Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
572/21.6T8EPS.G1
Relator: ANIZABEL SOUSA PEREIRA
Descritores: TRANSPORTE INTERNACIONAL DE MERCADORIAS
PRAZO DO RECURSO COM IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS
NULIDADE DE SENTENÇA
PRESUNÇÃO DE RESPONSABILIDADE DO TRANSPORTADOR
PROVA DO DOLO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/23/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Basta que o recurso tenha por objeto a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, na vertente da reapreciação da prova gravada, para ser facultado ao recorrente o acréscimo do prazo de 10 dias para a interposição do recurso; a falta de cumprimento de um requisito processual, in casu, o ónus do art. 640º do CPC imposto em tal situação determina a rejeição do recurso, nessa parte ( da impugnação da matéria de facto), e não a extemporaneidade do mesmo.
II- Deve o recorrente indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação de recurso e síntese nas conclusões, sob pena de rejeição do recurso nos termos do art. 640º, nº1 al. a) do CPC.
III- Na ação baseada em incumprimento de contrato de transporte internacional de mercadorias, a que se aplicam as regras da Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (vulgo CMR), presumida a responsabilidade do transportador, nos termos do art. 17º,nº1 e não excluída, pelo próprio, a sua responsabilidade, nos termos do art. 17º nº4 ( em articulação com o art. 18º), o transportador beneficia, em princípio, da possibilidade de limitar a sua responsabilidade nos termos do art. 23ºnº3 da CMR.
IV- Incumbe ao interessado (credor da indemnização) alegar e provar factos que demonstrem que o transportador não é merecedor daquela limitação do art. 23º da CMR, pelo que tem o ónus da alegação e da prova do dolo, na medida em que é um elemento constitutivo do seu direito a uma indemnização integral dos prejuízos sofridos.
V- A mera culpa ou negligência (grosseira) não pode ser equiparada ao dolo para efeitos do disposto no n.º 1 do art.º 29.º da CMR.
VI- Não fazendo a autora a prova do dolo, nem das circunstâncias em que se verificou a avaria da mercadoria, a decisão terá de calcular o montante da indemnização de acordo com o disposto no artigo 23º da Convenção.
Decisão Texto Integral:
Relatora: Anizabel Sousa Pereira
Adjuntos:  José Manuel Flores e
Conceição Sampaio
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:
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I- Relatório ( que se transcreve):
- EMP01..., Lda., sociedade comercial por quotas, com sede na Estrada Nacional ...0, km ..., Edifício ..., ..., ..., PC ...,
Veio propor a presente ação de processo comum contra:
- EMP02..., Lda., sociedade comercial por quotas, com sede na Zona Industrial ..., fração ..., em EMP03..., PC ...,
Peticionando que, pela procedência da ação seja a ré condenada a pagar à autora a quantia de €705 (setecentos e cinco euros), acrescida de juros à taxa comercial, devida pela realização de um contrato de transporte.
Para tanto, em suma, que se dedica, com intuito lucrativo, à atividade de transitários e logística, sendo que a ré contratou a autora, no início do mês de Janeiro de 2020, para proceder ao transporte de mercadoria.
Alega ainda que procedeu ao transporte em causa, mas a ré não pagou preço respetivo.
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Regularmente citada, a ré contestou e deduziu reconvenção, peticionando a condenação do da Autora/Reconvinda a pagar à Ré/Reconvinte a quantia de 9.490,98€ (nove mil, quatrocentos e noventa euros e noventa e oito cêntimos), acrescida dos juros de mora vincendos à taxa legal, contados desde a data em que se mostre efetuada a notificação da contestação/reconvenção, até integral e efetivo pagamento.
Para tanto, reconheceu a realização do acordo para que a autora transportasse a mercadoria contratada pela ré, assim como a realização do transporte.
Excecionou, porém, que o transporte foi mal realizado, tendo a mercadoria chegado com danos ao destino.
Alegou que fruto desses danos teve despesas, cujo ressarcimento peticiona da autora.
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A autora replicou, excecionando, em primeiro lugar, a ineptidão da causa de pedir reconvencional.
No mais, impugnou a matéria invocada pela ré, sustentando que a seguradora incumbida de averiguar o sinistro invocado pela autora concluiu pela inexistência de responsabilidade uma vez que o destinatário da mercadoria a recebeu sem qualquer reserva, salientando ainda que a embalagem externa não tinha indícios de ter sido rasgada ou de ter sofrido impactos fortes.
Impugnou ainda os danos invocados pela ré.
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Proferiu-se despacho saneador, onde se admitiu a reconvenção e se conheceu da exceção de ineptidão suscitada, tendo-se julgado improcedente a exceção invocada, dispensou-se a fixação do objeto do litígio e temas de prova.
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Proferiu-se despacho saneador, onde se conheceu da exceção invocada pela 2ª ré quanto à falta de pagamento da nota de custas de parte, tendo-se julgado improcedente a exceção invocada.
Mias se conheceu da exceção de ilegitimidade processual invocada pela 2ª ré, tendo-se julgado a mesma improcedente.
Relegou-se par a decisão final o conhecimento da exceção de prescrição, por depender de prova a produzir.
Seguiu-se a fixação do objeto do litígio e dos temas de prova.
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Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo, conforme se alcança da respetiva ata.
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Após a competente audiência de julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:  “ … julgando parcialmente procedente a ação e parcialmente procedente a reconvenção e, em consequência:

a) Condeno a EMP02..., Lda., a pagar à autora a quantia de €352,5 (trezentos e cinquenta e dois euros e cinquenta cêntimos), acrescida dos juros de mora à taxa comercial, vencidos desde 23 de Fevereiro de 2020 e vincendos até efetivo e integral pagamento.
b) Condeno a autora EMP01..., Lda. a pagar à ré a quatia de €3.020,00 (três mil e vinte euros), acrescida dos juros de mora à taxa comercial, vencidos desde a notificação da reconvenção e vincendos até efetivo e integral pagamento.
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As custas são devidas pelo decaimento, nos termos do disposto no artigo 527º, nºs 1 e 2, do CPC.
Notifique e registe.”.
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É desta decisão que vem interposto recurso pela A transportadora, a qual termina o seu recurso formulando as seguintes conclusões ( que se transcrevem):

