Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | PAULO SERAFIM | ||
| Descritores: | AÇÃO ENCOBERTA RELATO A QUE ALUDE O ARTIGO 3º Nº 6 DA LEI 101/2001 VALOR PROBATÓRIO JUNÇÃO DO RELATO AO PROCESSO | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 03/20/2023 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PARCIALMENTE PROCEDENTE | ||
| Indicações Eventuais: | SECÇÃO PENAL | ||
| Sumário: | I – A circunstância de a legalidade da realização da ação encoberta, quando esta decorra fora de inquérito instaurado, depender de a mesma ser autorizada por juiz de instrução criminal, mediante promoção do Ministério Público, não obsta a que o respetivo controlo jurisdicional sobre o preenchimento de tal requisito esteja vedado ao juiz de julgamento, a quem incumbe valorar a prova produzida nos autos, na qual se pode incluir, como sucede in casu, a produção de prova testemunhal por parte dos agentes policiais que intervieram nos factos, alegadamente, na qualidade de agentes encobertos. II - A inexistência da autorização judicial conduz à proibição da valoração da prova obtida por via da ação encoberta. III - Face aos estritos termos da Lei 101/2001, de 25.08 (RJAE), a atividade jurisdicional de aferimento pelo juiz de julgamento do cumprimento dos requisitos legais da “ação encoberta”, nomeadamente da sua autorização/validação pela autoridade judicial competente e da proporcionalidade da ação executada às finalidades de prevenção (e repressão) criminal concretamente definidas, pode ser levada a cabo mediante o acesso, excecional e previamente fundamentado, ao relato a que alude o art. 3º, nº6, daquele diploma legal. IV - O relato a que alude os arts. 3º, nº6 da Lei 101/2001, é o único elemento do expediente da ação encoberta que pode, excecionalmente, ser junto aos autos do processo a que aquela concerne. V - O dito relato tem como função descrever circunstâncias e acontecimentos de que o agente tomou conhecimento por via da ação encoberta em que participou e, ademais, possibilitar às autoridades judicias competentes fiscalizar e avaliar a conformidade da ação no seguimento da autorização prestada nos termos do art. 3º, nºs 3 e 4, do RJAE, bem assim, controlar a adequação da ação levada a cabo, permitindo, entre o mais, decidir sobre a sua prorrogação, modificação ou cessação. VI - A exigência da indispensabilidade para efeitos probatórios da junção do relato realizado pela Polícia Judiciária, significa, naturalmente, que a junção daquela peça processual aos autos só deve ocorrer se no decurso do processo se concluir pela sua necessidade ou exigibilidade em matéria de prova de factos a imputar ao arguido. VII - Como estatuído no art. 4º, nº2 do RJAE, a formulação do juízo de (absoluta) indispensabilidade deverá ser feita pela autoridade judiciária competente até ao termo do inquérito ou da instrução, permanecendo o expediente registado na posse da Polícia Judiciária. O predito normativo legal teve em consideração, em fase de inquérito, a necessidade de fundamentação da dedução de acusação por banda do Ministério Público e, em fase de instrução, a necessidade de recurso ao relato para efeitos de fundamentação da decisão instrutória. Contudo, tal delimitação legal não afasta a competência atribuída por lei ao juiz de julgamento para, casuisticamente, aquilatar sobre a necessidade de utilizar, valorar a prova obtida no decurso de uma ação encoberta, decorrente, por exemplo, do disposto no art. 340º, nº1, do CPP e do art. 4º, nº4, do RJAE. VIII - Atento o princípio da imediação da prova e visto o disposto no art. 355º, nº1, do CPP, tal relato, per se, é desprovido de qualquer valor probatório, pois que não consubstancia um documento que ateste, sem mais, a veracidade da descrição que ali se faça da intervenção do agente infiltrado, designadamente daquilo que ele viu e ouviu, o que, nos casos de absoluta imprescindibilidade do depoimento do agente atenta a sua previsível relevância probatória, só é possível alcançar mediante sua inquirição em audiência de julgamento, sujeita às regras do contraditório e à livre convicção do tribunal no que tange à apreciação da respetiva credibilidade e alcance probatório do depoimento. Porém, o relato poderá servir de complemento ao depoimento prestado em audiência de julgamento e auxiliar na corroboração de outros meios de prova produzidos no processo. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães: I – RELATÓRIO: I.1 No âmbito do Processo Comum (Tribunal Coletivo) nº 134/18...., do Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo Central Criminal ... – Juiz ..., no dia 14.10.2022, pelo Exmo. Tribunal Coletivo foi proferido em ata (de audiência de julgamento) despacho com o seguinte teor, na parte que ora releva (referência ...32): “Considerando que na acusação constam indicados como testemunhas os agentes encobertos que terão tido intervenção neste processo e que parte dos factos descritos no libelo acusatório respeitam a comportamentos tidos por esses mesmos agentes e porque ao indicar os próprios agentes encobertos como testemunhas não há qualquer dúvida que a autoridade judiciária competente, nomeadamente o Mº Pº, pretendeu utilizar como meio de prova os depoimentos desses agentes, o Tribunal tem de reputar como absolutamente indispensável a junção aos autos de todo o processo que diz respeito à acção encoberta, como aliás já foi requerido aqui pelo arguido AA a fim de apreciar o preenchimento dos pressupostos legais para a realização da acção encoberta, previstos no artº 3 de Lei n.º 101/2001 de 5 de Agosto. Determina-se então que se solicite à Directoria Nacional da Polícia Judiciária que remeta aos autos com a máxima urgência possível todo o processo referente à acção encoberta (despachos de autorização do MP e Juiz de Instrução, relatos e demais documentos).” I.2 Inconformado com o despacho proferido pelo Exmo. Tribunal Coletivo, veio o Ministério Público interpor o presente recurso, que contém motivação e culmina com as seguintes conclusões e petitório (referência ...12)Só se transcrevem as conclusões relevantes para efeitos de apreciação das questões ainda pendentes, porquanto a questão prévia suscitada pelo Recorrente relativa à pugnada subida imediata e concessão de efeito suspensivo da decisão recorrida mostra-se ultrapassada, definitivamente decidida, atenta a douta decisão proferida pelo Exmo. Presidente deste Tribunal da Relação que, concedendo provimento à reclamação deduzida pelo Ministério Público, determinou que fosse o recurso admitido nos termos por este peticionados (cf. Apenso M - Reclamação), o que veio a suceder por despacho proferido pelo Tribunal recorrido com a referência ...73. : […] M) Decidiu o Tribunal a quo, quanto ao requerido pelo arguido AA, que: “(…) Considerando que na acusação constam indicados como testemunhas os agentes encobertos que terão tido intervenção neste processo e que parte dos factos descritos no libelo acusatório respeitam a comportamentos tidos por esses mesmos agentes e porque ao indicar os próprios agentes encobertos como testemunhas não há qualquer dúvida que a autoridade judiciária competente, nomeadamente o MºPº, pretendeu utilizar como meio de prova os depoimentos desses agentes, o Tribunal tem de reputar como absolutamente indispensável a junção aos autos de todo o processo que diz respeito à acção encoberta, como aliás já foi requerido aqui pelo arguido AA a fim de apreciar o preenchimento dos pressupostos legais para a realização da acção encoberta, previstos no artº 3 de Lei n.º 101/2001 de 5 de Agosto. (sublinhado nosso) Determina-se então que se solicite à Directoria Nacional da Polícia Judiciária que remeta aos autos com a máxima urgência possível todo o processo referente à acção encoberta (despachos de autorização do MP e Juiz de Instrução, relatos e demais documentos). (sublinhado nosso) Notifique. (…)” N) O Ministério Público opôs-se ao requerido (conforme documentado na ata da sessão de julgamento precedente, que teve lugar a 03-10-2022 - referência citius ...37, para onde nos remetemos por razões de manifesta economia processual); O) A utilização de agentes infiltrados, como no caso dos autos, está reservada para situações de criminalidade grave, organizada e sofisticada e tem assento legal; P) O regime legal das ações encobertas para fins de prevenção e investigação criminal encontra-se previsto na Lei n.º 101/2001, de 25-08; Q) No entanto, as ações encobertas apenas são admissíveis no âmbito da prevenção e repressão dos crimes mencionados no art.º 2.º desta mesma Lei e desde que obedeçam aos requisitos previstos no art.º 3.º; R) Presidiu a esta opção legislativa a fraqueza e insuficiência dos métodos tradicionais de prevenção e investigação criminal contra os sofisticados meios à disposição das organizações criminosas; S) “A ação encoberta constitui ‘expediente’ indispensável na resposta eficaz às manifestações mais ameaçadoras da criminalidade, considerando-se a sua legitimidade de princípio como aproblemática” (neste sentido, Manuel da Costa Andrade, “Métodos Ocultos de Investigação (Plädoyer para uma Teoria Geral)” in ‘Que Futuro para o Direito Processual Penal’, Simpósio em Homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, por ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal Português, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, página 238); T) Dispõe o art.º 3.º, n.os 3 a 6 da Lei n.º 101/2001, de 25-08, com relevo para a questão material decidenda (na redação introduzida pelas Leis n.os 60/2013, de 23-08, e 61/2015), que: “(…) 3. A realização de uma acção encoberta no âmbito do inquérito depende de prévia autorização do competente magistrado do Ministério Público, sendo obrigatoriamente comunicada ao juiz de instrução e considerando-se a mesma validada se não for proferido despacho de recusa nas setenta e duas horas seguintes. (sublinhado nosso) 4. Se a acção referida no número anterior decorrer no âmbito da prevenção criminal, é competente para autorização o juiz de instrução criminal, mediante proposta do Ministério Público. (sublinhado nosso) 5. Nos casos referidos no número anterior, a competência para a iniciativa e a decisão é, respectivamente, do magistrado do Ministério Público junto do Departamento Central de Investigação e Acção Penal e do juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal. 6. A Polícia Judiciária fará o relato da intervenção do agente encoberto à autoridade judiciária competente no prazo máximo de quarenta e oito horas após o termo daquela. (…)” (sublinhado nosso) U) Esclarece o art.º 4.