Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4/22.2T9VRM.G1
Relator: MARIA LEONOR CHAVES DOS SANTOS BARROSO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
SANÇÃO ACESSÓRIA
ENCERRAMENTO
LAR DE IDOSOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I- No recurso de contra-ordenação, o tribunal da Relação tem apenas poderes de cognição da matéria de direito, não havendo recurso sobre a decisão de facto, sem prejuízo da existência de vícios da sentença, os quais devem ser manifestos e aferidos pelo texto da decisão, sem necessidade de recorrer a outros meios - 410º, 2, CPP.
II- No regime aplicável às contraordenações laborais e da segurança social a pena de admoestação não é passível de ser aplicada a infracções classificadas de muito graves (48 Lei 107/2009, de 14-09).
III - Justifica-se a aplicação de sanção acessória de encerramento administrativo do estabelecimento e interdição temporária do exercício de actividades de apoio social em estabelecimentos de apoio social pelo período de três anos, dada a gravidade da infracção e culpa do agente, mormente manifestadas na persistência da actuação infractora, praticando duas infrações idênticas, em 2015 e 2019, acrescendo que, em 2009, a arguida já havia sido alvo de inspecção por factos idênticos e sido determinado o encerramento imediato do local.

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora)
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

AA interpôs recurso da decisão judicial (art. 39º RGCLSS Regime Processual das Contra-Ordenações Laborais e da Segurança Social regulado na Lei 107/2009, de 14/09.) que apreciou a impugnação judicial e confirmou a decisão da SEGURANÇA SOCIAL que lhe aplicou a coima de €30.000,00 e as sanções acessórias de encerramento administrativo do estabelecimento e interdição temporária do exercício, directo ou indirecto, de actividades de apoio social em quaisquer estabelecimentos de apoio social pelo período de 3 (três) anos, pela prática de duas contraordenações previstas no art. 39º-B al. a) do DL. nº64/2007 de 14 de Março, com a redacção introduzida pelo Dl. nº33/2014 de 4 de Março.

A ARGUIDA FORMULA AS SEGUINTES CONCLUSÕES (412º CPP por remissão do art. 50º, 4 e 51º do RPCLSS):

