Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
920/24.7T8GMR.G1
Relator: GONÇALO OLIVEIRA MAGALHÃES
Descritores: INSOLVÊNCIA
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
REGULAMENTO (UE) N.º 2015/848
CENTRO DE INTERESSES PRINCIPAIS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/02/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Para saber se os tribunais portugueses são os competentes para o processo de insolvência que, segundo o quid disputatum definido na petição inicial, apresenta fatores de conexão com a ordem jurídica portuguesa e a ordem jurídica de, pelo menos, outro Estado-Membro da União Europeia, com exceção da Dinamarca, deve considerar-se o disposto no art. 3.º/1 do Regulamento (EU) n.º 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de maio de 2015, relativo aos processos de insolvência, diploma que prevalece sobre as normas processuais internas que definem os fatores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais
II- A referida norma estabelece o centro de interesses principais (CIP) do devedor – também denominado Center of Main Interests (COMI) – como o fator relevante para a atribuição da competência à jurisdição de um dos Estados-Membros para a abertura de um processo de insolvência com caráter universal, como é, por definição, aquele que envolve a exoneração do passivo restante.
III- De acordo com o mesmo preceito, estando em causa a insolvência de pessoa singular que não realiza uma atividade comercial ou profissional independente, é de presumir que o CIP coincide com o lugar da residência habitual do devedor.
IV- O conceito de residência habitual deve ser interpretado à luz do direito da União Europeia e tendo em conta o contexto em que se insere. Releva, assim, para esse efeito, na insolvência, o conjunto das circunstâncias objetivas relativas à situação do devedor que sejam cognoscíveis por terceiros.
V- A situação de insolvência não é per se um elemento relevante, sobretudo quando já decorreu um considerável período de tempo desde a sua constituição.
VI- Deste modo, os tribunais portugueses carecem de competência internacional para o processo de insolvência do devedor pessoa física que contraiu dívidas em Portugal para a aquisição de bens de consumo há mais de seis anos, não tem ativos patrimoniais neste País, e se encontra, no momento da abertura do processo, a exercer, desde há mais de um ano, na ..., uma atividade profissional caraterizada pela subordinação jurídica e que é a fonte exclusiva dos seus proventos.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I.
1) No dia ../../2024, AA apresentou-se à insolvência, com pedido de exoneração do passivo restante, através de requerimento apresentado no Juízo do Comércio de Guimarães, no qual, depois de se identificar como “residente em ..., ... ..., ..., e, aquando em Portugal (…), residente na Rua ..., freguesia ..., ... ..., alegou, em síntese, que: tem dívidas para com a EMP01..., SA, e o Banco 1..., SA, resultantes de empréstimos para a aquisição de veículos automóveis, cujo montante ascende a € 227 667,88, acrescidos dos respetivos juros de mora; tendo em conta essas dívidas, apresentou-se à insolvência no ano de 2015, com pedido de exoneração do passivo restante, o que deu origem ao processo n.º  5004/15....; a exoneração foi indeferida liminarmente, por falta de colaboração com a administradora da insolvência nomeada; entretanto, o processo de insolvência foi encerrado por insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas e as restantes dívidas da massa insolvente; encontra-se a trabalhar na ..., como empregada doméstica, desde ../../2022, auferindo um rendimento mensal de € 1 500,00, que é integralmente gasto nas despesas da vida corrente, entre as quais avulta a renda da casa que arrendou naquele país para sua habitação; decorridos oito anos, continua, portanto, a não conseguir pagar as referidas dívidas.
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2) Distribuído o requerimento, foi proferido, após observância do contraditório, despacho, datado de ../../2024, a declarar a incompetência internacional do tribunal para conhecer da insolvência da requerente, com base na seguinte fundamentação (transcrição):
“Importa decidir em primeiro lugar qual o tribunal internacionalmente competente para o processo de insolvência requerido.
Ora, trata-se duma matéria constante do Regulamento (CE) n.º 1346/2000, de 29.05, entrado em vigor em 31 de Maio de 2002, também aplicável aos processos de insolvência de pessoas singulares (consideração 9ª), vinculativo e diretamente aplicável nos Estados-Membros, traduzindo-se numa ação a nível comunitário que, perante a globalização da economia e da consequente dispersão do património do devedor por vários países, visa «evitar quaisquer incentivos que levem as partes a transferir bens e serviços ou ações judiciais de um Estado-Membro para outro, no intuito de obter uma situação legal mais favorável -o que a consideração 4ª do regulamento designa por «forum shopping».
Procura-se por essa via assegurar a unicidade e a universalidade dos processos de insolvência internacional. Decorre das considerações e disposições daquele Regulamento 1346/2000, que podem ser instaurados três tipos de processos: o processo principal, o processo secundário e o processo particular de insolvência.
O processo principal é único e tem alcance universal, visando abarcar todo o património do devedor, cabendo a respetiva competência ao Estado-Membro onde se situa o centro dos interesses principais do devedor (consideração 12º e artigo 3º, nº, do Regulamento);
O processo secundário pode ser instaurado noutro Estado-Membro que não aquele onde corre o processo principal, a requerimento do síndico principal ou de qualquer outra pessoa habilitada pela legislação nacional desse Estado-Membro (cf. consideração 18ª), desde que o devedor possua aí um estabelecimento, e os efeitos desse processo são os de liquidação dos bens do devedor que se encontrem neste último território.
Pressupõe por isso a prévia instauração do processo principal, correndo paralelamente a ele, e a aludida conexão territorial (cf. consideração 12º e artigo 3º, nºs 2 e 3 do Regulamento);
O processo particular de insolvência está previsto no nº4 do artigo 3º do Regulamento e no artigo 294º do C.I.R.E., resultando da conjugação dos dois regimes que é um processo de efeitos limitados (abrange apenas os bens situados em território português- nº2 do artigo 3º do Regulamento e nº1 do artigo 294º do CIRE), instaurado antes da abertura do processo principal, quando se verifica uma das duas seguintes situações previstas no nº4 do artigo 3º do Regulamento: a) Não for possível abrir um processo de insolvência ao abrigo do nº1 em virtude das condições estabelecidas pela legislação do Estado-Membro em cujo território se situa o centro de interesses principais do devedor; ou b) A abertura do processo territorial de insolvência for requerida por um credor que tenha residência habitual ou sede no Estado-Membro em cujo território se situa o estabelecimento, ou cujo crédito tenha origem na exploração do estabelecimento.
Para este processo particular, o nº2 do artigo 294º do CIRE faz depender a competência internacional dos tribunais portugueses da verificação dos requisitos da al. d) do nº1 do artigo 65º do Código de Processo Civil, que corresponde ao atual 62º, nº1, alínea c), do NCPC, segundo o qual, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes «Quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real».
Assentes os princípios gerais, cabe agora resolver a situação dos autos, observando-se desde já que, o processo de insolvência não foi instaurado nos termos do artigo 294º do C.I.R.E. (processo particular de insolvência de efeitos limitados aos bens situados em território português).
Ao invés, a forma como está estruturada a petição e a posição do requerente mantida no contraditório, designadamente situando em Portugal a residência (que veio a apurar-se ser apenas dos pais e quando está cá de férias) e centro dos principais interesses do devedor, o processo que se pretendeu instaurar, não havendo outro, de que tenhamos conhecimento, foi claramente o processo de insolvência principal.
Ora verificando-se que o principal centro dos seus interesses está em ... e não em Portugal, resta saber se algum dos factos alegados quer na petição inicial, quer no contraditório que se seguiu, integram esse elemento de conexão que o Regulamento elegeu como determinante para obviar ao fenómeno do forum shopping.
A propósito do «centro dos interesses principais» do devedor, refere a consideração 13ª do regulamento comunitário 1346/2000, que “deve corresponder ao local onde o devedor exerce habitualmente a administração dos seus interesses, pelo que é determinável por terceiros”.
A nosso ver, esse conceito deve preenchido casuisticamente. Sendo o devedor pessoa singular, a doutrina tem acolhido o lugar da residência habitual, ou da principal residência habitual, tendo mais que uma, como o elemento de mais fácil concretização (o determinável ou cognoscível por terceiros).
A nosso ver é o critério que deve prevalecer na falta doutros elementos que sugiram que o centro principal de interesses não corresponde ao do local de residência habitual.
Ora na situação em apreço os factos alegados pela própria devedora na petição inicial, evidenciam que à data em que foi requerida a insolvência (fevereiro/2019), a insolvente há mais de 1 ano que tinha a residência habitual na ....
A nosso ver, está assim demonstrado que o principal centro de interesses da insolvente não é em Portugal, mas na ..., e por isso são os tribunais deste Estado-membro os internacionalmente competentes, para o processo principal de insolvência.
E porque também não está verificado, alegado ou sequer demonstrado qualquer um dos pressupostos enunciados pelo Regulamento 1346/2000 para a instauração do processo particular de insolvência a que alude o artigo 294º do CIRE (Não ser possível abrir um processo de insolvência ao abrigo do nº1 em virtude das condições estabelecidas pela legislação do Estado-Membro em cujo território se situa o centro de interesses principais do devedor; ou a existência de estabelecimento[7] do devedor em Portugal), impõe-se a absolvição da instância do devedor, declarando-se procedente a exceção de incompetência internacional dos tribunais portugueses.”