º, da mesma Lei, sob a epígrafe, ‘Proteção de funcionário e terceiro’ que: “(…) 1. A autoridade judiciária só ordenará a junção ao processo do relato a que se refere o n.º 5 (deve ler-se n.º 6, tratando-se de evidente lapso legislativo) do artigo 3.º se a reputar absolutamente indispensável em termos probatórios. (sublinhado e ênfase nossos) 2. A apreciação da indispensabilidade pode ser remetida para o termo do inquérito ou da instrução, ficando entretanto o expediente, mediante prévio registo, na posse da Polícia Judiciária. (…)” V) O despacho recorrido, nos termos transcritos em B), apresenta insuficiente e errada fundamentação; W) Viola, de forma infundamentada, o disposto nos art.os 3.º, n.º 6, e 4.º, n.os 1 e 2, da Lei n.º 101/2001, de 25-08; X) Padece de ilegalidade; Y) Por outro lado, dispõe o art.º 97.º, n.º1, al. b) e n.º5, do C.P.P. que os atos decisórios, entre os quais se contam os despachos quanto a questões interlocutórias, devem ser formais e fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão; Z) Esse dever de fundamentação resulta também de imposição constitucional [art.º 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (doravante, apenas C.R.P.)] e visa evidenciar as razões da bondade da decisão e dar satisfação à exigência da sua total transparência, facultando aos seus destinatários imediatos e à comunidade em geral a compreensão dos juízos de valor e de apreciação levados a cabo pelo julgador e viabilizando o controlo da atividade decisória pelo tribunal de recurso; AA) No caso do despacho recorrido, para fundamentar a junção de todos os relatos, despachos da ação encoberta e outros documentos, limita-se o Tribunal à expressão conclusiva utilizada pela lei – de que é absolutamente indispensável em termos probatórios – sem explicar as razões processuais fácticas e concretas que estão na base desse juízo; BB) Com efeito, sendo a consagração legal de um meio oculto e secreto de investigação fará parte da sua matriz alguma compressão de direitos; CC) Atendendo à especificidade deste regime e à sua ratio, o legislador não permitiu o acesso ilimitado à ação encoberta; DD) Enfatizou, em contraponto, a necessidade da intervenção de um Juiz no controlo do processo, a quem, em última instância, cabe julgar da legalidade da medida autorizada pelo Ministério Público; EE) De tal modo que, quanto ao controlo de legalidade da ação encoberta a lei prevê: - que é levada a cabo, sempre, com o controlo de uma autoridade judiciária, no caso das ações preventivas, por um Juiz de Instrução sob proposta de um magistrado do Ministério Público; - a possibilidade da junção ao processo do relato da Polícia Judiciária que vem previsto no n.º 6, do art. 3.º, caso a autoridade judiciária conclua pela sua indispensabilidade em termos probatórios, de forma fundamentada; FF) O relato “final” [a que a Lei n.º 101/2001 faz referência no n.º 6 do art. 3.º (e não a vários relatos e/ou documentos)] é o único elemento que legalmente pode ser junto ao processo; GG) E este ‘relato final’ consubstancia apenas um meio processual destinado a “permitir o controlo da regularidade e legitimidade da atuação oculta nos seus pressupostos e no seu modo de execução e a contextualizar os elementos ou indícios recolhidos”; HH) Os direitos de defesa dos arguidos não ficam limitados por não terem acesso a todo o processo da ação encoberta e aos despachos de autorização e validação já que o ‘relato final’ a juntar e a eventual inquirição dos agentes encobertos em audiência, possibilitará um controlo posterior da legalidade da autorização e o pleno exercício do contraditório; II) Tal entendimento e a ausência de fundamento legal do determinado no despacho recorrido, resulta para nós cristalino do Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça a 10-03-2016: “(…) Contra o que pretendem os recorrentes não está prevista legalmente a junção aos autos de todo o expediente da acção encoberta nem tal faria sentido desde logo perante as exigências de segurança dos intervenientes na acção encoberta que se não restringe à mera identificação propriamente dita, não se levantando obstáculo intransponível aos direitos de defesa do arguido mormente ao nível do respeito pelo contraditório, prevista como está a possibilidade de junção ao processo de um relato da acção encoberta (art. 3.º, n.º 6 e 4.º, n.º 1) e, o que é decisivo sobretudo para esse exercício do contraditório, a prestação de depoimento do agente encoberto certamente quem, mercê da sua intervenção directa, em melhor situação estará para esclarecer os contornos da acção encoberta designadamente ao nível da avaliação dessa intervenção quanto a poder ser configurada como a de um agente infiltrado ou de um agente provocador permitindo depois a conclusão sobre se a prova resultante dessa intervenção é ou não prova proibida. Pelo que não se verifica qualquer limitação desproporcionada do direito de defesa dos arguidos e dos limites mínimos do princípio do contraditório, ao contrário do invocado pelos recorrentes.” (sublinhado nosso) JJ) Insistimos, porque materialmente relevante, que além do relato ‘final’ a que alude o art.º 3.º, n.º 6 da referida Lei n.º 101/2001, nada mais pode ser extraído da ação encoberta; KK) Não só o judicialmente determinado não preenche o conceito legal (dos já referidos art.os 3.º e art.º 4.º, da mesma Lei), como se contradiz na análise da indispensabilidade da junção de todo o processo que diz respeito à ação encoberta; LL) Se vão depor como testemunhas em audiência de discussão e julgamento os agentes encobertos, esses depoimentos, acervo probatório ainda a produzir, tornam indispensável o acesso a todo o processo da ação encoberta? Entendemos, clara e manifestamente, que não; bem pelo contrário; MM) E sobre esta questão em concreto, tal como referimos supra em X), já se pronunciou o nosso Supremo Tribunal de Justiça, no referido Acórdão datado de 10-03-2016, no sentido decisório que ora mais uma vez repetimos, pela sua plenitude de aplicação à situação concreta dos autos: “(…) para esse exercício do contraditório, a prestação de depoimento do agente encoberto certamente quem, mercê da sua intervenção directa, em melhor situação estará para esclarecer os contornos da acção encoberta (…) permitindo depois a conclusão sobre se a prova resultante dessa intervenção é ou não prova proibida. (…).” (sublinhado nosso); NN) Por outro lado, seguimos de perto o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 13-07-2022 (processo n.º 17/21...., não publicado):“(…) parecendo inquestionável que a constatação sobre a indispensabilidade do relato em termos probatórios não é tarefa fácil, sempre se pode cogitar que absolutamente indispensável é algo de definitivo, final, vital, capital, inescusável, irremediavelmente necessário, completamente exigível, insofismavelmente imprescindível. (…)” (sublinhado nosso) OO) Referir-se ao requerido pela Defesa do arguido AA e ao facto de serem indicados como testemunhas os agentes encobertos, com estes argumentos, o Tribunal a quo não explica, como legalmente se lhe impunha, em que medida concreta é que os mesmos traduzem uma indispensabilidade em termos probatórios e, muitos menos, que essa indispensabilidade seja absoluta; PP) Consubstancia o Despacho recorrido, transcrito supra, em B), em si mesmo uma ilegalidade; QQ) Independentemente de a ação encoberta ser levada a cabo por um ou por vários agentes encobertos e da circunstância de se poder desenrolar em várias fases, até com algum afastamento temporal, prevê a lei a elaboração de (apenas) um relato em que seja descrita a “intervenção do agente encoberto” (ou dos agentes encobertos, se forem mais), sendo que tal relato é final, ou seja, a sua elaboração deve ocorrer após o termo daquela intervenção (ou intervenções); RR) Não prevê a lei outros “relatos”, iniciais, intermédios ou quaisquer outros, pelo que não se compreende qualquer alusão aos mesmos, ou a vários relatos e documentos, como o faz o despacho recorrido; SS) No que respeita à eventual delimitação do segredo da ação encoberta apenas e tão só até o processo entrar na fase de publicidade, devemos atender ao teor ao decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão datado de 11-12-2014 [processo n.º 33/06....]: “(…) trata-se de factos que reproduzem o conteúdo de despachos e informações tendentes à efectivação do controle pelas autoridades judiciárias competentes e à regularidade e conformação da acção encoberta com os requisitos legais exigíveis. (…) em bom rigor, trata-se de factos que constam de documentos oficiais, elaborados e assinados pelas entidades judiciárias competentes, sendo, nesse aspecto, documentos autênticos, ao mesmo título que o são os despachos exarados nos processos, as autorizações judiciais para buscas, as autorizações para intercepções telefónicas, etc. Só que, em vez de constarem do processo, constam do relato da acção encoberta. (…) no que respeita à veracidade dos despachos que foram elaborados pelas entidades processuais competentes e objecto de proposta e decisão por parte das mesmas, só arguindo a sua falsidade seria possível pôr em causa a sua autoria ou o seu conteúdo (…)”. (sublinhado nosso); TT) A natureza integralmente confidencial da ação encoberta pode cessar com a abertura do processo à publicidade, mas nos termos rigorosos que a lei ‘recorta’ ou seja, apenas e tão só através dos mecanismos previstos nos art.os 3.º, n.º 6 e 4.º, n.os 1 e 3 da mesma Lei e preenchidos os respetivos pressupostos legais; UU) O regime legal deve, assim, ser interpretado à luz desta verdadeira tensão dialética entre as garantias de defesa e a segurança dos agentes encobertos; VV) Qualquer interpretação que valide como legal o acesso a quaisquer outros elementos para além do relato a que alude o art.º 3.º, n.º 6, introduz uma possibilidade que não foi prevista pelos intervenientes em tal ação encoberta, sendo suscetível de os colocar em perigo; WW) De todo o exposto flui, com clareza, que, para além do relato final a que alude o art.º 3.º, n.º 6 da referida Lei n.º 101/2001, nada mais pode ser extraído da ação encoberta e, como tal, não só o requerido como o ordenado não têm qualquer suporte legal, o que se requer seja declarado por esse Venerando Tribunal; XX) Se, ao arrepio da Lei, os Tribunais passassem a “escancarar” as ações encobertas a todos, magistrados, advogados, arguidos, funcionários judiciais, comunicação social e público presente nas salas de audiência: colocariam em grave e real perigo de vida os agentes encobertos e aqueles que lhes são mais próximos; perante a ausência de qualquer proteção deixariam de existir agentes encobertos; os cidadãos ficariam totalmente desprotegidos e os Estados incapazes de combater a criminalidade objetivamente grave e altamente organizada; e assistiríamos ao corroer dos próprios fundamentos das sociedades democráticas e abertas; YY) Porque a junção de todos os relatos e despachos proferidos na ação encoberta e demais documentos não é legalmente admissível, requer-se que esse Venerando Tribunal declare ilegal o despacho judicial que o determinou, negando o requerido pelo arguido AA; ZZ) Violou o Tribunal a quo o disposto nos artigos 3.