordenou à cabeça de casal a junção aos autos de uma certidão de nascimento para cálculo do usufruto referente às verbas números trinta e trinta e um, concedendo-lhe o prazo de oito dias e ordenou que se cumpra o disposto no artigo 1373º do Código de Processo Civil”;
p) Procedeu-se, no processo de inventário e de seguida, ao cálculo do usufruto, conforme resulta de fl. 245-245v desse processo de inventário e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
q) O Ministério Público deu a forma à partilha, nos termos que resultam de fl. 246 desse processo de inventário e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
r) No referido processo de inventário, foi elaborado o mapa de partilha nos termos que constam de fls. 253 e 254 desse processo de inventário e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
s) No referido processo de inventário, em 15.06.1989, HH, DD, EE e FF, juntaram aos autos um requerimento através do qual reclamaram do mapa de partilha, designadamente, contra o modo como foi feito o preenchimento dos quinhões de CC, DD, EE, FF, AA e BB, esclarecendo que a deliberação adotada na conferência de interessados teve como propósito que ao interessado BB não seriam adjudicados bens ou direitos para além dos legados e que aos interessados CC, DD, EE, FF e AA seriam adjudicados todos os outros bens ou direitos com exclusão daqueles que foram legados ao interessado BB, tendo ainda sugerido um mapa de partilha, conforme se retira de fls. 257 a 260 do mencionado processo de inventário e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
t) No referido processo de inventário, em 16.06.1989, BB, por si e como procurador de CC, juntou aos autos um requerimento no qual reclamou do mapa de partilha nos mesmos termos que constam do requerimento mencionado em s), conforme se retira de fls. 262 a 265 do mencionado processo de inventário e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
u) No referido processo de inventário, e em face dos requerimentos suprarreferidos, o Ministério Público promoveu o seguinte: “não me parece que a situação descrita nos requerimentos que antecedem seja subsumível á previsão do artigo 1379º, do Código de Processo Civil. (…) Assim, por me parecer que aquela situação cabe na previsão do artigo 1386º do diploma citado, p. se designe dia para conferência de interessados”, conforme se retira de fl. 266 do mencionado processo de inventário e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
v) De seguida, nesse processo de inventário, o juiz designou dia para a realização de uma conferência de interessados, conforme se retira de fl. 266v do mencionado processo de inventário e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
w) Nesse processo de inventário, para a conferência de interessados e por cartas remetidas em 03.07.1989, foram convocados os interessados, sendo que II foi convocada na qualidade de curadora de JJ, conforme se retira dos avisos postais constantes do mencionado processo de inventário a fl. 267 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
x) No referido processo de inventário, em 11.07.1989, realizou-se a conferência de interessados determinada em v), na qual, entre outras deliberações, os interessados “por unanimidade entre todos os interessados presentes e representados foi confirmado o que haviam deliberado na conferência de fls. 239 exceto quanto à composição dos quinhões que, com a anuência do digno Magistrado do Ministério Público teve o resultado seguinte: (…) Para a interessada viúva HH, serão adjudicados pelos valores constantes da descrição, metade de cada um dos móveis das verbas um a catorze inclusive, metade de cada um dos imóveis das verbas quinze a vinte e nove inclusive, e metade de cada um dos imóveis das verbas trinta e dois a trinta e nove inclusive; (…) Para o interessado BB serão adjudicados pelo valor da descrição cada um dos imóveis das verbas trinta e trinta e um em raiz legados; e para cada um dos interessados CC e marido, DD, EE, FF e JJ, serão adjudicados pelos valores da descrição, um décimo de cada um dos móveis das verbas um a catorze inclusive, um décimo de cada um dos imóveis das verbas quinze a vinte e nove inclusive e um décimo de cada um dos imóveis das verbas trinta e dois a trinta e nove inclusive. (…) Pelos interessados maiores foi dito prescindirem do depósito de tornas a que venham a ter direito e da composição dos seus quinhões”, conforme resulta de fl. 269 desse processo de inventário e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
y) Nesse processo de inventário o Ministério Público promoveu, de seguida, que se procedesse à partilha pela forma já indicada a fl. 246 desses autos, tendo o juiz do processo proferido despacho nesse sentido, conforme resulta de fl. 270 desse processo de inventário e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
z) No referido processo de inventário, foi elaborado novo mapa de partilha nos termos que constam de fls. 271 e 272 desse processo de inventário e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
aa) A partilha de fls. 271 e 272 foi homologada por sentença, transitada em julgado, conforme consta de fl. 274 desse processo de inventário e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
bb) Em Agosto de 1999, HH, CC, DD, EE, FF e JJ declararam que foram donos e legítimos possuidores de 1/20 (um/vinte avos) do prédio rústico situado no lugar de ..., anteriormente de ..., na freguesia ..., do concelho ..., inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo ...0º, e que transmitiram a KK
 e mulher, LL, todos os direitos que sobre os 1/20 (um/vinte avos) do prédio acima referido possuíam, pelo preço de Esc. 9.000.000$00, conforme se retira da cópia junta aos autos a fls. 217 a 219 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
cc) No dia 3 de Janeiro de 2004, decorreu uma reunião dos comproprietários do prédio misto denominado Quinta ..., na qual estiveram presentes todos os comproprietários do referido prédio, com exceção de FF, conforme resulta da ata da referida reunião, apelidada de Ata nº ..., e onde se menciona Assembleia Geral Extraordinária dos Comproprietários do prédio misto denominado “Quinta ...”, manuscrita pela Autora, cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 214-216 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
dd) No dia 6 de Março de 2012, no Cartório Notarial ..., em ..., HH, CC, DD, EE, FF e AA e marido, MM, declararam vender, e NN e mulher, OO, declaram comprar, pelo preço de € 68.000,00, o prédio rústico, denominado “...”, sito em ..., concelho ..., composto de campo de cultivo e vinha, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...06, conforme se retira da cópia da escritura pública junta aos autos de fls. 230 a 232 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
ee) Em 30 de Março de 2015, no Cartório Notarial ..., em ..., HH, CC, DD, EE, FF e AA, outorgaram escritura pública de expropriação amigável, declarando, juntamente com os demais outorgantes, que “concordam com esta expropriação nas condições indicadas e que, desde já, transferem para o Estado todo o direito, domínio e posse que até agora têm tido na parcela em causa”, pelo valor global de € 50.967,17, constituída pelos seguintes prédios: (i) prédio rústico sito no Lugar ..., freguesia ... registo na matriz predial rústica sob o n.º ...96 (verba 38 da partilha); (ii) prédio rústico sito no Lugar ..., ..., freguesia ... registo na matriz predial rústica sob o n.º ...01 (verba 39 da partilha); conforme se retira da cópia da escritura pública junta aos autos de fls. 220 a 227 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
ff) Em Agosto de 2015, HH, CC, DD, EE, e AA, na qualidade de comproprietárias do prédio inscrito na matriz predial rústica da União das Freguesias ..., ... e ... sob o artigo 4350º, subscreveram um requerimento dirigido ao chefe do serviço de finanças de ..., no qual requerem a correção da área do prédio, conforme se retira de fls. 228v e 229 dos presentes autos e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
gg) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o número ...03, um prédio urbano, sito em Largo ..., freguesia ... e ..., com a área total de 975 m2, composto de casa de ... e ... andar com logradouro, conforme se retira da certidão da mencionada Conservatória e junta aos autos a fl. 111;
hh) A aquisição do direito de propriedade incidente sobre o supra descrito prédio encontra-se inscrito, por sucessão hereditária e partilha, a favor de BB, mediante a Ap. ...48 de 2009/07/03, conforme se retira da certidão da mencionada Conservatória e junta aos autos a fl. 111;
ii) A aquisição do direito de usufruto incidente sobre o mencionado prédio encontra-se inscrita, por partilha, a favor de HH, mediante a Ap. ...48 de 2009/07/03, sendo que o respetivo cancelamento encontra-se inscrito mediante a Ap. ...25 de 2017/12/12, conforme se retira da certidão da mencionada Conservatória e junta aos autos a fl. 111;
jj) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o número ...03, um prédio rústico, sito em ..., freguesia ... e ..., com a área total de 1000 m2, composto de quintal das ... com ramada e árvores de fruta, conforme se retira da cópia da certidão da mencionada Conservatória e junta aos autos a fls. 472-473 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
kk) A aquisição do direito de propriedade incidente sobre o supra descrito prédio encontra-se inscrito, por sucessão hereditária e partilha, a favor de BB, mediante a Ap. ...15 de 2009/07/03, conforme se retira da certidão da mencionada Conservatória e junta aos autos a fls. 472-473;
ll) A aquisição do direito de usufruto incidente sobre o mencionado prédio encontra-se inscrita, por partilha, a favor de HH, mediante a Ap. ...48 de 2009/07/03, conforme se retira da certidão da mencionada Conservatória e junta aos autos a fls. 472-473;
mm) Na primeira metade da primeira década do século XXI, o Réu BB mandou construir, na Casa das ..., uma nova piscina, reposicionando a antiga, instalou a rega automática e substituiu a cablagem elétrica, tendo sido HH a requerer o processo de licenciamento da obra na Câmara Municipal ...;
nn) O Réu BB mandou eliminar a horta e construir em seu lugar um parque de estacionamento automóvel, bem como aumentar o muro na parte de trás da Capela ...;
oo) HH mandou pintar o exterior da casa, construir um telhado por cima da cozinha, um telhado por cima dos quartos e refazer o interior destes;
pp) Mandou ainda, em 2005, colocar um alarme de intrusão no interior e exterior da Casa das ...;
qq) O Réu BB mandou instalar, em 2008, na Casa das ..., um sistema de deteção de intrusão com acionamento de projetores e sirene de alarme;
rr) O Réu BB despendeu, em 2016, a quantia de € 1.500,00, na reparação do telhado da Casa das ..., e em 2006 e 2007, a quantia de € 1.113,49, em vários trabalhos de manutenção na piscina;
ss) Por sentença proferida em 23.09.2021, e transitada em julgado em 12.10.2021, foi decretado o acompanhamento de FF e designada AA para o cargo de acompanhante, conforme se retira do teor da certidão junta aos autos de fls. 513 a 522 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
tt) Nessa sentença foi fixada a data de conveniência de decretamento das medidas de acompanhamento no dia 15 de fevereiro de 1985;
uu) A patologia do Réu FF foi-se tornando gradualmente visível depois de este ter terminado o serviço militar;
vv) O Réu FF foi incorporado no exército português em ../../1987 e passou à disponibilidade em 17.11.1988, conforme resulta da certidão número ...12 junta aos autos a fl. 548 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
ww) O Réu FF concluiu o Bacharelato em Gestão Comercial e Contabilidade, em ../../1993, com a média final de 12 valores, na Universidade ..., conforme resulta da declaração da referida Universidade junta aos autos a fls. 549-550 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
xx) HH faleceu no dia ../../2017, conforme resulta da certidão da escritura de habilitação de herdeiros junta aos autos de fls. 32 a 33 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
yy) Os Réus DD e FF continuaram, após a morte do pai, a viver na Casa das ...;
zz) Aquando da tramitação do suprarreferido processo de inventário os Réus BB e HH já eram advogados;
aaa) II entregou, durante o ano de 2017, uma cópia do testamento referido em c) à Autora, a pedido desta;
bbb) O Réu BB diligenciou e obteve, juntamente com a mãe, a classificação da Casa das ... como Monumento de Interesse Público, processo este que decorreu desde 1996 e foi concluído em 2014;
ccc) A Autora é médica na especialidade de Ginecologia e Obstetrícia, doutorada em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade ..., Coordenadora Pedagógica do EMP01... (EMP01..., Lda.) e Professora Auxiliar Convidada da Faculdade de Medicina da Universidade ..., tendo textos por si escritos publicados em livros da especialidade.
***
2 – Factos não provados (com exclusão dos enunciados fácticos de carácter conclusivo, dos enunciados fácticos irrelevantes e dos enunciados descritores de matéria de direito):
Da petição inicial: artigos 13º, 19º, sem prejuízo do que se deu por provado nas alíneas w) e x), 20º, parte final, 22º a 25º, 33º, 43º a 45º, sem prejuízo do que se deu por provado na alínea aaa), 47º, 48º, 52º, 54º, 55º, 151º, parte final, 215º, 217º, 224º, 225º, 226º, 227º, 229º, 230º, 231º, 232º.