A. Vem o presente Recurso interposto da matéria de Direito que enforma a douta Sentença recorrida em virtude de no seu proferimento haver o Tribunal a quo interpretado e aplicado incorretamente o Direito.
B. Inexistem os pressupostos fáticos da presunção judicial consistente em “a situação económica da arguida não pode ser valorada a seu favor. a arguida exercia uma actividade que sabia que era ilícita e recebia pelos seus serviços sempre em numerário, o que não permite conhecer com exatidão os seus rendimentos, mas permite saber que ocultava e não declarava uma parte dos rendimentos precisamente para que não fosse detectada. se a arguida ocultava uma parte dos seus rendimentos não pode agora socorrer-se do facto de a parte que era conhecida ser diminuta para obter uma diminuição do valor da coima.”
C. Falece à supracitada presunção judicial os dois pressupostos básicos de que umbilicalmente depende: a existência do facto conhecido (facto base da presunção) para a partir dele, de forma sólida e bem fundamentada, por inferência lógico-dedutiva devidamente sustentada afirmar o facto desconhecido (facto presumido) para além de qualquer dúvida razoável ou margem para erro judiciário.
D. Destarte, a citada presunção judicial enferma de ilogicidade e resulta de erro notório na apreciação da prova e da subsunção dos factos ao Direito, de onde ressalta a avassaladora ofensa, inter alia, das normas dos arts. 125º, 127º, 374º, nº 2 e 410º, nº 2, alínea c), todos do Código de Processo Penal e, bem assim, do art. 351º do Código Civil.
E. Da matéria dada como provada no item nº 6 do elenco dos Factos Provados, resulta que “A arguida cobrava aos idosos uma mensalidade de € 260,00.”
F. Tal facto está em diametral oposição/contradição com a sobredita presunção judicial transcrita na Conclusão B. supra e, bem assim, com as declarações de rendimentos do agregado familiar da Arguida juntas a fls. 167 a 192 dos autos que, aliás, não foram impugnadas pelo Ministério Público.
G. A natureza de documento autêntico, com força probatória plena, das preditas declarações de rendimentos extraídas do sítio da internet do Portal das Finanças, não poderá deixar de ser valorada nos termos do art. 371º do Código Civil e 127º e 374º, nº 1, ambos do Código de Processo Penal, em conformidade com os factos tributários delas constantes.
H. Não obstante se encontrar consignado a fls. 4 da Sentença recorrida que “O vereador da câmara municipal e o Presidente da Junta de Freguesia ... afirmaram que nunca haviam estado na moradia. Nos seus depoimentos, estas testemunhas limitaram-se a afirmar que ouviam dizer que a arguida exercia uma actividade de voluntariado no âmbito do apoio às pessoas idosas com dificuldades económicas”, não foram tais depoimentos objeto da devida análise crítica e valoração.
I. Encontrando-se o Ministério Público onerado com a prova, nada foi requerido pela sua mui Digna Representante, nem oficiosamente ordenado pelo Tribunal a quo no concernente, nomeadamente, à inquirição das pessoas a quem a três supra identificadas testemunhas ouviram dizer que “que a arguida exercia uma actividade de voluntariado no âmbito do apoio às pessoas idosas com dificuldades económica.”
J. O não exercício de tal poder-dever pelo Tribunal recorrido nos termos do art. 340º, nrs. 1 e 2, do Código de Processo Penal não consente que na Sentença hajam sido desconsiderados ou pelo menos desvalorizados, sem qualquer relevância probatória, tais depoimentos.
K. Pese embora a fls. 3 da Sentença recorrida o Tribunal a quo haver consignado que “O tribunal fundou a sua convicção nas declarações da arguida, no depoimento das testemunhas ouvidas e nos documentos juntos aos autos”, encontra-se a Sentença, em violação do disposto no art. 374º, nº 2, do Código de ProcessoPenal, totalmente deserta da análise crítica das declarações da Arguida.
L. Nada consta dos autos que permita concluir, como concluiu o Tribunal a quo que, por via do acolhimento de um reduzido número de pessoa idosas, entre as quais duas primas, sendo uma Maior Acompanhada pelo marido da Arguida, esta exercia uma atividade que lhe proporcionava qualquer tipo rendimento, tendo isso sim, sido demonstrado e provado que por razões filantrópicas e convicções de índole religiosa a Arguida, por todos conhecida na comunidade em que está inserida como “a mãe dos pobres” acolhia e apoiava, sem qualquer escopo lucrativo pessoas idosas, com parcos recursos económicos, social e comunitariamente isoladas, e as mais das vezes sem qualquer retaguarda familiar.