º, n.º 6, e 4.º, n.os 1 e 2, da Lei n.º 101/2001, de 25-08, 97.º, n.º1, al. b) e n.º5, do Código de Processo Penal, e 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. Nestes termos, deverá proceder o presente recurso, em todas as suas vertentes de argumentação, revogando-se o Despacho recorrido, por ilegal, e substituindo-o por outro que indefira o solicitado pelo arguido AA, o que se requer.” Entretanto, foi proferido despacho pelo Tribunal a quo, datado de 03/11/2022, com o seguinte teor (referência ...55): “- Da alegada junção aos autos do processo de acção encoberta e do recurso apresentado pela Magistrada do MP com a refª ...12 Em 31/10/2022 veio o MP apresentar recurso do despacho proferido em audiência no dia 14/10/2022 cujo teor se mostra parcialmente transcrito na acta com a refª ...32 com o seguinte teor: “Considerando que na acusação constam indicados como testemunhas os agentes encobertos que terão tido intervenção neste processo e que parte dos factos descritos no libelo acusatório respeitam a comportamentos tidos por esses mesmos agentes e porque ao indicar os próprios agentes encobertos como testemunhas não há qualquer dúvida que a autoridade judiciária competente, nomeadamente o MºPº, pretendeu utilizar como meio de prova os depoimentos desses agentes, o Tribunal tem de reputar como absolutamente indispensável a junção aos autos de todo o processo que diz respeito à acção encoberta, como aliás já foi requerido aqui pelo arguido AA a fim de apreciar o preenchimento dos pressupostos legais para a realização da acção encoberta, previstos no artº 3 de Lei n.º 101/2001 de 5 de Agosto. Determina-se então que se solicite à Directoria Nacional da Polícia Judiciária que remeta aos autos com a máxima urgência possível todo o processo referente à acção encoberta (despachos de autorização do MP e Juiz de Instrução, relatos e demais documentos)”. Pede ainda o MP no requerimento de interposição do recurso a subida imediata e atribuição de efeito suspensivo ao mesmo, sob pena de este se tornar absolutamente inútil por comprometer irremediavelmente a decisão a proferir e desprestigiar a realização da Justiça por violação incorrigível de um dos mais elementares pilares do Direito – a segurança individual e colectiva. Antes de antes urge referir que a transcrição do despacho proferida pelo Tribunal Colectivo está efectuada em súmula e não consta da acta de forma integral e inteiramente correcta o que poderá induzir em erro quem efectivamente não esteve presente na referida audiência e não procedeu à sua audição, limitando-se a atentar na sua transcrição parcial (em súmula) efectuada na acta. Na verdade, além do ali transcrito foi ainda referido afinal pelo Tribunal Colectivo, o seguinte: “Antes de mais e para nossa consulta pessoal, e só depois o Tribunal irá determinar se irá deferir ou não, no todo ou em parte, o requerimento que foi feito pelo arguido AA mas para consulta pessoal deste Tribunal, determina-se que se solicite à Directoria Nacional da PJ que remeta aos autos com a máxima urgência possível todo o processo relativo à acção encoberta”. Assim sendo, ainda que se fale em “junção aos autos”, o que Tribunal pretendeu determinar e tal fica claro após a audição da gravação, foi antes que o processo fosse apresentado em mão a este Tribunal Colectivo, o qual, após o respectivo exame, decidiria da pertinência da sua junção aos autos ou do seu aproveitamento. Alias cremos que esse juízo de indispensabilidade da junção aos autos de um relato, vários relatos ou relato (s) finais só poderá ser feito com rigor, depois de o Tribunal Colectivo aferir do seu conteúdo. Todavia, sempre se diga, em jeito de adiantamento, que nem sequer estão juntos aos autos, os despachos de autorização da acção encoberta proferidos pelo Magistrado do MP e de validação/comunicação do JUIZ a que se refere o artigo 3º nº 3 da Lei nº 101/2001, pressupostos de que depende a validade da utilização deste meio de prova, sendo certo que se os mesmos não existirem, estaremos perante um método proibido de prova nos termos do disposto no artigo 126º nº 2 alínea a) do Código de Processo Penal. Ora não há-de querer a Policia Judiciária e muito menos, cremos nós, o Ministério Público, ao menos, sonegar aos autos a existência destes despachos, em manifesta violação dos princípios básicos do processo justo, legal, equitativo e contraditório, sob pena de aí sim, estarmos a desprestigiar a realização da Justiça por violação incorrigível dos mais elementares pilares do Direito. De modo que, desde já e ao menos, os referidos despachos, têm de ser juntos aos autos e ficarem acessíveis às defesas sendo que quanto ao restante, como se referiu no anterior despacho, e após consulta do processo da acção encoberta, o Tribunal Colectivo irá determinar da sua necessidade ou indispensabilidade de junção aos autos. Face a este esclarecimento e correção da súmula do despacho constante da acta de 14/10/2022 com a refª ...32 o que se determina, determino também se abra vista ao M.P. a fim de o mesmo informar se mantém interesse no recurso que apresentou.” Notificado do predito despacho, o recorrente Ministério Público deduziu requerimento nos autos, em 08/11/2022, em que informa manter interesse no recurso que apresentou (referência ...44). Na primeira instância, os arguidos AA e BB, notificados do despacho de admissão do recurso, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentaram respostas, nas quais pugnam pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida (referências ...36 e ...39). O arguido AA formulou as seguintes conclusões: “1. O despacho complementar proferido a 3/11/2022 integra o despacho ora em crise, datado de 14/10/2022, dele fazendo parte integrante, mormente no seu segmento de fundamentação. 2. A melhor interpretação obriga à prolação de despacho de reparação ou sustentação, sempre que a motivação de recurso coloque novas questões ou apresente enquadramento diverso da problemática apreciada. Aqui, o despacho de sustentação não se apresenta ao juiz como uma mera faculdade mas antes como um poder/dever, por força da imposição constitucional e legal do dever de fundamentação das decisões judiciais. (Veja-se a este propósito Acórdão da Relação do Porto de 11/5/2016, no Proc. n.º 180/14.8 TPPRT.P1 in www.dgsi.pt) 3. Por não estarmos perante a decisão final a proferir oportunamente nos presentes autos, o aludido despacho complementar visou sustentar o despacho recorrido de 14/10/2022, densificando-o e explicitando-o, encontrando-se estribado, legítima e processualmente, no citado art.º 414º, n.º 4 do CPP, constituindo parte integrante deste. 4. A fundamentação de um acto decisório deve estar devidamente exteriorizada no respectivo texto, de modo que se perceba qual o seu sentido, ainda que não se deva exigir que no acto decisório fiquem exauridos todos os possíveis posicionamentos que se colocam a quem decide, esgotando todas as questões que lhe foram suscitadas ou que o pudessem ser, pois não pode escamotear-se que, a ser assim, ou seja, a exigir-se uma tão exaustiva fundamentação a todos os despachos judiciais como a imposta para as sentenças finais, estar-se-ia a postergar a almejada celeridade processual que, como é consabido, é pedra de toque no nosso processo penal. 5. Ora, resulta do teor do despacho recorrido (que engloba o dito complementar), transcrito em I, as razões de facto e de direito que sustentam a decisão proferida, de modo objetivo e suficientemente claro para permitir perceber o raciocínio seguido pela Mer.ª Juíza, e que culminou na decisão aqui em crise, pelo que inexiste qualquer falta ou insuficiência de fundamentação. 6. Com efeito, e em jeito de sinopse, extrai-se que o decidido pela Mer.ª Juíza se ancora, entre outros, no facto de os agentes encobertos terem sido arrolados como testemunhas do Ministério Público, pugnando por um processo justo, equitativo e contraditório, reputando essa diligência como indispensável para a descoberta da verdade material e a fim de evitar a produção de prova proibida, estribando-se no art.º 3º da Lei n.º 101/2001, de 5/8 e art.º 126º, n.º 2, al. a) do CPP. 7. Mais determina, desde já, a junção aos autos dos despachos de autorização do Ministério Público, dos competentes despachos de validação do Juiz de Instrução e dos relatos elaborados no âmbito da acção encoberta, nenhum engulho formal se levantando acerca da validade formal do despacho em análise. 8. Questão diversa, e não confundível, é a discordância por parte do Ministério Público, da bondade, da substância e do mérito argumentativo desse libelo decisório e cuja abordagem não se enquadra em qualquer vício processual nos termos supra expostos de que o mesmo poderia padecer o que, reitera-se, inexiste. 9. Ainda que assim não se entendesse, ou seja, assumindo que o despacho recorrido enferma de falta ou insuficiência de fundamentação estaríamos na presença de que vício e que consequências processuais acarretaria? 10. Não tendo o recorrente Ministério Público arguido a invalidade do acto no prazo indicado no art.º 123 n.º 1 do CPP, requerendo que o despacho (e no seu entendimento) seja devidamente fundamentado, sempre teria ficado sanada a irregularidade, se houvesse, uma vez que esta não foi arguida nos termos legais, não podendo pretender saná-la por via do presente recurso, quando já exauriu o prazo legal para a arguir e ainda sendo certo que a mesma deveria ter sido suscitada perante o Tribunal recorrido e não foi. (vide Acórdão da Relação de Lisboa de 24/11/2020 e de 1/3/2021, no Proc. n.º 401/19.0 PLLRS.L1-9 in www.dgsi.pt). 11. Inexistem nos autos quaisquer relatos ao abrigo do n,º 6 do art.º 3 da citada Lei n.º 101/2001, de 25/8, bem como quaisquer autorizações/validações das acções dos agentes encobertos, nos termos e para os efeitos dos n.ºs 3 e 4 do mesmo artigo. 12. O Tribunal tem o poder-dever de investigar e esclarecer autónoma e oficiosamente, para além dos contributos da acusação e da defesa os factos submetidos a julgamento, vigorando o princípio da suficiência (e está aqui em causa uma vertente desse princípio) de acordo com o qual o lugar adequado ao esclarecimento de todas as questões que se revelem necessárias para a decisão a tomar sobre a determinação da responsabilidade penal é o processo (penal) é a audiência de discussão e julgamento. 