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3) Inconformada, a Requerente interpôs o presente recurso, através de requerimento composto de alegações e das respetivas conclusões que, na parte relevante, são do seguinte teor[1] (transcrição):

“47. (…) não se pode considerar que os bens não estão situados em território Português, atendendo a que não existem quaisquer bens, nem em Portugal, nem na ..., nem na .... Nada!
48. Ademais, não obstante a Recorrente se encontrar a residir na ..., e aí se encontrar a trabalhar como uma simples empregada de limpeza, não significa que “o centro de interesses da devedora, seja na ...”!
49. A Recorrente não tem qualquer contrato de trabalho, negócio, empresa, … na ....
50. É uma simples funcionária de limpeza, sem quaisquer negócios ou bens.
51. Ademais, a atividade que desempenha – LIMPEZAS – é considerada uma atividade independente.
52. A Recorrente não tem qualquer Contrato de Trabalho fora de Portugal, com nenhuma entidade patronal.
53. Não está vinculada a ninguém, nem a nenhuma empresa, declarando a sua remuneração, como independente, a que correspondem os recibos verdes.
54. A qualquer momento, a Recorrente pode regressar a Portugal e aqui reiniciar os seus serviços independentes, de trabalhos de limpeza, à hora, emitindo os competentes, recibos verdes.
55. Por tal motivo, foi tão fácil à Recorrente, passar a residir na ... (deixou a ... e foi para a ...), onde se encontra temporariamente, a trabalhar “às horas” enquanto a sua vida, em Portugal, não se resolve.
56. A Recorrente não tem qualquer património, nem em Portugal, nem em ..., nem na ...! É uma simples empregada de limpeza, que aufere parcos rendimentos, que apenas lhe permitem fazer face às despesas da vida quotidiana.
57. As dívidas que a levaram a pedir novamente a sua insolvência pessoal, são em Portugal, e são as mesmas de 2015, sendo que nunca as conseguirá pagar.
58. Na ... e ..., a Recorrente não tem quaisquer dívidas nem créditos.
59. Pelo que, não são estes países, Estados-membros, os internacionalmente competentes, para o processo principal de insolvência, mas sim o Estado Português.
60. Pelo que, o seu centro de interesses é em Portugal, onde existe a dívida,
61. Foi em Portugal que a Recorrente contraiu os débitos, que ainda não se mostram liquidados, pelo que se tem de concluir, que foram praticados em Portugal, os factos que servem de causa de pedir, na presente ação, sendo Portugal o Estado internacionalmente competente.
62. A ora Recorrente mantém o seu domicilio fiscal em casa dos seus pais, uma vez que, a qualquer momento, pode ter que regressar a Portugal (na eventualidade de as casas particulares, para as quais trabalha, a dispensarem).
63. O que demonstra que o seu trabalho é independente.
64. Ademais, a Recorrente pretende regressar a Portugal, o mais brevemente possível, sendo que, nada liga a Recorrente a qualquer outro país.
65. Atento o exposto, não se compreende o motivo pelo qual é posta em causa a competência internacional do Tribunal e a aplicação do Regulamento nº 1346/2000, que tem como objetivo, conferir eficácia aos processos de insolvência transfronteiriços, dentro da União Europeia, de modo a contribuir para o bom funcionamento do mercado interno e evitar que sejam transferidos por alguma das partes ou ações judicias, de um Estado – Membro para outro, com o intuito de praticar o “fórum Shopping” – a recolha da posição jurídica mais favorável à defesa dos seus interesses.
66. A ora Recorrente, é uma simples empregada doméstica, que trabalha à hora, de forma independente, sem qualquer contrato de trabalho, e com facilidade de trabalhar em qualquer país.
67. Não tem qualquer património, nem negócios, nem interesses, em nenhum país, nada!
68. A aplicação do Regulamento (CE) nº 1346/2000, do Conselho de 29 de maio, depende de um critério de conexão: que o centro dos principais interesses do deve (a sede estatutária) esteja situado na União Europeia, o que não se verifica.
69. À cautela, os fatores de atribuição da competência internacional aos tribunais portugueses, encontram-se referidos nos artigos 59.º, 62.º e 63.º do CPC, sem embargo do estabelecido nas normas de direito internacional, bem como nas convenções internacionais ratificadas pelo Estado Português – cf. artigo 8.º da CRP.
70. Ora, o artigo 7.º do CIRE, estabelece que o tribunal territorialmente competente é aquele em que o devedor tem o seu domicílio ou sede, acrescentando-se no seu n.º 2, que é, igualmente, competente o tribunal do lugar onde tenha o centro dos seus principais interesses.
71. Nos termos dos art.ºs 7º e 294º 1 e 2 do CIRE e, por força deste, do art.º 62º, al. c) do CPC, são fatores legais de atribuição da competência internacional dos tribunais portugueses, em matéria de insolvência, a localização do domicílio do insolvente, o centro dos seus principais interesses, e a localização dos seus bens ou parte deles em Portugal e, na ausência de qualquer um destes elementos de conexão, se o direito do requerente não se puder tornar efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se houver dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro e desde que entre o objeto do litigio e a ordem jurídica portuguesa, haja um elemento ponderoso de conexão real ou pessoal.”
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4. O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos autos e efeito meramente devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal ad quem.
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II.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, ambos do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Tendo isto presente, a questão que se coloca neste recurso pode ser sintetizada nos seguintes termos: a decisão recorrida incorreu em error in iudicando ao considerar que o centro dos interesses principais da recorrida se situa na ..., carecendo, assim, os tribunais portugueses de competência para o processo de insolvência, por força do disposto no Considerando 12 e no art. 3.º/1 do Regulamento (CE) n.º 1346/2000, de 29.05; a competência internacional dos tribunais portugueses resulta do disposto nos arts. 7.º e 294/1 e 2 do CIRE e, por força deste, do art. 62, c), do CPC.
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III.
1) Os factos a considerar na resposta são os descritos no ponto 1) do relatório que constitui a Parte I. deste Acórdão.
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2).1. Como se constata, o Tribunal a quo apreciou, de forma oficiosa, a competência internacional para a presente ação e, considerando que ela está atribuída exclusivamente aios tribunais alemães – e, portanto, subtraída aos tribunais portugueses –, concluiu pela verificação da exceção dilatória da incompetência absoluta (arts. 96, a), 99/1, 278/1, a), 577, a), e 590/1 do CPC, este conjugado com o art. 27/1, a), do CIRE).
Estamos, assim, perante uma questão – a da denominada competência internacional – que apenas se coloca nas situações que apresentam pontos de conexão com a ordem jurídica portuguesa e com a ordem jurídica de, pelo menos, outro país (a propósito, Miguel Teixeira de Sousa, A competência Declarativa dos Tribunais Comuns, Lisboa: Lex, 1994, pp. 42-43). É o que manifestamente sucede no caso vertente, quando se atente no quid disputatum definido na petição inicial, à luz do qual deve ser aferido o pressuposto processual da competência, nomeadamente da competência em razão da nacionalidade (Miguel Teixeira de Sousa, Competência Declarativa dos Tribunais Comuns cit., p. 36; Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra: Coimbra Editora, 1979, p. 91; STJ 7.03.2019, 13688/16.1TBPRT.P1.S1, relatado por Fernando Samões, e 20.06.2023, 23384/19.2T8LSB.L1.S1, relatado por Maria João Vaz Tomé): por um lado, a devedora que se apresentou à insolvência, de nacionalidade portuguesa, identificou-se como residente na ..., afirmação que densificou no articulado ao escrever que trabalha nesse país como empregada doméstica e que nele arrendou uma casa para sua habitação [É certo que afirmou, também, que, “quando em Portugal” (sic), também reside em ..., .... Sem entrarmos, por ora, no conceito de residência, que abordaremos mais à frente, temos que esta última afirmação é contraditória em si mesma: o advérbio de tempo (quando) utilizado no seu início exprime que a requerente apenas ocasionalmente se encontra em território nacional, o que vale por dizer que não tem neste a sua residência com o caráter de permanência que o conceito pressupõe]; por outro lado, os créditos identificados foram contraídos em Portugal, sendo os seus titulares ativos sociedades com sede estatutária também no nosso País.
Neste conspecto, é indiscutivelmente do elemento residência do devedor que resulta a estraneidade da situação objeto da ação, justificando-se, assim, que o Tribunal a quo, observando a regra da Kompetenz-Kompetenz, consagrada no art. 97/1 do CPC, tenha controlado a sua própria competência.
Na sequência, veremos se o fez de forma correta.