“A. A aqui Recorrente foi condenada ao pagamento do valor de € 3.020,00 (três mil euros e vinte euros) relativamente aos danos existentes nos 5 (cinco) KAYAKS;
B. Ora, não concordado com a referida condenação, vem pelo presente recorrer da referida decisão;
C. Na verdade, e como se demonstrará, a condenação da aqui Recorrente, recaí sobre erro de julgamento, nos termos do art.º 615.º n.1 al.c) do CPC.
D. Por violação do princípio da livre apreciação da prova;
E. Isto porque, da prova produzida – na fase dos articulados como também da prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento – a decisão teria de ser inevitavelmente outra;
F. Em primeira instância, não concorda a aqui Recorrente com a aplicação da presunção do artigo 9.º da Convenção CMR;
G. Presunção essa que possibilita isentar, a Recorrida, de qualquer responsabilidade sobre os danos produzidos;
H. Acontece que, em boa verdade, legalmente sobre a Recorrente, impende a presunção de “bom estado aparente” da mercadoria e da embalagem;
I. Nos presentes autos, tal presunção não poderá soçobrar no que ao “bom estado aparente” da mercadoria diz respeito;
___a___ PORQUANTO,
J. A mercadoria foi transportada desde a sede da Recorrida até às instalações da Recorrente, devidamente embalada;
K. Chegada às instalações da Recorrente, esta apenas pôde verificar o estado da embalagem que continha os referidos KAYAKS;
L. Nada havendo a apontar – relativamente ao “bom estado aparente” das embalagens, a Recorrente, não fez qualquer reserva aquando da receção da carga;
M. Obviamente, a declaração sem reservas da Recorrente em nada contende com o verdadeiro estado da mercadoria;
N. Sendo certo que a Recorrente no cumprimento do dever de zelo, efetuou a inspeção visual da carga;
O. Nada havendo a apontar relativamente ao estado da embalagem, a Recorrente, procedeu ao transporte da referida mercadoria;
P. Aliás, a mercadoria passou por várias etapas, sendo que, em nenhumas delas foi aferida , e como tal, não constando na respetiva documentação qualquer observação, quanto a qualquer putativo dano na embalagem: EMP01.../...; .../...; .../...; .../Cliente final.
Q. Assim se evidencia que a presunção do “bom estado aparente” apenas poderá ser aplicada no que concerne às condições de embalamento e nunca à condição apresentada pela mercadoria;
R. De facto, e compulsados os autos, verifica-se, que nenhuma prova foi carreada para os autos, pela Recorrida, que comprovasse o estado da mercadoria aquando da entrega à Recorrente;
S. E, como se perceberá, a Recorrente agiu com o dever de zelo que se impunha;
T. Acontece que tal circunstância não pode determinar, à partida, a sua responsabilização;
U. Visto que, NUNCA esteve ao seu alcance, a verificação do estado da mercadoria;
V. Ainda assim, se dúvidas existissem, atente-se que o cliente da Recorrida deparou-se com as mesmas circunstâncias;
W. Ou seja, apenas com o desembalamento da mercadoria é que pode verificar o seu verdadeiro estado;
X. Algo que não foi possível fazer pela Recorrente;
Y. Nessa medida, resulta evidente, que não poderá recair sobre a Recorrente a presunção do “bom estado aparente” da mercadoria;
Z. Ora, tal circunstância, é essencial para a verificação da responsabilidade da Recorrente no que concerne aos danos existentes nos KAYAKS;
AA. Em consequência, não se verificando tal presunção relativamente à aqui Recorrente, dúvidas não restam que terá a mesma de ser absolvida do pagamento de qualquer montante à Recorrida em face da não verificação dos pressupostos que depende a sua responsabilização;

SEM PRESCINDIR, E POR CAUTELA JURÍDICA,

BB. Caso se considere que sobre a Recorrente impende a presunção do “bom estado aparente” relativamente ao estado da mercadoria e da embalagem, sempre se dirá o seguinte:
CC. Decorrida a fase de produção de prova, e de acordo com o próprio conteúdo da sentença recorrida, verifica-se que à Recorrente foi também aplicada – para efeitos de responsabilidade – a presunção do artigo 17.º n.º 1 da Convenção CMR;
DD. Presunção que assenta na circunstância de o Transportador – aqui Recorrente – ser responsável pelos danos que a mercadoria sofra no decurso do transporte;
EE. Isto é, desde o momento do carregamento da mercadoria até ao momento da entrega;
FF. Ora, mais uma vez, compulsados os autos e os instrumentos probatórios, se evidencia que nenhuma prova foi possível realizar que identifique o transporte como causador dos danos que se considera;
GG. Em boa verdade, a presunção que se considera, foi naturalmente ilidida pela prova produzida nos autos;
HH. Pois que, produzida a prova, ficou por saber – tal e qual como o diz a sentença recorrida – qual o momento determinante na produção dos danos;
II. Acrescentando ainda a sentença recorrida que “Da mesma forma, entende o Tribunal que não se produziu prova bastante de que os danos produzidos nos Kayaks ocorreram durante o transporte.”
JJ. Mais uma vez, a presunção a que alude o artigo 17.º n.º 1 da Convenção CMR, foi devidamente ilidida;
KK. Não podendo pois, a Recorrente ser responsabilizada pelos danos causados, ao abrigo da referida presunção;
ADEMAIS, E AINDA SEM PREJUÍZO, ___a___ Δ
LL. Se ainda – depois de compulsada toda a prova – se instar por uma qualquer putativa responsabilização da Recorrente, atente-se ainda nas circunstâncias probatórias que impossibilitam, nos termos do artigo 17.º n.º 2, parte final, a imputação de qualquer responsabilidade à Recorrente;
MM. No decurso dos depoimentos prestados em sede de audiência de discussão e julgamento, e salvo melhor opinião, foram várias as evidências que isentam a Recorrente de responsabilidades, porquanto: a. A mercadoria foi entregue à Recorrente devidamente embalada, sem que lhe fosse dada possibilidade de verificação do verdadeiro estado da mercadoria;
b. Depois de expedida, a mercadoria foi rececionada no seu destino;
c. Não tendo sido incumbência da Recorrente proceder ao seu descarregamento;
d. Descarregamento esse, que segundo a prova testemunhal, demorou cerca de 5 minutos a ocorrer;
e. 5 minutos para descarregar 10 KAYAKS;
f. Demorando, assim, os responsáveis pelo descarregamento, uns impressionantes 30 segundos a descarregar cada um dos KAYAKS;
NN. Assim se evidencia que existiram variadíssimas circunstâncias que impedem a responsabilização da Recorrente pelos danos existentes na mercadoria;
OO. E nessa natural decorrência, a exclusão da responsabilidade da Recorrente, nos termos do artigo 17.º n.º 2, parte final da Convenção CMR;
PP. Concomitantemente, deverá – caso assim não se entenda dos demais argumentos – ser a Recorrente absolvida do pagamento de uma qualquer indemnização à Recorrida em face de não se encontrarem verificados os pressupostos de que depende a sua responsabilização;
AINDA POR CAUTELA JURÍDICA, SEMPRE SE DIRÁ QUE,
QQ. Consigna a sentença recorrida que, a culpa da Recorrente é presumida e que na verdade prova não foi consignada em sentido inverso;
RR. Obviamente, mais uma vez, a sentença recorrida padece de um grave erro de julgamento;
SS. Porquanto, a Recorrente, afastou por todas as vias possíveis, a existência de um qualquer comportamento doloso!
TT. Na verdade, e no limite, sempre será de dizer que, a ser produzido um qualquer dano no decurso do transporte que se considera, nenhuma evidência existe relativamente ao facto de esse dano ter sido provocado com intenção!
UU. Ora, nestas circunstâncias, e no limite, estaríamos perante – e caso viesse hipoteticamente – a ser imputada uma qualquer conduta à Recorrente – um típico caso de negligência;
VV. E, assim, mais uma vez, não se encontraria suporte para a responsabilização da Recorrente pelos danos causados, visto que a conduta negligente não pode aferida para efeitos de responsabilização;
EM RESUMO,
WW. Ora, e como se disse, compulsados os presentes autos, evidencia-se que a Recorrente conseguiu ilidir a presunção do “Bom estado aparente” que impendia sobre si, no que diz respeito ao estado da mercadoria;
XX. A Recorrente, conseguiu ainda, e em face da prova produzida, que a sentença recorrida consigne que não foi feita prova suficiente de que os danos tenham ocorrido durante o transporte;
YY. E nessa medida, ilidir a presunção que sobre si impendia nos termos do artigo 17.º n.º 1 da Convenção CMR;
ZZ. Contudo, e se fosse possível dar como não ilididas as referidas presunções, sempre se verificariam as circunstâncias que excluiriam a responsabilidade da Recorrente em face dos danos existentes, nos termos do artigo 17.º n.º 2 da Convenção CMR;
AAA. O mesmo se passará relativamente à presunção do artigo 799.º do CC;
BBB. Nos presentes autos e compulsada a prova, nenhum ato praticado pela Recorrente se mostrou ser capaz de ser enquadrável como um ato doloso, muito pelo contrário;
CCC. O que naturalmente, ilide a presunção do artigo 799.º do CC;
DDD. Tendo necessariamente de ser a Recorrente absolvida do pagamento de qualquer indemnização à Recorrida por não se encontrarem verificados os pressupostos de que depende a sua responsabilidade;
POR FIM,
EEE. No que diz respeito ao valor indemnizatório atribuído à Recorrida, evidenciasse, naturalmente e uma vez mais um claro erro de julgamento por violação do princípio da livre apreciação da prova;
FFF.Na verdade, e como se disse, era uma obrigação da Recorrida preencher devidamente a declaração de expedição;
GGG. Verificada a referida declaração, inexiste qualquer menção ao referido seguro de mercadoria;
HHH. Em boa verdade, o seguro de mercadoria que, hipoteticamente, poderia ter sido ativado, não foi pago!
III. Ora, não existindo seguro de mercadoria, por omissão da Recorrida, nunca poderia ser aplicada a extensão indemnizatória prevista no artigo 24.º da Convenção CMR;
SE ASSIM NÃO FOR DE CONSIDERAR,
JJJ. Diga-se, ademais, que verdadeiramente a Recorrida não teve prejuízo algum com o transporte em questão;
KKK. Isto porque, não só a Recorrida recebeu do seu cliente o valor global da encomenda (onde se inseriam os 5 KAYAKS defeituosos), mas como também os barcos por si fornecidos foram uma compensação voluntária;
LLL. Que nada continha com a substituição das embarcações danificadas;
MMM. E a prova testemunhal é contundente no que diz respeito a esta questão!
NNN. E, mais uma vez, a sentença recorrida falha;
OOO. Mas falha pela sobreposição de erros que foram sido cometidos na análise da prova produzida e que inevitavelmente teriam de ter o desfecho que ora se recorre;
PPP. Mas, e em última instância, sempre será de considerar que um qualquer putativo pagamento indemnizatório da Recorrente à Recorrida sempre deverá ser feito atendendo às regras do artigo 23.º n.º 3 da Convenção CMR;
QQQ. Liquidando – em última instância o valor aduzido no relatório pericial (que aplica o critério do artigo 23.º n.º 3 da CMR) – o valor de € 619,26 (seiscentos e dezanove euros e vinte e seis cêntimos).”
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Contra-alegou a R, pugnando pela improcedência do recurso e apresentou as seguintes conclusões ( que se transcrevem):