Da contestação: artigos 61º a 70º e 72º a 73º, sem prejuízo do que se deu por provado nas alíneas mm) a rr).
Da réplica: artigos 66º a 69º, 75º, 77º, 80º, 83º, 84º, 89º a 91º e 94º.
Do articulado superveniente: artigos 8º a 11º, sem prejuízo do que se deu por provado na alínea uu).”
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1).2. Acrescentamos que nos arts. 8.º a 11.º do articulado superveniente a Autora alegou que:
“8.ºEsta patologia do irmão da Autora, FF, sobreveio ao período de cumprimento do serviço militar, com profundas consequências na saúde mental do mesmo.
9º E a sua incapacidade era visível, mesmo notória, sendo reconhecível por qualquer pessoa normalmente diligente que com ele privasse,
10º E reconhecida, naturalmente, por todos os Interessados que intervieram na Conferência realizada em 11 de junho de 1989 naqueles autos de inventário.
11º E concretamente, por todos os Réus.”
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IV.
1).1. […]
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2).1. Passamos a conhecer da 2.ª questão.
Em jeito de enquadramento, começamos por lembrar que a Recorrente pediu que seja declarada a ineficácia em relação a si das deliberações tomadas na conferência de interessados do dia 11 de julho de 1989, realizada nos autos de inventário obrigatório n.º 7/86, que correu termos pela 2.ª Secção do ... Juízo do extinto Tribunal Judicial da Comarca de ....
Estão em causa duas deliberações: a revogação do que havia sido deliberado a propósito da composição dos quinhões na conferência de 6 de julho de 1988; o novo acordo quanto à composição dos quinhões, nos termos do qual os prédios que correspondem à Quinta ... foram adjudicados ao Réu BB.
É indiscutível que a Recorrente, enquanto herdeira legitimária do seu progenitor, era uma das interessadas na partilha feita com base no acordo quanto à composição dos quinhões que resultou daquelas deliberações, depois homologada pela sentença referida na alínea aa) do rol dos factos assentes. Nessa qualidade, foi citada e interveio, com as particularidades que vamos ver na sequência, no processo de inventário.
Por agora, importa reter que a deliberação quanto à composição dos quinhões, prevista no n.º 2 do art. 1352 do então vigente Código de Processo Civil de 1961, aprovado pelo DL n.º 44129, de 28.12.1961, em termos semelhantes aos enunciados, atualmente, no art. 1111/2, a), do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26.06, na redação da Lei n.º 117/2019, de 13.09, constitui um negócio jurídico, assente nas declarações de vontade dos interessados. Aliás, em bom rigor, a partilha, de que aquele acordo é uma etapa, constitui um negócio processual, pertencendo à categoria dos chamados atos duplos, podendo, assim, ser afetada tanto por vícios de carácter substantivo, como por vícios de natureza processual, à semelhança do que sucede com os negócios de auto-composição do litígio, designadamente a transação.[1]
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2).2.1. Partindo desta natureza negocial da deliberação, acrescentamos agora que a Recorrente não interveio na sua formação por si, mas através da curadora ad litem que lhe havia sido designada no processo de inventário. Isto convoca a questão de saber em que medida a declaração, em que participou a curador ad litem, é suscetível de produzir efeitos na esfera jurídica da Recorrente.
Como se sabe, a regra é a de que apenas o titular dos interesses a regular por um determinado negócio deve intervir na sua realização. No dizer de Inocêncio Galvão Telles (Manual dos Contratos em Geral, 3.ª ed., Lisboa, 1965, p. 301), “o normal é que o sujeito do negócio jurídico, a parte em sentido formal, coincida com o sujeito do interesse, a parte em sentido substancial.” E isto é assim porque cada um tem a sua própria esfera de competência dispositiva: árbitro dos seus interesses, e destes apenas, não pode ingerir-se na esfera de interesses alheios.” Por isso, como escreve Emílio Betti (Teoria Geral do Negócio Jurídico, II, Coimbra: Coimbra Editora, 1969, pp. 32-33), cada um dispõe das coisas que lhe pertencem; renuncia aos seus direitos; adquire para si; assume obrigações por si.”
Existe, deste modo, um princípio de coincidência, entre sujeito da declaração e sujeito do interesse que é regulado por via dos efeitos reais, obrigacionais, aquisitivos, dispositivos ou outros, de que aquela é fonte. A coincidência deriva, de modo positivo e negativo, do princípio da autonomia privada – i. é, do poder que cada um tem de autorregular os seus próprios interesses de modo a prosseguir finalidades particulares. De modo positivo, na medida em que tem por condição o reconhecimento de que um sujeito pode regular os seus interesses; mas, ao mesmo tempo, cada autonomia é limitada à esfera desses mesmos interesses, não podendo servir para ingerências em esferas jurídicas alheias, sob pena de esmagamentos da autonomia dos sujeitos respetivos (Rui Pinto, Falta e Abuso de Poderes na Representação Voluntária, Lisboa: AAFDL, 1994, p. 10).
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2).2.2. De uma outra perspetiva, um dos pressupostos de validade e eficácia do negócio jurídico é, segundo a sistematização de Emílio Betti (Teoria cit., pp. 7–8), o da legitimidade. Consiste ela na “competência para obter ou para suportar os efeitos jurídicos do regulamento de interesses que se tem em vista: competência que resulta de uma específica posição do sujeito, a respeito dos interesses que se trata de regulamentar” (Emílio Betti, Teoria cit., p. 31). Consiste em verificar “por quem, e a respeito de quem, o negócio pode ser corretamente concluído, a fim de poder produzir os efeitos jurídicos conformes à sua função e, por outro lado, aderentes ao regulamento de interesses pretendido pelas partes” (ibidem).
Assim, a título de exemplo, tem legitimidade para vender o proprietário da coisa, pois é na esfera jurídica dele que se vão repercutir os efeitos típicos da compra e venda: (i)) a transmissão da propriedade da coisa; (ii)) a obrigação de entregar a coisa; e (iii)) o direito de exigir do comprador o pagamento do preço.[2]
Para dar resposta às necessidades do tráfico jurídico, admite-se, todavia, que alguém possa intervir numa esfera que não a sua, produzindo nela efeitos jurídicos. Para que isso aconteça – e não haja ilegitimidade – é necessário ou uma situação típica tabelada na lei, funcionando automaticamente ou mediante intervenção judicial, ou ainda que seja o titular dessa esfera a requerer a intervenção. Está-se, então, perante a legitimidade indireta, também dita de segundo grau (Emílio Betti, Teoria cit., pp. 34 e ss.).
É neste contexto que surge o instituto da representação, seja legal ou voluntária, dispondo o art. 258 do Código Civil[3] que [o] negócio jurídico realizado pelo representante, em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último.”
Apesar de a norma se referir, prima facie, aos efeitos da representação, é possível construir a partir dela um conceito de representação no qual se encerrem os elementos definidores do instituto em geral e da representação, em particular.
Assim, a representação consiste em alguém (o representante) realizar atos jurídicos em nome e no interesse de outrem (o representado), nos limites de poderes conferidos por este ou pela lei. Não se inclui no conceito de representação a produção direta dos efeitos do negócio na esfera jurídica do representante, uma vez que isso é uma consequência direta daquela ação e não um seu elemento (Rui Pinto, Falta cit., p. 14).
O representante, embora seja parte formal no negócio celebrado com terceiro, atua em nome de outrem – o dono do negócio ou dominus negotii – e não em seu próprio nome, como sucede no mandato sem representação (art. 1180), em que o mandatário age em nome próprio, apesar de “praticar um ou mais atos jurídicos por conta” do mandante (art. 1157). Isto significa que o representante deve mostrar-se perante terceiros como substituindo a pessoa em lugar de quem age e em relação à qual se referem, por isso, os efeitos do negócio jurídico. Esta ideia é expressa pelo brocardo latino contemplatio domini. O representante, ao atuar em nome alheio, mostra que não quer os efeitos do negócio para si, mas para o dominus.
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2).2.3. A representação pressupõe ainda que o representante atue ao abrigo de poderes que lhe permitam agir em nome alheio. Caso contrário, os efeitos negociais não se fazem sentir na esfera jurídica do dominus.
O poder de representação é uma posição jurídica ativa que integra a esfera jurídica do agente, atribuindo-lhe legitimidade para afetar a esfera jurídica do dominus através da produção nela de efeitos de negócio em que este não interveio formalmente. Este poder tem, portanto, uma função de legitimação (Emílio Betti, Teoria cit., III, p. 238).
Fontes dos poderes representativos são a lei ou a vontade do dominus declarada num instrumento que é a procuração.
No caso, não suscita dúvida que os poderes representativos com base nos quais ocorreu a intervenção da referida curadora ad litem decorreram da lei, mais concretamente das normas que estabelecem a incapacidade judiciária dos menores de idade e preveem a forma de a suprir, então plasmadas nos arts. 9.º/2, 10.º/2 e 1331/1 do CPC de 1961, por referência ao art. 123 do Código Civil.
De facto, quando teve início o processo de inventário, a Recorrente não havia ainda atingido a maioridade. Estava sujeita ao então denominado poder paternal, cujo exercício cabia em exclusivo à sua progenitora (arts. 1877 e 1904/1 do Código Civil, na redação do DL n.º 496/77, de 25.11).
Por essa razão, a progenitora da Recorrente assumia, em geral, a sua representação (1881/1 do Código Civil, na redação do DL n.º 496/77, de 25.11), manifestando a vontade da filha, inclusive em juízo (art. 10.º/1 do CPC de 1961), como forma de suprimento da referida incapacidade judiciária. Não a podia, porém, assumir naquele concreto processo de inventário, uma vez que também concorria à partilha, havendo assim um potencial conflito de interesses com a sua representada. Daí a necessidade de ser substituída por um curador especial, conforme veio a suceder, com a intermediação do ato judicial de nomeação. Ser curador especial ou ad litem significa que os poderes de representação são restritos à prática de atos processuais naquele processo específico em que ocorreu a nomeação.
Acontece que os poderes de representação do curador especial caducam ipso facto no momento em que o menor completa os dezoito anos de idade ou é emancipado pelo casamento, adquirindo, então, plena capacidade de exercício de direitos (arts. 130, 132 e 133 do Código Civil). O representado passa a estar por si em juízo. Em decorrência, os subsequentes atos processuais, entre os quais se incluem aqueles que assumem um conteúdo negocial, devem ser praticados pelo próprio – ou por um seu representante voluntário. Qualquer ato que o representante – rectius, o ex-representante – pratique depois daquele momento enferma, pelas razões expostas, de uma ilegitimidade, sendo ineficaz em relação ao representado, tal como se concluiu na sentença recorrida.
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2).3.1. Precisando a última afirmação, diremos que, num sentido amplo, a ineficácia consiste na não produção dos efeitos que um determinado ato jurídico está, em abstrato, apto e destinado a produzir. Nas palavras de Carlos Ferreira de Almeida (“Invalidade, inexistência e ineficácia”, Católica Law Review, 1(2), pp. 9-33, https://doi.org/10.34632/catolicalawreview.2017.1980), “[s]endo performativo, como é o negócio jurídico, a sua essência – efeitos conformes ao significado – é afetada se tal conformidade não se verificar. A desconformidade resulta de algum elemento perturbador, intrínseco ou extrínseco, impeditivo da aplicação das regras constitutivas da eficácia. A ineficácia jurídica é o equivalente do insucesso (infelicity, unhappiness) na filosofia analítica.”
Não quer isto dizer que o ato jurídico não produza quaisquer efeitos, mas apenas que não produz, no todo ou em parte, os efeitos que o caracterizam e distinguem. Neste sentido, a figura é compatível com a produção de outros efeitos derivados do próprio ato ou até com efeitos derivados da ineficácia do ato, como sucede com a obrigação de restituir que resulta de declaração de nulidade ou da anulação.
Nesta perspetiva, conforme ensina a doutrina, a ineficácia (dita lato sensu) desdobra-se em três grandes categorias: invalidade, inexistência e ineficácia stricto sensu. A título de exemplo, para além do já citado Carlos Ferreira de Almeida, António Menezes Cordeiro (Direito Civil Português, I, Parte Geral, tomo I, Coimbra: Almedina, 1999, pp. 563 e 566-567), Carlos Alberto da Mota Pinto (Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª ed., 6.ª reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1992, pp. 605-606).