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2).2.1. Conforme ensina Isabel Alexandre (Direito Processual Civil Internacional, Lisboa: AADL, 2023, pp. 107-108), cada um dos Estados estabelece, no seu direito interno, a competência internacional dos respetivos tribunais para o conhecimento dos litígios plurilocalizados. Neste sentido, entre nós, o art. 37 da Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26.08, remete para a lei de processo a fixação dos fatores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais. No âmbito do processo civil, o art. 59 do CPC diz que “[s]em prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos e em outros instrumentos nacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos arts. 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do art. 94.º.” Na sequência, o art. 62 enuncia os três critérios de atribuição da competência internacional aos tribunais portugueses – critérios da coincidência (a)), da casualidade (b)) e da necessidade (c). O art. 63 enuncia os fatores de competência exclusiva dos tribunais portugueses que se traduzem numa reserva de jurisdição. O art. 94 regula a competência convencional internacional, prevendo os pactos de jurisdição, através dos quais as partes convencionam sobre a jurisdição nacional competente para apreciar um litígio que apresente elementos de conexão com mais de uma ordem jurídica, os quais podem ser atributivos ou privativos.
A parte inicial do art. 59 afirma, de forma clara, que a aplicação das normas nacionais deve ceder perante a vinculação a regras de Direito Internacional Público geral – nomeadamente, a de que deve haver uma “ligação significativa da relação controvertida com o Estado do foro” (Luís Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, III, tomo I, Competência Internacional, Lisboa: AAFDL, 2019, pp. 22-23) –, a outras regras de Direito Internacional Público  designadamente emergentes de convenções internacionais – e a regras de direito europeu, o que encontra arrimo nos vários números do art. 8.º da Constituição da República.
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2).2.2. Neste âmbito merecem atenção, em especial, os regulamentos europeus que, como se sabe, contêm normas de carácter geral e gozam de aplicabilidade direta, nos termos do art. 288 do Tratado sobre o Fundamento da União Europeia – ou seja, a sua aprovação pelos órgãos de Direito da União Europeia, com a consequente publicação e entrada em vigor, é suficiente para produzir efeitos no direito interno dos Estados-Membros. Em Portugal, o n.º 4 do referido art. 8.º da CRP reconhece o princípio do primado do direito emanado das instituições da União Europeia sobre todas as normas e atos nacionais, com ressalva daqueles que constituem o chamado “núcleo essencial” da ordem constitucional portuguesa, reconduzido aos “princípios fundamentais do Estado de Direito democrático” (Maria Luísa Duarte, “O Tratado da União Europeia e a garantia da constituição: notas de uma reflexão crítica”, Estudos em memória do Professor Doutor João de Castro Mendes, Lisboa: Lex,  1995, pp. 667-715).
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2).3. No domínio do direito emanado das instituições da União Europeia, está atualmente em vigor o Regulamento (UE) n.º 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de maio de 2015 relativo aos processos de insolvência, que é aplicável, nos termos do n.º 1 do seu art. 1.º, “aos processos coletivos públicos de insolvência, incluindo os processos provisórios, com fundamento na lei no domínio da insolvência”, enumerados no respetivo anexo A, desde que não respeitantes às entidades referidas no seu n.º 2 (v.g., empresas de seguros e instituição de crédito). O diploma consagra, no seu art. 3.º, a regra segundo a qual “[o]s órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em cujo território está situado o centro dos interesses principais do devedor são competentes para abrir o processo principal de insolvência” (n.º 1), o que é automaticamente reconhecido em todos os outros Estados-Membros (art. 19/1), bem como a de que[,] “[n]o caso de o centro dos interesses principais do devedor se situar no território de um Estado-Membro, os órgãos jurisdicionais de outro Estado-Membro são competentes para abrir um processo de insolvência relativo ao referido devedor se este possuir um estabelecimento no território desse outro Estado-Membro.” Neste caso, “[o]s efeitos desse processo são limitados aos bens do devedor que se encontrem neste último território.” Este último processo é, portanto, um processo territorial de insolvência (art. 3.º/4, 1.ª parte), também designado “processo secundário de insolvência” a partir do momento em que seja instaurado um processo principal de insolvência (art. 3.º/e e 4).[2] Consagra-se, assim, um regime caraterizado pelo equilíbrio entre a tese da universalidade (ou da unidade), que sustenta que os efeitos do processo não se limitam ao território onde a insolvência é declarada, e a tese da territorialidade (ou tese da pluralidade), que sustenta exatamente o contrário – ou seja, a circunscrição destes efeitos ao território onde a insolvência é declarada (a propósito, Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2020, pp. 658-659 e 661).
Compreende-se, pelo exposto, que Maria Helena Brito (“Falências internacionais. Algumas considerações a propósito do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”, Themis, Edição Especial – Novo Direito da Insolvência, 2005, pp. 183 e ss.) afirme que as regras de competência se inspiram num princípio de universalidade limitada e que Dario Moura Vicente (“Insolvência Internacional: direito aplicável, AAVV, Estudo em Homenagem ao Professor Doutor José Dias Marques, Coimbra: Almedina, 2007, pp. 81 e ss.) qualifique o sistema como de “universalidade mitigada.” A razão de ser é explicada por Luís lima Pinheiro (“O Regulamento comunitário sobre insolvência – uma introdução”, ROA, 2006, III, pp. 1101 e ss.) do seguinte modo: “um puro sistema universal não atende suficientemente aos interesses dos pequenos credores locais e às vantagens oferecidas por processos territoriais de insolvência em certas circunstâncias. Daí que mereça preferência um sistema misto de pendor universalista.” Para assim se concluir basta atentar no considerando 22 do Regulamento, onde se assume que não é praticável criar um processo de insolvência de alcance universal na União Europeia por causa da grande diversidade das leis substantivas, designadamente no que tange às garantias vigentes nos vários Estados-Membros, em particular aos privilégios creditórios.
O art. 91 do Regulamento revogou expressamente o Regulamento (CE) n.º 1346/2000, do Conselho, de 29 de maio de 2000 (JOUE L 160, de 30 de junho de 2000), em que se baseou a decisão recorrida. O diploma entrou em vigor, na generalidade, no dia 26 de junho de 2017 (arts. 91 e 92), sendo diretamente aplicável em todos os Estados-Membros, com exceção da Dinamarca.
Não existem, portanto, quaisquer dúvidas que é à luz dele que deve ser apreciada a questão decidenda. Sem prejuízo, sempre se nota que, como vamos ver no ponto seguinte, as soluções consagradas a propósito da competência internacional não representam alteração de tomo relativamente às do seu antecessor, cujo art. 3.º já consagrava a regra segundo a qual o tribunal competente para a abertura do processo de insolvência é o tribunal do Estado-Membro onde se localize o centro dos interesses principais (CIP) do devedor
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2).4. Como escrevemos, o Regulamento (UE) 2015/848 sucedeu ao Regulamento (CE) 1346/2000 e visou dar resposta aos cinco problemas que a execução deste permitiu detetar, conforme resulta da Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, mais concretamente: (i)) a necessidade de alargar o âmbito de aplicação a processos pré-insolvenciais e a processos híbridos (que mantêm a administração em exercício) e a processos de insolvência de pessoas singulares que não se encontravam abrangidos pelo referido diploma; (ii)) as dificuldades suscitadas pelo preenchimento do conceito de centro dos principais interesses do devedor e facilidade no recurso ao forum shopping ilegítimo; (iii)) a possibilidade de o processo secundário dificultar a administração eficaz do património do devedor; (iv)) as dificuldades no que respeita à publicidade do processo de insolvência e da reclamação de créditos: falta de obrigatoriedade de registo das decisões no Estado-Membro onde o processo é aberto, nem no Estado-Membro onde existe um estabelecimento e inexistência de um registo europeu de insolvências; (v)) a ausência de disposições específicas para a insolvência transfronteiriça de grupos de sociedades.
As novidades introduzidas não são “muito numerosas nem as que existem muito impressionantes”, na sugestiva expressão de Catarina Serra (Lições cit., p. 663), limitando-se, no que releva para a questão da atribuição da competência internacional aos tribunais dos Estados-Membros, a aclarar o conceito de centro de interesses principais – que, como escrevemos, estabelece o fator de conexão relevante. Neste sentido, F. Garcimartin Alférez, “El nuevo Reglamento europeo de insolvencia (III): competencia judicial internacional”, disponível em https://almacendederecho.org/ [15.04.2024]; Nerea Magallon Elósegui, “El centro de intereses del deudor persona fisica en el reglamento europeo 848/2015 sobre procedimientos de insolvência”, Cuadernos de Derecho Transnacional (março de 2021), Vol. 13, n.º 1, pp. 974-985, disponível em https://doi.org/10.20318/cdt.2021.6006 [15.04.2024]. Deste modo, mantém a atualidade a jurisprudência do TJUE que foi proferida, a propósito da questão, tendo por referência o regime do Regulamento (CE) 1346/2000. Por identidade de razões, o erro cometido pelo Tribunal a quo na determinação do diploma aplicável apresenta-se como inócuo em termos práticos.
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2).5.1. O âmbito de aplicação do Regulamento 2015/848 resulta da leitura dos seus arts. 1.º e 2.º e do respetivo Anexo A, que devem ser conjugados com os considerandos 9 e 10.