a) Da extemporaneidade do recurso sob apreciação
I. a douta sentença foi remetida à Apelante, via CITIUS, em 23 de maio de 2023, pelo que a mesma se considera notificada a 26 de maio de 2023-cfr. artigo 248º n.º 1 do Código de Processo Civil.
II. O requerimento de interposição de recurso e respetivas alegações, deu entrada em juízo no dia 04 de julho de 2023, ou seja, no trigésimo oitavo dia, a contar da referida notificação.
III. Ao recorrente incumbe apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão-artigo 639º nº 1 do Código de Processo Civil.
IV. Pelo que é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem.
V. Para que se possa dizer que o recurso tem por objeto a reapreciação da matéria de facto, e, deste modo, o recorrente poder beneficiar do acréscimo de prazo a que se refere o n.º 7 do artigo 638.º do Código de Processo Civil, é necessário que o recorrente tenha integrado no recurso conclusões que envolvam efetivamente a impugnação da matéria de facto tendo por base depoimentos gravados.
VI. Nas conclusões de recurso apresentadas, a Apelante não especifica quais os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, nem os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida.
VII. Assim, o recurso interposto tal como emerge das conclusões apresentadas tem por objeto apenas matéria de direito, ou seja, versa apenas sobre a subsunção dos factos ao direito aplicável.
VIII. Decorre, deste modo, que o presente recurso foi apresentado para além do prazo de 30 dias concedido pela lei – cfr. artigo 638º n.º 1 do Código de Processo Civil- e, como tal, é extemporâneo.
IX. Impor-se-á, pois, concluir pela extemporaneidade do recurso, que, como tal, não pode, nem deve ser admitido, não se tomando conhecimento, por isso, do seu objecto, nos termos do disposto no artigo 641º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil.
SEM PRESCINDIR, e por mera cautela de patrocínio,
b) da improcedência do recurso:
X. No caso de o recurso vir a ser admitido e apreciado - o que se considera apenas por mera cautela de patrocínio -, sempre o mesmo estará votado ao insucesso.
XI. Efetivamente, não merece censura a douta sentença.
XII. Acompanhando os argumentos apresentados pela Recorrente, cumpre referir que não se aceita que a presunção do bom estado aparente, prevista no n.º 2 do artigo 9.º da Convenção CMR, apenas poderá ser aplicada no que concerne às condições de embalamento e nunca à condição apresentada pela mercadoria.
XIII. É que este normativo é claro ao referir que, na falta de indicação de reservas motivadas do transportador na declaração de expedição, presume-se que a mercadoria e embalagem estavam em bom estado aparente no momento em que o transportador as tomou a seu cargo.
XIV. Acresce que resultou provado (ponto 14 dos FACTOS PROVADOS) que as embarcações foram entregues nas instalações da Recorrente embaladas e sem qualquer dano ou mazela.
XV. Assim, bem andou o douto Tribunal a quo ao aplicar tal presunção e concluir pela responsabilidade da Recorrente nos danos provocados na mercadoria transportada.
XVI. Igualmente não merece censura a decisão do douto Tribunal a quo de socorrer--se da presunção prevista no n.º 1 do artigo 17º da Convenção CMR.
XVII. Dispõe esta norma que: “O transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento de carregamento da mercadoria e o da entrega, assim como pela demora da entrega.”
XVIII. Assim, para que a responsabilidade da Recorrente pelo sinistro ficasse excluída, cabia-lhe a prova de que os danos nos kayaks se deveram a qualquer uma das situações que permitem a exclusão da sua responsabilidade, previstas nos números 2 e 4 do referido artigo 17º da Convenção CMR.
XIX. Cujo ónus da prova cabia à Recorrente-cfr. artigo 18º da Convenção CMR e n.º 2 do artigo 342º, n.º 2 do Código Civil.
XX. Ora, do elenco dos FACTOS PROVADOS não consta a ocorrência de qualquer uma das causas de exclusão de responsabilidade previstas na lei.
XXI. Deste modo, não provando a Recorrente tal ou tais causas de exclusão, cabe-lhe responder pelo sinistro ocorrido, em conformidade com o disposto no mencionado artigo 17.º, n.º 1 da Convenção CMR.
XXII. Sendo certo que, não assiste razão à Recorrente quando alega a exclusão da sua responsabilidade ao abrigo do disposto na parte final do n.º 2 artigo 17.º da Convenção CMR.
XXIII. E isto porque, os factos vertidos no ponto MM das conclusões não constam do elenco dos FACTOS PROVADOS, nem constituem circunstâncias que excluam a responsabilidade da Recorrente.
XXIV. A verdade é que, no âmbito de um contrato de transporte internacional de mercadorias, as operações de carga e de descarga, são da responsabilidade do transportador, salvo se outra coisa tiver sido combinada (o que não sucedeu no presente caso), e este não fica dispensado do dever de verificar a mercadoria, de confirmar e de fazer o reconhecimento da carga.
XXV. Acresce que a Recorrente entende que afastou a existência de qualquer comportamento doloso, e que a ser-lhe imputada uma qualquer conduta, seria a título de negligência, a qual não pode ser aferida para efeitos de responsabilização.
XXVI. A Recorrida não pode concordar com este entendimento.
XXVII. A conjugação dos artigos 17º e 18º da Convenção CMR permite-nos concluir que, no âmbito dos contratos de transporte rodoviário internacional de mercadorias, impende sobre o transportador uma verdadeira presunção de culpa pela perda total ou parcial daquelas durante o respetivo transporte, cabendo-lhe o ónus de ilidir essa presunção, demonstrando a verificação de alguma das causas de exclusão previstas nesses normativos.
XXVIII. Ora, conforme já referido, a Recorrente não ilidiu tal presunção, pelo que não merece censura a decisão do douto Tribunal a quo de imputar à Recorrente a responsabilidade pelos danos gerados no transporte.
XXIX. Defende ainda a Recorrente que não existindo seguro de mercadoria, por omissão da Recorrida, nunca poderia ser aplicada a extensão indemnizatória prevista no artigo 24.º da Convenção CMR.
XXX. Acrescentando que, a ser condenada num pagamento indemnizatório, o mesmo deverá ser feito atendendo às regras do artigo 23.º n.º 3 da Convenção CMR, ou seja, no valor de 619,26€, mencionado no relatório pericial.
XXXI. Uma vez mais não lhe assiste razão.
XXXII. Desde logo, a inexistência de seguro não é imputável à Recorrida, pois como resulta dos pontos 11, 12 e 13 dos FACTOS PROVADOS, a Recorrida solicitou à Recorrente a contratação do seguro de mercadoria, sendo que o preço do transporte incluía o seguro de mercadoria, mas a Recorrente não contratou o seguro de mercadoria.
XXXIII. De facto, e conforme se refere no ponto 3. FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA E NÃO PROVADA da douta sentença, da conjugação dos documentos de fls. 53 (e 142), 151 e 180 a 182, e dos depoimentos de AA, funcionário da ré e de BB, funcionária da EMP04..., Lda., “(…) resultou, de forma clara, que a ré solicitou à autora aquando do pedido de cotação do transporte, que o mesmo se realizasse com seguro da mercadoria, tendo-se apurado ainda que a corretora da autora, por lapso, não o incluiu na lista de seguros, pelo que efetivamente o transporte foi efetuado sem seguro de mercadoria (embora, como bem explicou a testemunha BB tivesse seguro, tivesse coberta pelo seguro próprio da atividade da autora).
XXXIV. Seguro esse que garantia o valor da mercadoria transportada.
XXXV. Pelo que o douto Tribunal a quo decidiu corretamente quando fixou a indemnização nos termos do artigo 24º da Convenção CMR, atendendo ao valor da mercadoria, e afastando a regra do artigo 23.º n.º 3 da Convenção CMR.
XXXVI. Bem andou, assim, o Tribunal a quo ao proferir a douta sentença recorrida, que, pois, deve ser mantida.”
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O recurso foi recebido nesta Relação, considerando-se devidamente admitido, no efeito legalmente previsto.
Assim, cumpre apreciar o recurso deduzido após os vistos.