M. Em face da factualidade carreada para os autos, é manifestamente violadora da norma do art. 39º-I, nº 1, do DL nº 64/2007, de 14 de março a conclusão do Tribunal a quo vertida a fls. 8 da Sentença consistente em “A coima e as sanções acessórias que foram aplicadas não merecem qualquer reparo, sendo inteiramente ajustadas.“
N. Viola o Direito substantivo (arts. 349º e 351º do Código Civil) o segmento da Sentença recorrida ínsito a fls. 9 da mesma consistente em “A situação económica da arguida não pode ser valorada a seu favor. A arguida exercia uma actividade que sabia que era ilícita e recebia pelos seus serviços sempre em numerário, o que não permite conhecer com exatidão os seus rendimentos, mas permite saber que ocultava e não declarava uma parte dos rendimentos precisamente para que não fosse detectada. Se a arguida ocultava uma parte dos seus rendimentos não pode agora socorrer-se do facto de a parte que era conhecida ser diminuta para obter uma diminuição do valor da coima.” (Sublinhado nosso).
O. Em violação das normas dos arts. 127º e 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, não logrou o Tribunal a quo quantificar, ainda que por estimativa, seja em termos nominais, seja em percentual, o suposto, porém meramente imaginário montante da alega da parte dos rendimentos da Arguida que, no seu entendimento, ainda que infundamentado, era objeto de ocultação “para que não fosse detetada”.
P. Inexiste nos autos qualquer elemento indiciário sustentador da supra transcrita conclusão do Mmº Juiz a quo, nem tão-pouco foi tal matéria alegada ou produzida qualquer prova que com o mínimo de rigor, solidez e certeza jurídica a consinta.
Q. A inferência do Tribunal aquo consistente em “permite saber que ocultava e não declarava uma parte dos rendimentos” não encontra a mais pálida sustentação fática nos autos, sendo incorreto e desprovido do mínimo de solidez e de fundamentação o raciocínio lógico-dedutivo que lhe subjaz.
R. Na determinação da medida da coima, manifestamente excessiva e violadora do princípio constitucional da proporcionalidade, o Tribunal a quo violou clamorosamente a norma do art. 39º-I, nº 1, do Decreto-Lei nº 64/2007, de 14 de março, desde logo por não haver atendido à real e concreta situação económica da Arguida e do seu agregado familiar, sobejamente provada nos autos.
S. Outrossim, partindo do falso e indemonstrado pressuposto de que a Arguida exercia uma atividade geradora de rendimentos, supostamente com escopo lucrativo, o Tribunal a quo, incurso em erro de Julgamento, não relevou o facto de o acolhimento e apoio dispensado pela Arguida a pessoas idosas de parcos recursos económicos, social e comunitariamente isoladas, por vezes sem retaguarda familiar alguma e carecidas de socialização e convívio, se encontrar norteado por critérios de beneficência e filantropia, sem qualquer escopo lucrativo.
T. Violou o Tribunal a quo as normas dos arts. 127º e 374º, nº 2, alínea c), ambos do Código de ProcessoPenal e 39º-I, nº 1,doDLnº 64/2007, de 14de março, ao ter julgado improcedente o Recurso de Impugnação Judicial da decisão proferida pela Entidade Administrativa, fazendo tábua rasa do modesto e contido estalão de vida da Arguida e do seu agregado familiar, da total ausência de sinais exteriores de riqueza (v.g. condução de um velho veículo de marca ..., mod. ..., com mais de 30 anos) e do seu modus vivendi e,last but not theleast, do facto de a Arguida, à data dos factos, recolher sucata metálica para, com o produto da venda, lograr proporcionar aos idosos acolhidos uma melhor qualidade de vida.
U. De igual sorte, com o proferimento da Sentença recorrida confirmativa da decisão administrativa de aplicação da coima e sanções acessórias, o Tribunal recorrido violou, também, a norma do art. 39º-G, nº 1, do supracitado DL nº 64/2007.
V. A correta interpretação e aplicação dos citados normativos legais impunham o proferimento de decisão absolutamente diversa, mais favorável à Arguida, nomeadamente admoestação, não devendo em caso algum a medida da coima exceder metade daquela que lhe foi fixada pela Entidade Administrativa.
W. Também as sanções acessórias aplicadas à Arguida nos termos do artigo 39º-H, nrs. 1, alínea a) e 3, do Decreto-Lei nº 64/2007 se afiguram excessivas e violadoras, inter alia, do princípio constitucional da proporcionalidade.
X. A interdição temporária da Arguida, pelo período máximo de tempo legalmente previsto, do exercício de atividades de apoio social em quaisquer estabelecimentos de apoio social é completamente desproporcional e desajustada da gravidade da contraordenação sub iudicio.