O critério distintivo entre estas categorias consiste em que, na invalidade, a ineficácia deriva do desvalor jurídico (ou vício) reportado a um elemento ou requisito intrínseco à estrutura ou à formação do ato, enquanto a ineficácia em sentido estrito resulta de um facto extrínseco ao ato e, por isso, não valorativo deste. Nesta medida, “a ineficácia stricto sensu não é uma sanção nem um efeito sancionatório; é apenas a consequência de conformidade com a autonomia privada ou de desconformidade não valorativa com certas regras legais” (Carlos Ferreira de Almeida (loc. cit., p. 26).
As situações de mera ineficácia são diversas e heterogéneas, não havendo regras gerais que regulamentem a figura. Sem prejuízo, a doutrina distingue dentro dela a ineficácia autónoma (ou endógena) da ineficácia heterónoma (ou exógena). A primeira é aquela que tem como fonte uma cláusula negocial que se revela no conteúdo do próprio ato. É o que sucede com os negócios sob condição suspensiva se a condição se não verificar (art. 274 do Código Civil). Trata-se de uma ineficácia tendencialmente absoluta, no sentido de que afeta quaisquer pessoas – em primeiro lugar as partes, mas também os seus sucessores e terceiros. A segunda tem como fonte a lei. É geralmente subsequente e pode funcionar ipso iure (por exemplo, moratória legal) ou ser potestativa (por exemplo, resolução por incumprimento; revogação pelo doador do contrato de doação, nos termos dos arts. 970 a 979; revogação unilateral da declaração contratual do consumidor no âmbito do direito de arrependimento). Pode ser absoluta ou relativa. É absoluta, designadamente, em situações de falta de homologação ou autorização, de caducidade ex lege, como sanção por violação de um dever legal e por falta dos requisitos para inserção de cláusulas contratuais gerais em contratos singulares.  É relativa se se verificar apenas em relação a certas pessoas, sejam terceiros, sejam as partes formais no ato jurídico. Assim, tem apenas efeitos entre as partes nas situações de exercício abusivo de um direito (art. 334). É limitada a terceiros, dizendo-se inoponibilidade, quando é originária, em consequência, por exemplo, da omissão de registo declarativo ou de notificação da cessão de crédito, do contrato ou do penhor (arts. 583/1, 424/2, e 681), da prática de atos de disposição pelo insolvente (art. 81/6 do CIRE) ou pelo titular de bens arrestados (art. 622/1); diz-se impugnabilidade, quando é superveniente, como sucede na impugnação pauliana (arts. 610 e ss.) ou na redução de liberalidades (arts. 2169 e ss.).
Pois bem, a denominada representação sem poderes, não dizendo respeito a um elemento intrínseco à estrutura ou à formação do negócio jurídico, configura, indiscutivelmente, um exemplo de ineficácia stricto sensu na referida modalidade da inoponibilidade, conforme decorre do disposto no n.º 1 do art. 268, onde se diz que “[o] negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado.” A norma limita a ineficácia em relação ao representado, o que significa, no dizer de Rui Pinto (Falta cit., p. 69), que “os direitos e obrigações decorrentes do negócio, os efeitos deste, não se produzem na esfera jurídica do representado. Tal é compreensível, uma vez que ele não autorizou ainda a ingerência de terceiros na sua esfera jurídica.” Em relação ao representante, o negócio não pode produzir efeitos. Continuando a seguir a exposição de Rui Pinto, diremos que “se ele [o representante] agiu em nome alheio, não quer os efeitos para si, mas para outrem, o qual também ainda não manifestou vontade de os assumir.”
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2).3.2. Ocorre representação sem poderes quando uma pessoa, agindo como representante de outrem, isto é, em nome alheio, celebra um ato jurídico destinado a produzir efeitos na esfera jurídica do seu representado, sem que, naquele momento, tivesse algum poder ou o poder suficiente concedido para a sua prática. Dito de outra forma, pressupõe-se que uma pessoa sem legitimação representativa celebre um negócio atuando em nome do titular dos interesses em questão, seu presumido representado. Neste sentido, António Menezes Cordeiro / Pedro de Albuquerque, “Art. 268.º”, AAVV, António Menezes Cordeiro (coord.), Código Civil Comentado, I, Parte Geral, Coimbra: Almedina, 2020, p. 785).
Trata-se de uma figura que é tratada pela doutrina no âmbito da representação voluntária, mas que, por identidade de razões, tem lugar também no domínio da representação legal que daquela diverge, no essencial, apenas pela natureza da fonte dos poderes representativos. Em ambas as situações não estamos, na verdade, perante uma simples intromissão nos interesses de terceiro, como sucede, por exemplo, na venda de coisa alheia (a distinção é feita de modo claro em RL 26.06.2016, 5003/14.5T2SNT.L1–2, relatado por Pedro Martins). Há aqui pelo menos um elemento suplementar: a atuação em nome e por conta de outrem. E pode haver ainda um outro: a existência de poderes representativos, ainda que insuficientes para o concreto ato em questão, ou a existência pretérita de tais poderes, como sucede quando estes cessaram por qualquer razão.
Compreende-se, por esta razão, que o legislador consagre um regime específico, com o qual visa dar resposta aos dois principais problemas que a representação sem poderes coloca: no dizer de Raúl Guichard / Catarina Brandão Proença / Ana Teresa Ribeiro (“Art. 268.º”, AAVV, José Carlos Brandão Proença (coord.), Comentário ao Código Civil, Parte Geral, 2.ª ed., Lisboa: UCE, 2023, p. 795), “o de saber se, e como, pode aquele em cujo nome o negócio foi concluído (sendo, por isso, potencial ou imanentemente seu) dele se apropriar, chamar a si os respetivos efeitos; e em que medida quem atuou sem poderes responde perante o terceiro.”
Esse regime assenta, no essencial, na seguinte ideia: apesar do negócio ter sido celebrado sem poderes – e por isso faltar o pressuposto da legitimidade – isso não significa que ele não possa servir aos interesses do dono. Pode ter sido uma boa decisão do falsus procurator. Não se justifica, assim, que se comine, de imediato, a nulidade, quando existe uma estrutura negocial aproveitável. Mas também não se justifica uma situação de anulabilidade, pois ela redundaria numa produção de efeitos, eventualmente contrários ao interesse do dominus. Inclusive, passaria a ter o ónus de ter de pôr fim ao negócio se não o quisesse.
Daí a opção do legislador por uma solução que não invalide o negócio por completo, nem vincule de imediato o representado aparente. Essa solução é a da mera ineficácia. No dizer de Oliveira Ascensão, citado por Rui Pinto (Falta cit., pp. 93-94), “[p]ode a lei determinar que o negócio seja válido se o pressuposto falta no momento de formação deste. Mas também pode aceitar a verificação do pressuposto em momento posterior. O negócio fica então numa situação de pendência até que o pressuposto se verifique, ou pelo contrário se torne certa a sua não verificação.” Dito de outra forma, o negócio fica em condição análoga à do negócio sob condição suspensiva.
Nesta linha, continuando a seguir Rui Pinto, se o representando negar a ratificação ou ela se tornar impossível, então torna-se certo que o pressuposto da legitimidade já não sobrevirá. Materialmente, isso significa que aquilo que justifica a manutenção da situação – o aproveitamento do negócio, se interessar ao dono – já não existe. Extingue-se a sujeição em que se encontrava o terceiro contraente e com ela a faculdade de revogação. Esta só se compreende, pois, enquanto for possível a ratificação. E, o que é mais importante, também o negócio se extingue. Pois se antes ele existia, embora ineficaz, mas ratificável, agora não faz sentido dizer que existe no mundo jurídico algo sem alguma utilidade. Também neste sentido, Menezes Cordeiro, Tratado cit., p. 111. Na jurisprudência, STJ 9.03.2004 (04A106), relatado por Silva Salazar, e RG 29.04.2010 (1490/08.9TBBRG), relatado por Raquel Rego.
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2).4.1. Como resulta claro do que antecede, concordamos com o enquadramento da questão decidenda no regime do art. 268 do Código Civil e, bem assim, com a conclusão do Tribunal a quo no sentido de que as deliberações da conferência de interessados do dia 11 de julho de 1989 – a um tempo, a revogação do anterior acordo relativo à composição dos quinhões; a outro, a celebração de um novo acordo com esse objeto – são ineficazes em relação à Recorrente – ou, dizendo com mais propriedade, são inoponíveis à Recorrente –, salvo se tiver havido ratificação por parte desta.
Com isto está dado o mote para respondermos à questão de saber se tais deliberações foram ratificadas pela Recorrente.
Como vimos, o art. 268/1 confere ao sujeito em cujo nome o contrato ou o negócio unilateral foi celebrado o direito potestativo de lhe conferir eficácia, assumindo os seus efeitos suspensos, através da ratificação.
Assente na vontade do dominus, a ratificação apresenta-se como um negócio jurídico unilateral, conforme é assinalado pela doutrina e pela jurisprudência. Na doutrina, Rui Pinto (Falta cit., p. 75), António Menezes Cordeiro / Pedro de Albuquerque (loc. cit., p. 786) e Raúl Guichard / Catarina Brandão Proença / Ana Teresa Ribeiro (loc. cit., p. 796). Na jurisprudência, STJ 2.06.2015 (505/07.2TVLSB.L1.S1), relatado por Hélder Roque, e RC 10.03.2015 (45/13.0TBOFR.C1), relatado por Catarina Gonçalves. Isto não prejudica a sua natureza acessória ou complementar relativamente ao negócio jurídico que se destina a tornar eficaz.
Como negócio jurídico unilateral que é, a ratificação não carece de qualquer aceitação. É, no entanto, um negócio receptício, tendo por destinatário a contraparte que é aquele a quem verdadeiramente importa a eficácia do negócio ratificado.
Por outro lado, conforme refere Rui Pinto (Falta cit., p. 76), a ratificação é por natureza unitária – isto é, “ou se ratifica o negócio ou não” – e incondicional. Uma declaração de ratificação parcial ou com reservas não é admissível “uma vez que essa limitação haveria de ter correspondência num acordo de vontades (entre representante e terceiro) de menor extensão, o qual não existe. Por um lado, a contraparte quis o negócio nos termos já declarados; seria necessária, assim, uma outra declaração e, portanto, um novo negócio. Por outro lado, sempre é o representante que é a parte formal no negócio e não o dominus. A vontade deste interessa apenas para assumir ou não os efeitos que o ato jurídico pode produzir.” Admite-se, porém, a existência de vários negócios independentes entre si, podendo uns ser ratificados e outros não. Nesta situação, de que é exemplo o caso apreciado em 17.02.1998 (CJSTJ, Ano VI, t. 1, pp. 68-70), relatado por Machado Soares, “não há, em rigor, uma ratificação parcial, mas várias situações separadas” (Rui Pinto, Falta cit., p. 77).
A ratificação tem efeitos ex tunc: conforme resulta claramente da citada norma legal, o negócio celebrado pelo representante produz os seus efeitos a partir da data em que foi concluído e não apenas desde o momento em que a declaração daquele foi ratificada. Compreende-se que assim seja: a ratificação é, afinal, “uma apropriação de efeitos de um negócio já existente à data – embora ineficaz – e não uma declaração de vontade que vá substituir aquela do representante” (Rui Pinto, Falta cit., p. 78). Ressalva-se, porém, como limite, a salvaguarda dos direitos de terceiros.
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2).4.2. O já citado art. 268/2 impõe que a ratificação observe a forma prevista para a procuração, o que nos remete para o art. 262/2, nos termos do qual “[a] procuração revestirá a forma exigida para o negócio que o procurador deva realizar.” Perante esta remissão de segundo grau, tem de concluir-se que as exceções à regra da equiparação ou simetria entre a forma do negócio representativo e a da procuração repercutem-se na ratificação (Raúl Guichard / Catarina Brandão Proença / Ana Teresa Ribeiro (loc. cit., p. 798).