II- FUNDAMENTAÇÃO

As questões a decidir no presente recurso, em função das conclusões recursivas e segundo a sua sequência lógica, são as seguintes:

1) Verificar se o recurso de apelação interposto pela Autora da sentença é extemporâneo;
2) Verificar se existe nulidade da sentença nos termos da al. c) do art. 615º do CPC.
3) Verificar se deve ser conhecido o recurso de apelação, no que respeita à reapreciação da matéria de facto assente na prova testemunhal e documental produzida em sede de julgamento, atenta a forma como foi efetuada pela Recorrente a impugnação da matéria de facto.
4) Se deverá ser alterada a decisão jurídica da causa.
*
III-
Para a apreciação das questões elencadas, é importante atentar na matéria que resultou provada e não provada, que o tribunal recorrido descreveu nos termos seguintes:
“1.Factos Provados
Estão assim provados, com relevo para a decisão, os seguintes factos:
1) A autora é uma sociedade comercial por quotas, que se dedica à atividade de transitários e logística.
2) No âmbito dessa atividade foi contactada pela ré, que encomendou à autora, no início do mês de Janeiro de 2020, um transporte do ... para ..., ..., pelo preço de €705.
3) A ré realizou o transporte, tendo entregue os kayaks na morada acordada a 21 de Janeiro de 2020.
4) E emitiu a fatura nº ...95, no valor de €705, com vencimento a 23 de Fevereiro de 2020, conforme documento junto aos autos a fls. 22, cujo teor aqui se dá por fiel e integralmente reproduzido.
5) Por cartas de 2 e 12 de Novembro, a autora interpelou a ré para o pagamento o pagamento da quantia referida em 5), conforme documentos juntos aos autos a fls. 23 a 30, cujo teor aqui se dá por fiel e integralmente reproduzido.
6) A ré respondeu à autora por carta de 9 de Novembro, recusando o pagamento e invocando que “o transporte não foi feito em condições de segurança, tendo os kayaks chegado ao destino com danos graves”, conforme documento junto aos autos a fls. 79 e 80, cujo teor aqui se dá por fiel e integralmente reproduzido.
7) A Ré dedica-se, com intuito lucrativo, à conceção, construção e comercialização de Kayaks.
8) No âmbito da sua atividade, em 06 de janeiro de 2020, a Ré vendeu ao Club de Piraquismo ..., em ..., ..., 10 (dez) kayaks, modelo ..., pelo preço total de 6.040,00€,
9) Estes kayaks destinavam-se a ser usados por aquele clube de canoagem na Taça do Mundo de Canoagem de Mar de 2020, que decorreu no dia 8 de fevereiro de 2020.
10) A fim de entregar estes kayaks ao seu cliente, em ..., contratou o transporte referido em 2) e 3).
11) No âmbito do acordo referido em 4), a ré solicitou à autora a contratação de seguro de mercadoria.
12) O preço referido em 4) incluía o seguro de mercadoria.
13) A autora não contratou o seguro de mercadoria.
14) As embarcações foram entregues nas instalações da Autora/Reconvinda embalados e sem qualquer dano ou mazela.
15) A Ré procedeu ao transporte dos referidos kayaks desde as suas instalações, em EMP03..., até às instalações da Autora, na ..., em atrelado específico para transporte de kayaks.
16) Os dez kayaks foram embalados em plástico bolha e apostos nos mesmos vários autocolantes com a menção “frágil”.
17) No dia 06 de janeiro de 2020, a Autora transportou até ao Club de Piraquismo ..., em ..., ..., os dez kayaks, modelo ....
18) Os dez kayaks chegaram ao destino a 21 de Janeiro …
19) E cinco dos kayaks chegaram com estragos.
20) … E nesse mesmo dia 21 de janeiro de 2020, o Presidente do Club de Piraquismo ..., comunicou à ré que 5 kayaks tinham chegado danificados, juntando fotografias dos kayaks danificados, conforme documento juntos aos autos a fls. 56 a 71.
21) No mesmo dia 21 de janeiro e 2020, a Ré comunicou o referido em 19) à Autora, declarando “agradeço que acione o seguro o mais rápido possível, pois caso não receber esse valor dentro dessa semana irá ser catastrófico para a minha empresa, já que tenho entregas para fazer no qual já não vou cumprir o prazo devido ao ocorrido!”, conforme documento junto aos autos a fls. 72, cujo teor aqui se dá por fiel e integralmente reproduzido.
22) Por correio eletrónico de 21 de Maio de 2020, a autora informou a ré que a seguradora tinha recusado a reclamação apresentada,
23) Para substituir os kayaks danificados, a ré produziu 3 kayaks novos.
24) A ré transportou os kayaks novos até ....
25) E teve despesas com o transporte e com o pagamento de horas extras a funcionários.
26) A ré viu o seu bom nome e credibilidade comprometido junto do Club de Piraquismo ...
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(PI e Réplica)
27) A mercadoria foi transportada para a instalações da autora pela ré.
28) O destinatário da mercadoria recebeu a encomenda sem ter declarado qualquer reserva na CMR.
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2. Factos não provados
(Contestação)
a) A ré haja pago o seguro de mercadoria referido em 11).
b) Não foi permitido à Ré verificar e controlar o modo como as mesmas foram acondicionadas e transportadas.
c) O plástico bolha é o material que melhor acondiciona os kayaks.
d) Os kayaks foram embalados individualmente.
e) Os danos que os referidos kayaks sofreram foram devidos ao mau transporte efetuado pela Autora/Reconvinda,…
f) … que não acondicionou e transportou os referidos kayaks com o cuidado que se impunha.
g) Apesar de todas as recomendações feitas pela Ré, quer verbalmente, quer nos dísticos neles apostos.
h) Apenas em 7 de Setembro, a autora foi informada pelo mediador de seguros da posição da companhia de seguros.
i) Os kayaks referidos em 23) fossem de máxima qualidade, cada um no valor de 2.650,00€, num montante total de 7.950,00€;
j) A ré teve despesas de alojamento dos seus funcionários em ... no valor de 474,18€.
k) A Ré/Reconvinte teve de atrasar as entregas agendadas com outros clientes,
l) O que afetou a credibilidade e confiança de que gozava junto desses clientes,
m) A Ré/Reconvinte teve diversas reclamações daqueles clientes, tendo sido obrigada a retardar a aceitação de mais encomendas, com vista a recuperar o atraso na produção dos kayaks já encomendados.
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(PI e réplica)
n) Os danos nos kayaks ocorreram antes do início do transporte, durante o período que decorreu entre a data da produção, Novembro 2019, e o seu embalamento, Janeiro de 2020.
o) Os danos nos kayaks ocorreram durante o transporte dos kayaks das instalações da autora para as instalações da ré.
p) A embalagem externa dos Kayaks não tinha indícios de ter sido rasgada ou de ter sofrido impactos fortes.”.
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IV-
Cumpre apreciar e decidir:

1) Verificar se o recurso de apelação interposto pela Autora da sentença é extemporâneo, conforme aduzido nas contra-alegações pela recorrida.