Neste último, o legislador europeu expressa o objetivo de alargar o âmbito de aplicação do diploma aos processos que promovam a recuperação de empresas economicamente viáveis, mas que se encontram em dificuldades e que concedem uma segunda oportunidade aos empresários. Estão em causa, como refere Catarina Serra (Lições cit., pp. 665-666), nomeadamente, os processos que preveem a revitalização do devedor numa fase em que existe apenas uma probabilidade de insolvência – os ditos processos pré-insolvenciais – ou que mantêm o devedor em situação de controlo total ou parcial dos seus bens e negócios, assim como os processos que preveem o perdão ou o ajustamento das dívidas relativamente aos consumidores e trabalhadores independentes, por exemplo, através da redução do montante a pagar pelo devedor ou da prorrogação do prazo de pagamento que lhe é concedido, como sucede com os procedimentos de exoneração do passivo restante.
Dando corpo a esta intenção, o art. 1.º prevê a aplicação do Regulamento “aos processos coletivos públicos de insolvência, incluindo os processos provisórios, com fundamento na lei no domínio da insolvência e nos quais, para efeitos de recuperação, ajustamento da dívida, reorganização ou liquidação: a) O devedor é total ou parcialmente privado dos seus bens e é nomeado um administrador da insolvência; b) Os bens e negócios do devedor ficam submetidos ao controlo ou à fiscalização por um órgão jurisdicional; ou c) Uma suspensão temporária de ações executivas singulares é ordenada por um órgão jurisdicional ou por força da lei, a fim de permitir a realização de negociações entre o devedor e os seus credores, desde que o processo no qual é ordenada a suspensão preveja medidas adequadas para proteger o interesse coletivo dos credores e, caso não seja obtido acordo, seja preliminar relativamente a um dos processos a que se referem as alíneas a) ou b). Nos casos em que os processos referidos no presente número possam ser iniciados em situações em que existe apenas uma probabilidade de insolvência, a sua finalidade deve ser a de evitar a insolvência do devedor ou a cessação das suas atividades.”
Na primeira parte da norma apresenta-se a descrição-base (Catarina Serra, Lições cit.,p. 666) com recurso ao conceito de processo coletivo público.
O primeiro adjetivo (coletivo) implica que o procedimento insolvencial ou pré-insolvencial, para ficar abrangido pelo Regulamento, deve afetar uma pluralidade de credores – ainda que não necessariamente todos (cf. art. 2.º) – cuja satisfação conjunta deve ser maximizada. Naturalmente, esse tipo de procedimentos corresponde a uma categoria normativa específica que genericamente pode ser designada por legislação em matéria de insolvência. A razão da redundância reside no facto de o legislador europeu apenas regular as regras de direito internacional privado que regem os processos transfronteiriços na União, sem elaborar um conceito único de insolvência ou processo de insolvência, deixando essa tarefa para o direito interno dos Estados-Membros.
Compreende-se, assim, que para facilitar o estabelecimento de uma delimitação terminológica seja feita uma referência expressa e direta, no Anexo A, aos processos que, em cada Estado-Membro, são abrangidos.  Compreende-se também, que o considerando 9 atribua ao Anexo A uma importância decisiva, conferindo ao art. 1.º a mera tarefa de estabelecer o critério para que um determinado procedimento nacional possa ser incluído. Dito de outra forma, os processos que não estejam incluídos no Anexo A não estão sujeitos ao Regulamento ainda que reúnam as características enunciadas no art. 1.º e, correspetivamente, os processos que sejam incluídos no Anexo A estão sujeitos ao Regulamento ainda que não preencham aquelas condições e só por erro tenham sido incluídos (Catarina Serra, idem; F. Garcimartin Alférez, “El nuevo Reglamento europeo de insolvencia (II): ámbito de aplicación”, disponível em https://almacendederecho.org/ [15.04.2024]).
A este propósito, pode ler-se no Acórdão desta 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães de 14.09.2023 (2565/23.0T8GMR.G1), relatado por José Alberto Moreira Dias, que o sentido interpretativo que se acaba de explanar, segundo o qual apenas os processos de insolvência transfronteiriços que apresentam elementos de conexão entre Estados-Membros da União que constam do elenco taxativo enunciado no Anexo A do Regulamento ficam submetidos à disciplina jurídica nele prevista, também encontra arrimo na circunstância de, no identificado considerando 9, expressamente se estabelecer que “[e]m relação aos processos nacionais que figuram no Anexo A, o presente Regulamento deverá ser aplicável, sem que aos órgãos jurisdicionais de outro Estado-Membro devam apreciar das condições nele fixadas estão preenchidas” – ou seja, escreve-se no aresto, “instaurado num Estado-Membro da União um processo de insolvência transfronteiriço, cuja relação jurídica apresente pontos de conexão com vários Estados-Membros da União, merecendo esse processo, de acordo com a ordem jurídica interna desse Estado, uma das nomenclaturas constantes do elenco taxativo do Anexo A do Regulamento, esse processo fica automaticamente submetido ao regime jurídico do Regulamento, vedando-se aos órgãos jurisdicionais dos restantes Estados-Membros verificar se, apesar disso, estão preenchidos (ou não) os elementos de aplicabilidade do Regulamento constante da primeira parte do n.º 1 do art. 1.º deste em eventual ação que junto deles seja proposta, concluindo, designadamente, pela sua competência internacional para conhecer dessa mesma relação jurídica com o argumento de que apesar do processo antes intentado junto de outro Estado-Membro, segundo a ordem jurídica interna deste, constar do elenco taxativo do Anexo A, que os órgãos jurisdicionais desse Estado-Membro não são os internacionalmente competentes porque não se encontram preenchidas as condições gerais de aplicabilidade do Regulamento, previstas na 1ª parte do n.º 1, do art. 1º do Regulamento.” E acrescenta-se: “Note-se que isto é assim, independentemente do direito interno da jurisdição considerada pelo Regulamento como internacionalmente competente para conhecer do processo permitir ou não ao requerente instaurar nela o processo insolvencial que intentou instaurar junto da jurisdição de outro Estado-Membro, mas que o Regulamento declara ser territorialmente incompetente para dele conhecer. Com efeito, as normas de competência internacional destinam-se apenas a definir, entre as jurisdições dos vários Estados com as quais a relação jurídica material controvertida delineada pelo requerente na petição inicial apresenta elementos de conexão, qual a conexão relevante para efeitos de atribuição da competência internacional às jurisdições com quem essa concreta relação jurídica apresenta conexões. Determinada essa jurisdição e, assim, determinada qual a concreta jurisdição que dispõe de competência internacional para dela conhecer, saber se o direito adjetivo e/ou substantivo interno dessa jurisdição internacionalmente competente permite ou não ao requerente instaurar esse processo com vista a exercer o direito que se propõe exercer, é questão totalmente indiferente e alheia às regras de competência internacional, tratando-se antes de questão que se coloca a jusante da determinação da jurisdição internacionalmente competente para conhecer desse concreto litígio, às quais as normas sobre a competência internacional são alheias, tratando-se de questão que se prende exclusivamente com o ordenamento jurídico adjetivo e/ou substantivo interno do Estado cuja jurisdição detém competência internacional para conhecer desse concreto litígio.
Daí que, caso a ordem jurídica interna do Estado cuja jurisdição detenha competência internacional para conhecer da concreta relação jurídica material controvertida delineada pelo requerente na petição inicial não reconheça o direito que o requerente pretende exercer, sem prejuízo da norma geral de competência internacional interna prevista na al. c), do art. 62º do CPC, a qual, conforme se vem dizendo e do que infra ainda se dirá, não tem aplicação aos processos insolvenciais transfronteiriços aos quais o Regulamento (UE) n.º 2015/848 é aplicável, esse facto mostra-se totalmente irrelevante para efeitos de afastamento das regras atributivas de competência internacional previstas no Regulamento (…)”
O segundo adjetivo (público), quando conjugado com os considerandos 12 e 13, impõe como requisito que a abertura do processo, seja ele insolvencial ou pré-insolvencial, esteja sujeita a publicidade, de modo que os credores afetados possam tomar conhecimento dessa abertura e tenham a possibilidade, por exemplo, de reclamar os seus créditos ou contestar a competência judicial da autoridade que o declarou ou registou. Deste modo, o Regulamento não se aplica a procedimentos confidenciais. O legislador europeu ponderou o interesse que o devedor e certos credores podem ter em manter a confidencialidade das negociações, por um lado, e o interesse em proteger terceiros não envolvidos de algo que desconhecem, por outro, em favor deste último (F. Garcimartin Alférez, “El nuevo Reglamento europeo de insolvencia (II): ámbito de aplicación”, disponível em https://almacendederecho.org/ [15.04.2024]).