Admite-se, porém, a ratificação tácita, fundada na conduta do dominus que gere legitimamente no terceiro contraente a confiança na existência da ratificação. É uma expressão do princípio geral da boa fé, em particular na sua vertente de tutela da confiança. Os “factos que, com toda a probabilidade a revelam” devem, no entanto, ser expressos através da forma exigida, conforme resulta do n.º 2 do art. 217. Ao admitir uma declaração tácita extraída dos factos concludentes relativamente aos quais foi observada a forma legal, o legislador está a permitir uma declaração formal extraída por presunção conjugada com factos-base que respeitaram a forma exigida (STJ 8.07.2020, 5455/15.6T8LSB.L1.S1, relatado por Maria dos Prazeres Beleza). Neste sentido, escreve-se no já citado RC 10.03.2015 (45/13.0TBOFR.C1) que “o carácter formal da declaração de ratificação não obstava a que pudesse ser emitida tacitamente, desde que a forma exigida fosse observada relativamente aos factos dos quais se deduz a declaração.”
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2).4.3.1. No caso, Recorrente e Recorridos são conformes quanto à inexistência de uma ratificação expressa do negócio jurídico celebrado em nome e representação da primeira pela curadora que lhe havia sido nomeada no processo de inventário; divergem quanto à questão de saber se houve uma ratificação tácita decorrente da intervenção da Recorrente nos atos referidos nas alíneas bb), cc) e ff) e nos negócios jurídicos descritos nas alíneas dd) e ee) do rol dos factos provados.

Quid inde?
Diz o art. 217/1 que “[a] declaração negocial pode ser expressa ou tácita: é expressa, quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio direto de manifestação da vontade, e tácita, quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam.”
A existência de uma declaração negocial, composta por um elemento interno – relativo à vontade, no qual se integram a vontade de ação, a vontade de declaração ou consciência da declaração e a vontade do negócio, esta última relativa aos efeitos a produzir pelo negócio (cf. Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª ed., por António Pinto Monteiro / Paulo Mota Pinto, Coimbra: Coimbra Editora, 2005, pp. 419 e ss.) – e por um elemento externo – a declaração propriamente dita, ao qual corresponde uma ação dirigida à produção de efeitos jurídicos –, seja ela expressa ou tácita, é determinada através das regras de interpretação consagradas nos arts. 236 e ss.. Como escreve Paulo Mota Pinto (Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, Coimbra: Almedina, 1995, pp. 188-189), “[d]o ponto de vista do aspeto objetivo da declaração – e uma vez que concretamente só existem declarações negociais com um certo conteúdo –, há (…) que afirmar a continuidade de critérios entre a questão da existência e do conteúdo da declaração. A interpretação tem de investigar, não só o que constitui o conteúdo de uma declaração de vontade, mas também, se existe de todo uma declaração de vontade.” O mesmo autor acrescenta (Declaração cit., pp. 553-554) que “a nossa lei emprega o termo declaração com um sentido amplo. (…) é declaração negocial qualquer forma de comportamento que de acordo com os critérios interpretativos tenha um significado negocial, independentemente do escopo notificativo.” Compreende-se, assim, que já tenha sido decidido que “é questão de direito afirmar a existência de uma declaração tácita” (STJ 5.11.1997, BMJ 471, pp. 367 e ss., relatado por Nascimento Costa, e STJ 24.05.2007, 07A988, relatado por Alves Velho. Também RL 28.09.2017, 3006/11.0TCLRS.L1-2, relatado por Ondina Carmo Alves). No mesmo sentido, na doutrina, José Alberto Vieira, Negócio Jurídico. Anotação ao Regime do Código Civil (arts. 217.º a 295.º, reimpressão, Lisboa: AAFDL, 2019, p. 16).
Da declaração negocial há que distinguir as tradicionalmente designadas declarações de ciência, que são aquelas através das quais as partes afirmam ou reconhecem a existência de uma situação de facto, não pretendendo com elas exteriorizar uma vontade jurídico-negocial (Heinrich Ewald Hörster / Eva Moreira da Silva, A Parte Geral do Código Civil Português, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2019, pp. 461-462).
Por outro lado, a norma em apreço (art. 217/1) tem um duplo alcance: a um tempo, consagra o princípio da liberdade declarativa e a equivalência entre declaração expressa e declaração tácita; a outro, fornece o critério de delimitação entre estas duas modalidades de declaração (Paulo Mota Pinto, Declaração cit., pp. 456-457).  
O princípio da liberdade declarativa permite que o declarante opte livremente pela emissão de uma declaração expressa ou tácita, visto que a lei lhes atribui o mesmo valor declarativo. A equivalência apenas é quebrada por disposições legais específicas que impõem uma declaração expressa (v.g., arts. 413/1, 628/1 e 859).
Sobre o critério de delimitação não existe um consenso na doutrina: alguns autores afirmam a consagração de um critério subjetivo, atinente à finalidade do agente, para a qual a declaração é expressa quando resulta de uma conduta destinada a manifestar uma vontade e tácita quando deriva de uma atuação com outros objetivos (é o caso Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral cit., p. 425); outros defendem que está consagrada uma posição objetiva, nos termos da qual a declaração expressa é atuada com meios cujo sentido declaratório está fixado pelos usos, pela lei ou por convenção e tácita quando os meios disponíveis só no contexto permitem apreender tal sentido (é o caso de António Menezes Cordeiro, AAVV, António Menezes Cordeiro (coord.), Código Civil Comentado, I, Parte Geral, Coimbra: Almedina, 2020, p. 626, e José Alberto Vieira, Negócio Jurídico cit., p. 14); outros ainda seguem uma orientação intermédia (é o caso de Carlos Ferreira de Almeida, Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, Coimbra: Almedina, 1992, pp. 711 e ss.). 
A nosso ver, a redação do preceito indica um desprendimento da classificação em relação à intenção ou escopo do declarante, a que não é feita qualquer referência, dando destaque aos meios de exteriorização da declaração. Nesta perspetiva, está consagrada a doutrina objetivista.
O texto da norma levanta algumas dificuldades interpretativas. Desde logo, ao qualificar como expressa toda a declaração efetuada por um “meio direto de manifestação da vontade”, nomeadamente por palavras ou por escrito, o critério legal parece remeter a declaração tácita para o campo dos comportamentos concludentes. Esta leitura, se levada às últimas consequências, implicará a negação da possibilidade de uma declaração tácita ser revelada por escrito ou por palavras, uma vez que estas “constituem um meio direto de manifestação da vontade.” Entende-se, todavia, tal como escreve Paulo Mota Pinto (Declaração cit., p. 461), que “nos meios de expressão da vontade, considerados objetivamente e em si, não parece que possa descortinar-se uma destinação a um fim.” Uma declaração tácita também pode resultar de palavras ou de um escrito. Assim, pode afirmar-se, com Evaristo Mendes / Fernando Oliveira e Sá (“Art. 217.º”, AAVV, José Carlos Brandão Proença (coord.), Comentário ao Código Civil, Parte Geral, 2.ª ed., Lisboa: UCE, 2023, p. 589), que “[n]as declarações expressas, o sentido objetivo do comportamento corresponde a uma intenção declarativa direta; nas tácitas, não se demonstra objetivamente tal intenção, existindo apenas factos concludentes a partir dos quais se poderá deduzir a existência de uma declaração negocial.” Deste modo, de uma declaração cujo sentido é dirigido diretamente à produção de determinados efeitos jurídicos – em relação aos quais é, por isso, expressa – podem retirar-se, através da sua exegese, outros efeitos jurídicos, aos quais ela se reporta indiretamente, surgindo, nesta parte, como tácita. Neste sentido, na doutrina, além dos autores acabados de citar, José Alberto Vieira (Negócio cit., p. 15-16) e Carlos Ferreira de Almeida (Texto e Enunciado cit., pp. 721 e ss.).
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2).4.3.2. Para as declarações tácitas, a lei impõe que os factos ou condutas concludentes revelem, com toda a probabilidade, a manifestação de uma declaração negocial. Dito de outra forma, que permitam concluir pela existência desta com base num juízo de inferência. Como vimos, uns e outros podem revestir as mais variadas formas. Podem mesmo estar incluídos em declarações negociais expressas.
Na base está, como sempre, um problema de interpretação da declaração (Paulo Mota Pinto, Declaração cit., p. 747), porventura de solução mais complexa por estar em causa uma declaração tácita. Essa tarefa não implica, porém, qualquer desvio quanto aos cânones que devem ser observados na sua execução que estão, como já escrevemos, plasmados nos arts. 236 e ss..
Não existem princípios interpretativos especiais para o conteúdo das declarações tácitas. Na verdade, como ensina Paulo Mota Pinto (Declaração cit., p. 748), “do ponto de vista objetivo, também aqui se verifica uma continuidade de critérios entre a averiguação do se e do quê da declaração negocial. Um ponto de vista normativo e exterior é, aliás, imprescindível como limite às inferências, para se determinar a existência e os termos do significado negocial na declaração tácita.” E acrescenta (Declaração cit., pp. 748-749): “Quanto ao problema a partir do qual se há-de obter o critério para a concludência do comportamento, supomos que se deve, também aqui, apelar antes de mais para os princípios gerais em matéria de interpretação. A ilação é – nas declarações receptícias – de fazer de acordo com o padrão da impressão do destinatário – ou seja, depende do juízo sobre se um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário” a efetuaria. O critério para a obtenção de uma declaração tácita (pelo menos das receptícias) há-de ser, aqui também, o da impressão do destinatário (…). É que (…) estamos em face do que se pode chamar um comportamento de concludência individual (ou individualmente concludente), cujo significado é de apreciar em face do caso concreto, tomando em conta todas as circunstâncias no emprego dos critérios interpretativos aplicáveis. (…) a diferença entre as duas formas de manifestação (tácita e expressa) depende unicamente da diversa estrutura da relação de significação, já não de um critério de valoração ao qual se submeta o facto manifestativo – a sua apreciação deve, portanto, ser conduzida pelos critérios gerais.” Esta é a orientação da jurisprudência, podendo citar-se, inter alia, STJ 24.05.2007 (07A988), relatado por Alves Velho, STJ 19.05.2011 (5326/09.5TVLSB.S1), relatado por Tavares de Paiva, STJ 9.07.2014 (299709/11.0YIPRT.L1S1), relatado por Pinto de Almeida, STJ 1.03.2018 (3555/15.1T8GMR-A.G1.S1), relatado por Fernanda Isabel Pereira, RG 12.04.2018 (174/16.9T8MDL-A.G1), relatado por Fernando Fernandes Freitas, RL 5.02.2019 (6889/17.7T8ALM.L1-7), relatado por Higina Castelo, RG 11.02.2021 (24255/18.5YIPRT.G1), relatado por Joaquim Boavida, RP 23.03.2023 (18512/21.0T8PRT.P1), relatado por Isoleta de Almeida Costa, RG 18.01.2024 (81/21.3T8MTR.G1), relatado por Rosália Cunha.
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2).4.3.3. Considerando o que antecede, impõe-se abrir um parêntesis para dizer que a interpretação da declaração negocial visa captar o seu sentido, o seu conteúdo. De acordo com o art. 236/1 do Código Civil, “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”, de um lado e, de outro (art. 236/2), “sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante é de acordo com ela que vale a declaração emitida.” O sentido da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. A normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante.
Deve procurar uma conciliação dos interesses do declarante e do declaratário dentro do sistema legislativo respeitante ao negócio jurídico. É evidente que o declarante tem interesse em ver relevante apenas a sua vontade, ao contrário do declaratário que pretende poder confiar naquilo que ele próprio entendeu. Mas a vontade é um elemento interno, puramente do foro psicológico e, como tal, insuscetível de conhecimento. Passível de conhecimento é unicamente a manifestação externa, a qual permite retirar as conclusões quanto à vontade real, subjacente como elemento psicológico. Consequentemente, objeto da interpretação é a manifestação da vontade, o elemento externo, a própria declaração negocial. O fim da interpretação é o sentido da mesma. O sentido a que se refere o n.º 1 do art. 236 é o sentido pretendido pelo declarante.
Deste modo, deve partir de elementos objetivos para obter, através deles, na medida do possível, o elemento subjetivo. O declaratário padronizado encontra-se em função das circunstâncias concretas que envolverem a proposta negocial e dos traços tipo lógicos que o aceitante apresenta: competência linguística, profissão e localização de atividade, nível cultural, conhecimentos técnicos relacionados com o contrato, etc.. Decisiva é a vontade do declarante, se ao declaratário for possível conhecê-la. Quando o declarante não pode contar razoavelmente com o sentido deduzido pelo declaratário normal do seu comportamento, o risco linguístico ou o risco do entendimento é imputado ao declaratário (art. 236/1, 2.ª parte).