É inequívoco que o apelante, pretendendo impugnar a matéria de facto a partir da reapreciação de meios de prova gravados ( e apenas neste caso), beneficia de um acréscimo de 10 dias ao prazo para recorrer.
Porém, o aproveitamento da extensão do prazo não depende do mérito da impugnação, mas apenas do facto de nas alegações o recorrente suscitar a impugnação da decisão da matéria de facto com base na prova gravada.
Caso contrário, terá de se sujeitar ao prazo geral do art. 638º,nº1 do CPC.

Nesta matéria a Jurisprudência do STJ é pacífica e clara, conforme se extrai do Acórdão de 22.10.2015, proc. ...1, relatado por Lopes do Rego, onde pode ser recolhido o seguinte entendimento:
(…)
“1. Contendo a alegação apresentada pelo Recorrente uma impugnação séria, delimitada e minimamente consistente da decisão proferida acerca da matéria de facto, deve ter-se por processualmente adquirido, em termos definitivos, que se verificou a prorrogação do prazo para recorrer por 10 dias, independentemente do preciso juízo que ulteriormente se faça acerca do cumprimento do ónus de exacta indicação das passagens da gravação – que naturalmente poderá condicionar o conhecimento de tal impugnação, sem, todavia, pôr em causa a tempestividade do recurso de apelação”.
Entendimento posteriormente firmado, entre outros, pelos Acórdãos do STJ, datado de 9-2-2017, proc. 471/10 e 28-04-2016, proc. 1006/12, de 3-3-2016, proc. 861/13, todos citados por A. Geraldes in ob. cit. e , em resumo, reafirmam o seguinte: “ basta que o recurso tenha por objecto a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, na vertente da reapreciação das provas gravadas, para ser facultado ao recorrente o acréscimo do prazo de 10 dias para a interposição do recurso; a falta de cumprimento do ónus de alegação (especificação) imposto em tal situação determina a rejeição do recurso, nessa parte, e não a extemporaneidade do mesmo”.
Em suma, não pode confundir-se a tempestividade do recurso que versa sobre a reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto, e que diz respeito aos prazos do recurso, com a eventual improcedência da ação por falta do cumprimento de um requisito processual, in casu, o ónus do art. 640º do CPC, ou por insuficiência da prova.
No caso sub judicio, da leitura das alegações depreende-se que o recorrente pretendia impugnar a matéria de facto, e apontou por exemplo o ponto 14º dos factos provados e transcreveu ainda passagens das gravações a propósito de outras questões.
Sem embargo, nas conclusões de recurso não indica em concreto os pontos de facto impugnados, e como veremos não cumpre os requisitos do art. 640º do CPC.
Porém, como vimos o aproveitamento da extensão do prazo não depende do mérito da impugnação, pelo que, no caso, o recorrente ao interpor recurso dentro do prazo adicional de 10 dias e atentas as alegações aduzidas nas quais suscita a impugnação de facto com base em prova gravada, interpôs recurso de modo tempestivo.
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2) Da alegada nulidade da sentença recorrida por violação do disposto na alínea c), do nº 1 do art. 615º do C. P. Civil.
A nulidade prevista na al. c) acima referida ocorre quando existe incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final.
No caso, tal não se verifica porquanto a decisão final é fruto do silogismo ali imprimido em que as premissas condizem com a conclusão.
O que se passa é que a Recorrente não se conforma com a decisão proferida, que no seu entender deveria ser outra, mas tal não configura uma nulidade, mas sim a invocação da existência de erro de julgamento, aliás invocado nas conclusões para fundamentar a invocada nulidade da sentença ( vide conclusão c)).
O Prof. Antunes Varela (in Manual de Processo Civil, pág. 686) diz-nos que “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário”.
Daí que a alegação genérica de que o tribunal a quo violou o princípio a livre apreciação da prova e a alegação de que não concorda com a aplicação da presunção do art. 9º da CMR pode ser fundamento de recurso em que se peça a revogação da sentença mas não justifica a arguição da nulidade nos termos da al. c) do nº1 do art. 615º do CPC.
Assim, no nosso entender, não tem a Recorrente qualquer razão ao invocar a nulidade da sentença proferida pelo Tribunal a quo.
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3) Da apreciação da impugnação da matéria de facto

Como emerge das conclusões recursivas que apresentou, sustenta a apelante que “ da prova produzida – na fase dos articulados como também da prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento – a decisão teria de ser inevitavelmente outra….”.
Contudo, a recorrente não especificou, nas conclusões ( apesar de nas alegações ter impugnado, por exemplo, o ponto 14 dos factos provados e que entendia dever ser dado como não provado e o facto constante do ponto 23) dos factos dados como provados - cfr. art.48º e 64º e 118º das alegações), os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, para além de não especificar os motivos pelos quais não deve ser atribuído valor probatório decisivo aos meios de prova considerados pelo julgador.
Desde já se diga que não se mostram preenchidos todos os requisitos de que depende a impugnação da matéria de facto(artigos 640.º e 662.º do Código de Processo Civil).
Vejamos.
Aparentemente, a recorrente pretendia impugnar a decisão da matéria de facto de vária ordem.
Questão que se coloca é a de saber se, no entanto, o fez de forma processualmente válida.
A possibilidade de reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, está, como é consabido, subordinada à observância de determinados ónus que a lei adjetiva impõe ao recorrente.
Desde logo, como deflui do nº 1 do art. 639º, quando o apelante interpõe recurso de uma decisão jurisdicional fica automaticamente vinculado à observância de dois ónus, se quiser prosseguir com a impugnação de forma regular .
Assim, para além do cumprimento do ónus de alegação, o recorrente fica igualmente sujeito ao ónus de finalizar as alegações recursórias com a formulação sintética de conclusões, em que resuma os fundamentos pelos quais pretende que o tribunal ad quem modifique ou revogue a decisão prolatada pelo tribunal a quo.
Além destes, vem-se igualmente autonomizando um ónus de especificação de cada uma das concretas razões de discórdia em relação à decisão sob censura, seja quanto às normas jurídicas (e sua interpretação) aí convocadas, seja a respeito dos concretos pontos de facto que o apelante considera que foram julgados de forma incorreta e dos concretos meios de prova que impunham uma diversa decisão relativamente a essa facticidade.
Isso mesmo determina a al. a) do nº 1 do art. 640º, na qual se preceitua que “quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados”.
Por imposição do segmento normativo transcrito, deve, assim, o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende ver reapreciados pelo tribunal ad quem.
Isto posto, procedendo à apreciação das conclusões apresentadas no recurso (que delimitam o objeto do mesmo): nenhuma referência lhes é feita de forma individualizada, isto é, não se indicam quais os concretos pontos de facto provados e/ou não provados que pretende impugnar, ainda que conste das alegações que, pelo menos, pretendia impugnar o ponto 14 dos factos provados ( cfr. art. 48º das alegações) e ainda pretendia “ considerar como não provado que os danos nos KAYAKS ocorreram durante o transporte, e nessa medida, ilidida a presunção que recaía sobre a Recorrente” ( cfr. art. 64º das alegações).
Saliente-se que as conclusões têm a importante função de definir e delimitar o objeto do recurso e, desta forma, circunscrever o campo de intervenção do tribunal superior encarregado do julgamento.
Por isso, sendo a impugnação de matéria de facto uma autêntica questão fundamental, suscetível de conduzir a decisão diferente, deve ela ser incluída nas conclusões das alegações, de forma sintética mas obviamente com indicação precisa dos pontos de facto impugnados, com o resumo do que a tal respeito tenha sido referido no corpo das alegações. Só assim se pode entender que é suscitada tal questão: para se impugnar matéria de facto há, forçosamente, que especificar nas conclusões, de forma concreta, quais os pontos de facto impugnados, pois de contrário o recurso não tem objeto fático.
Entende-se, por conseguinte, que para uma correta impugnação da matéria de facto, se exige a inclusão da concretização dos pontos de facto ou matéria impugnada, nas conclusões, sob pena de rejeição do recurso, inclusão essa que, in casu, não se verificou.
 É que, para o aludido feito, não basta – como fez a apelante – aludir genericamente à materialidade que se reputa erroneamente apreciada, exigindo-se antes uma indicação concreta e precisa dos pontos de facto, provados ou não provados, que se considera terem sido incorretamente julgados e em relação a cada um deles a indicação dos meios de prova que levariam à sua alteração, analisando-se tudo de forma critica de modo a colocar em causa o juízo crítico do julgador, pelo que deve o recorrente indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação de recurso e síntese nas conclusões.
Daí que, em consonância com o disposto na 1ª parte da al. a) do nº 2 do citado art. 640º, impõe-se a rejeição, nessa parte, do recurso, sendo que, dada a expressão perentória da lei (através do emprego do adjetivo imediata), não cabe convite ao aperfeiçoamento no sentido de lograr suprir a inobservância desses ónus.
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V- A factualidade (provada e não provada) a atender para efeito da decisão a proferir é a já constante de III.
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VI. Reapreciação de direito.