Y. Conforme avulta de fls. 193 a 198 dos autos, a Arguida é titular de formação na área da geriatria, exerce essa atividade a tempo parcial e encontra-se como tal coletada junto da Autoridade Tributária.
Z. A interdição da Arguida pelo período de 3 anos do exercício de atividades de apoio social em quaisquer estabelecimentos de apoio social atenta contra o basilar princípio do direito ao trabalho e da dignidade da pessoa humana, com assento Constitucional nos arts. 58º, nº 1 e 26º, nº 2, respetivamente.
AA. Consequentemente, a referida interdição é inconstitucional por violação dos preceitos constitucionais dos arts. 18º, nº 2, 26º, nº 2 e 58º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
BB. Salvo o devido respeito por melhor entendimento, a correta interpretação e aplicação dos supracitados preceitos legais e constitucionais impunham a não aplicação à Arguida de qualquer sanção acessória ou, caso assim não houvesse de entender-se, deveria ser aplicada apenas a sanção de encerramento administrativo do suposto estabelecimento de acolhimento de idosos.
CC.Não consente a Lei nem a Constituição que contra a vontade expressa das primas da Arguida, BB e BB, Maior Acompanhada, ou do legal representante desta, venham as mesmas a ser confrontadas com qualquer decisão administrativa que as impeça de continuar a coabitar na residência da Arguida.
DD. Deve, também, neste particular ser alterada a Sentença recorrida que, não obstante constar dos autos e haver sido reafirmado em Audiência de Julgamento que a BB é maior Acompanhada, conforme Sentença proferida nos autos do Processo nº nº 90/09...., que correu termos no Juízo Local Cível ... –Juiz4,sendo dela Acompanhante o marido da Arguida, ainda assim sufraga a decisão administrativa de encerramento da suposta ERPI.
EE. Com o proferimento da Sentença recorrida, o Tribunal a quo interpretou e aplicou incorretamente, inter alia, as seguintes normas legais e constitucionais:
- Do Código de Processo Penal: Arts. 125º, 127º, 374º, nº 2, 340º, nrs. 1 e 2, 410º, nº 2, alínea c), aplicáveis ex vi art. 60º da Lei nº 107/2009, de 14 de setembro;- Do Decreto-Lei nº 64/2007, de 14 de março:Arts. 4º, nrs. 1, alínea b) e 2, 39º-G, nº 1; 39º-H, nº 1, alíneas a), b) e d), e 39º-I, nº 1;- Da Portaria nº 67/2012, de 21 de março: Art. 6º, nº 1- Do Código Civil:Arts. 349º, 351º e 371º;- Da Constituição da República:Arts. 18º, nº 2, 26º, nº 2 e 58º, nº 1.
TERMOS EM QUE, E NOS MAIS DE DIREITO COM O MUI DOUTO SUPRIMENTO DE VOSSAS EXCELÊNCIAS, DEVERÁ SER CONCEDIDO TOTAL PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, EM CONSEQUÊNCIA:
A) Ser revogada a Sentença recorrida e substituída por douto Acórdão que absolva a Arguida dos factos que lhe são imputados ou, caso assim não haja de entender-se, lhe seja aplicada uma Admoestação.
B) Ser, em todo o caso, revogada Sentença na parte em que, tendo confirmado a decisão da Entidade Administrativa, manteve a aplicação das sanções acessórias.
C) Declarar-se que a Maior Acompanhada BB, representada pelo Acompanhante CC, não se encontra abrangida pelos efeitos da proibição de acolhimento de idosos na residência do mesmo, que é também a da sua mulher, ora Recorrente.
D) Declarar-se que BB, irmã da referida BB, só se para tanto expressamente manifestar de forma livre, esclarecida e determinada o desejo de deixar de coabitar na casa da Arguida dela poderá ser retirada ao abrigo de uma decisão administrativa proferida no âmbito dos presentes autos.
RESPOSTA EM 1ª INSTÂNCIA (413º, 1, CPP) - O Ministério Público sustenta que em processo contra-ordenacional o recurso é limitado à matéria de direito, sem prejuízo da apreciação dos vícios previstos no art. 410º CPP, que não ocorrem. Assim, a matéria dada como provada e não provada não pode ser alterada. A medida da coima é absolutamente adequada. O recurso não merece provimento.
PARECER - O Ministério Público junto deste tribunal de recurso sustenta a manutenção da decisão recorrida, corroborando a posição da 1ª instância (417º, 1, 2, CPP). Acrescenta que a medida de admoestação apenas é passível de aplicação em contraordenações classificadas de leves. A aplicação de sanção acessória de interdição temporária de exercício de actividade é também adequada não violando princípios constitucionais, mormente o direito ao trabalho podendo a arguida desempenhar outras actividades. O que consta nos pontos CC e DD das alegações não foi arguida na impugnação judicial.
A recorrente não respondeu (417º, 2, CPP).
O recurso foi apreciado em conferência (art. 419º, CPP).