A declaração de aceitação vale como aceitação da proposta com esse sentido. O consenso corresponde à intenção do proponente que, por hipótese, o aceitante conhece; o contrato é, portanto, interpretado de harmonia com a real intenção do proponente, que o aceitante efetivamente compreendeu. Essa falsa demonstratio pode resultar de ignorância (as partes recorrem a termos não adequados por não saberem melhor), de negligência (as partes recorrem a uma linguagem descuidada), de o declaratário ter tido notícia de qualquer circunstância decisiva que não era obrigado a conhecer, ou até da própria vontade real do declarante, de equívoco do declaratário, numa perspetiva objetiva, quanto à interpretação da declaração, chegando, porém, ao resultado desejado pelo seu autor.
A interpretação do negócio jurídico repercute-se na determinação lato sensu da factispecie contratual, que compreende a sua qualificação jurídica e a consequente construção do material de facto de que o intérprete deve retirar os intentos prosseguidos pelas partes. A declaração não se encontra apenas vertida nas palavras adotadas, mas em tudo o que carreia a expressão da vontade. Trata-se, pois, de determinar o valor da declaração, o sentido relevante para o ordenamento jurídico da manifestação de vontade contratual. O intérprete deve indagar, através da declaração, a vontade real das partes contraentes, sendo as diversas cláusulas entendidas umas mediante as outras, e atribuindo a cada uma delas o sentido que resulta do contexto global, precisamente porque se trata de um pensamento unitário.
Nesta medida, o intérprete deve determinar o alcance global do ato negocial praticado, considerado na sua unidade. Apresentando-se a iniciativa negocial como que funcionalizada à obtenção de uma determinada modificação da esfera económica (e, evidentemente, também da jurídica) daqueles que a empreendem, deve presumir-se que todos os componentes do regulamento negocial se encontram numa relação de coerência com o resultado pretendido e podem ser reconstruídos no seu alcance à luz daquele resultado.
Quanto aos negócios formais, em princípio, a declaração negocial não pode valer com um sentido que não tenham um mínimo de ressonância no texto do documento respetivo (art. 238/1). Contudo, um sentido desprovido desta correspondência sempre pode valer se se revelar conforme à vontade real das partes do negócio e as razões determinantes da forma se não opuserem a essa validade (art. 238/2).  Uma análise rigorosa impõe que se continuem a observar as regras do art. 236, ainda que adaptadas à unicidade textual e frequentemente circunscritas pelos limites do art. 238. A dupla tarefa da interpretação de cada uma das declarações em separado pode ser simplificada, porque não há necessidade de proceder ao controlo de imputabilidade ao declarante. Na verdade, à coincidência entre declaratário de uma das declarações e declarante da outra, que é comum a todos os contratos com duas partes, junta-se a coincidência do texto em que se baseia a interpretação. Se o resultado da interpretação das declarações conjuntas for idêntico, em função da compreensão pelo declaratário, assegurado está que esse sentido é comum e imputável às mesmas pessoas, agora vistas como declarantes.
A tarefa não se esgota na interpretação de cada uma das declarações por que se forma o contrato. Inclui um segundo momento lógico para a verificação do consenso, resultado de um processo hermenêutico que consiste na comparação entre os sentidos juridicamente relevantes de cada uma das declarações contratuais e na averiguação acerca da sua concordância. Além disso, em conformidade com a lei (art. 236, na alusão ao comportamento do declarante), o teor da declaração, a fórmula escrita de que o declarante se serviu para exprimir o seu pensamento, deve ser integrada pelo conjunto das circunstâncias de facto, quer anteriores à emissão da declaração de vontade, quer concomitantes dela, que sejam de molde a fazer luz sobre as verdadeiras intenções do autor. De facto, interpretar implica também esclarecer o sentido dos sinais utilizados através do recurso a critérios de significado linguístico. Permite-se um recurso amplo ao material interpretativo e às circunstâncias. Por conseguinte, admite-se levar em linha de conta elementos extrínsecos tais como o comportamento das partes, anterior, contemporâneo ou posterior à conclusão do contrato.
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2)4.3.4. Encerrado o parêntesis, podemos assentar que o juízo de concludência é, de acordo com os critérios expostos, essencialmente objetivo. A existência de uma ilação na declaração tácita não leva a desvios, com ressalva dos que resultam da parte final do n.º 1 do art. 236 que alude ao erro desculpável sobre o significado que resulte do desconhecimento de pressupostos da concludência ou de erro diretamente incidente sobre esta. Como salienta Paulo Mota Pinto (Declaração cit., pp. 758-759), só nestes casos se poderá dizer, que “a concludência, como resultado interpretativo, é afetada por elementos subjetivos. A concludência depende tanto (rectius, tão pouco) de fatores subjetivos do agente como os resultados da interpretação – só quando o agente não poder razoavelmente contar com a concludência do comportamento é que esta será afetada (por interpretação), e não logo que falte a vontade ou a consciência, faltas estas que dizem respeito a um outro problema.”
O aludido juízo de concludência assenta, no essencial, num critério prático e empírico, o que é denunciado pelo próprio texto legal (com toda a probabilidade), não sendo de exigir que a inferência da declaração tácita apresente os carateres de necessidade e univocidade. Exige-se apenas, na expressão de Manuel de Andrade (Teoria Geral da Relação Jurídica, II, reimpressão, Coimbra: Almedina, 1960, p. 132), “aquele grau de probabilidade que basta na prática para as pessoas sensatas tomarem as suas decisões.” Dito de outra forma, “o juízo de concludência não requer total inequivocidade – isto é, que a declaração tácita seja a única possibilidade em questão. Na perspetiva interpretativa de um declaratário normal colocado na posição do real declaratário deve-se já considerar um alto grau de probabilidade da inferência, avaliada de acordo com um critério prático. Não bastando – como em geral – um critério duvidoso ou ambíguo, tem de se resolver o problema do grau em face das circunstâncias do caso concreto, sendo a inequivocidade apenas relativa. A lei não quer admitir só os casos em que seja absolutamente certo que há declaração, mas tão só exigir nos termos gerais uma elevada probabilidade da inferência para que a declaração tácita não seja ambígua” (Paulo Mota Pinto, Declaração cit., pp. 772-773). Nesta perspetiva, apenas será de exigir um grau superior de certeza naquelas situações excecionais em que a própria lei exige comportamento inequivocamente concludentes, como sucede, por exemplo, na hipótese prevista no art. 325/2 (o reconhecimento tácito do direito só interrompe a prescrição se resultar de factos inequívocos). Neste sentido, na jurisprudência, STJ 1.07.2008 (08A1920), relatado por Sebastião Póvoas, e RG 23.11.2023 (854/16.9T8VCT.G1), relatado por Raquel Baptista Tavares.
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2) 4.3.5. Encontramos na doutrina alguns exemplos de comportamentos concludentes dos quais é possível retirar, prima facie e sem prejuízo das particularidades que em concreto sejam apuradas, declarações negociais tácitas.
Assim, Paulo Mota Pinto (Declaração cit., pp. 823-827) dá o exemplo paradigmático da confirmação do negócio anulável, que é igualmente um negócio jurídico (art. 288/3), que pode inferir-se de diversos comportamentos concludentes, desde logo da execução do negócio. Acrescenta “outras causas de extinção da obrigação, como a consignação em depósito da prestação resultante do negócio, a sua compensação, a dação em cumprimento, a novação ou a remissão, a exigência ou a simples aceitação da contraprestação, a disposição (real, pelo consumo ou utilização, ou jurídica, eventualmente também através da realização de benfeitorias) sobre o bem obtido, a rejeição da restituição das prestações feitas em cumprimento do negócio, a reprodução deste, e, em certas circunstâncias, mesmo a solicitação de um prazo de pagamento e de concessão de garantias, ou a cessão da posição contratual.”
O autor prossegue a sua lição escrevendo que, por identidade de razões, “outros atos de consentimento, como a ratificação de um negócio, a aprovação da atuação do gestor de negócios, ou o consentimento para a cessão de contrato podem efetuar-se por comportamentos concludentes, como sejam a aceitação de todo o contrato sem restrições, o aproveitamento e fruição do produto dos negócios realizados pelo gestor, o reconhecimento da qualidade de parte contratual através da prática de atos que o pressuponham.”
Na jurisprudência, no já citado RC 10.03.2015 (45/13.0TBOFR.C1), relatado por Catarina Gonçalves, considerou-se que o ato de cumprimento por parte da devedora configura a ratificação tácita de um contrato de transação celebrado sem que o representante daquela tivesse os poderes suficientes para esse efeito, podendo ler-se o seguinte: “[p]arece claro, no entanto, ter existido uma ratificação tácita que se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam (cf. art. 217º, nº 1). Com efeito, a circunstância de a transação ter chegado ao conhecimento de um segundo administrador duas horas depois da sua celebração e a circunstância de as obrigações dela decorrentes terem sido cumpridas durante algum tempo mediante a entrega de cheques que eram assinados por dois administradores, revelam, com toda a probabilidade, que a sociedade – através de dois dos seus administradores, que, em conjunto, tinham poderes para a vincular – aceitou aquela transação e os efeitos e obrigações dela decorrentes, assumindo como suas tais obrigações e procedendo ao respetivo cumprimento, assim evidenciando e manifestando (através de dois administradores) a sua vontade de ratificar o negócio que, em seu nome (ainda que sem os necessários poderes de representação), havia sido celebrado por um dos seus administradores.”
Em RC 28.11.2017 (790/16.9T8GRD.C1), relatado por Fonte Ramos, deu-se significado ao ato de cumprimento de uma transação celebrada em nome da devedora por advogado cujos poderes forenses especiais tinham sido conferidos pelo presidente e pelo vice-presidente de uma associação, quando os estatutos exigiam a intervenção do presidente e do tesoureiro.
Finalmente, em STJ 1.10.2019 (234/14.0TCGMR.G1.S1), relatado por Hélder Almeida, considerou-se haver ratificação tácita da assunção de uma dívida por um representante sem poderes em resultado da prática de todos os atos e celebração de todos os contratos exigidos pela credora para aceitar a assunção da dívida.
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2).5. Feitas estas considerações, não podemos deixar de entender, à luz delas, que a decisão do Tribunal a quo se apresenta como correta.
Na verdade, centrando apenas a atenção nos negócios jurídicos descritos em bb), dd) e ff), temos de concluir que cada um deles contém, ademais das declarações expressas que enformam a finalidade que lhes é característica, a declaração de ratificação da partilha da herança do progenitor de Recorrente e Recorridos adrede realizada com base nas deliberações tomadas na conferência de interessados do dia 11 de julho de 1989. Nesses negócios, a Recorrente, na qualidade de contitular do direito de propriedade sobre os identificados prédios – e não na qualidade de herdeira – transmitiu, juntamente com os demais contitulares, aquele direito para terceiros. Isto só seria possível por o direito transmitido existir na esfera jurídica dos transmitentes, entre os quais se incluía a Recorrente (nemo plus iuris ad alium transferre potest quam ipse habet). Ora, a Recorrente passou a ser contitular daquele direito – percute-se, o direito de propriedade sobre um bem certo e determinado que integrava a herança e não sobre esta – precisamente por via partilha que agora e através da presente ação pretende que seja declarada ineficaz em relação a si. Daí que com toda a propriedade se possa afirmar que, ao proceder do descrito modo, prevalecendo-se de direitos que lhe couberam pela partilha, a Recorrente ratificou tacitamente, com efeitos ex tunc, o acordo quanto à composição dos quinhões em que ela assentou.
Aderimos, portanto, à afirmação feita na sentença recorrida segundo a qual, em cada um daqueles negócios, “a Autora [Recorrente] emitiu uma declaração negocial, de forma solene, objetivamente conforme ao decidido naquele processo de inventário e objetivamente contraditória – incompatível – com a pretensão de ineficácia”, bem como à conclusão de que “estamos [em cada um dos apontados momentos] perante um comportamento concludente no sentido da ratificação do decidido naquele processo de inventário, valendo este sentido com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário poderia deduzir do comportamento do declarante, neste caso, da Autora [Recorrente].”