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2).5.2. No caso vertente, em que é pretendida a declaração de insolvência de uma pessoa singular, com exoneração do passivo restante, alegando–se que a totalidade das dívidas que determinam a situação de insolvência foram contraídas para financiar atos de consumo –não estando, portanto, relacionadas com o exercício de uma atividade comercial ou profissional por parte da devedora –, importa realçar que do Anexo A consta o Insolvenzverfahren, que corresponde ao processo de insolvência que o art. 1.º/1 do Insolvenzordnung (InsO) diz ter como principal objetivo a satisfação dos créditos através da liquidação dos bens do devedor que possam ser penhorados – a Insolvenzmasse. Esse processo, quando relativo a pessoa singular insolvente, podem também destinar-se a dar ao devedor uma oportunidade de recomeçar a sua atividade económica. Para o efeito, o processo de insolvência pode ser seguido de um procedimento de exoneração do passivo restante, que conduz à libertação do devedor das suas responsabilidades pendentes, pelas quais é responsável após o termo do processo nos termos do § 201 do InsO. Prevê-se um específico processo de insolvência dos consumidores (Verbraucherinsolvenzverfahren), em conformidade com o § 304 (2) do InsO, caraterizado pela simplificação dos procedimentos. É nomeado um administrador fiduciário (administrador da insolvência) para elaborar a tabela de insolvência (credor, montante do crédito e causa do crédito). O fiduciário também tem a tarefa de apreender os bens do devedor. Este tem a opção de requerer a exoneração do passivo restante. Se não for apresentado nenhum pedido (fundamentado) de recusa, o rendimento disponível do devedor é, durante um determinado período de tempo, cedido ao fiduciário para ser distribuído pelos credores, após dedução das custas do processo. Durante esse período, o devedor tem os deveres enumerados no § 295 do InsO: deve exercer uma atividade remunerada ou esforçar-se para fazê-lo, entregar metade do valor das heranças ao fiduciário, notificar o tribunal de insolvência e o administrador fiduciário de qualquer mudança de residência e emprego, e não proporcionar a qualquer credor uma vantagem especial. O administrador fiduciário fiscaliza as obrigações do devedor apenas a pedido dos credores (§ 292 (2) InsO). Em caso de incumprimento destas obrigações, a exoneração pode ser recusada. Apenas os credores têm o direito de apresentar um pedido nesse sentido (§ 290 InsO). No fim desse período, ocorre a exoneração do pedido restante e o processo é encerrado.
Não resta, portanto, qualquer dúvida de que a situação dos autos se inclui no âmbito material de aplicação do Regulamento, ficando assim afastada a aplicação dos critérios do art. 62 do CPC para definir a competência internacional para a presente ação de insolvência.
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2).6.1. Prosseguindo, vejamos agora como trata o legislador europeu a questão da competência internacional.
O art. 81/2, c), do Tratado sobre o funcionamento da União Europeia autoriza o legislador europeu a adotar as medidas que considerar apropriadas com vista a garantir “a compatibilidade das normas aplicáveis nos Estados-Membros em matéria de conflitos de leis e de jurisdição”.
Foi com arrimo na primeira parte desta disposição que o legislador europeu construiu o já mencionado modelo de universalidade mitigada, o qual se concretiza no Regulamento 2015/848 através da coexistência de duas tipologias de procedimentos: um de caráter principal, com uma abrangência cognitiva universal – ou seja, com a intenção de avaliar na sua totalidade o património do devedor transfronteiriço, tanto do ponto de vista dos seus ativos, compreendendo todos os seus bens e direitos, como da dimensão dos seus passivos, constituídos pela esfera das suas obrigações – e outro territorial, que se estende exclusivamente aos bens patrimoniais localizados num foro específico.
No que tange ao procedimento de caráter principal, o legislador recorre, no art. 3.º/1, 1.º §, a uma construção própria do Direito internacional privado concursal: o centro de interesses principais (CIP) do devedor – também denominado Center of Main Interests (COMI). Neste critério encontramos o ponto de conexão para discernir, entre os diferentes Estados que podem disputar a jurisdição, qual é o competente, em detrimento dos outros, para a tramitação unitária do procedimento de alcance universal. Como, a propósito de norma semelhante do art. 3.º/1 Regulamento (CE) n.º 1246/2000, salientou o TJUE no Acórdão de 15.12.2011 (caso Rastelli, C-191/10, ECLI:EU:C:2011:838), a competência atribuída é exclusiva. Como ali se pode ler, “a possibilidade de um órgão jurisdicional designado competente, em conformidade com esta disposição, relativamente a um devedor, de submeter, em aplicação da sua lei nacional, outra entidade jurídica a um processo de insolvência pelo simples facto de existir confusão dos patrimónios, sem procurar saber onde se encontra o centro dos interesses principais dessa entidade, constitui um desvio ao sistema estabelecido pelo regulamento. Daqui resultaria, nomeadamente, um risco de conflitos positivos de competência entre órgãos jurisdicionais de Estados‑Membros diferentes, conflitos que o regulamento pretendeu precisamente evitar a fim de assegurar uma unidade de tratamento do processo de insolvência na União.” Como corolário lógico, só pode ser aberto um processo principal e este produz os seus efeitos em todos os Estados-Membros em que o regulamento é aplicável, conforme se expende no Acórdão do TJUE de 22.03.2022 (caso Galapagos, C-723/20, ECLI:EU:C:2022:209).
O mesmo preceito define o CIP como “o local em que o devedor exerce habitualmente a administração dos seus interesses de forma habitual e cognoscível por terceiros.”
Estamos aqui perante conceitos próprios e autónomos do Direito europeu. Como tal, devem ser interpretados com total independência das nuances que possam existir nas legislações dos diferentes Estados-Membros. A única forma de alcançar essa aspiração é isolá-los de qualquer referência aos ordenamentos internos e fundamentar a sua interpretação no contexto regulamentar da disposição e no objetivo prosseguido pela norma. A propósito, na jurisprudência do TJUE, os Acórdãos de 18.01.1984 (caso Ekro, 327/82, ECLI:EU:C:1984:11), 1.10.2019 (caso Planet49, C‑673/17, ECLI:EU:C:2019:801) e de 4.05.2023 (caso Österreichische Post, C‑300/21, ECLI:EU:C:2023:370). Na doutrina nacional, Rosa Tching, “Juiz nacional – um juiz cada vez mais europeu”, Julgar, n.º 14, maio-agosto de 2011, pp. 137-160).
Desta forma, como considera o TJUE no Acórdão de 20.10.2011 (caso Interedil, C‑396/09, ECLI:EU:C:2011:671), o legislador teve a intenção de vincular o reconhecimento da insolvência à jurisdição com a qual o devedor tem uma relação mais estreita. Para tal, devem ser cumpridos uma série de requisitos, visando salvaguardar dois interesses jurídicos fundamentais: a segurança jurídica no comércio económico e a previsibilidade na determinação do órgão judicial competente a nível europeu. Para isso, devem ser seguidos critérios objetivos e verificáveis por terceiros, baseados em circunstâncias materiais que tenham sido objeto da devida publicidade ou, pelo menos, que tenham sido rodeados da transparência suficiente para que terceiras pessoas – especialmente os credores – tenham podido tomar conhecimento delas, ideia que transparece do considerando 28. Neste sentido, vide o Acórdão de 2.05.2006 (Caso Eurofood, C-341/04, ECLI:EU:C:2006:281). Tais circunstâncias materiais consistem no local onde o devedor exerceu a direção ou teve controlo dos seus interesses económico-patrimoniais.
A partir daqui desenvolvem-se, de acordo com a lição de M. Virgós Soriano / F. Garcimartin Alférez (Comentario al Relamento Europeo de Insolvencia, Madrid: Thomson-Civitas, 2003, pp. 48 e ss.), três diretrizes fundamentais: a primazia da esfera externa, a primazia da conexão administrativa e o princípio da unidade. Pelo primeiro princípio, releva o local onde a gestão se torna visível perante terceiros, pois quando se opera no mercado, uma série de condutas podem levar os terceiros a deduzi-la. Para alcançar esse objetivo, embora não seja expressamente exigido na redação do Regulamento, pressupõe-se um “certo grau de presença material da entidade correspondente no foro.” A primazia da conexão administrativa refere-se ao local onde o devedor exerce a atividade de administração dos seus interesses de natureza económica e não o lugar onde estes efetivamente se encontram. Por fim, o princípio da unidade decorre do sentido do critério administrativo e está ligado à palavra centro, significando que “cada devedor só pode ter um centro de interesses principais, e a cada devedor deve ser atribuído um.”
De seguida, o art. 3.º enumera uma série de presunções relativas ou iuris tantum para a determinação do CIP de diversos sujeitos de acordo com a sua natureza: a sede social para as sociedades, o centro principal de atividade para as pessoas físicas que realizam uma atividade comercial ou profissional independente e a residência habitual para os consumidores.
Não é difícil perceber que nesses três locais se centralizam, para cada uma dessas tipologias de pessoas, a gestão dos seus interesses económicos. Tanto para as sociedades como para os comerciantes e profissionais, o seu domicílio social ou centro principal de atividade constituirá o local onde têm os meios administrativos adequados – que poderão ser mais ou menos extensos - que evidenciam perante terceiros que ali se encontra o seu núcleo decisório. Mutatis mutandis, a residência habitual não será muito diferente para os consumidores.
