Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2052/18.8T8CHV.G1
Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE
Descritores: LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
PRETERIÇÃO
SANAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/30/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. Numa situação em que, por via reconvencional, o réu vem pedir que seja declarado único proprietário do imóvel por o ter adquirido por usucapião, sendo que o autor na acção é apenas um de vários irmãos comproprietários do mesmo imóvel, estamos perante a preterição de litisconsórcio necessário natural, pois uma sentença favorável ao reconvinte não tem condições para atingir o seu efeito útil normal, que é a composição definitiva do litígio entre as partes relativamente ao pedido formulado (art. 33º,1,2 CPC).
II. A ilegitimidade passiva daí decorrente é sanável pela intervenção dos interessados que não estão na acção: não tendo o reconvinte suscitado a intervenção dos restantes interessados, não tendo o Juiz da causa, findos os articulados, interpelado os réus no sentido deles suscitarem a intervenção dos restantes interessados, ao lado da autora (art. 6º,2 e 590º,2,a CPC), resta agora declarar a nulidade que tal omissão constituiu, a fim da mesma ser sanada.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

Sumário: 1. Numa situação em que, por via reconvencional, o réu vem pedir que seja declarado único proprietário do imóvel por o ter adquirido por usucapião, sendo que o autor na acção é apenas um de vários irmãos comproprietários do mesmo imóvel, estamos perante a preterição de litisconsórcio necessário natural, pois uma sentença favorável ao reconvinte não tem condições para atingir o seu efeito útil normal, que é a composição definitiva do litígio entre as partes relativamente ao pedido formulado (art. 33º,1,2 CPC). 2. A ilegitimidade passiva daí decorrente é sanável pela intervenção dos interessados que não estão na acção: não tendo o reconvinte suscitado a intervenção dos restantes interessados, não tendo o Juiz da causa, findos os articulados, interpelado os réus no sentido deles suscitarem a intervenção dos restantes interessados, ao lado da autora (art. 6º,2 e 590º,2,a CPC), resta agora declarar a nulidade que tal omissão constituiu, a fim da mesma ser sanada.

I- Relatório

M. R. instaurou a presente acção declarativa contra A. R. e marido A. C..

Alegou que é filha de J. R. e de M. P., falecidos, respectivamente em 13/08/1977 e 29/02/1988.

Do património dos pais da autora fazia parte o prédio urbano sito em ..., ..., freguesia de ..., concelho de Chaves, composto de casa de habitação de rés do chão e primeiro andar inscrito na matriz sob o art. …º, em nome, actualmente da ré A. R..

Tal prédio foi construído na década de 50 pelos pais da autora, os quais nele habitaram de forma contínua e ininterrupta durante mais de 20 anos, ali pernoitando, fazendo refeições, recebendo familiares e amigos, criando os filhos, entre os quais a autora e a ré, o que sempre fizeram à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e na convicção de não lesarem qualquer direito alheio.
Assim, se outro titulo não tivessem os referidos J. R. e M. P., sempre teriam adquirido o mencionado prédio por usucapião, o que se invoca.
J. R. faleceu a 31/08/1977, sendo instaurado inventário obrigatório que correu termos no Tribunal Judicial de Chaves, no qual o referido prédio foi partilhado do seguinte modo: ½ para a cabeça de casal, a falecida M. P., e 1/18 para cada um dos restantes herdeiros, ou seja, os 9 filhos do casal.
Por morte de M. P. correu termos inventário obrigatório, sendo a metade do prédio aqui em causa adjudicada à referida M. O..
Deste modo, o prédio foi adjudicado, após as partilhas referidas, na proporção de 10/18 para a M. O. e 1/18 para cada um dos restantes irmãos, entre os quais a aqui autora.
A M. O. faleceu a 30/12/2000 sucedendo-lhe como único herdeiro o seu cônjuge A. S..
Através de testamento datado de 12/01/2016 o A. S. legou aos seus cunhados A. R. e marido A. C., a totalidade do referido prédio.
Com base nesse testamento, a ré A. R. e o marido A. C. registaram o prédio, pela totalidade, em seu nome, passando a fazer dele um uso exclusivo e privando os demais consortes, entre os quais a autora, do uso a que têm direito.