13. Desconhece-se se a acção encoberta foi sindicada por quem teria competência para tal e, se o foi, os respectivos despachos/autorizações e relatos não estão disponíveis para o exercício do seu contraditório. 14. Questão diversa, e que não é objecto do presente recurso, é o seu valor probatório a ser aferido a jusante se vierem a ser carreados para os autos. 15. Sempre se dirá que o despacho recorrido deverá ter o alcance de consubstanciar “apenas” um meio processual de «permitir o controle da regularidade e legitimidade da actuação oculta nos seus pressupostos e no seu modo de execução e a contextualizar os elementos ou indícios recolhidos nunca podendo conter (nem substituir) o testemunho ou as declarações do agente sobre os eventos observados» (Cfr Sandra Oliveira e Silva in “A Protecção de Testemunhas no Processo Penal”, Coimbra Editora, 2007, pág. 151 e nota 289.) 16. O despacho recorrido é cristalino no seu intuito: Aquilatar do preenchimento dos pressupostos legais para a realização da acção encoberta, previstos no art.º 3 de Lei n.º 101/2001 de 5 de Agosto, sendo que esse juízo de indispensabilidade da junção aos autos de um relato, vários relatos ou relato (s) finais só poderá ser feito com rigor, depois de o Tribunal Colectivo aferir do seu conteúdo. Mais esclarecendo que nem sequer estão juntos aos autos, os despachos de autorização da acção encoberta proferidos pelo Magistrado do Ministério Público e de validação/comunicação do Juiz a que se refere o artigo 3º nº 3 da Lei nº 101/2001, pressupostos de que depende a validade da utilização deste meio de prova, sendo certo que se os mesmos não existirem, estaremos perante um método proibido de prova nos termos do disposto no artigo 126º nº 2 alínea a) do CPP, entendimento que sufragamos. 17. Pelo menos a sonegação dos despachos referidos em 16. entroncaria numa manifesta violação dos princípios básicos do processo justo, legal, equitativo e contraditório, sob pena de, aí sim, estarmos a desprestigiar a realização da Justiça por violação incorrigível dos mais elementares pilares do Direito. 18. Conclui-se, assim, que bem andou o Tribunal ao determinar desde já a junção dos despachos referidos em 16., ficando acessíveis aos arguidos, estribando-se no art.º 3º, n.ºs 3 e 4 da Lei n.º 101/2001, de 25/8, sendo prematuro nos pronunciarmos acerca da pertinência da eventual junção dos relatos que deveriam ter sido comunicados à autoridade judiciária, e a que alude o n.º 6 do art.º 3º da mesma lei, uma vez que ainda não foi determinada a sua junção. 19. O Tribunal a quo, adversamente ao pretendido pelo Ministério Público, não violou o disposto nos art.ºs 205º, n.º 1 da CRP e art.º 97º, n.ºs 1, al. b) e 5 do CPP, e ainda que o tivesse feito, a eventual irregularidade já se encontraria sanada, nos termos do art.º 123º do CPP, nem violou os art.ºs 3º, n.ºs 3 a 6 e 4º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 101/2001, de 25/8.” O arguido BB formulou as seguintes conclusões: “1. Pelo o presente recurso, vem o Ministério Público questionar a admissibilidade legal da junção, como judicialmente determinado, de todo o processo da acção encoberta levada a cabo na fase de inquérito e, em consequência, requer a revogação do Despacho recorrido (despacho proferido em acta em 14-10-2022) por ilegal e a sua substituição por outro que indefira o solicitado pelo Arguido AA. 2. Em nosso entender e salvo melhor opinião, o recurso mostra-se malogrado pelo erro nos pressupostos de facto e de direito do seu autor, os quais não podia ignorar mas que ignorou. 3. O recurso interposto visa impedir o Tribunal a quo de aquilatar a legalidade da acção encoberta, socorrendo-se para fundamentá-lo do teor do despacho recorrido transcrito parcialmente em acta, olvidando-se daquele que foi, efectiva e concretamente, proferido e que resulta da gravação do mesmo, no qual é cristalino e inexorável que o Tribunal a quo não determinou a junção aos autos da totalidade do processo da acção encoberta mas a sua entrega em mão ao Tribunal a quo para, após a sua análise, determinar os elementos que deveriam ou não ser juntos aos autos, pois nem sequer estão juntos aos autos, os despachos de autorização da acção encoberta proferidos pelo Magistrado do MP e de validação/comunicação do Juiz a que se refere o artigo 3º nº 3 da Lei nº 101/2001, pressupostos de que depende a validade da utilização deste meio de prova. 4. O Tribunal a quo proferiu o despacho recorrido, cujo teor se mostra parcialmente transcrito na acta com a refª ...32: “Considerando que na acusação constam indicados como testemunhas os agentes encobertos que terão tido intervenção neste processo e que parte dos factos descritos no libelo acusatório respeitam a comportamentos tidos por esses mesmos agentes e porque ao indicar os próprios agentes encobertos como testemunhas não há qualquer dúvida que a autoridade judiciária competente, nomeadamente o MºPº, pretendeu utilizar como meio de prova os depoimentos desses agentes, o Tribunal tem de reputar como absolutamente indispensável a junção aos autos de todo o processo que diz respeito à acção encoberta, como aliás já foi requerido aqui pelo arguido AA a fim de apreciar o preenchimento dos pressupostos legais para a realização da acção encoberta, previstos no artº 3 de Lei n.º 101/2001 de 5 de Agosto. Determina-se então que se solicite à Directoria Nacional da Polícia Judiciária que remeta aos autos com a máxima urgência possível todo o processo referente à acção encoberta (despachos de autorização do MP e Juiz de Instrução, relatos e demais documentos)”. 5. A transcrição do despacho proferido pelo Tribunal a quo objecto do presente recurso está efectuada em súmula e não consta da acta de forma integral e inteiramente correcta, o que poderia induzir em erro quem efectivamente não esteve presente na referida audiência e não procedeu à sua audição. 6. Porém, o Recorrente esteve presente na audiência de julgamento, foi notificado da totalidade do despacho proferido, não arguiu qualquer invalidade do mesmo e ainda assim, limitou-se a atentar na sua transcrição parcial (em súmula) efectuada na acta para fundamentar o Recurso interposto, quando bem poderia requerer/promover a clarificação do despacho ou acusar a desconformidade do despacho transcrito na acta pela sua incompletude com o efectivamente proferido em audiência, comportamento processual do Recorrente com o qual não nos conformamos e que traduz uma falta de lealdade processual com todos os intervenientes e com o Tribunal a quo que em nada contribui para a boa decisão da causa e a descoberta da verdade material. 7. Além do ali transcrito foi ainda proferido pelo Tribunal a quo que: “Antes de mais e para nossa consulta pessoal, e só depois o Tribunal irá determinar se irá deferir ou não, no todo ou em parte, o requerimento que foi feito pelo arguido AA mas para consulta pessoal deste Tribunal, determina-se que se solicite à Directoria Nacional da PJ que remeta aos autos com a máxima urgência possível todo o processo relativo à acção encoberta”. 8. Por conseguinte, se por um lado o Recorrente que estava presente na audiência de julgamento e foi notificado da totalidade do despacho proferido, e assim, tinha conhecimento da totalidade do teor do despacho proferido, o qual não determinou a junção aos autos do processo da acção encoberta, por outro verifica-se que o Recorrente preferiu ater-se à transcrição parcial do despacho proferido pelo Tribunal a quo para fundamentar o Recurso interposto, bem sabendo que tal transcrição foi efectuada em súmula e que o mesmo não consta da acta de forma integral e inteiramente correcta. 9. Assim sendo, o que Tribunal a quo pretendeu determinar e tal ficou claro para todos os intervenientes processuais presentes e do Recorrente caso isso desejasse, cuja audição da gravação dissipa qualquer eventual dúvida, foi que o processo fosse apresentado em mão ao Tribunal a quo, o qual, após o respectivo exame, decidiria da pertinência da sua junção aos autos ou do seu aproveitamento. 10. Esse juízo de indispensabilidade da junção aos autos de um relato, vários relatos ou relato(s) final(ais) só poderá ser feito com rigor, depois de o Tribunal a quo aferir do seu conteúdo. 11. Todavia, não estão juntos aos autos, os despachos de autorização da acção encoberta proferidos pelo Magistrado do MP e de validação/comunicação do Juiz a que se refere o artigo 3º nº 3 da Lei nº 101/2001, pressupostos de que depende a validade da utilização deste meio de prova, sendo certo que se os mesmos não existirem, estaremos perante um método proibido de prova nos termos do disposto no artigo 126º nº 2 al. a) do Código de Processo Penal. 12. A ocultação nos autos de tais despachos e a pretensão desse estado viola princípios básicos próprios de um processo justo, legal, equitativo e contraditório, o que desprestigia a realização da Justiça por violação incorrigível dos mais elementares pilares do Direito. 13. O que se impõe é que os referidos despachos sejam juntos aos autos e fiquem acessíveis às defesas, e quanto ao restante, e após consulta do processo da acção encoberta pelo Tribunal a quo, este ficou de determinar da sua necessidade ou indispensabilidade de junção aos autos, o que não determinou. 14. Ora, se o Tribunal a quo ainda não determinou a necessidade ou indispensabilidade de junção aos autos dos elementos essenciais da acção encoberta, nomeadamente de um relato, vários relatos ou relato(s) final(ais) da acção encoberta, cremos que o recurso interposto além de padecer de culminância precoce face à inexistência de despacho que determine a junção aos autos do processo da acção encoberta, é ávido no objectivo de obter a chancela judicial que legitime a ocultação e sonegação aos autos dos despachos de autorização da acção encoberta proferidos pelo Magistrado do MP e de validação/comunicação do Juiz a que se refere o artigo 3º nº 3 da Lei nº 101/2001, em manifesta violação dos princípios básicos do processo justo, legal, equitativo e contraditório, o que desprestigia a realização da Justiça por violação incorrigível dos mais elementares pilares do Direito. 15. Face à inexistência nos autos de quaisquer relatos ao abrigo do n.º 6 do art.º 3 da citada Lei n.º 101/2001, de 25/8, bem como quaisquer autorizações/validações das acções dos agentes encobertos, nos termos e para os efeitos dos n.