De acordo com o já citado Acórdão do TJUE de 20.05.2006, para ilidir estas presunções são necessários elementos objetivos e verificáveis por terceiros dos quais resulte que não há coincidência entre a situação real e a situação aparentemente refletida pela localização da sede social, do centro principal de atividade ou da residência habitual - como será o caso paradigmático das sociedades caixa de correio, que não exercem qualquer atividade no território do Estado-Membro onde está situada a sua sede estatutária. No considerando 30 diz-se mesmo que, no caso de uma sociedade, a presunção “deverá poder ser ilidida se a administração central da sociedade se situar num Estado-Membro diferente do da sede estatutária e se uma avaliação global de todos os fatores relevantes permitir concluir, de forma cognoscível por terceiros, que o centro efetivo da administração e supervisão da sociedade e da gestão dos seus interesses se situa nesse outro Estado-Membro. No caso de uma pessoa singular que não exerça uma atividade comercial ou profissional independente, essa presunção deverá poder ser ilidida, por exemplo, se a maior parte dos bens do devedor estiver situada fora do Estado-Membro onde este tem a sua residência habitual, ou se puder ficar comprovado que o principal motivo para a sua mudança de residência foi o de requerer a abertura de um processo de insolvência na nova jurisdição e se tal pedido prejudicar significativamente os interesses dos credores cujas relações com o devedor tenham sido estabelecidas antes da mudança.”
O Regulamento estabelece ainda restrições temporais ao funcionamento das presunções: no caso das sociedades e pessoas coletivas, a presunção só é aplicável se a sede estatutária não tiver sido transferida para outro Estado-Membro nos três meses anteriores ao pedido de abertura do processo de insolvência; no caso de pessoa singular que exerça uma atividade comercial ou profissional independente, a presunção só é aplicável se o local de atividade principal da pessoa singular não tiver sido transferido para outro Estado-Membro nos três meses anteriores ao pedido de abertura do processo de insolvência; no caso de outra pessoa singular, a presunção só é aplicável se a residência habitual não tiver sido transferida para outro Estado-Membro nos seis meses anteriores ao pedido de abertura do processo de insolvência.
Com estas restrições, introduzidas pelo Regulamento, pretendem-se evitar as transferências ilegítimas e, bem assim, a prática do denominado forum shopping ou insolvency tourism, tanto por parte de sociedades e outras pessoas coletivas como de pessoas singulares, dando forma de ato normativo ao que já vinha sido entendido pelo TJUE, por exemplo, no Acórdão de 17.01.2006 (caso Staubitz-Schreiber, C-1/04, ECLI:EU:C:2006:39).
Vistas de outro ângulo, estas restrições funcionam também como uma extensão da competência do Estado-Membro imediatamente anterior, prolongando o status quo pelo período previsto em caso de mudança do CIP do devedor.
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2).6.2. Como vimos, no caso de pessoas singulares, o legislador europeu fixa duas presunções: tratando-se de pessoa singular que exerça uma atividade comercial ou profissional independente, presume-se que o CIP é o local onde ela exerce a atividade principal; tratando-se de qualquer outra pessoa singular, presume-se que o CIP é o lugar da residência habitual. Parte-se, assim, da diferente natureza do devedor pessoa singular.
Há, portanto, que previamente apurar se o devedor pessoa singular exerce uma atividade comercial ou profissional independente e se esta está na origem da situação de insolvência, cf. enfatiza Nerea Magallon Elósegui, “El centro de intereses del deudor persona fisica en el reglamento europeo 848/2015 sobre procedimientos de insolvência”, Cuadernos de Derecho Transnacional (março de 2021), Vol. 13, n.º 1, pp. 979-981.
Se assim suceder, estará verificado o factum probans da primeira presunção. Na hipótese contrária, a situação cairá na previsão (residual) da segunda presunção.
Mais uma vez estamos perante conceitos próprios de Direito Europeu.
O primeiro (atividade comercial) é totalmente irrelevante para a situação decidenda; o segundo apenas releva por a Recorrente ter afirmado, nas conclusões, que é uma profissional independente, posto que “[n]ão está vinculada a ninguém, nem a nenhuma empresa, declarando a sua remuneração, como independente, a que correspondem os recibos verdes.”
Quid inde?
O conceito de profissional independente pressupõe o exercício de uma atividade não assalariada (art. 49/2 do TFUE). O TJUE já se pronunciou, ainda que a propósito da interpretação de outros diplomas, mais concretamente das disposições da Diretiva 2003/88/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de novembro de 2003 (entre nós transposta pela Lei n.º 35/2004, de 29 de julho , lei que regulamentava a Lei n.º 99/2003, de 27 de agosto que aprovou o Código do Trabalho), densificando o conceito por contraposição ao de trabalhador. A título de exemplo, no Acórdão de 22.04.2020 (caso Yodel Delivery Network, C-692/19, ECLI:EU:C:2020:288), decidiu que a referida Diretiva 2003/88/CE  deve ser interpretada no sentido de que se opõe a que uma pessoa contratada pela sua suposta entidade empregadora, ao abrigo de um contrato de prestação de serviço que prevê a sua qualidade de trabalhador independente, seja qualificada como trabalhador, se esse “trabalhador” beneficiar de um poder discricionário aferido através dos seguintes critérios: (i) recorrer a subcontratantes ou substitutos para executar o serviço que se comprometeu a prestar; (ii) aceitar ou não as várias tarefas distribuídas pelo suposto empregador, ou unilateralmente fixar o número máximo dessas tarefas; (iii) prestar serviços a qualquer terceiro, incluindo concorrentes diretos do suposto empregador; e (iv) para fixar o seu próprio horário de trabalho dentro de certos parâmetros e adaptá-lo, segundo critérios de conveniência pessoal, e não apenas segundo interesses do empregador putativo. Se todos estes pontos se verificarem, a independência do trabalhador não será fictícia, pelo que será de excluir a existência de uma relação de subordinação entre o “trabalhador” e o suposto empregador.
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2).6.2.3. Quando se atente na descrição que a própria Recorrente, no requerimento inicial, fez da sua atividade profissional, em especial na parte em que afirmou, de forma substanciada, que é empregada doméstica, em casas particulares, o que pressupõe a subordinação jurídica que é característica do contrato de trabalho, temos de concluir que a conclusão das alegações de recurso supra transcrita é manifestamente insubsistente.
A isto acresce uma outra consideração: como escrevemos, para que a primeira presunção fique preenchida, é de exigir que a situação de insolvência esteja relacionada com o exercício da profissão independente do devedor, o que não sucede no caso, certo como é que a Recorrente alegou que a sua situação de insolvência foi o resultado do recurso a créditos destinados ao consumo, assim afastando a referida conexão.
Sem prejuízo do que antecede, sempre notamos que o resultado da aplicação da primeira presunção aplicável às pessoas singulares seria contrário ao interesse da Recorrente: o local de exercício da sua atividade de empregada doméstica é, desde ../../2022, na ..., o que vale por dizer que se situa aí o seu CIP. A competência estaria, portanto, atribuída aos tribunais alemães.
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2).6.2.4. A situação dos autos deve, portanto, ser analisada à luz da segunda das referidas presunções, o que coloca a questão de saber qual é a residência habitual da Recorrente.
O Regulamento não diz o que deve entender-se por residência habitual. O TJUE pronunciou-se já sobre este conceito noutra latitude – o direito da família, a propósito do art. 8.º/1 do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental –, por exemplo no Acórdão de 22.12.2010 (caso B. Mercredi vs. Chaffe, C-497/10, ECLI:EU:C:2010:829), nos seguintes termos: “o conceito de «residência habitual», na aceção do artigo 8.°, n.º 1, do regulamento, corresponde ao lugar que traduz uma certa integração da criança num ambiente social e familiar. Esse lugar deve ser fixado pelo órgão jurisdicional nacional tendo em conta todas as circunstâncias de facto específicas de cada caso concreto (…). / Entre os critérios à luz dos quais cabe ao órgão jurisdicional nacional fixar o lugar da residência habitual de uma criança, devem, designadamente, ser referidas as condições e as razões da permanência da criança no território de um Estado‑Membro, bem como a sua nacionalidade (…). / (…) para determinar a residência habitual de uma criança, além da presença física desta última num Estado‑Membro, outros fatores suplementares devem indicar que essa presença não tem carácter temporário ou ocasional. / (…) deve sublinhar‑se que, para distinguir a residência habitual de uma simples presença temporária, a residência habitual deve, em princípio, ter uma certa duração para traduzir uma estabilidade suficiente. No entanto, o regulamento não prevê uma duração mínima. Com efeito, para a transferência da residência habitual para o Estado de acolhimento, importa sobretudo a vontade do interessado de aí fixar, com intenção de lhe conferir um carácter estável, o centro permanente ou habitual dos seus interesses. Assim, a duração de uma estada apenas pode servir de indício na avaliação da estabilidade da residência, devendo essa avaliação ser feita à luz de todas as circunstâncias de facto específicas do caso concreto.”