Objecto do recurso:
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente Segundo os artigos 403º, 1, 412º, 1, CPP, aplicável ex vi artigo 50º, 4, Lei 107/2009, de 19-9 (doravante, RPACOLSS), o âmbito do recurso e a área de intervenção do tribunal ad quem é delimitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente e extraídas da sua motivação do recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação dos vícios previstos no art. 410º, 2, CPP., as questão a decidir são: admissibilidade do recurso sobre a matéria de facto; possibilidade de aplicação de admoestação; sanção acessória de interdição de exercício de actividade.

I.I. FUNDAMENTAÇÃO

A - QUESTÃO PRÉVIA - admissibilidade do recurso sobre a matéria de facto:

A recorrente anuncia que pretende recorrer de direito.
Contudo, as inúmeras considerações que tece no recurso reportam-se à matéria provada- da qual discorda- e à avaliação que o tribunal a quo faz dos meios de prova.
Ora, o regime dos recurso em matéria contra-ordenacional abrange apenas matéria de direito e não matéria de facto - 51º, 1, RPCOLSS Salvo se a própria lei dispuser em sentido contrário..
As razões subjacentes a este regime relacionam-se com o facto de o tribunal da Relação funcionar como instância de revista, julgando em definitivo e encontram, ainda, explicação na natureza do ilícito de mera ordenação social.
Na verdade, os tribunais de trabalho (ou os outros no regime geral) funcionam como primeira instância de recurso (impugnação judicial) das decisões proferidas pelas autoridades administrativa – 32º e 33º RPACLSS, 55º e 59º RGCO.
Por sua vez, o tribunal da Relação, em matéria contraordenacional, funciona como uma instância de revista julgando em definitivo, sendo assim mais restritiva a admissibilidade de recurso, diferentemente com o que acontece no recurso penal ou civil. Em consequência, limita-se, quer o tipo de recurso, quer o âmbito das decisões que admitem recurso, porquanto já houve um primeiro crivo, assegurado por via do recurso para os tribunais de trabalho ou outros.
Tem sido dito que as limitações impostas à admissibilidade dos recursos no domínio contraordenacional encontram o seu cerne na diferente natureza dos ilícitos de mera ordenação social. Aqui está em causa, apenas, a aplicação de sanções de natureza económica decorrentes de um juízo de censura social e administrativa por violação de um dever legal. Ao invés do que acontece no direito penal onde, por força da natureza ética e da gravidade das sanções impostas, preponderam princípios constitucionais de defesa dos arguidos, sendo a possibilidade de recurso mais ampla.
Assim, nas contraordenações a matéria de facto é inatingível no recurso para o tribunal da Relação.
É certo que o tribunal da Relação mesmo quando conheça apenas em matéria de direito, poderá ainda analisar anomalias em termos de matéria de facto. Contudo, tratam-se de vícios da sentença muito específicos e exigentes. Entre os quais se destaca o erro notório na apreciação da prova, ou a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, ou a contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão. Tais vícios terão de resultar evidentes do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum - 410º, 2, CPP, ex vi 41º, 1, RGCO, ex vi 60º do RPACLSS. Estas anomalia decisórias da matéria de facto terão de ressaltar e de ser apreensíveis pela simples leitura do texto da sentença, sem recurso a outros elementos, designadamente depoimentos de testemunhas ou documentos Com interesse nesta matéria versando ela versando ac. RP de 22-05-2019; ac. RG de 19-04-2018, in www.dgsi.pt..
O que não acontece no caso concreto.
O que decorre linearmente da sua fundamentação:
“ As testemunhas DD e EE foram as inspectoras da Segurança Social que realizaram as inspecções à moradia da arguida. Estas testemunhas confirmaram integralmente os autos de notícia que elaboraram, o que fizeram por forma que se afigurou sincera a isenta (cfr. fls. 2 a 30 e 59 a 88).
A factualidade descrita nos autos de notícia é amplamente confirmada pelas fotografias que constam dos autos. Estas fotografias demonstram de forma particularmente evidente que a arguida acolhia idosos na moradia e, inclusivamente, tinha procedido a adaptações e adquirido equipamento com esta finalidade (cfr. fls. 14 a 24 e 70 a 75)
As testemunhas FF, GG e HH eram o Presidente de Câmara Municipal ..., um vereador desta câmara municipal e o Presidente da Junta de Freguesia ....
Estas testemunhas não tinham qualquer conhecimento directo da factualidade que estava em discussão. O Presidente de Câmara Municipal ... afirmou que havia estado por uma única vez na moradia da arguida, há vários anos e para apreciar a realização de umas obras. O vereador da câmara municipal e o Presidente da Junta de Freguesia ... afirmaram que nunca haviam estado na moradia. Nos seus depoimentos, estas testemunhas limitaram-se a afirmar que ouviam dizer que a arguida exercia uma actividade de voluntariado no âmbito do apoio às pessoas idosas com dificuldades económicas.
A testemunha BB era uma idosa que estava acolhida na moradia da arguida. Esta testemunha confirmou que estava acolhida na moradia desde pelo menos o ano de 2015 e acrescentou que também lá estava uma irmã sua que era portadora de deficiência (cfr. fls. 88). No seu depoimento afirmou que entregava à arguida a totalidade da sua reforma e a totalidade da reforma e dos apoios sociais que a sua irmã recebia. Uma parte da reforma da testemunha era pagar as despesas com a irmã porque eram mais elevadas. No total entregava à arguida a quantia mensal de € 1.000,00 (€ 500,00 + € 500,00). Esta quantia era sempre entregue em numerário. As palavras desta testemunha foram 'o que tenho entrego'. Finalmente, esta testemunha esclareceu que se sentia bem na moradia da arguida e considerava que era bem tratada.
O tribunal considerou provado que a arguida agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por não dispor de licença ou autorização provisória de funcionamento para estrutura residencial para pessoas idosas, porque pelo menos desde a primeira inspecção que foi realizada no ano de 2009 a arguida não podia ignorar que não era permitido acolher idosos naquelas condições, tendo persistido na sua conduta.
Nas declarações que prestou, a arguida não questionou que acolhia idosos na moradia, tendo-se limitado a afirmar que o fazia por voluntariado no âmbito do apoio às pessoas idosas com dificuldades económicas.
O tribunal não considerou esta factualidade provada porque apenas foi confirmada pela arguida, uma vez que as testemunhas FF, GG e HH não tinham qualquer conhecimento directo dos factos. Por outro lado, esta versão é contrariada pelas declarações da testemunha BB que afirmou que entregava à arguida a totalidade dos seus rendimentos. Acresce que a circunstância de a arguida considerar que fazia voluntariado, embora devidamente remunerado, não a isentava de cumprir as obrigações legais da sua actividade. O voluntariado é claramente positivo e deve ser incentivado quendo é genuíno, mas não permite o exercício de actividades sem que seja respeitado o regime legal a que estão sujeitas.”
Não se observa, assim, qualquer erro notório, insuficiência ou contradição nos termos acima assinalados.
A recorrente limita-se a discordar da matéria provada e dos meios de prova, impugnando-os na vertente que se relaciona com o principio da livre convicção do julgador, o que é próprio dos recursos “normais”. Pelo que não se enquadra nos estreitos casos que permitem alargar o conhecimento sobre a matéria de facto.
Assim, não se admite o recurso nesta parte.