Pede que:

a) Sejam os réus condenados a reconhecer a autora como legítima comproprietária, na proporção de 1/18 do prédio urbano identificado na petição inicial;
b) Seja decretada a nulidade parcial do legado referente ao identificado prédio, com excepção dos 10/18 avos que pertenciam ao testador;
c) Sejam os réus condenados a restituir o imóvel ao património comum devendo abster-se de praticar quaisquer actos que impeçam ou restrinjam o uso a que os demais, consortes designadamente a autora, têm direito;
d) Seja determinado o cancelamento de todos os registos realizados com base na referida disposição testamentária e que tenham por base o referido prédio.

Regularmente citados, contestaram os réus alegando desde logo que o pedido de restituição do bem imóvel ao património comum deve ser, de imediato, julgado improcedente por falta de fundamento legal.
Em sede de impugnação alegam que, após a partilha judicial por óbito de M. P., a M. O., que passou a ser proprietária de ½ do imóvel mais 1/18, comprou, juntamente com o seu marido A. S., verbalmente, aos restantes comproprietários os 8/18 que lhes tinham sido adjudicados por óbito de J. R., pelo valor de 30 contos (150 €), ficando, deste modo o imóvel a pertencer-lhes na totalidade.
E desde então, ou seja, finais do ano de 1990 e até à sua morte, que ocorreu em 30/12/2000 e o do cônjuge sobrevivo em 3/02/2016 que os mesmos habitaram o imóvel na sua totalidade, agindo, com conhecimento de todos como únicos e exclusivos proprietários do imóvel em causa.
Logo após a aquisição do imóvel na sua totalidade os mencionados M. O. e marido realizaram nele obras profundas, à vista de todos, tendo até sido contratados para a sua realização dois irmãos da autora, o C. R. e o R. A..
Nunca nenhum deles se opôs à realização das obras.
Acresce que, quando as obras foram realizadas, as portas exteriores do imóvel foram substituídas e em momento algum a M. O. e o marido entregaram as chaves de acesso a qualquer outra pessoa, nem as mesmas lhes foram, por qualquer meio solicitadas, designadamente pela autora.
Assim, ao longo de mais de 26 anos que a M. O. e o marido habitaram exclusivamente o imóvel, durante vários anos, apenas no período das férias uma vez que trabalhavam em Espanha, e mais tarde como residência própria e permanente à vista de todos e sem qualquer oposição ou contestação de quem quer que seja, designadamente da autora, de modo ininterrupto, com a convicção certa e segura de que o mesmo lhes pertencia em propriedade plena, exclusiva e absoluta, aí habitando sem dar nem prestar contas a ninguém, pagando os respectivos impostos com a consciência de não ofenderem direitos de ninguém.
E foi nessa convicção que o referido R. A. o legou na sua totalidade aos réus.
Após a sua morte a posse, com as referidas características continuou nos réus, na qualidade de sucessores, ao abrigo do disposto no art. 1255º, do Cód. Civil, pelo que adquiriram o direito de propriedade através da via da usucapião, que invocam.

Deduzem ainda reconvenção.
Pedem que sejam julgados improcedentes os pedidos formulados pela autora e que seja julgada procedente a reconvenção e, em consequência, serem os réus declarados únicos e exclusivos proprietários do prédio sito em ..., ..., freguesia de ..., concelho de Chaves, inscrito na matriz sob o art. …, e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …, encontrando-se a aquisição pelos réus, registada pela inscrição Ap. 1061 de 2016/02/18.

A autora replicou alegando que, a alegada compra das quotas dos restantes comproprietários, a ter ocorrido, seria nula por vicio formal, o que aqui se invoca. E como possuidores em nome alheio, não podiam adquirir por usucapião sem inverter o título da posse, o que não sucedeu.
Sustenta a improcedência do pedido reconvencional.

Teve lugar a realização de uma audiência prévia no âmbito da qual se admitiu a reconvenção deduzida, se definiu o objecto do litigio, se seleccionaram os temas de prova e se proferiu despacho sobre os meios de prova produzidos e requeridos.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, e foi então proferida sentença que julgou a acção improcedente e, em consequência, absolveu os réus dos pedidos contra si formulados.
E julgou procedente a reconvenção, e em consequência, declarou os autores titulares do direito de propriedade sobre o prédio urbano situado em ..., ..., freguesia de ..., concelho de Chaves inscrito na matriz predial sob o art. … e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º …, e inscrito a favor dos réus/reconvintes pela Ap. 1061 de 2016/02/18.