ºs 3 e 4 do mesmo artigo, desconhece-se se a acção encoberta foi sindicada por quem teria competência para tal e, se o foi, os respectivos despachos/autorizações e relatos que não estão disponíveis para o exercício do seu contraditório, de modo que tais omissões nos autos determinam que o Tribunal a quo exerça o seu poder-dever de investigar e esclarecer autónoma e oficiosamente, para além dos contributos da acusação e da defesa os factos submetidos a julgamento, vigorando o princípio da suficiência de acordo com o qual o lugar adequado ao esclarecimento de todas as questões que se revelem necessárias para a decisão a tomar sobre a determinação da responsabilidade penal é a audiência de discussão e julgamento. 16. As acções encobertas só são admissíveis no âmbito da prevenção e repressão dos crimes mencionados no art. 2º. da Lei 101/2001, de 25 de Agosto e desde que obedeçam aos requisitos previstos no art. 3º. da citada lei, ou seja, devem ser adequadas aos fins de prevenção e repressão criminais identificados em concreto, nomeadamente a descoberta de material probatório, e proporcionais quer àquelas finalidades quer à gravidade do crime em investigação, in Ac. TR Porto de 07-05-2024. 17. Exige-se assim, uma adequação e proporcionalidade das acções encobertas aos fins referidos e à gravidade do crime em investigação (crimes elencados de forma taxativa no art. 2º do RJAE) que deverão, por isso, ser devidamente fundamentadas pelo OPC quando promove a acção encoberta junto do dominus do inquérito. 18. No entanto, se o legislador não exigiu expressamente o requisito de excepção ou de último ratio deste meio de obtenção de prova, porém, a jurisprudência tem entendido que “As acções encobertas são um meio de investigação a usar com parcimónia e o modo como se desenvolvem deve ser objecto de aprofundado escrutínio...” (Ac. do TRL de 22/03/2011, referente ao processo nº. 182/09.6JELSB in dgsi). Segundo Benjamim Rodrigues, “exige-se que, em concreto, face a toda a pletora de meios (obtenção de prova), consagrados no CPP, nenhum deles se afigure apto, suficiente e adequado a permitir a aquisição de material probatório incriminatório” (RODRIGUES, Benjamim Silva, Da Prova Penal, Tomo II, Bruscamente ... A(s) Face(s) Oculta(s) dos Métodos Ocultos de Investigação Criminal, p. 125). 19. No que respeita à junção aos autos do processo da acção encoberta, sempre se dirá, conforme Douto Ac. TR Lisboa de 23-03-2022, que a junção do processo de acção encoberta e, consequentemente, a sua consulta integral não só não é obrigatória, como traduz uma situação excepcional. Para se garantir um “fair trial” a um arguido e respeitar os seus direitos de defesa, o que é fundamental é confrontá-lo com os meios de prova existentes, não sendo o procedimento de acção encoberta um meio de prova em si. 20. Para se saber se a prova obtida por agente encoberto é, de per si, uma prova proibida, o que é essencial fazer-se em primeiro lugar é fazer constar nos autos dos despachos de autorização da acção encoberta proferidos pelo Magistrado do MP e de validação/comunicação do Juiz a que se refere o artigo 3º nº 3 da Lei nº 101/2001. 21. Depois, para efeitos de valoração das provas obtidas pelo agente encoberto, segundo Paulo Pinto de Albuquerque, a conjugação do nº. 3 do art. 4º com o nº. 1 do mesmo artigo, ambos do RJAC, permite estabelecer uma dualidade de critérios entre a junção do relato do agente encoberto que actuou sob identidade fictícia e a junção do relato do agente encoberto que não actuou sob identidade fictícia, à luz do risco de prejuízo para a segurança dos agentes envolvidos. 22. Assim, o critério legal para a junção do relato do agente encoberto que actuou sob identidade fictícia é o da absoluta indispensabilidade, ao passo que o critério legal para aferir da junção ao processo do relato do agente encoberto que actuou sem identidade fictícia é o da necessidade, a efectuar à luz do consagrado no nº. 1 do art. 275º do CPP. 23. Em virtude do plasmado no nº. 2 do art. 4º do RJAC, a eventual decisão de indispensabilidade de tal junção poderá ocorrer até ao terminus da fase de inquérito ou, eventualmente, da fase de instrução. Porém, consagrar a regra da não junção do relato da intervenção do agente encoberto ao processo sofre, segundo David Silva Ramalho, em “Métodos Ocultos”, pág. 308, e que acompanhamos, de inconstitucionalidade material, por violar o disposto no nº. 1 do art. 32º da CRP, pois afecta inequivocamente o princípio da igualdade de armas, que surge como uma das dimensões do processo penal leal e equitativo, consagrado no art. 6º da CEDH, onde a acusação e defesa devem dispor de iguais oportunidades e meios de expor e demonstrar perante o juiz as suas razões de facto e de direito, o que, necessariamente, não acontecerá caso não seja junto ao processo o(s) relato(s) da acção encoberta. 24. Face à pretensão recursiva, caso não seja junto aos autos o(s) relato(s), sempre se questionará como é que o juiz de julgamento saberá que foi obtida prova através de uma acção encoberta? Não o saberá, pois não existe nada na lei que lhe permita saber. 25. É praticamente unânime na doutrina que o relato do agente encoberto, só por si, não poderá ter qualquer valor probatório pois, de contrário, estaríamos a infringir o princípio da imediação, consagrado no nº. 1 do art. 355º do CPP, pelo que acresce referir que o relato, a ser junto ao processo por ser indispensável enquanto meio de prova, terá de implicar necessariamente o chamamento do agente encoberto a depor em audiência de julgamento e deverá ser corroborado por outros meios de prova. É que como é evidente, para além do princípio da imediação, também à luz do princípio do contraditório, consagrado no nº. 5 do art. 32º da CRP, é inadmissível a valoração probatória do relato da intervenção do agente encoberto só por si. 26. Assim, somos a concluir que, estando arroladas como testemunhas os agentes encobertos, cujos depoimentos deveriam corroborar os seus relatos da acção encoberta, a não junção de tais relatos permite a tais testemunhas efabular sem regras nem balizas na prestação dos seus depoimentos, em violação dos princípios da imediação, do contraditório e da concentração por que se rege a audiência de julgamento. 27. Por conseguinte, ficamos a saber pela leitura do o art. 4º nºs. 3 e 4 do RJAC que o agente encoberto pode intervir como testemunha no processo, sendo que, na fase de julgamento prestará depoimento em circunstâncias especiais, e esse depoimento terá um valor probatório limitado, uma vez que à luz dos princípios estruturantes do direito processual penal, nomeadamente o contraditório e a imediação, não esquecendo o princípio da lealdade e da presunção de inocência, o depoimento prestado em condições de anonimato não tem o mesmo valor probatório que um depoimento prestado em condições “normais”, pois tal depoimento não permite que haja um “debate” entre o agente encoberto e as defesas dos arguidos, provocando, inclusive, dúvidas quanto à finalidade do depoimento. 28. Pelo exposto, somos a concluir que não assiste qualquer razão de facto nem de Direito para a procedência do recurso interposto pelo Ministério Público, uma vez que, tendo o Tribunal a quo constatado que os despachos de autorização da acção encoberta proferidos pelo Magistrado do MP e de validação/comunicação do Juiz a que se refere o artigo 3º nº 3 da Lei nº 101/2001 não se encontram juntos aos autos (despachos que constituem os pressupostos de que depende a validade da utilização deste meio de prova, sendo certo que se os mesmos não existirem, estaremos perante um método proibido de prova nos termos do disposto no artigo 126º nº 2 al. a) do Código de Processo Penal), e assim, em consequência, o Tribunal a quo determinou, não a junção aos autos do processo da acção encoberta mas a sua apresentação em mão o qual após submetido ao respectivo exame, decidirá da pertinência da sua junção aos autos ou do seu aproveitamento, o que é sintomático e demonstrativo que o recurso interposto pelo Ministério Público deverá improceder in totum, o que se requer. 29. Ademais, conclui-se, ainda, que bem andou o Tribunal ao determinar desde já a junção dos omitidos despachos, ficando acessíveis aos arguidos, estribando-se no art. 3º, nºs 3 e 4 da Lei n.º 101/2001, de 25/8. 30. Assim, o Tribunal a quo, contrariamente à pretensão recursiva do MP, não violou o disposto nos arts. 205º, n.º 1 da CRP e art.º 97º, n.ºs 1, al. b) e 5 do CPP, e ainda que o tivesse feito, a eventual irregularidade já se encontraria sanada, nos termos do art.º 123º do CPP, nem violou os arts. 3º, nºs 3 a 6 e 4º, nºs 1 e 2 da Lei n.º 101/2001, de 25/8, pelo que deve o recurso ser julgado improcedente.” I.3 Neste Tribunal da Relação, a Exmo. Procuradora-Geral Adjunta, para efeitos do disposto no art. 416º, nº1, do CPP, apôs “visto” (referência ...66). Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir. * II – ÂMBITO OBJETIVO DO RECURSO (QUESTÕES A DECIDIR): É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do Código de Processo Penal (ulteriormente designado, abreviadamente, C.P.P.) Cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, UCE, 2008, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1030 e 1031; M. Simas Santos/M. Leal Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, II Volume, 2ª Edição, Editora Reis dos Livros, 2004, p. 696; Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2018, pág. 335; o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém atualidade.. Assim sendo, no caso vertente, as questões que importa dilucidar são as seguintes: - Da alegada ilegalidade do despacho recorrido por falta/insuficiência de fundamentação (art. 97º, nº1, al. b), e nº5, do CPP e art. 205º, nº1, da CRP); - Da invocada exclusividade do “relato final” do processo da ação encoberta enquanto peça processual passível por lei de ser junta aos autos. * III – APRECIAÇÃO: III.1 - Da alegada ilegalidade do despacho recorrido por falta/insuficiência de fundamentação: Neste conspecto, invoca o recorrente Ministério Público, em súmula, que [cf. conclusões V) a AA)], o despacho recorrido apresenta insuficiente e errada fundamentação, padecendo de ilegalidade por violação do dever de fundamentação imposto pelo art.º 97.