Por outro lado, é axiomático que as declarações tácitas, assim corporizadas em escritura pública, observaram a forma que era exigida, na data em que foi deliberado o acordo quanto à composição dos quinhões, para que a Recorrente, então já maior de idade, se fizesse representar no ato através de um procurador, pelo que se mostra também observada a exigência do referido art. 217/2.
É, finalmente, axiomático que, estando em causa declaração negocial receptícia, ela chegou ao conhecimento de parte dos seus destinatários: os demais intervenientes na partilha, com exceção do Réu BB, também intervieram naqueles negócios; o Réu BB teve conhecimento deles, como demonstra o facto de os ter invocado na contestação.
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2).6.1. A Recorrente, com o objetivo de colocar em causa o juízo sobre a concludência  do conjunto daquelas declarações de vontade indiretamente (ou implicitamente)  contidas nas que, de forma direta, enformam o conteúdo daqueles negócios jurídicos, esgrime dois argumentos: por um lado, afirma, estão em causa atos isolados, espaçados no tempo, pelo que não pode deles “extrair-se, com a segurança minimamente exigível, que (…) tivesse pretendido ratificar aquelas deliberações”; por outro, desconhecendo a deliberação quanto à composição dos quinhões, nunca a poderia ter ratificado, pelo que, quando declarou transmitir a parte que lhe coube no direito de propriedade sobre bens que lhe advieram pela partilha, estava convencida que o fazia na qualidade, que ainda tinha, de herdeira.
O primeiro argumento foi já rebatido quando escrevemos que cada um dos atos em questão exprime, per se, a ratificação, uma vez que cada um deles tem como pressuposto que a Recorrente adquiriu, pela partilha, parte do direito de propriedade sobre bens certos e determinados da herança.
Vejamos, com mais pormenor, o segundo, que nos remete para a figura da falta de consciência da declaração – da declaração tácita, entenda-se –, começando por assinalar que, para as declarações tácitas, o problema se coloca nos mesmos termos que para a declaração expressa (Paulo Mota Pinto, Declaração cit., p. 848).
Diz o art. 246 que “[a] declaração não produz qualquer efeito, se o declarante não tiver a consciência de fazer uma declaração negocial (…); mas, se a falta de consciência da declaração foi devida a culpa, fica o declarante obrigado a indemnizar o declaratário.”
Esta norma visa dar resposta à questão de saber se, para a existência de uma declaração negocial, é necessário que o declarante tenha consciência da sua emissão ou se, pelo contrário, é suficiente a imputação ao declarante de um comportamento que, para o declaratário, seja interpretável como uma declaração negocial. A propósito, António Menezes Cordeiro (“Art. 246.º”, AAVV, António Menezes Cordeiro (coord.), Código Civil Comentado, I, Parte Geral, Coimbra: Almedina, 2020, pp. 728-729; Paulo Mota Pinto, Declaração cit., pp. 221 e ss.).
O enunciado legal parece indiciar uma valorização da vontade em detrimento da dimensão objetiva da declaração. A ser assim, não basta a imputabilidade da declaração ao sujeito; é também necessária a consciência da declaração, sem a qual não se poderá falar verdadeiramente em exercício da autonomia privada. Por outras palavras, a consciência da declaração constitui um requisito subjetivo da declaração negocial (Evaristo Mendes / Fernando Oliveira e Sá, “AAVV, José Carlos Brandão Proença (coord.), Comentário ao Código Civil, Parte Geral, 2.ª ed., Lisboa: UCE, 2023, p. 699). A confiança do declaratário apenas é tutelada por via da indemnização do interesse contratual negativo.
Esta leitura, como explica António Menezes Cordeiro (loc. cit., p. 729), leva a uma evidente contradição com a regra de interpretação da declaração consagrada no art. 236, que sobreleva e considera válida a declaração qua tale tomada pelo declaratário normal que se encontre na posição do real. E não se compagina com a do erro na declaração – o denominado erro-obstáculo – que, nos termos do art. 247, tem como pressupostos a cognoscibilidade e a essencialidade. No mesmo sentido, é a lição de Paul Mota Pinto (Declaração cit., pp. 242- 243).
Os dois autores acabados de referir defendem, por isso, uma interpretação teleológica da norma, nos termos da qual não pode estar em causa uma falta de consciência íntima, mas apenas uma que seja percetível no contexto do próprio negócio.
Assim, António Menezes Cordeiro (idem) escreve: “[o] art. 246.º não pode ter em vista uma consciência íntima, no sentido de uma (ausência de) vontade da qual, apenas introspetivamente, o próprio declarante se pudesse aperceber. O Direito não penetra (não tem de penetrar e não deve penetrar) no íntimo de cada um: apenas versa a vida de relação. Desta consideração estrutural e do conjunto do sistema, com relevo para os arts. 236.º e 247.º, inferimos que a falta de consciência da declaração relevante é aquela que seja percetível, na própria ambiência negocial onde o tema se ponha.” Em decorrência, conclui que “[o] declarante que emita uma proposta ou outra declaração, em boa e devida forma, sem ter consciência de que o faça, incorre nos canais da eficácia jurídica. A declaração vai-lhe ser imputada com o sentido que lhe daria o declaratário normal: apenas na conjuntura do erro ele a poderia impugnar”; “[s]ó assim não será quando a falta de consciência seja de tal modo aparente que, perante o declaratário normal, ela não lhe possa ser imputada. Nessa altura – e porque não se pode admitir a inexistência – o ato será nulo.”
É esta a única interpretação conforme ao elemento sistemático a que manda atender o art. 9.º/1, até porque, conforme escreve Mafalda Miranda Barbosa (Falta e Vícios da Vontade. Dogmática e Jurisprudência em Diálogo, Coimbra: Geslegal, 2020, p. 55), “a consideração da eventual contradição no ordenamento jurídico envolve a ponderação acerca da dualidade proteção da vontade-proteção da confiança.”
 Pois bem, a hipótese de a falta de consciência ser, no caso, de tal modo aparente para o declaratário normal é de excluir por tudo aquilo que escrevemos a propósito da captação da declaração tácita e da interpretação do seu sentido.
Quanto ao regime do erro na declaração, como vimos, resulta do art. 247 que a relevância da desconformidade entre a vontade e a declaração depende da verificação de dois requisitos: a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre o erro; o conhecimento dessa essencialidade pelo declaratário ou o dever de a conhecer.
O primeiro traduz-se na necessidade de o elemento sobre que incidiu o erro do declarante ser decisivo para a celebração do negócio em si mesmo ou nos seus elementos essenciais. Pressupõe-se um juízo hipotético sobre a declaração que teria sido emitida. A análise deve ser feita subjetivamente e em concreto, e não objetivamente e em abstrato (segundo o critério do declaratário razoável ou normal), pois cada um determina livremente os elementos que o possam conduzir a celebrar o contrato.
O segundo requisito consiste no conhecimento (que é subjetivo) ou na suscetibilidade de conhecimento (que é objetiva), pelo declaratário, da essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que versou o erro. Não basta, portanto, que o erro tenha sido essencial para o declarante; é ainda necessário o conhecimento ou a cognoscibilidade dessa essencialidade pelo declaratário.
Quando assim sucede, estando então verificados os dois requisitos, o negócio é anulável, pois não há boa-fé ou confiança digna de tutela.
Como facilmente se percebe, a alegação da falta de correspondência entre a vontade (ou a ausência dela) e a declaração e, bem assim, dos requisitos de que depende a sua relevância enquanto facto gerador da anulabilidade da declaração no quadro do erro-obstáculo, constitui ónus que recai sobre o declarante (no caso, a Recorrente). O ónus da prova coincide com este ónus de alegação (art. 342/2).[4] Estamos aqui perante aquilo que, com apelo ao critério da norma de Rosenberg[5], integra matéria de exceção (rectius, contra-exceção). Isto significa que o incumprimento do referido ónus tem como consequência uma decisão desfavorável para o declarante, conforme corretamente foi entendido pelo Tribunal a quo.
Improcedem, portanto, as conclusões A) a O) das alegações do recurso.
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3).1. Passamos para a terceira questão em relação à qual pouco há a dizer, em resultado da improcedência da impugnação da decisão da matéria de facto. Com efeito, o pedido de declaração da ineficácia das deliberações tomadas na conferência de interessados do dia 11 de julho de 1989 com fundamento na alegada incapacidade do Réu FF entender o sentido delas pressupunha que resultassem provados os factos (essenciais) aptos a substanciar a previsão do art. 257/1. A Recorrente reconhece isto na conclusão S) das alegações do Recurso. Ora, como vimos, tais factos não resultaram provados e não existem razões para alterar o assim decidido pelo Tribunal a quo.
Sem prejuízo, deixamos duas notas sobre esta questão.
A primeira para dizer que não suscita dúvida que, conforme foi entendido na sentença recorrida, os atos praticados pelo acompanhado em momento anterior ao anúncio do processo de acompanhamento estão sujeitos ao regime da incapacidade acidental por via da remissão que o art. 154/3 faz para o art. 257, nos termos do qual “[a] declaração negocial feita por quem, devido a qualquer causa, se encontra acidentalmente incapacitado de entender o sentido dela ou não tinha o livre exercício da sua vontade é anulável, desde que o facto seja notório ou conhecido do declaratário.” O facto é notório “quando uma pessoa de normal diligência o teria podido notar.” Compreende-se que assim seja: não obstante a possível existência de uma incapacidade para formar ou exercer a vontade, à data da celebração do negócio, a verdade é que inexiste, ainda, qualquer processo de acompanhamento que justifique alterar a ponderação dos interesses em jogo feita pelo legislador no art. 257. Isto é ainda mais evidente numa hipótese como a dos autos em que entre o negócio e o início do processo de acompanhamento mediou um hiato superior a trinta anos.
Sendo a consequência a anulabilidade, há que atender ao disposto no art. 287, nos termos do qual só tem legitimidade a arguir a pessoa em cujo interesse a lei a estabelece, donde resulta que o regime é mais restritivo do que o previsto para a nulidade. À luz dele, na incapacidade acidental, só tem legitimidade o incapaz. É claro que se o incapaz estiver sujeito a medida de acompanhamento em cujo âmbito se inclua o ato, a incapacidade judiciária que daí resulta deve ser suprida através da representação pelo acompanhante designado (art. 143/1 do Código Civil e art. 6.º/1 do CPC). Mesmo neste caso, o pedido deverá ser formulado pelo acompanhado, através do seu acompanhante, e não por este, certo como é que, na conhecida expressão de João de Castro Mendes, “parte é quem o é e não quem a representa.” Por outro lado, a formulação do pedido poderá estar dependente de autorização judicial quando envolva ato de disposição de imóvel (art. 143/1). Sem essa autorização, a representação será irregular (arts. 28/1 e 29/1 do CPC). Finalmente, o acompanhante nunca poderá propor a ação em representação do seu acompanhado quando seja, também ele, titular de um interesse direto na questão, como sucede, necessariamente, quando os dois foram parte no negócio. Há então um potencial conflito de interesses, que é o bastante para justificar o impedimento (Pais de Sousa, Reflexos Processuais da Incapacidade Judiciária no âmbito do Código de Processo Civil, Porto: Portugal Jurídico-Económico, 1978, p. 30). A ação terá de ser proposta por um curador especial ou ad litem, a nomear nos termos do art. 17/3, 4 e 5 do CPC.
Afastamo-nos, por isto, sem quebra do devido respeito, da afirmação feita na sentença recorrida no sentido de que a Recorrente dispõe de legitimidade para pedir a declaração de ineficácia das deliberações tomadas na conferência de interessados de 11 de julho de 1989 com fundamento da incapacidade do Réu FF. A consequência deste entendimento redundou na estranha situação de uma pretensão que, supostamente, se destinaria a tutelar o interesse do Réu FF ter sido formulada contra o próprio, por outro interveniente no negócio.
A segunda nota serve para dizer que, como se constata, no articulado superveniente a Recorrente apenas acrescentou uma nova causa de pedir baseada na alegada incapacidade do Réu FF. O pedido continuou a ser a declaração de ineficácia e não, como seria expectável, a sua anulabilidade. Como vimos, a ineficácia que está implícita naquele pedido não é a ineficácia em sentido amplo, mas a ineficácia stricto sensu, que se contrapõe à invalidade e à inexistência.