A apelante não questiona a qualificação jurídica do contrato, tal como consta da sentença em recurso, onde se concluiu que entre a Autora e a Ré foi celebrado um contrato de transporte internacional por estrada, ao qual se aplica o regime previsto na Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias (CMR), transposta para a nossa ordem jurídica através do DL 46 235 de 18/03/1965, com as alterações introduzidas pelo Decreto 28/88 de 06/09/1988 e DL n.° 239/2003, de 4 de Outubro.
Atenta a matéria de facto apurada, também não vemos motivo para alterar tal qualificação, que também não é posta em causa com o presente recurso.
Não tendo sido alterada a matéria de facto dada como provada, verifica-se que ao fim e ao cabo também não foi posto em causa, com o recurso, sequer a responsabilidade propriamente dita da transportadora qual tale, atenta a presunção de responsabilidade que impende sobre a transportadora e que não foi ilidida.
Diga-se, ainda, que em relação à não concordância da apelante quanto ao facto de o tribunal a quo ter lançado mão da presunção contida no art. 9º da convenção para dar como provado o facto nº 14, tal questão tem que ver com a apreciação da matéria de facto e o reequacionar a avaliação probatória feita pela 1ª instância, nomeadamente no domínio das presunções judiciais, nos termos do art. 607º, nº 4 do CPC, por via do art. 663º, nº 2 do CPC e já não com questão de direito, pelo que as questões que contendem com a matéria de facto, nesta fase, já estão estabilizadas e sanadas, conforme analisamos.
Por outro lado, ao contrário do que sustenta a recorrente, a presunção do art. 17º da convenção CMR não foi ilidida. E não se diga, conforme sustenta a apelante, que “ foi ilidida naturalmente por não se ter provado o transporte como causador dos danos”, nem se conclua, como faz a recorrente, por exemplo, com factos que não estão elencados nos factos provados e não provados, como no caso em que alude “ a barcos fornecidos foram uma compensação voluntária” para concluir que a ré não teve prejuízo.
Com efeito, permanece intacta a fundamentação do tribunal a quo sobre a responsabilidade da ré com base no seguinte: “…mostra-se provado que:
- A Ré dedica-se, com intuito lucrativo, à conceção, construção e comercialização de Kayaks.
- No âmbito da sua atividade, em 06 de janeiro de 2020, a Ré vendeu ao Club de Piraquismo ..., em ..., ..., 10 (dez) kayaks, modelo ..., pelo preço total de 6.040,00€,
- Estes kayaks destinavam-se a ser usados por aquele clube de canoagem na Taça do Mundo de Canoagem de Mar de 2020, que decorreu no dia 8 de fevereiro de 2020.
-A fim de entregar estes kayaks ao seu cliente, em ..., contratou o transporte dos mesmos.
- As embarcações foram entregues nas instalações da Autora/Reconvinda embalados e sem qualquer dano ou mazela.
- A Ré procedeu ao transporte dos referidos kayaks desde as suas instalações, em EMP03..., até às instalações da Autora, na ..., em atrelado específico para transporte de kayaks.
- Os dez kayaks foram embalados em plástico bolha e apostos nos mesmos vários autocolantes com a menção “frágil”.
- No dia 06 de janeiro de 2020, a Autora transportou até ao Club de Piraquismo ..., em ..., ..., os dez kayaks, modelo ....
-Os dez kayaks chegaram ao destino a 21 de Janeiro e cinco dos kayaks chegaram com estragos.
Ora, em face dos factos provados, impõe-se concluir é que houve incumprimento contratual por parte da autora transportadora, já que a mercadoria chegou ao destino com estragos, não tendo a autora demonstrado, como lhe competia, que os estragos não ocorreram por facto que lhe fosse imputável..
Com efeito, a autora não logrou afastar a presunção de culpa que sobre si impendia, artigo 8º e 17º, nº 1 da Convenção CMR, presumindo-se ainda a sua culpa à luz do disposto no artigo 799º do Código Civil.
Assim sendo, mostra-se verificada a responsabilidade da autora pelos danos gerados no transporte..”
E é assim atento o regime instituído pela CMR e explica-se pela existência de uma verdadeira presunção de responsabilidade do transportador pelos danos.
Ao interessado (expedidor ou destinatário) bastará a prova de que fez a entrega da mercadoria ao transportador e que este não a entregou no destino ou que a entregou com avarias. Ao transportador incumbirá a prova de qualquer circunstância que o isente de responsabilidade pelo sucedido ou seja limitativa da sua responsabilidade .
Com efeito, diz o artº 17º, nº 1 que o transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento da avaria e o da entrega, assim como pela demora na entrega.
E, nos termos do nº 2 do mesmo preceito, o transportador fica desobrigado desta responsabilidade se a perda, avaria ou demora teve por causa uma falta do interessado [expedidor ou destinatário], uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar.
Nos termos do nº 1 do artº 18º, compete ao transportador fazer a prova de que a perda, avaria ou demora teve por causa um dos factos previstos no nº 2 do artº 17º.
No nº 4 do artº 17º, prevê-se a isenção da responsabilidade do transportador quando a perda ou avaria resultar dos riscos particulares inerentes aos factos discriminados nas suas diversas alíneas.
E, segundo o nº 2 do artº 18º, quando o transportador provar que a perda ou avaria, tendo em conta as circunstâncias de facto, resultou de um ou mais dos riscos particulares previstos no nº 4 do artº 17, haverá presunção de que aquela resultou destes.
O interessado poderá, no entanto, provar que o prejuízo não teve por causa, total ou parcial, um desses riscos.
“ Por fim, sendo certo que ao transportador cumpre demonstrar que a responsabilidade não lhe pode ser assacada, cabe concluir que é dele a responsabilidade por danos derivados de causas desconhecidas. Não demonstrando o transportador qual a origem do dano, o que lhe permitiria provar que ele não pode ser-lhe imputável, a correspondente responsabilidade recairá sobre si.”  ( sublinhado nosso).
Mais: presumida a responsabilidade do transportador, nos termos do art. 17º,nº1 e não excluída, pelo próprio, a sua responsabilidade, nos termos do art. 17º nº4 ( em articulação com o art. 18º), o transportador beneficia, em princípio, da possibilidade de limitar a sua responsabilidade nos termos do art. 23ºnº3 complementado com o art.25º, no que tange à determinação do valor da mercadoria. Claro que, nesse caso, o interessado terá de fazer prova dos danos nos termos gerais.
O Prof. Januário Gomes alerta em artigo  em forma de crítica à mais recente jurisprudência do STJ que “ só após esse reconhecimento da possibilidade, de princípio, de limitação é que entramos numa eventual fase em que o sistema permite retirar ao transportador o benefício da limitação de responsabilidade (o mesmo quanto à possibilidade de excluir a responsabilidade e quanto à possibilidade de transferir o encargo da prova) quando de tal benefício não seja “merecedor”.