º, nº1, al. b) e nº5, do C.P.P., e pelo art. 205º, nº1, da Constituição da República Portuguesa. Concretizando, refere o recorrente que, no despacho recorrido, para fundamentar a junção de todos os relatos, despachos da ação encoberta e outros documentos, limita-se o Tribunal à expressão conclusiva utilizada pela lei – de que é absolutamente indispensável em termos probatórios – sem explicar as razões processuais fácticas e concretas que estão na base desse juízo. Apreciando: Conforme o estatuído no art. 97º, nºs 1, alínea b), e 5, do CPP, os despachos judiciais decisórios, que, não sendo de mero expediente, conheçam de qualquer questão interlocutória, devem ser sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão. Assim, a lei ordinária portuguesa, como corolário do disposto no art. 205º, nº1, da Constituição da República Portuguesa, consagra expressamente o dever de fundamentação dos atos decisórios dos tribunais. Resumidamente, tal dever de fundamentação impõe ao decisor que explicite os motivos factuais e jurídicos que suportam o raciocínio subjacente à decisão tomada, assim permitindo aos destinatários da mesma apreenderem as razões que, do ponto de vista do tribunal, o conduziram a tal decisão, e, em caso de recurso, permitindo ao Tribunal ad quem sindicar o mérito do decidido por aferência do ajuste ou desacerto dos argumentos esgrimidos. A motivação não tem de ser extensa, exaustiva e pormenorizada. Basta que seja razoável, aceitável, do ponto de vista do normal e da suficiência, o que sucederá sempre que do seu conteúdo se consiga extrair as razões subjacentes à decisão tomada pelo julgador. No caso vertente, entendemos que, contrariamente ao defendido pelo Digno recorrente, o Tribunal a quo fundamentou no despacho recorrido a decisão de solicitação à Diretoria Nacional da Polícia Judiciária para que remeta aos autos todo o processo referente à acção encoberta (despachos de autorização do MP e Juiz de Instrução, relatos e demais documentos). Com efeito, ressuma do teor da decisão recorrida, complementada pelo despacho esclarecedor/corretivo proferido a 03/11/2022 [referência ...55] – integralmente transcritos no Ponto I do presente aresto –, que o Tribunal a quo, convocando o facto de o Ministério Público ter arrolado na acusação como testemunhas os agentes encobertos que, alegadamente, não só presenciaram mas igualmente intervieram nos factos em discussão, assumindo, como tal, os seus eventuais depoimentos indiscutível relevo probatório, pretende, pela análise da documentação solicitada, aquilatar da legalidade da acção encoberta levada a cabo, nomeadamente, se se mostram preenchidos os pressupostos legais para a sua realização, previstos no art. 3º da Lei nº 101/2001, de 05.08, sob pena de, no entendimento do Tribunal coletivo, não estando os mesmos reunidos, se verificar a ocorrência de um método proibido de prova, nos termos do art. 126º, nº2, al. a), do CPP. Ora, conforme é também notado pelos arguidos respondentes, a discordância jurídica manifestada pelo recorrente é questão diversa da suscitada ilegalidade por falta ou insuficiência de fundamentação do despacho recorrido, contendendo antes com o mérito da decisão proferida. Não obstante ser sucinta, a motivação aduzida pelo Tribunal a quo apresenta-se como suficiente para que se compreendam as razões subjacentes à decisão prolatada. Se tal decisão encontra ou não arrimo legal é questão decidendi distinta, que infra se abordará. Inexiste, destarte, a invocada ilegalidade/invalidade do despacho recorrido por falta/insuficiência da fundamentação. III.2 – Da alegada impossibilidade legal de junção aos autos de outras peças processuais da acção encoberta que não o “relato final” e, quanto a este, ausência de fundamento atendível no despacho recorrido para a sua determinada junção: Neste segmento recursório, invoca o recorrente Ministério Público, em síntese [conclusões AA) a YY)]: - Para fundamentar a junção de todos os relatos, despachos da ação encoberta e outros documentos, limita-se o Tribunal à expressão conclusiva utilizada pela lei – de que é absolutamente indispensável em termos probatórios – sem explicar as razões processuais fácticas e concretas que estão na base desse juízo; - Sendo a consagração legal de um meio oculto e secreto de investigação fará parte da sua matriz alguma compressão de direitos; - Atendendo à especificidade deste regime e à sua ratio, o legislador não permitiu o acesso ilimitado à ação encoberta; - Enfatizou, em contraponto, a necessidade da intervenção de um Juiz no controlo do processo, a quem, em última instância, cabe julgar da legalidade da medida autorizada pelo Ministério Público; De tal modo que, quanto ao controlo de legalidade da ação encoberta a lei prevê: - Que é levada a cabo, sempre, com o controlo de uma autoridade judiciária, no caso das ações preventivas, por um Juiz de Instrução sob proposta de um magistrado do Ministério Público; - A possibilidade da junção ao processo do relato da Polícia Judiciária que vem previsto no n.º 6, do art. 3.º, caso a autoridade judiciária conclua pela sua indispensabilidade em termos probatórios, de forma fundamentada; - O relato “final” [a que a Lei n.º 101/2001 faz referência no n.º 6 do art. 3.º (e não a vários relatos e/ou documentos)] é o único elemento que legalmente pode ser junto ao processo; E este ‘relato final’ consubstancia apenas um meio processual destinado a “permitir o controlo da regularidade e legitimidade da atuação oculta nos seus pressupostos e no seu modo de execução e a contextualizar os elementos ou indícios recolhidos”; - Os direitos de defesa dos arguidos não ficam limitados por não terem acesso a todo o processo da ação encoberta e aos despachos de autorização e validação já que o ‘relato final’ a juntar e a eventual inquirição dos agentes encobertos em audiência, possibilitará um controlo posterior da legalidade da autorização e o pleno exercício do contraditório; - Referir-se ao requerido pela Defesa do arguido AA e ao facto de serem indicados como testemunhas os agentes encobertos, com estes argumentos, o Tribunal a quo não explica, como legalmente se lhe impunha, em que medida concreta é que os mesmos traduzem uma indispensabilidade em termos probatórios e, muitos menos, que essa indispensabilidade seja absoluta; consubstancia o Despacho recorrido em si mesmo uma ilegalidade; - Para além do “relato final”, não prevê a lei outros “relatos”, iniciais, intermédios ou quaisquer outros, pelo que não se compreende qualquer alusão aos mesmos, ou a vários relatos e documentos, como o faz o despacho recorrido; - A natureza integralmente confidencial da ação encoberta pode cessar com a abertura do processo à publicidade, mas nos termos rigorosos que a lei ‘recorta’ ou seja, apenas e tão só através dos mecanismos previstos nos art.ºs 3.º, n.º 6 e 4.º, n.os 1 e 3 da mesma Lei e preenchidos os respetivos pressupostos legais; - O regime legal deve, assim, ser interpretado à luz desta verdadeira tensão dialética entre as garantias de defesa e a segurança dos agentes encobertos; qualquer interpretação que valide como legal o acesso a quaisquer outros elementos para além do relato a que alude o art.º 3.º, n.º 6, introduz uma possibilidade que não foi prevista pelos intervenientes em tal ação encoberta, sendo suscetível de os colocar em perigo; - Para além do relato final a que alude o art.º 3.º, n.º 6 da referida Lei n.º 101/2001, nada mais pode ser extraído da ação encoberta e, como tal, não só o requerido como o ordenado não têm qualquer suporte legal. Analisando: O regime jurídico das ações encobertas para fins de prevenção e investigação criminal encontra-se plasmado na Lei nº 101/2001, de 25 de agosto (RJAE), aí se definindo «ações encobertas» como “aquelas que sejam desenvolvidas por funcionários de investigação criminal ou por terceiro actuando sob o controlo da Polícia Judiciária para prevenção ou repressão dos crimes indicados nesta lei, com ocultação da sua qualidade e identidade.” – cf. art. 1º, nº2. As ações encobertas somente são permitidas no âmbito da prevenção e repressão dos crimes taxativamente previstos no art. 2º da citada Lei, sendo denominador comum dos mesmos a sua gravidade, pelo ataque que envolvem a bens jurídicos de elevada relevância societária, e/ou modo de execução particularmente violenta que acentua significativamente o respetivo grau de ilicitude. O art. 3º da Lei nº 101/2001 estatui os requisitos de validade da «acção encoberta»: “1 - As ações encobertas devem ser adequadas aos fins de prevenção e repressão criminais identificados em concreto, nomeadamente a descoberta de material probatório, e proporcionais quer àquelas finalidades quer à gravidade do crime em investigação. 2 - Ninguém pode ser obrigado a participar em acção encoberta. 3 - A realização de uma acção encoberta no âmbito do inquérito depende de prévia autorização do competente magistrado do Ministério Público, sendo obrigatoriamente comunicada ao juiz de instrução e considerando-se a mesma validada se não for proferido despacho de recusa nas setenta e duas horas seguintes. 4 - Se a acção referida no número anterior decorrer no âmbito da prevenção criminal, é competente para autorização o juiz de instrução criminal, mediante proposta do Ministério Público. 5 - Nos casos referidos no número anterior, a competência para a iniciativa e a decisão é, respectivamente, do magistrado do Ministério Público junto do Departamento Central de Investigação e Acção Penal e do juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal. 6 - A Polícia Judiciária fará o relato da intervenção do agente encoberto à autoridade judiciária competente no prazo máximo de quarenta e oito horas após o termo daquela.” Por seu turno, prescreve o art. 4º da aludida Lei, sob a epígrafe “proteção de funcionário e terceiro”: “1 - A autoridade judiciária só ordenará a junção ao processo do relato a que se refere o n.º 5 do artigo 3.º se a reputar absolutamente indispensável em termos probatórios. [nota da nossa autoria: a remissão para o nº5 trata-se de notório lapso de escrita, pois que o “relato” em apreço encontra-se previsto no nº6 do art. 3º] 2 - A apreciação da indispensabilidade pode ser remetida para o termo do inquérito ou da instrução, ficando entretanto o expediente, mediante prévio registo, na posse da Polícia Judiciária. 3 - Oficiosamente ou a requerimento da Polícia Judiciária, a autoridade judiciária competente pode, mediante decisão fundamentada, autorizar que o agente encoberto que tenha atuado com identidade fictícia ao abrigo do artigo 5.º da presente lei preste depoimento sob esta identidade em processo relativo aos factos objecto da sua actuação. 4 - No caso de o juiz determinar, por indispensabilidade da prova, a comparência em audiência de julgamento do agente encoberto, observará sempre o disposto na segunda parte do nº 1 do artigo 87º do Código de Processo Penal, sendo igualmente aplicável o disposto na Lei nº 93/99, de 14 de julho.”