B) FACTOS

FACTOS PROVADOS:

1.No dia 19 de Agosto de 2015, os serviços da Segurança Social realizaram uma inspecção na Rua ..., em ..., ...;
2.Este local consistia numa moradia com garagem, ... andar e sótão, de características rurais, que era a residência da arguida;
3.A arguida acolhia nesta moradia quatro idosos com idades entre os 65 e os 84 anos;
4.Os idosos estavam acolhidos em dois quartos, dormindo em cada quarto dois idosos;
5.Num quarto existia uma cama articulada adaptada a idosos e no outro quarto existiam duas camas articuladas igualmente adaptadas a idosos;
6.A arguida cobrava aos idosos uma mensalidade de €260,00;
7.A arguida não celebrava qualquer contrato escrito com os idosos, baseando o acolhimento num acordo meramente verbal;
8.O pagamento pelos idosos era sempre em numerário;
9.A assistência aos idosos era prestada pela arguida e pelo marido;
10.A moradia não dispunha de licença ou autorização provisória de funcionamento para estrutura residencial para pessoas idosas;
11.No dia 3 de Julho de 2019, os serviços da Segurança Social realizaram outra inspecção à mesma moradia;
12.Nesta altura, a arguida acolhia na moradia dez idosos com idades entre os 80 e os 61 anos nas mesmas condições que o fazia anteriormente e continuando a moradia não dispor de licença ou autorização provisória de funcionamento para estrutura residencial para pessoas idosas;
13.A arguida agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por não dispor de licença ou autorização provisória de funcionamento para estrutura residencial para pessoas idosas;
14.No ano de 2009, a arguida já havia sido sujeita a uma inspecção por factos idênticos aos presentes autos, tendo sido considerado que explorava na moradia uma estrutura residencial para pessoas idosas e determinado o seu encerramento imediato.

Não se provou:
1.A arguida acolhia idosos por voluntariado no âmbito do apoio às pessoas idosas com dificuldades económicas.

C) ENQUADRAMENTO JURÍDICO
Mantida a matéria factual, soçobra a impugnação respeitante ao Direito no que respeita ao preenchimento dos elementos típicos das infrações, remetendo-se para a sentença sem necessidade de maiores delongas.

Aplicação de admoestação e penas acessórias:

Sustenta a recorrente que, a ser condenada, deveria tê-lo sido na pena de admoestação em vez coima. Invoca também a desproporcionalidade e inconstitucionalidade da aplicação das sanções acessórias.
A arguida foi condenada na coima única de €30.000,00 e nas sanções acessórias de encerramento administrativo do estabelecimento e interdição temporária do exercício, directo ou indirecto, de actividades de apoio social em quaisquer estabelecimentos de apoio social pelo período de 3 anos, pela prática de duas contraordenações previstas no art. 39º-B al. a) do Dl. nº64/2007 de 14 de Março, com a redacção introduzida pelo Dl. nº33/2014 de 4 de Março.
Refere-se na sentença:
“A arguida sustenta que não explorava uma estrutura residencial para pessoas idosas, mas apenas a sua residência, na qual acolhia idosos.
É considerada uma estrutura residencial para pessoas idosas uma estrutura que acolha quatro ou mais idosos. É esta a capacidade mínima de uma estrutura residencial para pessoas idosas, nos termos do art. 6º nº1 da Portaria nº67/2012 de 21 de Março. Assim, a partir deste número de idosos trata-se de uma estrutura desta natureza e sujeita ao respectivo regime legal, nomeadamente no que respeita às exigências de licenciamento e funcionamento.
Atendendo a que a arguida acolhia quatro idosos no ano de 2015 e dez idosos ano de 2019 sem dispor de licença ou autorização provisória de funcionamento para estrutura residencial para pessoas idosas é forçoso concluir que cometeu as contraordenações que lhe foram imputadas.
As contraordenações que foram imputadas à arguida são punidas com coima no valor de € 20.000,00 a € 40.000,00, nos termos do art. 39º-E al. a) do Dl. nº64/2007 de 14 de Março.
A autoridade administrativa aplicou à arguida a coima de € 15.000,00 para cada umas das contraordenações e as sanções acessórias de encerramento administrativo do estabelecimento e interdição temporária do exercício, directo ou indirecto, de actividades de apoio social em quaisquer estabelecimentos de apoio social pelo período de três anos.
Nos termos do art. 39º-I nº1 do Dl. nº64/2007 de 14 de Março, a determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contraordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contraordenação.
A coima e as sanções acessórias que foram aplicadas não merecem qualquer reparo, sendo inteiramente ajustadas.
A ilicitude da conduta da arguida é especialmente grave. A arguida foi sujeita a três inspecções pelos mesmos factos e persistiu na sua conduta.
No que respeita à culpa, a arguida agiu com dolo directo, como bem salientou a autoridade administrativa. Com efeito, pelo menos desde a primeira inspecção que foi realizada no ano de 2009 a arguida sabia que não podia acolher quatro ou mais idosos sem dispor de licença ou autorização provisória de funcionamento para estrutura residencial para pessoas idosas.
Tendo mantido a sua conduta depois desta inspecção, a conclusão não poder ser outra senão que a arguida sabia que era ilegal acolher idosos naquelas condições, mas, ainda assim, decidiu continuar a exercer esta actividade.
A situação económica da arguida não pode ser valorada a seu favor. A arguida exercia uma actividade que sabia que era ilícita e recebia pelos seus serviços sempre em numerário, o que não permite conhecer com exatidão os seus rendimentos, mas permite saber que ocultava e não declarava uma parte dos rendimentos precisamente para que não fosse detectada. Se a arguida ocultava uma parte dos seus rendimentos não pode agora socorrer-se do facto de a parte que era conhecida ser diminuta para obter uma diminuição do valor da coima.”
Diga-se que a referência às coimas individuais de 15.000€ deve-se a mero lapso, quis-se referir 25.000€ conforme consta na decisão administrativa para a qual se remete. No mais, concordamos.
Acrescentamos quanto à admoestação:
As contraordenações cometidas são classificadas de muito graves.
(39º-B do diploma em causa Dl. nº64/2007 de 14 de Março.: (“Artigo 39.º-B: (Infrações muito graves )Constituem infrações muito graves: a) A abertura ou o funcionamento de estabelecimento que não se encontre licenciado nem disponha de autorização provisória de funcionamento válida;”´
Ora, a pena de admoestação só é passível de aplicação excepcional nos casos de contraordenações classificadas de leves.
(48º, RPACOLSS: “Excepcionalmente, se a infracção consistir em contra-ordenação classificada como leve e a reduzida culpa do arguido o justifique, pode o juiz proferir uma admoestação”)
Assim, para além de os factos não indiciarem uma culpa reduzida (cometeu duas contraordenações idênticas no espaço de 4 anos e já em 2009 a arguida já havia sido sujeita a uma inspecção por factos idênticos com encerramento do estabelecimento), a classificação da contraordenação como muito grave obsta, liminarmente, à sua aplicação.