Assim, passamos de seguida, a analisar a questão de mérito suscitada na apelação e que se prende com o cálculo da indemnização devida à autora em virtude dos materiais danificados no transporte efetuado pela ré.
Entende a apelante/autora que o valor da indemnização deveria ser calculado por aplicação do disposto no artigo 23.º, nº3 da Convenção CMR e fixado em 619, 26 (seiscentos e dezanove euros e vinte e seis cêntimos), conforme relatório pericial.
A sentença entendeu que deveria ser calculado nos termos do art. 24º da CMR “ que prevê a possibilidade de as partes afastarem o previsto no artigo 23º quanto ao valor da mercadoria”.
Pese embora tenha alertado que “a declaração não foi feita na declaração de expedição, é certo”, também fez consignar o seguinte: “Todavia, foi expressa e previamente acordada entre as partes. Assim sendo, salvo o devido respeito, entendemos que a indemnização há de ser fixada nos termos do disposto no artigo 24º da Convenção CMR, tendo em consideração o valor da mercadoria. e concluiu pelo valor de € 3.020, valor correspondente a metade do valor da compra e venda do material equivalente aos 5 KaYaks estragados ( foram vendidos 10 kayaks pelo valor total de 6.040€, com peso total de 120 kgs, conforme ressuma da fatura junta aos autos).
Desde já se diga que a sentença aparentemente não seguiu a posição recentemente adotada pelo STJ e que tanta crítica recebeu do Prof. Januário Gomes, in ob cit. e não trouxe à colação o disposto no art. 29º da CMR, com o que concordamos.
Fazendo um parêntesis, dir-se-á que, com efeito, é controvertida a questão de saber se, para efeitos do disposto no nº 1 do artº 29º, a negligência grosseira pode ser equiparada ao dolo, dividindo-se a jurisprudência acerca da questão, conforme infra se analisará.
Ora, revertendo novamente ao caso dos autos, ficou provado “a Autora transportou, desde a ... até ao Club de Piraquismo ..., em ..., ..., os dez kayaks, modelo ....” e que no transporte das mercadorias desde Portugal até ..., as mercadorias- 5 Kayaks”- foram entregues avariadas. Sendo assim, não tendo a ré alegado ou demonstrado factos bastantes para elidirem a presunção de culpa que sobre si recai ou para afastarem a sua responsabilidade ao abrigo do nº 2 do artigo 17º da CMR ou dos artigos 383º e 376º do Código Comercial, é manifesto que a mesma deverá ser condenada a ressarcir a autora.
Tal como já referimos não demonstrando o transportador qual a origem do dano, o que lhe permitiria provar que ele não pode ser-lhe imputável, a correspondente responsabilidade recairá sobre si, o que ocorre in casu.
A partir daqui e sabendo nós o valor da mercadoria em causa ( 5 kayaks estragados no valor de € 3.020) e não se podendo sequer falar em qualquer dolo, atenta a matéria de facto dada como provada, mas apenas negligência do transportador, a conclusão é óbvia: o cálculo da indemnização terá de ser feito nos limites estabelecidos pelo art. 23º e o juros pelo art. 27, uma vez que não se estabeleceu outro ( art.26º).
A CMR quis manifestamente manter dentro de certos limites o quantum indemnizatório a cargo do transportador.
A verdade, é que ele responde pelo prejuízo, sendo apenas limitado ao quantum no caso de mera culpa.
E aqui está o equívoco do tribunal a quo- e julgamos nós dentro da linha de raciocínio criticada no citado artigo do Prof. Januário Gomes ainda que não tenha trazido à colação o disposto no art. 29º da CMR-, chegou a um valor sem qualquer limitação como que responsabilizando o transportador como se na origem do acontecido estivesse dolo da sua parte ou dos seus agentes.
Para melhor enquadramos a problemática que se coloca e porque no acórdão deste tribunal da Relação de Guimarães de 01.10.2015 ( relator: Espinheira Baltar) já se debruçou sobre a mesma, realçamos o seguinte:
“ Da conjugação das conclusões do recurso com os fundamentos do decidido está em discussão o montante indemnizatório e a quem incumbe o ónus da prova dos factos que integram o dolo ou algo equiparado vertido no artigo 29 da Convenção de Genebra de 1956, a que Portugal aderiu, que afasta o limite da responsabilidade do incumpridor do contrato vazado no artigo 23 n.º 3 da referida convenção.
Provado o dolo ou o equivalente o responsável pelo transporte, cujo contrato seja cumprido defeituosamente, responde pela totalidade dos danos provocados. Deixa de beneficiar do critério fixador da indemnização previsto no artigo 23 n.º 3, para lhe serem aplicadas as regras previstas no artigo 17 n.º 1 e 18 n.º 1 da Convenção. Sobre este ponto a doutrina e jurisprudência estão de acordo.
A jurisprudência está dividida sobre a amplitude do conceito “dolo”, no âmbito da culpa, como elemento constitutivo da responsabilidade civil contratual, na interpretação do artigo 29 n.º 1 da Convenção. Uma corrente jurisprudencial do STJ vai no sentido de que o dolo referido neste normativo se integra na culpa em geral (que abrange o dolo e a negligência), pelo que uma vez definida a culpa do transportador, mesmo presumida, este responde sempre pela totalidade dos danos, ao abrigo do disposto no artigo 798. conjugado com os artigos 483 n.º 1 e 562, todos do C.Civil (Ac. STJ. de 14/06/2011, Ac. STJ. 5/06/2012; Ac. STJ. de 15/05/2013 em www.dgsi.pt ). Esta jurisprudência põe em destaque, essencialmente, a necessidade de pressionar o transportador a cumprir o contrato.
Outra corrente do STJ defende que o dolo é um dos elementos da culpa, mas mais exigente, cuja concretização implica um maior grau de censurabilidade, pelo que deve ter um tratamento diferente no contexto da Convenção. A sua referência no artigo 29 n.º 1 tem como objectivo punir o transportador que agir com dolo ou algo equivalente, na medida em que lhe retira o critério limitador do cálculo da indemnização previsto no artigo 23 n.º 3, que é a regra em caso de actuação negligente. E isto deve-se à natureza excepcional da norma, dentro do contexto da Convenção, que tenta equilibrar o risco do transporte internacional via terreste por veículos automóveis. Quem quiser maior protecção poderá lançar mão dos expedientes previstos nos artigos 24 e 26 da Convenção, pagando um suplemento. Só no caso de dolo deixa de haver necessidade de proteger o transportador, que deverá assumir o custo global do prejuízo sofrido com a perda das mercadorias, porque interveio de forma directa, necessária ou pelo menos aceitou o resultado previsto (Ac. STJ. 11.03.1999, Ac. de 6/07/2006 em www.dgsi.pt e Ac. STJ. 17/05/2001 CJ (STJ), Tomo II, pag. 91)”.
Ora, salvo o devido respeito, entendemos que a corrente jurisprudencial última supra citada é a que deverá ser seguida porque julgamos que é a que melhor se coaduna com a letra e espírito da Convenção.
Aliás, no citado artigo do Prof. Januário Gomes este autor desmonta a razão pela qual aquela jurisprudência do STJ contém aquilo que aquele mesmo autor diz ser “ um equívoco de base no juízo presente em cada um dos acordãos: “ o de que sobre o transportador recai uma presunção de culpa e que a não ilisão de tal presunção tem o efeito de o transportador responder pela totalidade dos prejuízos, sem poder invocar qualquer limitação de responsabilidade…
… Ora, no sistema da CMR, o facto de não ser ilidida a presunção resultante do artigo 17.º/1 não significa que o transportador seja culpado: significa, antes, que é responsável, não se podendo retirar daí, ipso facto, como faz o STJ, num salto lógico, a conclusão de que o transportador não pode limitar a sua responsabilidade, nos termos do artigo 23.º/3 da CMR.”
Continua aquele autor “ O equívoco do STJ está em ter transposto para a matéria específica da perda do direito à limitação nos termos do artigo 29.º da CMR o facto de entender que, no direito português, a circunstância de o devedor ter um comportamento meramente negligente não lhe permitir limitar a responsabilidade.