Inconformada com esta decisão, a autora dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata nos próprios autos e efeito devolutivo (arts. 627º,1, 629º,1, 631º,1, 637º, 638º, 639º, 640º, 644º,1,a, 645º,1, e 647º,1, todos do CPC, findando a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

1. Visa o presente Recurso questionar a apreciação da prova produzida e respectiva acomodação na decisão da matéria de facto, com especial ênfase para o erróneo tratamento da incontornável questão da inversão do título da posse, assim como alertar para a até aqui descurada excepção dilatória da ilegitimidade da autora para a instância reconvencional porquanto, desacompanhada dos demais consortes, herdeiros de J. R. e M. P., não ser a mesma dotada de legitimidade ad causam por preterição do litisconsórcio necessário (tudo conforme se explanará nos pontos 6.1, 6.2 e 6.3 destas alegações).

Da necessidade de eliminar o ponto 10 dos factos provados

2. Na sentença recorrida – ponto 10 dos factos provados - considera-se provado que “Após a partilha efectuada por óbito de M. P., a M. O., verbalmente, comprou, a alguns dos irmãos, a sua quota (1/18) pelo valor de 30 contos (150 €).”
3. Desde logo, a referida compra verbal, a ter ocorrido, seria nula por vício de forma, pelo facto de o respectivo contrato não ter sido celebrado por escritura pública, para o que, aliás, se alertou no artigo 3.º da Réplica.
4. Depois, não se dá por provado um único facto que sustente minimamente a alegada compra.
5. Não se identifica um único irmão (ou sobrinho) a quem a M. O. tenha alegadamente comprado a sua quota: terá sido ao C. R., à S. P., ao J. P., à A. R., ao R. A., à M. R., à F. P., aos sobrinhos, filhos do pré falecido M. R.?
6. Não se especifica como terá pago.
7. Tão pouco em que condições de tempo e lugar terá pago.
8. De onde facilmente se retira que a matéria de facto apurada não sustenta minimamente a conclusão de que a M. O. comprou verbalmente a alguns irmãos.
9. Acrescentando-se que todos os depoimentos das testemunhas arroladas pelos ora Recorridos são depoimentos indirectos, depoimentos de “ouvi dizer”, excepção feita à própria Recorrida que referiu laconicamente ter recebido “30 contos” pela sua parte na casa.
10. Na própria Fundamentação da resposta à matéria de facto, a única referência que se faz à alegada compra resume-se ao seguinte segmento: “a M. O. e o marido” (já falecidos) restauraram a casa e fizeram o armazém. Sempre disseram que a casa era deles tendo pago o valor correspondente aos restantes herdeiros”.
11. Em rigor, os únicos irmãos da falecida M. O. que realmente foram ouvidos em audiência de discussão e julgamento - e alguns deles até têm residência no concelho de Chaves -, foram o C. R. e o R. A., cujos depoimentos a este respeito se transcreveram em 6.1 I do corpo da Alegação e para os quais se remete, nos quais negam peremptoriamente que a irmã M. O. lhes tenha comprado a sua quota-parte da casa.
12. Pelo que, em conclusão, deve eliminar-se o ponto 10 dos factos provados, subsistindo apenas a redacção da alínea e) dos factos dados como não provados.

Da necessidade de eliminar os pontos 11, 12, 19 (no segmento “de forma exclusiva”), 20 e 21 dos factos provados