É certo que tanto a declaração de nulidade como a anulação, esta de natureza constitutiva, têm sempre como consequência a ineficácia do negócio jurídico, conforme resulta do disposto no art. 289/1. Compreende-se, por isso, que se considere admissível, no quadro do art. 609/1 do CPC, a sentença de declaração de nulidade do negócio jurídico que o autor pretendeu anular com fundamento que era, afinal, de nulidade (João de Castro Mendes, Limites Objetivos do Caso Julgado, Lisboa: Ática, 1968, p. 312), a sentença que declare a ineficácia relativa ou a inoponibilidade subjetiva do ato, que o autor pretendeu que fosse declarado nulo ou anulado, na ação pauliana (AUJ n.º 3/2001, de 23.01, DR, I Série, de 9.02.2001) ou na ação de anulação feita pelo procurador legitimado por uma procuração que havia sido anulada (STJ 5.11.2009, 308/1999.C1.S1, relatado por Lopes do Rego), ou a sentença de condenação na restituição do recebido em cumprimento de um negócio nulo, na ação em que o autor haja pedido a condenação no pagamento da mesma quantia com fundamento na validade do negócio (Assento n.º 4/95, de 28.03.1995, DR, I Série, de 17.05.1995). Em todas estas situações a convolação faz-se no âmbito do efeito prático-jurídico pretendido pelo autor e representa uma espécie de atenuação ou redução qualitativa do objeto material do pedido (cf. Lopes do Rego, “O princípio do dispositivo e os poderes de convolação do juiz no momento da sentença”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, I, Coimbra: Almedina, 2013, pp. 792-803). Mas já não se compreende que a sentença anule o negócio ou declare a sua nulidade quando apenas foi pedido o reconhecimento da sua inoponibilidade em relação a determinado sujeito (no caso, a Recorrente). Aqui existe já um plus – a aniquilação do negócio jurídico – que degrada a possibilidade de convolação.
Improcedem, portanto, as conclusões S) a V) das alegações do recurso.
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4).1. Passamos para a quarta questão.
A nosso ver, o conhecimento desta questão está necessariamente prejudicado, pelo menos em resultado da resposta dada à segunda questão.
Expliquemos, começando por lembrar que a Recorrente pretende a declaração de nulidade do testamento outorgado pelo seu progenitor dizendo que o fim da disposição através da qual a Casa das ... foi legada ao Réu BB é contrário ao princípio de ordem pública, vigente ao tempo da abertura da sucessão, da igualdade entre os sexos. Enquadra a pretensão no disposto nos arts. 2186 e 2232 do Código Civil.
O referido testamento foi um dos títulos de vocação sucessória (cf. art. 2026) indicados pela cabeça-de-casal no processo de inventário. Cabia aos interessados, Recorrente incluída, apresentar impugnação naqueles autos, nos termos previstos no art. 1343/1 do CPC de 1961, então vigente, sendo essa a sede própria para suscitar a questão da nulidade do testamento – ou, dito com mais rigor, da disposição testamentária em causa, uma vez que, havendo normas no Título IV do Livro V do Código Civil que preveem a nulidade do testamento no seu todo (v.g., arts. 2180, 2181 e 2190) e normas que apenas estatuem a nulidade de disposições do testamento (v.g., arts.  2184, 2185, 2192, 2194 e 2196), entendemos, até por comparação entre o disposto no art. 281 e no art. 2186 que, sendo o vício – a contrariedade à ordem pública – atribuído somente à disposição que instituiu o legado e não ao testamento no seu todo ou a todas as suas disposições de última vontade, ele apenas pode conduzir à nulidade daquela e não ao testamento propriamente dito. Neste sentido, RP 2.07.2020 (3310/18.7T8AVR.P1), relatado por Aristides Rodrigues de Almeida.
A não apresentação de impugnação no prazo perentório para esse efeito estabelecido tem um efeito preclusivo intraprocessual. Este não impedia que, até ao esgotamento do poder jurisdicional, com a prolação da sentença homologatória, a questão da nulidade fosse conhecida ex oficcio, atenta a sua natureza (cf. art. 286).   Depois, com o trânsito da sentença homologatória, a partilha ficou consolidada em termos tendencialmente definitivos, apenas podendo ser colocada em causa através de um dos incidentes de natureza rescisória específicos do processo de inventário (emenda da partilha, anulação da partilha, partilha adicional) ou de recurso de revisão, este a interpor nos termos gerais. Aquele efeito preclusivo intraprocessual alargou-se extraprocessualmente, através da exceção dilatória do caso julgado, assim garantindo o seu conhecimento oficioso pelo tribunal da segunda ação (cf. arts. 577, i), e 578 do CPC).
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4).2. Sem prejuízo do antecede, sempre diremos que o testamento (rectius, a disposição testamentária que instituiu o Réu BB legatário dos prédios que compõem a Casa das ...) não padece da apontada nulidade, sendo de sufragar, também quanto a este ponto, as razões enunciadas na sentença recorrida.
Na explicação desta afirmação, começamos por lembrar que o art. 2186 diz que “[é] nula a disposição testamentária, quando da interpretação do testamento resulte que foi essencialmente determinada por um fim contrário à lei ou à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes.”
A norma tem paralelo com a do art. 281, nos termos da qual o negócio jurídico cujo fim seja contrário à lei ou à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes, é nulo quando o fim for comum a ambas as partes. A natureza do testamento como negócio jurídico unilateral não receptício explica uma previsão específica. Como, a propósito, ensina Guilherme de Oliveira (“O Testamento – Apontamentos”, 4.ª ed., Coimbra: Reproset, 1989, pp. 41-42), “[o] art. 281 não é adequado para o testamento porque supõe um negócio bilateral.” Em tudo o mais, os conceitos utilizados numa e noutra das normas (fim do negócio jurídico, lei, ordem pública, bons costumes) são semelhantes.
Como é sabido, o fim do negócio jurídico traduz a finalidade ou o objetivo económico-social que as partes pretendem alcançar com a sua celebração. Dito de uma forma prosaica, é o para quê do negócio. Não se confunde nem com os motivos, nem com a causa do negócio. Os motivos são as circunstâncias que levam ao surgimento da vontade, portanto, “o elemento subjetivo que antecede o negócio” (Luís Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, 5.ª ed., Lisboa: UCE, 2010, pp. 358-360). São o porquê da celebração do negócio (Elsa Vaz de Sequeira, “Art. 281.º”, AAVV, José Carlos Brandão Proença (coord.), Comentário ao Código Civil, Parte Geral, 2.ª ed., Lisboa: UCE, 2023, p. 847). A causa corresponde ao interesse objetivo e socialmente verificável a que o negócio deve corresponder.
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4).3. O conceito de ordem pública, ao qual a Recorrente reporta a infração, diz respeita à estrutura organizacional da sociedade, com vista ao regular funcionamento da vida em comunidade, abarcando aspetos “marcadamente técnico-organizacionais” (Manuel Carneiro da Frada, “A ordem pública no direito dos contratos”, Forjar o Direito, 2.ª ed., Coimbra: almedina, 2019, p. 97). Compreende os “princípios e valores fundamentais para a salvaguarda da coexistência social e indispensáveis para a paz pública que todos os seus membros devem atender, independentemente de afloramentos positivos”, configurando-se como uma “cláusula de salvaguarda” de aplicação subsidiária (Manuel Carneiro da Frada, loc. cit., pp. 94-95). No dizer de Pedro Pais de Vasconcelos (“Ordem Pública, Bons Costumes e Validade”, A Revista, n.º 2, jul. / dez. de 2022, pp. 15-38, disponível em www.arevista.stj.pt), tais princípios “fazem de certo modo a ponte entre a Lei e a Moral como portadores de critério de ação, de abstenção e de validade.” Fundam-se “na Política, na necessidade e na utilidade geral, no salus populi, no Bem Comum, ou no Interesse Geral da comunidade.” É isto que lhes dá natureza injuntiva e justifica que se imponham às regulações privadas negociais.
Como princípios que são, carecem de concretização. A sua concretização, acrescenta Pedro Pais de Vasconcelos, “não é subsuntiva, não se encerra num silogismo em que a premissa maior seja preenchida pelo conteúdo normativo (dever-ser) e a menor pelo facto ou factos (ser), e do qual resulte uma conclusão. Diversamente, é por analogia que devem ser concretizadas.”
Nesta medida, a operacionalidade do conceito depende da construção de tipos, “de tipos de comportamentos contrários à Ordem Pública e aos Bons Costumes. De tipos que são tipos normativos, porque são portadores de critérios de dever-ser. De tipos que são tipos sociais, porque existentes e inerentes, vigentes na Comunidade das Pessoas Comuns e na Comunidade Organizada, na Polis” (Pedro Pais de Vasconcelos, idem).
Tais tipos “encontram o seu sentido comum na contrariedade, na incompatibilidade, na danosidade à vida da coletividade social, à sua paz e segurança, à saúde pública, ao progresso económico e social, à prosperidade económica comum e privada, social e individual, são comportamentos de tal modo necessários que têm de ser adotados e respeitados pelos membros da Comunidade, por dever de solidariedade social e como preço a pagar pela inserção na mesma Comunidade com todas as vantagens que esta inserção lhes proporciona.”
Os mais importantes destes tipos, uns mais amplos outros mais restritos, são usualmente codificados na parte programática da Constituição Política, nos Direitos, Liberdades e Garantias, nas Funções do Estado e também nos catálogos dos tipos criminais. Os correspondentes preceitos têm de ser trabalhados de modo a revelarem o sentido que os funda e os tipos de comportamentos antissociais que lhes correspondem” ((Pedro Pais de Vasconcelos, idem).
Um exemplo da aplicação do conceito na área do direito das sucessões pode ver-se em STJ 31.01.2017 (258/10.7TCGMR.G1.S1), relatado por Júlio Gomes, no qual se se considerou contrário ao princípio da livre circulação dos bens, integrante da Ordem Pública, o encargo e a condição, contidos em cláusula testamentária que consagrava um obstáculo prático, de duração indefinida, à transmissão subsequente dos bens com que o testador compôs as quotas dos herdeiros.
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4).4. À luz das precedentes considerações não se duvida que uma disposição testamentária que tenha como finalidade a discriminação de uma pessoa ou de um grupo de pessoas em razão da sua ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual (art. 13/2 da CRP) atenta contra a Ordem Pública. Assim sucederá na hipótese do legado da casa do testador a um sobrinho com o fim de facilitar as reuniões do grupo xenófobo ou homofóbico a que o tio sabe que ele pertence. Os princípios a considerar para esse efeito são os dominantes no momento da abertura da sucessão, momento em que o testamento se torna eficaz, produzindo a vocação sucessória determinada pela vontade do testador.
Temos, porém, como seguro que a situação dos autos é totalmente diferente: no concreto contexto, a finalidade – o para quê – da disposição testamentária em questão ficou exaurida com a disposição de um determinado bem em benefício de um concreto herdeiro. O facto, assumido pelo testador, determinante da vontade assim manifestada (o legatário ser o filho “varão” primogénito) surge apenas como o critério da atribuição e não como a finalidade em si mesma – ou, por outras palavras, representa o porquê. Ainda que se possa admitir que há aqui um benefício – o que não é totalmente seguro, uma vez que, como é consensual, o legado foi feito por conta da legítima do legatário[6] –, é inequívoco que nada impede que o pai procure beneficiar, pelo seu óbito, um dos filhos em detrimento dos outros, assim operando uma discriminação. O testamento constitui o meio para esse efeito, designadamente através da instituição de legados. A única limitação existente é a que resulta do princípio da intangibilidade da legítima (art. 2156), a qual, de resto, é relativa: conforme se explica em RL 26.06.2012 (563-B/2002.L1-7), relatado por Luís Espírito Santo, “[o] que a lei reserva imperativamente ao herdeiro legitimário é apenas e só um determinado valor aritmético do património hereditário reconstruído que se apurará, no momento da abertura da sucessão, em conformidade com o critério estabelecido no art. 2162 do Código Civil, onde se incluem o relictum e as liberalidades realizadas em vida pelo de cujus. A sua posição é delimitada por um determinado valor base imposto à liberdade de disposição do autor da sucessão, o qual fica impedido de retirar a relevância económica nestes termos estabelecida à posição do legitimário – seu herdeiro forçado.” A infração desta regra não implica sequer a invalidade do testamento. A consequência é a redução das liberalidades inoficiosas, necessariamente a requerimento dos herdeiros legitimários ou dos seus sucessores, “em tanto quanto for necessário para que a legítima seja preenchida” (art. 2169).