. Por último, com relevo para o caso, dispõe o art. 6º do mesmo diploma legal: “1 - Não é punível a conduta do agente encoberto que, no âmbito de uma acção encoberta, consubstancie a prática de actos preparatórios ou de execução de uma infracção em qualquer forma de comparticipação diversa da instigação e da autoria mediata, sempre que guarde a devida proporcionalidade com a finalidade da mesma. 2 - Se for instaurado procedimento criminal por acto ou actos praticados ao abrigo do disposto na presente lei, a autoridade judiciária competente deve, logo que tenha conhecimento de tal facto, requerer informação à autoridade judiciária que emitiu a autorização a que se refere o n.º 3 do artigo 3.º” Como se menciona no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.03.2003, Processo 02P4510, acessível in www.dgsi.pt. «1 - Tem sido, em geral, admitidas medidas de investigação especiais, como último meio, mas como estritamente necessárias à eficácia da prevenção e combate à criminalidade objetivamente grave, de consequências de elevada danosidade social, que corroem os próprios fundamentos das sociedades democráticas e abertas, e às dificuldades de investigação que normalmente lhe estão associadas, como sucede com o terrorismo, a criminalidade organizada e o tráfico de droga. 2 - A pressão das circunstâncias e das imposições de defesa das sociedades democráticas contra tão graves afrontamentos tem imposto em todas as legislações, meios como a admissibilidade de escutas telefónicas, a utilização de agentes infiltrados, as entregas controladas.» No que tange aos motivos subjacentes à legislação em apreço e correlativo espírito da lei, reproduzimos aqui o que se expendeu no acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães de 09.01.2023, igualmente proferido nestes autos, no Apenso N, relatado pelo Exmo. Desembargador António Teixeira e no qual o ora relator interveio como Adjunto: «Afigurando-se-nos pertinente, para perscrutarmos a “mens legislatoris”, atentar na intervenção que o então Ministro da Justiça levou a cabo na reunião plenária da Assembleia da República, ocorrida no dia 21/06/2001, no âmbito da discussão conjunta, na generalidade, entre outras, da proposta de lei nº 79/VIII (atinente ao regime jurídico das acções encobertas para fins de prevenção e investigação criminal), que esteve génese da citada Lei nº 101/2001, de 25 de Agosto, e que pode ser consultada no Diário da Assembleia da República de 22 de junho de 2001, I Série – Número 99, págs.17 e 22 Também disponível on line, in https://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/01/08/02/099/2001-06-21/16?pgs=16-31&org=PLC&plcdf=true , na parte em que se referiu a esta problemática, quando afirmou (cfr. pág. 17): “O agente infiltrado ou encoberto é admitido pelo actual direito português apenas no âmbito do combate ao tráfico de droga e das medidas de combate à corrupção e à criminalidade económica e financeira. A presente proposta visa, em primeiro lugar, alargar esse âmbito de aplicação, estabelecendo para o efeito um elenco dos crimes em cuja investigação se pode recorrer a actuações encobertas. Por outro lado, procura-se criar um regime jurídico ao abrigo do qual essas actuações são levadas a cabo, diluindo dúvidas que a jurisprudência tem encontrado aqui ou ali. A introdução deste regime deve, no entanto, ser feita com os cuidados adequados, quer para preservar as garantias de defesa em processo criminal, quer para salvaguardar a segurança dos agentes envolvidos na investigação. A primeira destas preocupações traduz-se, desde logo, no princípio geral de que estas actuações estão sujeitas aos princípios da necessidade e da proporcionalidade face à investigação a desenvolver. No mesmo sentido, estabelece-se uma supervisão por autoridade judiciária destas actuações, que se traduz, quer na necessidade de autorização prévia de magistrado, quer no controlo jurisdicional a posteriori dessa mesma actuação e da prova obtida. A segurança dos agentes é outro domínio sensível, quer por acuarem junto dos criminosos, quer por estarem sujeitos a eventuais represálias. Assim, desde logo, ninguém pode ser obrigado a participar numa actuação encoberta. Além disso, prevêem-se regras de proteção do agente no que toca aos meios pelos quais a prova assim produzida é apresentada no processo e um regime de identidade fictícia.” (sublinhados nossos). Acrescentando, mais à frente, quando interpelado acerca do risco das ações encobertas (cfr. pág. 22): “Quanto à questão do risco, é um risco extraordinário. Aliás, há dias, veio relatado num jornal uma acção que decorreu fora do território nacional, que envolveu a intervenção da Marinha e em circunstâncias em que os agentes estavam em situação de altíssimo risco. Não é, portanto, um risco comum. Podem ser circunstâncias de risco anormal que, em meu entender, justificam que não se possa impor ao agente que se submeta a esse risco. Devo dizer que o problema não se põe, porque, se há coisa que a experiência nos revelou, é a grande determinação e a grande coragem dos agentes da Polícia Judiciária no desempenho das suas missões, muitos com sacrifícios da sua própria vida.” (sublinhados nossos). Filosofia esta que, ademais, encontra eco na Exposição de Motivos do aludido diploma legal Documento que pode ser consultado in: https://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063484d364c793968636d356c6443397a6158526c6379395753556c4a5447566e4c305276593356745a57353062334e4a626d6c6a6157463061585a684c32597a4d4464684e7a4e6d4c5445774d6d51744e4459344f4331684d6a51314c5755784f4463324f4445354d3251344e79356b62324d3d&fich=f307a73f-102d-4688-a245-e18768193d87.doc&Inline=true, nos seguintes termos: “A actuação encoberta é um mecanismo importantíssimo de investigação penal, nomeadamente no que se refere à criminalidade mais grave e ao crime organizado. Consiste, essencialmente, na possibilidade de agentes da polícia criminal poderem contactar os suspeitos da prática de um crime com ocultação da sua verdadeira identidade (agentes encobertos ou agentes infiltrados), actuando de maneira a impedir a prática de crimes ou a reunir provas que permitam a efectiva condenação dos criminosos. O agente infiltrado ou encoberto – com o sentido que acima lhe foi dado - é admitido pelo actual direito português apenas no âmbito do combate ao tráfico de droga e das medidas de combate à corrupção e à criminalidade económico-financeira. A presente proposta visa, em primeiro lugar, alargar esse âmbito de aplicação, estabelecendo para o efeito um elenco dos crimes em cuja investigação se pode recorrer a actuações encobertas; em segundo lugar, cria-se um regime jurídico ao abrigo do qual essas actuações são levadas a cabo. A introdução deste regime deve, no entanto, ser feita com os cuidados adequados, quer para preservar as garantias de defesa em processo criminal quer para salvaguardar a segurança dos agentes envolvidos na investigação. A primeira das preocupações traduz-se, desde logo, no princípio geral de que estas actuações estão sujeitas aos princípios da necessidade e proporcionalidade face à investigação a desenvolver. No mesmo sentido se estabelece uma supervisão jurisdicional destas actuações, que se traduz quer na necessidade de autorização prévia de magistrado quer no controlo jurisdicional a posteriori dessa mesma actuação e da prova obtida. A segurança dos agentes é outro domínio sensível, quer por actuarem junto dos criminosos quer por estarem sujeitos a eventuais represálias. Assim, desde logo, ninguém pode ser obrigado a participar numa actuação encoberta. Além disso, prevêem-se regras de protecção do agente no que toca aos meios pelos quais a prova assim produzida é apresentada no processo e um regime de identidade fictícia.” (sublinhados nossos).» Destarte, como se adianta no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12.03.2009, acessível em www.dgsi.pt, «a ocultação da identidade dos agentes encobertos, a existência de um processo em separado para as ações encobertas, a autorização de junção aos autos do relatório da ação encoberta em casos limitados e a forma, excecionalmente, em julgamento, visam que os perpetradores dos não conheçam quem colaborou na sua descoberta e detenção e em que qualidade, de molde a permitir que seja produzida dos factos ilícitos, mas que seja também garantida a segurança de quem, assim, contribuiu para a descoberta da verdade e boa administração da justiça.» Volvendo ao caso vertente: Afigurando-se-nos indubitável que a legalidade da realização da ação encoberta, quando esta decorra fora de inquérito instaurado, depende de a mesma ser autorizada por juiz de instrução criminal, mediante promoção do Ministério Público, consideramos que o respetivo controlo jurisdicional sobre o preenchimento de tal requisito não está vedado ao juiz de julgamento, a quem incumbe valorar a prova produzida nos autos, na qual se pode incluir, como sucede in casu, a produção de prova testemunhal por parte dos agentes policiais que intervieram nos factos, alegadamente, na qualidade de agentes encobertos. Com efeito, a inexistência da autorização judicial geraria a nulidade da prova obtida por via da ação encoberta, relativa ou absoluta, neste último caso para quem entenda tratar-se de um meio de prova obtido através de método proibido de prova – situação que reservamos para o caso de atuação do denominado agente «provocador», suscetível de integrar o conceito de “meios enganosos” previsto no art. 126º, nºs 1 e 2, al. a), do CPP, a apreciar casuisticamente –, o que, de qualquer modo, conduziria à proibição de valoração da mesma. Tal conclusão deriva da chamada à colação do princípio da reserva de juiz enquanto princípio geral atinente aos métodos ocultos de investigação criminal. Decorre deste princípio que quando haja necessidade de recorrer a uma medida legalmente prevista que contenda diretamente com direitos fundamentais (cf. artigo 32º, nº4, e ainda 202º, nº2, ambos da Constituição da República Portuguesa), maxime um método oculto de investigação criminal, é, por norma, ao juiz de instrução que cabe aferir do cumprimento dos pressupostos legais para a sua utilização, incluindo, no plano estritamente jurídico, da respetiva proporcionalidade à luz das circunstâncias do caso. Daí que acolhamos o entendimento jurisprudencial vertido no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 17.06.2008, disponível em www.dgsi.pt, onde se expendeu que «As ações encobertas são sujeitas a controlo jurisdicional e têm um regime e tramitação legal específicos que consentem a respetiva abertura até ao termo do inquérito ou da instrução. De todo o modo, afigura-se-nos que caberá ao juiz de