Não podemos, porém, esquecer que a interpretação de qualquer conceito do direito da união europeia deve ser feita tendo em conta o contexto em que o mesmo se insere. Nesta medida, a interpretação do conceito de residência habitual utilizado num regulamento sobre insolvência não pode deixar de atender ao aspeto patrimonial, o qual deve prevalecer face a elementos relacionados com a situação social e familiar que são pertinentes noutros contextos. A este propósito, salienta-se, nas conclusões do Advogado-Geral Maciej Szpunar, no caso Banco 2... (C-253/19, ECLI:EU:C:2020:328), que “a situação social ou familiar de um devedor não constitui um elemento suscetível de ser facilmente cognoscível por terceiros. É certo que assim não sucede no que respeita às relações interpessoais com implicações económicas, como a relação conjugal ou a relação entre os membros de um mesmo agregado familiar. Essas relações são suscetíveis de influenciar a situação de um devedor no que respeita ao seu património e, nomeadamente, de o incitar a celebrar transações com terceiros. No entanto, (…)  essas relações não devem ser tidas em conta devido à sua importância subjetiva para um devedor, mas devido às suas implicações económicas.”
Assim, o critério pertinente para aferir o CIP de um particular que não exerce uma atividade comercial ou profissional independente é o relativo à sua situação patrimonial e económica, o que corresponde, necessariamente, ao lugar onde essa pessoa leva a cabo a administração dos seus interesses económicos e no qual recebe e gasta a maioria dos seus proventos. No fundo, o lugar onde se encontra a maioria dos seus ativos. Neste sentido, expressamente, Nerea Magallon Elósegui, “El centro de intereses del deudor persona fisica en el reglamento europeo 848/2015 sobre procedimientos de insolvência”, Cuadernos de Derecho Transnacional (março de 2021), Vol. 13, n.º 1, p. 982.
A relevância dos elementos patrimoniais encontra arrimo na parte final do já citado considerando 30, onde se diz que, no caso de pessoa singular que não exerça uma atividade comercial ou profissional independente, “a presunção deverá poder ser ilidida, por exemplo, se a maior parte dos bens do devedor estiver situada fora do Estado-Membro onde este tem a sua residência habitual.”
Neste particular, importa destacar o Acórdão do TJUE de 16.07.2020 (Caso Banco 2..., C-253/19, ECLI:EU:C:2020:585), o qual foi proferido na sequência de um pedido de decisão prejudicial apresentado por esta Relação através do Acórdão de 14.09.2019 (1202/18.9T8PTL.G1), relatado por Alexandra Rolim Mendes.
No processo estava em causa a competência dos tribunais portugueses para a abertura de um processo de insolvência respeitante a um casal que, não obstante ter a sua residência habitual no Reino Unido[3] e trabalhar por conta de outrem, se havia apresentado à insolvência nos tribunais portugueses alegando, essencialmente, que todos os negócios que estavam na origem da situação tinham sido realizados em Portugal e que era no nosso País que se situava o único bem imóvel de que eram proprietários. Em conformidade, a questão colocada ao TJUE foi enunciada nos seguintes termos: “[n]o âmbito do Regulamento [2015/848], o tribunal de um Estado‑Membro é competente para proceder à abertura de um processo principal de insolvência de um cidadão que aí tem o seu único bem imóvel, embora tenha residência habitual, juntamente com o seu agregado familiar, noutro Estado‑Membro, onde tem ocupação laboral por conta de outrem?”
O TJUE respondeu à questão dizendo que:
 “22. (…) o centro dos interesses principais de um devedor deve ser determinado no termo de uma avaliação global do conjunto dos critérios objetivos e cognoscíveis por terceiros, particularmente pelos credores, suscetíveis de determinar o local efetivo em que o devedor exerce habitualmente a administração dos seus interesses.
23. Terceiro, decorre dos próprios termos do artigo 3.°, n.º 1, primeiro parágrafo, do Regulamento 2015/848 que as considerações que precedem são válidas indistintamente para qualquer devedor, quer se trate de sociedades, de pessoas coletivas ou de pessoas singulares. Este critério geral de conexão para determinar a competência internacional para efeitos da abertura de um processo de insolvência, bem como a abordagem baseada em critérios objetivos e cognoscíveis por terceiros, que importa adotar para o aplicar, são, portanto, válidos, a fortiori, para as pessoas singulares que não exerçam uma atividade comercial ou profissional independente.
24. Não obstante, há que explicitar, como salientou, em substância, o advogado‑geral, nos n.os 45 e 49 das suas conclusões, que os critérios pertinentes para determinar o centro dos interesses principais de uma pessoa singular que não exerça uma atividade comercial ou profissional independente são os relativos à sua situação patrimonial e económica, que corresponde ao local em que essa pessoa administra os seus interesses económicos e em que a maioria dos seus rendimentos são recebidos e despendidos ou ao local em que se situa a maior parte dos seus bens.
25. Em segundo lugar, há que explicitar o alcance da presunção enunciada no artigo 3.°, n.º 1, quarto parágrafo, do Regulamento 2015/848. Decorre dos próprios termos dessa disposição, lida à luz do artigo 3.°, n.º 1, primeiro parágrafo, desse regulamento, que se presume, até prova em contrário, que uma pessoa singular que não exerça uma atividade comercial ou profissional independente exerce habitualmente a administração dos seus interesses no lugar da sua residência habitual, visto que existe uma forte probabilidade de esse lugar corresponder ao centro dos seus interesses económicos principais. Daqui resulta que, enquanto esta presunção não for ilidida, os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro em que estiver situada essa residência são internacionalmente competentes para abrir um processo de insolvência em relação à referida pessoa singular.
26. Todavia, o artigo 3.°, n.º 1, quarto parágrafo, do Regulamento 2015/848 prevê que essa presunção só é válida até prova em contrário, e o considerando 30 desse regulamento precisa que a referida presunção deverá poder ser ilidida, por exemplo, se a maior parte dos bens do devedor estiver situada fora do Estado‑Membro da sua residência habitual, ou se puder ficar comprovado que o principal motivo para a sua mudança de residência foi o de requerer a abertura de um processo de insolvência na nova jurisdição e se tal pedido prejudicar significativamente os interesses dos credores cujas relações com o devedor tenham sido estabelecidas antes da mudança.
27. Todavia, como salientou o advogado‑geral no n.º 55 das suas conclusões, o simples facto de as circunstâncias mencionadas nesse considerando estarem reunidas não basta para ilidir a presunção enunciada no artigo 3.°, n.º 1, quarto parágrafo, do Regulamento 2015/848.
28. Com efeito, embora a localização dos bens do devedor constitua um dos critérios objetivos e cognoscíveis por terceiros a tomar em conta para determinar o local em que o devedor exerce habitualmente a administração dos seus interesses, essa presunção só pode ser ilidida no termo de uma avaliação global do conjunto desses critérios. Daqui decorre que o facto de o único bem imóvel de uma pessoa singular que não exerça uma atividade comercial ou profissional independente estar situado fora do Estado‑Membro da sua residência habitual não basta, por si só, para ilidir a referida presunção.
29. No caso em apreço, os recorrentes no processo principal alegam, além disso, no órgão jurisdicional de reenvio, que Portugal é não apenas o Estado‑Membro em que está situado o seu único bem imóvel, mas igualmente aquele onde foram realizados os negócios e celebrados os contratos que originaram a sua situação de insolvência.
30. A este respeito, embora a situação de insolvência não seja, enquanto tal, um elemento pertinente para determinar o centro dos interesses principais de uma pessoa singular que não exerça uma atividade comercial ou profissional independente, cabe, não obstante, ao órgão jurisdicional de reenvio tomar em consideração o conjunto dos elementos objetivos e cognoscíveis por terceiros, relacionados com a sua situação patrimonial e económica. Num caso como o que está em causa no processo principal, como foi recordado no n.º 24 do presente acórdão, esta situação encontra‑se no local em que os recorrentes no processo principal exercem habitualmente a administração dos seus interesses económicos e em que a maioria dos seus rendimentos é recebida ou despendida, ou no local em que se situa a maior parte dos seus bens.
31. Tendo em conta o conjunto dos elementos que precedem, há que responder à questão que o artigo 3.°, n.º 1, primeiro e quarto parágrafos, do Regulamento 2015/848 deve ser interpretado no sentido de que a presunção nele prevista para determinar a competência internacional para efeitos da abertura de um processo de insolvência, segundo a qual o centro dos interesses principais de uma pessoa singular que não exerça uma atividade comercial ou profissional independente é o lugar da sua residência habitual, não é ilidida pelo simples facto de o único bem imóvel dessa pessoa estar situado fora do Estado‑Membro onde esta tem a sua residência habitual.”
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2).6.2.5. Como resulta do Acórdão do TJUE acabado de transcrever, há que atender ao conjunto das circunstâncias objetivas relativas à situação do devedor que sejam cognoscíveis por terceiros. A situação de insolvência não é per se um elemento relevante (ponto 30), sobretudo quando já decorreu um considerável período de tempo desde a sua constituição. Aliás, o Advogado-Geral Maciej Szpunar, nas suas conclusões, já referidas (ECLI:EU:C:2020:328), pronunciou-se neste mesmo sentido, escrevendo (pontos 62. e 63.) que[,] “no que respeita às pessoas singulares que não exerçam uma atividade independente, penso que não há que atribuir uma importância decisiva à impressão global dada anteriormente pela situação de um devedor aos seus credores” e que[,] “[c]om efeito, na União, a mobilidade destas pessoas é significativa. Os seus credores podem sempre antecipar a transferência do centro dos interesses de um devedor e, segundo o considerando 27 do Regulamento 2015/848, o centro dos interesses principais ou o estabelecimento do devedor deve situar‑se realmente na área de competência de um órgão jurisdicional competente para conhecer do pedido de abertura de um processo principal de insolvência.”