A opção de beneficiar um dos herdeiros legitimários em detrimento dos outros pode suceder pelas mais variadas razões. Estas não constituem, por definição, um fim. Situam-se na antecâmara dos motivos, espaço próprio para que o testador, titular do património, forme a sua vontade, orientando-se apenas pelas suas representações do mundo e pelas suas idiossincrasias. Negar isto seria aniquilar a liberdade de testar que é corolário da autonomia privada, conforme assinala Ana Prata (A Tutela Constitucional da Autonomia Privada, Coimbra: Almedina, 1982, pp. 9-10) quando escreve que se “a pessoa passa a poder dispor do bem – e não apenas a ter o poder de o usar e assegurar a sua utilização produtiva –, então ela afirma-se exclusiva titular de um poder de produzir efeitos jurídicos, já não só como meio de exclusão das restantes pessoas, mas também como meio de transmissão do próprio bem.” E seria fazê-lo sem que a isso presida qualquer justificação de ordem pública, apenas no interesse dos filhos preteridos,
Ao escrever isto temos presente que a transmissão por morte, através do testamento, é o mais destacado espaço de afirmação da autonomia privada, marcado pela “soberania do querer – no império da vontade” (Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª ed., por António Pinto Monteiro / Paulo Mota Pinto, Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 103). Compreende-se, por isso, que Maria Nazareth Lobato Guimarães (Testamento e autonomia: algumas notas críticas, a propósito de um livro de Lipari, Separata Revista de Direito e Estudos Sociais, ano 18, jan. / dez. de 1972, pp. 36-37) escreva que “[a] mais acabada manifestação de autonomia privada [que] não deve – ao menos, não deve hoje – ser entendida como a mais larga concessão de faculdades e liberdade de atuação, mas como o reconhecimento da autonomia no caso mais extremo: no caso de um particular pretender regular interesses que só poderão vir a estar em causa depois da sua morte. Admite-se, hoje, essa concessão-limite feita ao gestor mais qualificado para indicar o melhor aproveitamento dos seus bens, e as verdadeiras necessidades dentro do seu grupo de possíveis sucessores.”
Concordamos, portanto, com a afirmação exarada na sentença recorrida de que “o testador, no âmbito da ampla liberdade de que dispõe, pode escolher as pessoas a quem lega determinado bem, sem que viole o princípio constitucional da igualdade, previsto no artigo 13º, da Constituição da República Portuguesa. Neste caso, a ordem pública constitucional não impõe ou coarta a autonomia da vontade do testador, uma vez que a ponderação global sobre o destino da herança foi concretizada pelo legislador ordinário através do estabelecimento do princípio da intangibilidade da legítima. Em face deste equilíbrio ponderado entre a igualdade dos filhos (a legítima) e a autonomia da vontade do testador (a possibilidade de instituir legados e de dar destino ao valor da quota disponível), e constituindo a fiscalização da constitucionalidade, no nosso sistema jurídico, uma fiscalização de normas jurídicas em putativa violação dos princípios e regras constitucionais, não se vislumbra, para além de não se vislumbrar qualquer violação da ordem pública constitucional prevista no artigo 2186º do Código Civil, qualquer norma ordinária, no âmbito da regulação do fenómeno sucessório, que ofenda o princípio que emerge do artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.”
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4).5. Acrescenta a Recorrente que a disposição testamentária é nula também por infringir o disposto no art. 2232, onde se pode ler que “[c]onsideram-se contrárias à lei a condição de residir ou não residir em certo prédio ou local, de conviver ou não conviver com certa pessoa, de não fazer testamento, de não transmitir a determinada pessoa os bens deixados ou de os não partilhar ou dividir, de não requerer inventário, de tomar ou deixar de tomar o estado eclesiástico ou determinada profissão e as cláusulas semelhantes.”
Esta norma complementa a do n.º 2 do art. 2230, onde prevê que “[a] condição contrária à lei ou à ordem pública, ou ofensiva dos bons costumes, tem-se igualmente por não escrita, ainda que o testador haja declarado o contrário.”
O legislador pretende evitar condições que, exercendo pressão sobre a vontade do beneficiário da disposição patrimonial, através da ameaça da ineficácia (no caso de condição suspensiva) ou da caducidade (no caso da condição resolutiva) da disposição, restrinjam a sua liberdade pessoal (Pires de Lima / Antunes Varela, Código Civil cit., p. 369).
Como se constata, a cláusula que imponha uma condição enquadrável na previsão da norma considera-se não escrita, o que vale por dizer que é nula ou irrelevante. Isto não prejudica, no entanto, a validade da disposição testamentária a que foi aposta: Vitiantur sed non vitiant. Neste sentido, Pires de Lima / Antunes Varela (Código Civil cit., p. 366), Guilherme de Oliveira (O Testamento cit., pp. 77-78) e Manuel de Andrade (Teoria Geral da Relação Jurídica, II, reimpressão, Coimbra: Almedina, pp. 372-373). Este último autor apresenta uma justificação para esta diferença relativamente ao que ocorre nos negócios inter vivos: a ideia geral de favorecer o testamento, atenta a sua natureza irrepetível, presumindo o legislador que a vontade do testador, acaso tivesse previsto a invalidade da condição, seria mais próxima de manter a disposição do que de a ver totalmente invalidada. Tendo isto presente, a opção legislativa compreende-se ainda melhor no caso específico das condições contrárias à lei, cuja proibição se destina a tutelar a liberdade de agir do chamado (Pires de Lima / Antunes Varela, Código Civil cit., p. 369).
Invalidade da disposição haverá apenas na hipótese, referida por Pires de Lima / Antunes Varela (idem), de se alegar e provar que a aposição da condição ilícita constituiu o verdadeiro fim reprovável visado pelo testador através da disposição. Nesta hipótese, a nulidade decorrerá do art. 2186, podendo assim dizer-se que “[j]á não se trata bem da necessidade de reprimir a atuação ilícita a que a disposição poderia conduzir o chamado, mas de reprovar a motivação real da disposição no espírito do testador.” Será, por exemplo, a hipótese de o testador impor ao legatário a condição de cometer um determinado crime conseguindo, através da pressão económica exercida sobre a sua vontade, um fim reprovado pela ordem jurídica.
No caso, assiste razão à Recorrente quando afirma que a condição imposta pelo testador ao beneficiário da disposição testamentária em questão – casar e ter um filho legítimo ao tempo da abertura da sucessão – limita a liberdade pessoal deste, pelo que não é aceitável. A questão não assume, todavia, qualquer relevância prática, atento o que escrevemos: a única consequência seria a eliminação da condição, subsistindo o legado.
Improcedem, pelo exposto, as conclusões W) a Z) das alegações do recurso.
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5) Aqui chegados, concluindo que a decisão plasmada na sentença recorrida não enferma dos erros de direito que lhe foram imputados, sintetizados na conclusão AA), o recurso deve improceder, com a consequente condenação da Recorrente, assim vencida, no pagamento das custas respetivas: art. 527/1 e 2 do CPC.
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V.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o presente coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em:
Julgar o recurso de apelação improcedente;
Confirmar a sentença recorrida;
Condenar a Recorrente no pagamento das custas.
Notifique.
*
Guimarães, 29 de maio de 2024

Os Juízes Desembargador,
Relator: Gonçalo Oliveira Magalhães
1.ª Adjunta: Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade
2.ª Adjunta: Maria Gorete Morais



[1] Como resulta claramente do n.º 2 do art. 291, a transação, como negócio jurídico que é, tipificado no art. 1248 do Código Civil, pode ser declarada nula ou anulada como qualquer negócio jurídico, ao que não obsta o trânsito em julgado da respetiva sentença homologatória (art. 291/1 e 2). O interessado, como tal entendido, no caso da declaração de nulidade, em conformidade com o art. 286 do Código Civil, o titular de “qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica, como prática, seja afetada pelo negócio” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 263; Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição, Coimbra: Coimbra Editora, 1987, p. 620), ou, no caso de anulabilidade, a pessoa em cujo interesse a lei a estabelece (art. 287/1 do Código Civil), pode optar entre intentar diretamente o recurso extraordinário de revisão (art. 696, d)) ou começar por propor a ação de declaração de nulidade ou de anulação, embora, neste caso, fique responsável pelo pagamento das respetivas custas (art. 535/1 e 2, d)).
[2] Como se pode ler em RG 9.11.2023 (859/21.8T8PTL.G1), do mesmo Relator, o direito privado importou do direito processual o conceito de legitimidade. Para exercer o direito de ação, não basta ao titular ser capaz. Requer-se ainda que seja parte legítima, isto é, que seja o titular da relação jurídica em litígio. Também no campo do direito civil, a pessoa plenamente capaz de exercer os atos da vida civil vê-se proibida de praticar alguns atos jurídicos em virtude da posição em que se encontra relativamente ao seu objeto. Trata-se de pressuposto diverso do da capacidade, porque a impossibilidade de agir é circunstancial. No problema da capacidade, o que se discute são as qualidades intrínsecas da pessoa, que a habilitam, ou não, ao exercício dos atos da vida civil, enquanto no problema da legitimidade – e referimo-nos apenas à legitimidade direta – o que conta é a posição da pessoa em relação a determinados bens que podem ser objeto de negócios jurídicos em geral, ou em relação às especiais categorias de negócios. O conceito da legitimidade tende, porém, a ampliar-se, para abranger casos nos quais não se apresenta como um dos aspetos da idoneidade do objeto, a que se reduziria, se entendido como simples posição do sujeito em relação ao objeto do contrato. Assim, um contrato celebrado por alguém que não pode ter interesse na coisa que constitui o seu objeto é estipulado por parte ilegítima, e, sob esse fundamento, inválido, sem que o seu objeto seja impossível.
[3] Pertencem ao Código Civil as disposições legais indicadas sem menção expressa da respetiva proveniência.
[4] Em regra, há coincidência entre o ónus da alegação e o ónus da prova (arts. 342/1 e 2 e 343/1 do Código Civil). A regra cessa quando a lei ou as partes determinam a inversão do ónus da prova, o que sucede nos casos em que existe uma presunção legal (art. 344/1 do Código Civil), a dispensa ou liberação legal do ónus da prova (art. 344/1 do Código Civil), a dispensa ou liberação convencional do ónus da prova (arts. 344/1 e 345/1 do Código Civil) ou a impossibilitação culposa da prova pela contraparte do onerado (art. 344/2 do Código Civil). A propósito, vide Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum, Coimbra: Coimbra Editora, 2000, pp. 183 e ss.., e Rita Lynce de Faria, A Inversão do Ónus da Prova no Direito Civil Português, Lisboa: Lex, 2001, pp. 33 e ss.. Em nenhum dos apontados casos a inversão do ónus da prova dispensa do ónus da alegação, que se mantém.
[5] Segundo este critério, o réu defende-se por exceção perentória, invocando uma contranorma, sempre que invoca um efeito jurídico não incompatível com o que é alegado pelo autor – ou seja, a contranorma inclui no seu tipo legal a própria norma base, constituindo um raciocínio do tipo “Sim – Mas”. Assim acontece, v.g., quando numa ação para restituição de determinada quantia mutuada o réu, aceitando a existência do mútuo, afirma que a obrigação de restituir já prescreveu. Pelo contrário, se o réu disser que o contrato não foi de mútuo, mas de doação, pelo que nada deve ao autor, está a pôr em causa a verificação do próprio tipo legal em que este estriba a sua pretensão, contendo-se a sua defesa no âmbito da impugnação motivada.
[6] A sucessão legitimária está sujeita ao princípio da intangibilidade da legítima qualitativa e quantitativa. A qualitativa deriva da proibição do de cujus designar os bens que irão compor a quota do herdeiro legitimário ou de lhe impor encargos: arts. 2163, 2165 e 2170. Este princípio encontra-se atenuado, aceitando-se que possam ocorrer legados em substituição e por conta da legítima, que o próprio herdeiro aceita que ocorra nestes termos – arts. 2163/2 e 2165 – e cuja imputação será na sua quota legitimária (cf. Rita Lobo Xavier, “Notas para a renovação da sucessão legitimária no Direito português”, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Pamplona Corte-Real, Coimbra: Almedina, 2016, pp. 351-372).