As penas acessórias:

Refere o artigo 39-H do diploma em causa:
“Sanções acessórias
1 - Cumulativamente com as coimas previstas pela prática de infrações muito graves e graves, podem ser aplicadas ao infrator as seguintes sanções acessórias:
a) Interdição temporária do exercício, direto ou indireto, de atividades de apoio social em quaisquer estabelecimentos de apoio social;….
3 - As sanções referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 têm a duração máxima de três anos a contar da data da decisão condenatória definitiva.”
A sanção acessória consiste comummente na restrição de direitos relacionados com a infração praticada (ex. proibição de desenvolvimento de uma atividade económica, perda de bens ou objetos utilizados na infração, etc…).
A sua aplicação é determinada tendo em conta a gravidade da infração e a culpa do agente - 39-K, do mesmo diploma, 60º RPACOLSS, 21º do RGCL. DL 433/82, de 27-10.
Concorda-se co o referido, a este propósito, no parecer do Ministério Publico:
“A aplicação da sanção acessória de interdição temporária do exercício, directo ou indirecto, de actividades de apoio social em quaisquer estabelecimentos de apoio social, prevista no 39º-H nº 1 al. a) do DL nº 64/2007), impõe-se face às infracções, circunstancias da sua prática, posição e conduta reiterada da arguida e não viola o principio constitucional do direito ao trabalho, pois apenas lhe fica vedada a interdição do exercício de actividades de apoio social em estabelecimentos de apoio social, podendo exercer essas actividades fora desses estabelecimentos e todas as restantes actividades possíveis.
Tal norma teve em conta a ponderação e o equilíbrio dos interesses em causa.”
A aplicação de uma sanção acessória não é automática. Mas no caso justifica-se em razão da maior culpa e ilicitude do acto. A arguida por três vez persiste na mesma conduta. O passado revela reiteração da conduta infratora, não se tratando de acto isolado, pelo que uma sanção acessória desencorajadora e direcionada a anular essa persistência faz todo o sentido.
Ademais, se a arguida não dispõe de licenciamento para actividade de apoio social nunca a poderá exercer até o obter.
A este propósito invocamos, ainda, o preâmbulo da última alteração à lei O referido DL 33/2014, de 4-03. do regime de instalação, funcionamento e fiscalização dos estabelecimentos de apoio social geridos por entidades privadas:
“A necessidade de combater estas práticas ilícitas sancionando-as de forma rigorosa é premente, particularmente no que concerne ao exercício ilegal de atividades de apoio social, que funcionam ao arrepio dos mais elementares direitos dos cidadãos, adultos e crianças ou jovens institucionalizados, e que o Estado tem o dever de proteger, regulando mais eficazmente, porque envolvem pessoas em situação de grande vulnerabilidade social.”
Não se observa também violação de princípios constitucionais. Diga-se que não há sentenças inconstitucionais, nem a arguida invoca a inconstitucionalidade de qualquer norma ordinária, para que o tribunal a aprecie. Se a arguida pretende significar que o tribunal a quo fez errada interpretação do direito, incluindo do constitucional, discordamos. Não há princípios constitucionais absolutos, todos têm de conviver entre si, expandindo-se ou comprimindo-se de acordo com a necessidade de dar primazia a um outro. O direito ao trabalho da arguida, desde logo, não fica comprometido, podendo aquela exercer outras actividades, sendo certo que não poderá exercer a actividade em causa sem o necessário licenciamento. Ademais, a protecção da terceira idade têm igualmente consagração constitucional (72º CRP), competindo ao Estado apoiar e fiscalizar com o nível de exigência que as atividades de apoio social implicam. Casos como o dos autos em que actividades de apoio são desenvolvidas completamente à margem dos requisitos legais devem ser fortemente censuradas, ademais porque estão em causa idosos desprotegidos e especialmente carecidos em função da idade e, no mais dos casos, associados a doença, abandono familiar e debilidades económicas.
Uma palavra final para o pedido final contido nas conclusões C e D (referente a familiares da arguida ou a cargo do seu marido):
O pedido extravasa o objecto da contraordenação e do recurso. Trata-se de matéria nunca analisada, circunstâncias de todo desconhecidas do tribunal, que não constam da matéria de facto e que nunca foram submetidas a apreciação da primeira instância. Lida a peça de impugnação judicial dela também não consta tal matéria. Ora, ao tribunal da Relação só compete sindicar o bem fundado do que foi sujeito a julgamento na primeira instância,
Como se refere no parecer do MP:
“No que se refere ao que consta das als. CC) e DD) das conclusões de recurso, nada consta da sentença sobre tais factos, pois que os mesmos não foram levados à apreciação do Juiz, não constando da impugnação judicial apresentada pela arguida, pelo que tal não pode ser apreciado, uma vez que os recursos são meios para obter o reexame das questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre.”

I.I.I. DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se na íntegra a decisão recorrida.
Custas a cargo da Recorrente, fixando em três ucs a taxa de justiça.
Notifique.
Após trânsito em julgado, comunique a presente decisão à Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT).
Guimarães, 15-12-2022

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora)
Francisco Sousa Pereira
Antero Dinis Ramos Veiga