Estas considerações são decisivas no caso vertente: a situação de insolvência, elemento em que a Recorrente coloca o enfoque para justificar a competência dos tribunais portugueses, foi constituída por volta do ano de 2015. De então para cá, a Recorrente emigrou, estando, desde ../../2022, a trabalhar na ... como empregada doméstica. O produto dessa atividade, auferido na ..., constitui a sua única fonte de rendimento. É também na ... que a Recorrente passa a maior parte do seu tempo, sendo, por isso, nesse país que celebra os negócios jurídicos destinados à satisfação das suas necessidades, entre eles avultando o arrendamento da casa onde habita.
Por outro lado, a própria Recorrente afirma que não tem qualquer ativo patrimonial em Portugal. Isto leva-nos a concluir que, na situação vertente, não há sequer, como sucedia no caso que motivou a decisão do TJUE, que cogitar a possível concurso entre o lugar onde o devedor recebe e despende a maioria dos seus proventos e o lugar onde se situa a maior parte dos seus ativos. 
Valem, assim, por identidade de razões, as palavras do já citado Acórdão desta Relação de 14.09.2023 (2565/23.0T8GMR.G1) que respigamos:
“Essa pretensão de privilégio que os apelantes almejam alcançar, para além de não ter fundamento fáctico nem jurídico, caso lhes fosse concedida, além de ilegal, colocaria em crise os interesses que o legislador comunitário visou acautelar de salvaguarda do bom funcionamento do mercado interno, em particular os efeitos que o legislador refere no considerando 5 do Regulamento visar obstar, ao pretenderem que se considere como elementos de conexão relevantes para a determinação da competência internacional entre as várias jurisdições dos Estados-Membros para conhecerem de processos de insolvência transfronteiriços, não considerados, nem eleitos como relevantes pelo legislador comunitário, sabendo-se que os efeitos jurídicos dos processos de insolvência transfronteiriços se projetam reconhecidamente no mercado interno da União.
Caso assim se procedesse, não só se violaria frontalmente a ordem jurídica comunitária, a qual, relembra-se, nos termos do art. 8º, n.º 4 da CRP, goza de receção automática na ordem jurídica interna nacional, como tem prevalência sobre o direito interno ordinário português, como longe de se assegurar o princípio par condicio creditorum, violar-se-ia frontalmente esse princípio, ao privar-se a insolvência instaurada do seu caráter de execução universal, restringindo-se a mesma ao património (bens e direitos) detidos pelos apelantes no território português e forçar-se-ia os seus credores, não residentes em Portugal, a terem de se sujeitar a um processo de insolvência de caráter limitado, regulado pela lei interna portuguesa, com as inerentes dificuldades e custos acrescidos que daí necessariamente decorreriam para esses credores não residentes, nomeadamente, em sede de reclamação dos seus créditos.”
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2).7. De dizer, a finalizar, que é de excluir a possibilidade de abertura de um processo territorial de insolvência da Recorrente em Portugal.
Como já escrevemos, o art. 3.º/2 do Regulamento prevê que, situando-se o CIP do devedor no território de um Estado-Membro, “os órgãos jurisdicionais de outro Estado-Membro são competentes para abrir um processo de insolvência relativo ao referido devedor se este possuir um estabelecimento no território desse outro Estado-Membro.” Os efeitos de tal processo são limitados aos bens do devedor que se encontrem neste último território.
Por estabelecimento, entende-se, de acordo com o glossário do legislador europeu (art. 2.º/10), “o local de atividade em que o devedor exerça, ou tenha exercido, de forma estável, uma atividade económica, com recurso a meios humanos e a bens materiais, nos três meses anteriores à apresentação do pedido de abertura do processo principal de insolvência.”
De acordo com José David Ortega Rueda (Insolvencia en la Unión Europea - El Principio de Universalidad en los Procedimientos Concursales Transfronterizos, Università di Bologna, 2016, pp. 248-249, disponível em amsdottorato.unibo.it [16.04.2024]), a definição de estabelecimento foi o resultado da discussão sobre o alcance dos procedimentos territoriais. Para uma tese, mais ampla, bastaria que o devedor tivesse bens num Estado-Membro diferente daquele onde estava localizado o seu CIP; para outra, mais restrita, seria de exigir um certo nível de organização, bem como a estabilidade no desempenho de uma atividade económica. Prevaleceu esta segunda.
Fazendo uma analogia com a estrutura do conceito CIP, o estabelecimento pressupõe, portanto, uma esfera externa, no sentido de que a sua existência deve ser cognoscível por terceiros, uma conexão administrativa, tendo em conta que não se trata de um mero agregado patrimonial, mas de algo que se encontra em funcionamento para a realização de finalidades económicas, e a intervenção humana. Trata-se, no fundo, de um conjunto de meios materiais e humanos, sem personalidade jurídica, pois caso contrário seria um devedor diferente, destinados ao exercício de uma atividade económica.
Por outro lado, pressupõe-se que essa atividade seja exercida com estabilidade e durante um período mínimo de tempo, o que permite distinguir o estabelecimento da simples prestação de serviços de natureza transitória, o que é pressuposto para que aquele tenha uma ligação efetiva com as estruturas do Estado-Membro onde está localizada.
É este contexto que deve ser enquadrado o disposto no art. 294 do CIRE quando a competência para o processo principal esteja atribuída a outro Estado-Membro por força do regime do Regulamento (EU) n.º 2015/848, atento o disposto no art. 275 do CIRE. 
Pois bem, como vimos, a Recorrente não alegou ter exercido qualquer atividade económica em Portugal, designadamente com recurso a meios humanos e a bens materiais, de uma forma estável, durante o período de tempo que é pressuposto pela norma. Ademais, alegou mesmo que não tem qualquer ativo patrimonial em Portugal, pelo menos desde a sua anterior declaração de insolvência.[4]
De qualquer modo, aquela que é a sua principal pretensão – a exoneração do passivo restante – nunca poderia ser obtida num processo territorial de insolvência por força do disposto no art. 295, c), do CIRE. Compreende-se que assim seja: o instituto em questão afeta, tanto durante o período de cessão, como após a concessão da exoneração, todos os créditos sobre o insolvente (art. 245 do CIRE), tendo, assim, efeitos universais, que são incompatíveis com a finalidade dos processos territoriais. A propósito, vide Miguel Teixeira de Sousa, “Processo de insolvência. Exoneração do passivo restante. Jurisprudência 2023 (1), disponível no Blog do IPPC [15.04.2024].
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2).8. Resta dizer que o argumento segundo o qual a Recorrente a qualquer momento pode deixar de trabalhar e residir na ... e regressar a Portugal é inócuo: como vimos, o que releva é a situação no momento da abertura do processo e não uma eventual situação futura.
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3). Improcedem, pelo exposto, as conclusões do recurso.
Vencida, a Recorrente deve suportar as custas: art. 527/1 e 2 do CPC.
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IV.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o presente coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar o presente recurso improcedente, mantendo a decisão recorrida de indeferimento liminar da petição inicial com fundamento na verificação da exceção dilatória da incompetência absoluta do tribunal decorrente da infração das regras de competência internacional dos tribunais portugueses.
Custas do recurso pela Recorrente.
Notifique.
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Guimarães, 2 de maio de 2024

Os Juízes Desembargadores,
Relator: Gonçalo Oliveira Magalhães
1.º Adjunto: Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício
2.ª Adjunta: Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade



[1] As conclusões 1 a 47 contêm a mera descrição do iter processual e a transcrição do despacho recorrido, não cumprindo, assim, a função de síntese dos fundamentos em que o recorrente baseia a sua discordância quanto à decisão recorrida que é pressuposta pelo art. 639/1, parte final, do CPC.
[2] Este é tratado, entre nós, nos arts. 294 a 296 do CIRE, pressupondo, além de uma situação de insolvência transfronteiriça ou internacional, a competência internacional de tribunais de outro Estado-Membro da União europeia, aferida nos termos do art. 3.º/1 do Regulamento 2015/848, para o processo principal de insolvência. A propósito, RC 17.02.2020 (3413/17.5TBLRA-B.C1), relatado por Barateiro Martins, e RL 28.02.2023 (2455/22.3T8FNC-A.L1-1), relatado por Teresa Henriques.
[3] À data da propositura da ação, o Reino Unido ainda era Estado-Membro da EU (cf. art. 126 do Acordo sobre a saída do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica), pelo que era de aplicar o Regulamento.
[4] Não faz parte do objeto deste recurso a questão, situada a jusante, de saber se ocorre a exceção dilatória do caso julgado material, sobre a qual se podem ver RG 23.11.2023 (5208/23.8T8GMR.G1), relatado por Maria João Matos., e RP5.03.2024 (1385/3.6T8STS-C.P1, relatado por Anabela Dias da Silva.