Ademais, como é lógico, a remissão feita no artigo 29.º da CMR não é para os regimes internos no que tange à admissibilidade de limitação: se assim fosse, a própria uniformização que é pretendida pela CMR sofreria um rude golpe, para mais numa das matérias mais sensíveis como é a da perda do direito à limitação. O artigo 29.º não abre mão da nevrálgica definição das situações em que o transportador “perde o direito de aproveitar-se” da limitação e não as remete para a lex fori, diversamente do que parece sustentar o STJ: essa perda só acontece no caso de dolo ou, então, de uma “falta” que, no direito interno, esteja ao nível do dolo em termos de gravidade.

A lógica do artigo 29.º da CMR é, antes, que o transportador só perca o direito à limitação da responsabilidade quando tenha atuado com dolo ou quando, nos termos do direito interno, a “falta” cometida seja, como se disse, equivalente ao dolo, em termos de gravidade” .
Por tudo, concluindo, incita aquele mesmo autor a um révirement naquela jurisprudência do STJ que se mostre atento ao sistema próprio da responsabilidade do transportador e que não transponha cegamente para a interpretação da CMR o quadro normativo do CC e o acervo doutrinário e jurisprudencial que lhe são próprios.

Fechado este parenteses, dir-se-á, em suma: a norma do artigo 29 n.º1 da Convenção determina em que termos é que suspende o critério limitador do cálculo da indemnização. É uma norma constitutiva do direito de crédito do lesado com o incumprimento do contrato de transporte. Em caso de dolo do transportador ou de quem agiu em seu nome, a indemnização será total, abrangendo todos os prejuízos sofridos. Daí concluirmos, coerentemente, que nos termos do artigo 342 n.º 1 do C.Civil incumbe ao credor alegar e provar o dolo, para que a indemnização seja total e não limitada nos termos do artigo 23 n.º 3.

Como resulta dos factos provados o autor não fez a prova do dolo, nem das circunstâncias em que se verificou a avaria da mercadoria, pelo que a decisão terá de calcular o montante da indemnização de acordo com o disposto no artigo 23º da Convenção.
Dito de outro modo, não tem aplicação o disposto no nº 1 do artº 29º, nem se vislumbra qualquer razão para se aplicar o art. 24º da CMR porquanto a situação apurada simplesmente não se enquadra em tal normativo, de todo em todo, pelo que a indemnização a pagar pela ré à autora terá de ser calculada dentro dos limites impostos pelo artº 23º.
Assim sendo: no caso vertente temos como provado que o valor exato da mercadoria danificada corresponde a metade do valor de 6.040€, ou seja, corresponde ao valor exato de 3.020€, pelo que seria sempre possível fixar a indemnização com base nos n.ºs 1 e 2 do artigo 23.º da Convenção CMR – Convenção Relativa ao Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada – aprovada pelo DL 46.235 de 18/03/1965 e alterada pelo Decreto n.º 28 de 06/09/1988, que estabelece o seguinte:
“1. Quando for debitado ao transportador uma indemnização por perda total ou parcial da mercadoria, em virtude das disposições da presente Convenção, essa indemnização será calculada segundo o valor da mercadoria no lugar e época em que for aceite para transporte.
2. O valor da mercadoria será determinado pela cotação na bolsa, ou, na falta desta, pelo preço corrente no mercado, ou, na falta de ambas, pelo valor usual das mercadorias da mesma natureza e qualidade.
3. *A indemnização não poderá, porém, ultrapassar 8.33 unidades de conta por quilograma de peso bruto em falta.
4. Além disso, serão reembolsados o preço do transporte, os direitos aduaneiros e as outras despesas provenientes do transporte da mercadoria, na totalidade no caso de perda total e em proporção no caso de perda parcial; não serão devidas outras indemnizações de perdas e danos.
5. No caso de demora, se o interessado provar que disso resultou prejuízo, o transportador terá de pagar por esse prejuízo uma indemnização que não poderá ultrapassar o preço do transporte.
6. Só poderão exigir-se indemnizações mais elevadas no caso de declaração do valor da mercadoria ou de declaração de juro especial na entrega, em conformidade com os artigos 24º. e 26º.
7. *A unidade de conta referida na presente Convenção é o direito de saque especial, tal como definido pelo Fundo Monetário Internacional. O montante a que se refere o nº 3 do presente artigo é convertido na moeda nacional do Estado onde se situe o tribunal encarregado da resolução do litígio com base no valor dessa moeda à data do julgamento ou numa data adoptada de comum acordo pelas partes. O valor, em direito de saque especial, da moeda nacional de um Estado que seja membro do Fundo Monetário Internacional é calculado segundo o método de avaliação que o Fundo Monetário Internacional esteja à data a aplicar nas suas próprias operações e transacções. O valor, em direito de saque especial, da moeda nacional do Estado que não seja membro do Fundo Monetário Internacional é calculado da forma determinada por esse mesmo Estado.
8. *Todavia, um Estado que não seja membro do Fundo Monetário Internacional (…)”

Ora, sabendo que o valor da mercadoria avariada é de € 3.020, contudo, nos termos do nº3 do art. 23º “ a indemnização não poderá, porém, ultrapassar 8.33 unidades de conta por quilograma de peso bruto em falta”, pelo que sempre seria possível fixar a indemnização com recurso ao critério definido nos números 3 e 7 da citada disposição legal.
Com efeito, sabemos que mercadorias transportadas, tinham um valor total de peso de 120 kgs, pelo que metade- as avariadas- possuiriam um peso aproximado de 60 kgs quilos e que, em 31-03-2023 ( e não a data da expedição- 07-01-2020, e que foi tida em conta num relatório de peritagem da seguradora e junto aos autos), data do julgamento, o direito de saque especial ascendia a € 1,237 ( valor colhido por consulta na internet no site: ...).
Assim, pela mercadoria avariada o valor máximo de indemnização estipulado por este artigo 23.º, n.ºs 3 e 7 da CMR, rondaria os € 618,25 (60x8,33x1,1237).
Em verdade, conforme decorre destes normativos, a indemnização não poderá ultrapassar estas 8,33 unidades de conta por quilograma de peso bruto em falta, sendo que, cada unidade de conta é calculada por reporte ao direito de saque especial, pelo que haverá que multiplicar o peso bruto pelas unidades de conta e pelo valor do direito de saque especial, só assim se obtendo a indemnização devida.
Procedem, assim, as conclusões da ré, nesta parte, pelo que a sentença terá de ser alterada em conformidade.
Vencidas parcialmente nos presentes autos de recurso de apelação e na ação, são a autora/recorrente e a recorrida responsáveis pelo pagamento das custas respetivas, de acordo com o seu decaimento ( cfr. art. 527º do CPC).
*
V- DECISÃO:

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes que constituem este Tribunal em julgar parcialmente procedente a apelação, revogando-se, em parte, a sentença recorrida e, em consequência:
- condena-se a autora/reconvinda a pagar à R/ reconvinte a indemnização que se fixa em € 618, 25, acrescida de juros de mora, desde a data da liquidação até integral pagamento.
Custas da ação e recurso, por apelante e apelada, conforme o decaimento ( cfr. art. 527º do CPC).
Guimarães, 23 de Novembro de 2023

Relatora:  Anizabel Sousa Pereira
Adjuntos: José Manuel Flores e
Conceição Sampaio