julgamento a última palavra sobre a necessidade de utilizar a prova obtida pelo “agente encoberto”, tendo em conta o disposto no art. 4º, nº4 da citada Lei nº 101/2001 e 165º, nº1 e 340º, nº1, do CPP (isto, se por acaso tiver conhecimento da “ação encoberta”, o que não é garantido pelo regime em vigor).» No mesmo sentido se pronuncia Rui Pereira, «O “agente encoberto” na ordem jurídica portuguesa”, in Medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira – Centro de Estudos Judiciários, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, p. 28. Posto isto, como poderá então o juiz de julgamento aferir do cumprimento dos requisitos legais da “ação encoberta”, nomeadamente da sua autorização/validação pela autoridade judicial competente e da proporcionalidade da ação executada às finalidades de prevenção (e repressão) criminal concretamente identificadas? Face aos estritos termos da Lei 101/2001, julgamos que tal atividade jurisdicional há-se ser levada a cabo mediante o acesso, excecional e previamente fundamentado, ao relato a que alude o art. 3º, nº6, daquele diploma legal. O dito relato tem como função descrever circunstâncias e acontecimentos de que o agente tomou conhecimento por via da ação encoberta em que participou e, ademais, possibilitar às autoridades judicias competentes fiscalizar e avaliar a conformidade da ação no seguimento da autorização prestada nos termos do art. 3º, nºs 3 e 4, do RJAE, bem assim, controlar a adequação da ação levada a cabo, permitindo, entre o mais, decidir sobre a sua prorrogação, modificação ou cessação. Os termos em que o relato pode ser junto ao processo estão definidos no art 4º, nº1, do RJAE, onde se preceitua que “a autoridade judiciária só ordenará a junção ao processo do relato a que se refere o nº6 do art. 3º, se a reputar absolutamente indispensável em termos probatórios”. Donde, como observa António Henriques Gaspar, “As ações encobertas e o processo penal: questões sobre a prova e o processo equitativo”, in Medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira – Centro de Estudos Judiciários, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, p. 52, a ação encoberta, além de possibilitar a obtenção imediata de prova e o relato de factos e acontecimentos, permite também aludir a outros meios de prova e pôr em prática outros meios de obtenção de prova. Outrossim, a exigência da indispensabilidade probatória, rectius, para efeitos probatórios, do relato realizado pela Polícia Judiciária, significa, obviamente, que a junção daquela peça processual aos autos só deve ocorrer se no decurso do processo se concluir pela sua necessidade ou exigibilidade em matéria de prova de factos a imputar ao arguido. Como estatuído no art. 4º, nº2 do RJAE, a formulação do juízo de (absoluta) indispensabilidade deverá ser feita pela autoridade judiciária competente até ao termo do inquérito ou da instrução, permanecendo o expediente registado na posse da Polícia Judiciária. O predito normativo legal teve em consideração, em fase de inquérito, a necessidade de fundamentação da dedução de acusação por banda do Ministério Público e, em fase de instrução, a necessidade de recurso ao relato para efeitos de fundamentação da decisão instrutória. Contudo, reitera-se, tal delimitação legal não pode afastar a competência atribuída por lei ao juiz de julgamento para aquilatar sobre a necessidade de utilizar, valorar a prova obtida no decurso de uma ação encoberta, decorrente, por exemplo, do disposto no art. 340º, nº1, do CPP e do art. 4º, nº4, do RJAE. Pertinentemente, Paulo Pinto de Albuquerque In “Comentário do Código de Processo Penal”, UCE, Lisboa, 2009, p. 660. observa que não é mais ajustada a formulação legal contida no art. 4º, nº1, do RJAE, ao fazer depender a junção do relato aos autos da sua indispensabilidade em termos probatórios, porquanto, atento o princípio da imediação da prova e visto o disposto no art. 355º, nº1, do CPP, tal relato, por si só, é desprovido de qualquer valor probatório, pois que não consubstancia um documento que ateste, sem mais, a veracidade da descrição que ali se faça da intervenção do agente infiltrado, designadamente daquilo que ele viu e ouviu, o que, nos casos de absoluta imprescindibilidade do depoimento do agente atenta a sua previsível relevância probatória, só é possível alcançar mediante sua inquirição em audiência de julgamento, sujeita às regras do contraditório e à livre convicção do tribunal no que tange à apreciação da respetiva credibilidade e alcance probatório do depoimento. Assim, o relato poderá apenas servir de complemento ao depoimento prestado em audiência de julgamento e auxiliar na corroboração de outros meios de prova produzidos no processo. Tanto mais que, como se menciona no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.03.2016, proferido no Processo nº 326/12.0JELSB.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt, «(…) não está prevista legalmente a junção aos autos de todo o expediente da ação encoberta nem tal faria sentido desde logo perante as exigências de segurança dos intervenientes na acção encoberta que não se restringe à mera identificação propriamente dita, não se levantando obstáculo intransponível aos direitos de defesa do arguido mormente ao nível do respeito do contraditório, prevista como está a possibilidade de junção ao processo de um relato da acção encoberta (art. 3º, nº6 e 4º, nº1) e, o que é decisivo sobretudo para esse exercício do contraditório, a prestação de depoimento do agente encoberto certamente quem, mercê da sua intervenção direta, em melhor situação estará para esclarecer os contornos da ação encoberta designadamente ao nível da avaliação dessa intervenção quanto a poder ser configurada como a de um agente infiltrado ou de um agente provocador permitindo depois a conclusão sobre se a prova resultante dessa intervenção é ou não prova proibida. Pelo que não se verifica qualquer limitação desproporcionada do direito de defesa dos arguidos e dos limites mínimos do princípio do contraditório (…)» Por conseguinte, transpondo o sobredito para a apreciação do caso sub judice, consideramos que assiste razão ao recorrente Ministério Público quando defende que a lei não prevê a junção aos autos de outro expediente para além do relato a que alude o art. 3º, nº6 do RJAE, pelo que, nessa parte, não se pode manter o despacho recorrido no segmento que determina a solicitação à Diretoria Nacional da Polícia Judiciária da remessa aos autos de todo o processo referente à acção encoberta (despachos de autorização do MP e Juiz de Instrução, relatos e demais documentos). Distintamente, cremos inexistir objeção legal à junção aos autos do relatório a que alude o art. 3º, nº6 do RJAE – ou melhor, à sua prévia apresentação ao Tribunal a quo para avaliação prévia sobre a pertinência de tal junção, como esclarecido pelo Tribunal Coletivo no despacho complementar de 03.11.2022 -, uma vez que nessa parte a decisão recorrida, pela fundamentação expressa, encontra suporte legal. Salvo o devido respeito, não concordamos com o recorrente quando aduz que estando prevista no processo a inquirição como testemunhas – por si desde logo indicadas na douta acusação – dos agentes encobertos que participaram na acção encoberta, o Tribunal recorrido cai em contradição na fundamentação ao considerar absolutamente indispensável a junção aos autos do relato “final”, pois que o que revelará em termos probatórios será o que resultar dos depoimentos que por aqueles venham a ser prestados em audiência de julgamento. É que, como ressuma da fundamentação do despacho recorrido, que merece a nossa concordância, é precisamente por ocorrerem tais depoimentos que se mostra relevante – se o Tribunal a quo assim vier a entender, pois que ainda não decidiu verdadeiramente nesse sentido – o acesso pelo Tribunal e sujeitos processuais ao dito relato, designadamente para que os Meritíssimos Julgadores possam, primeiramente, avaliar da legalidade da ação encoberta realizada, desde logo pela existência ou não da necessária autorização judicial (que a existência do relato implicitamente comprova, acrescendo que do mesmo há-se constar referência a tal autorização) e, ademais, aferir, socorrendo-se complementarmente do teor do relato, da corroboração ou infirmação das declarações dos agentes depoentes que dali derive a par do que resulte da prova produzida nos autos por outros meios de prova. A vingar a tese do recorrente, teríamos de concluir pela absoluta inutilidade da norma legal que permite, excecionalmente, a junção aos autos do relato “final” da Polícia Judiciária - também em fase de julgamento, como supra dissemos - em todos os casos em que não estivesse em questão a prestação de depoimento em audiência pelo agente encoberto visto que não possuindo o relato qualquer relevo probatório intrínseco não se vislumbra como poderia lhe ser atribuída “absoluta indispensabilidade em termos probatórios”. Sem prejuízo de, nesses casos, sobejar a relevância do relato para efeitos de permitir ao Tribunal avaliar, pelo menos, da existência ou não de autorização legal para a realização da ação encoberta, argumento que também foi aduzido pelo Tribunal a quo no despacho recorrido. Destarte, impõe-se a confirmação da decisão recorrida na parte em que determina a solicitação à Diretoria Nacional da Polícia Judiciária da remessa aos autos do relato a que se reporta o art. 3º, nº6 do RJAE, desde que salvaguarda a efetiva identidade dos agentes encobertos que intervieram na acção encoberta. * IV - DISPOSITIVO:Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente o douto recurso interposto pelo Ministério Público e, em conformidade: Revogar o douto despacho recorrido na parte em que que determina a solicitação à Diretoria Nacional da Polícia Judiciária da remessa aos autos de todo o processo referente à acção encoberta (despachos de autorização do MP e Juiz de Instrução, relatos e demais documentos), mantendo-se o mesmo unicamente no que tange à solicitada remessa do relato a que alude o art. 3º, nº6 da Lei 101/2001, de 25.08 – nos termos decididos pelo Tribunal a quo, ou seja, com apresentação em mãos à Exma. Presidente do Tribunal Coletivo e sempre com salvaguardada da efetiva identidade dos agentes que participaram na ação encoberta em causa. Sem tributação. * Guimarães, 20 de março de 2023, Paulo Correia Serafim (Relator) [assinatura eletrónica] Pedro Freitas Pinto (Adjunto) [assinatura eletrónica] Fátima Sanches (Adjunta) [assinatura eletrónica] Acórdão elaborado pelo relator e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos – cfr. art. 94º, nº 2, do CPP) |