13. Outrossim, nos ponto 11, 12, 19, 20 e 21 dos factos provados, considera-se provado, respectiva e sequencialmente que “desde finais do ano de 1990, até ao seu falecimento, ocorrido em 30/12/2000 o da M. O., e o do cônjuge sobrevivo A. S. em 03/02/2016, sempre habitaram o imóvel na sua totalidade, agindo como únicos e exclusivos proprietários do prédio em causa” (…) do que os demais irmãos tinham conhecimento” (…) habitaram o imóvel de forma exclusiva (…) o que sempre fizeram à vista e na presença de todos, sem encontrar oposição de quem quer que seja, designadamente da autora, de modo ininterrupto, com a convicção de que o mesmo lhes pertencia na totalidade, de forma plena e exclusiva, ali habitando, sem dar nem prestar contas a ninguém, pagando os respectivos impostos e com a consciência de não lesarem direitos de terceiros (…) E foi nessa convicção que A. S. legou o prédio aos réus”.
14. O douto Tribunal a quo acomodou, pois, na referida factualidade - pontos 11, 12, 19 (no segmento “de forma exclusiva”), 20 e 21 dos factos provados - os actos do corpus e do animus tendentes à aquisição por usucapião.
15. Porém, não poderia jamais olvidar no seu raciocínio, que o uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título (artigo 1406.º n.º 2 do CC.)
16. Pelo que imperioso seria dar como provados factos que sustentassem a inversão do título da posse, enquanto acto frontal de oposição da falecida M. O. e só dela (porque o marido não era sequer comproprietário enquanto a mesma foi viva) aos demais comproprietários, seus irmãos e sobrinhos, algo que lhes levasse ao conhecimento isto: a partir deste momento eu estou a agir em relação à vossa quota-parte da casa não como comproprietária convosco, mas como proprietária exclusiva contra vós (cfr., entre outros, Ac. Do STJ de 27-09-2007 – ver. 3233-06).
17. A oposição teria de traduzir-se em actos positivos (materiais ou jurídicos) inequívocos, reveladores de que a detentora queria, a partir da oposição, actuar como se tivesse sobre a coisa o direito real que, até então, considerava pertencente a outrem e praticados na presença ou com o consentimento daquele a quem os actos se opõem.
18. Ora, à semelhança do que supra se disse a propósito da alegada compra aos demais comproprietários, também nesta situação não se deu por provado um único facto que sustente minimamente a inversão do título.
19. Não se deu por provado – até porque em rigor não foi sequer invocado na contestação/reconvenção - qual o momento exacto, inequívoco, a partir do qual a M. O. e marido terão passado a agir em relação à quota-parte dos demais comproprietários como proprietários exclusivos.
20. Terá sido aquando da alegada compra, dada como provada (mal) em 10 dos factos provados?
21. Terá sido aquando das obras dadas como provadas (mal) em 13 dos factos provados, que a factualidade provada nem sequer localiza temporalmente?
22. De onde se extrai que ainda que eventualmente se admitissem provados actos do corpus, jamais se poderiam acomodar nos factos provados actos do animus tendentes à aquisição por usucapião, quando não se provaram, bem pelo contrário - aqui se remetendo novamente para os depoimentos das testemunhas C. R. e o R. A., cujos depoimentos a este respeito se transcreveram em 6.1 II do corpo da Alegação -, quaisquer factos que sustentassem a imperiosa inversão do título da posse.
23. Do exposto, não pode aceitar-se que seja dado como provado que desde finais do ano de 1990, até ao seu falecimento, ocorrido em 30/12/2000 o da M. O., e o do cônjuge sobrevivo A. S. em 03/02/2016, sempre habitaram o imóvel na sua totalidade, agindo como únicos e exclusivos proprietários do prédio em causa” (11).
24. Consequentemente não pode aceitar-se que os demais irmãos disso tinham conhecimento (12) – até porque, mais do que irmãos, já havia sobrinhos que eram comproprietários, conforme emana do documento 6 junto com a petição, como não pode aceitar-se que a M. O. e marido “habitaram de forma exclusiva” (19) e que sempre o fizeram à vista e na presença de todos, sem encontrar oposição de quem quer que seja, designadamente da autora, de modo ininterrupto, com a convicção de que o mesmo lhes pertencia na totalidade, de forma plena e exclusiva, ali habitando, sem dar nem prestar contas a ninguém, pagando os respectivos impostos e com a consciência de não lesarem direitos de terceiros (20)” e, concomitantemente, não pode aceitar-se que foi com essa convicção que A. S., legou o prédio aos réus (21).
25. Em suma, e repetindo o que já antes foi dito, a matéria de facto dada como provada nos pontos 11, 12, 19 (no segmento “de forma exclusiva), 20 e 21 dos factos provados, acomoda actos do animus tendentes à aquisição por usucapião, quando não se provaram, bem pelo contrário, quaisquer factos que sustentassem a imperiosa inversão do título da posse, pelo que tais pontos da matéria de facto devem ser simplesmente eliminados.

Da necessidade de alterar a matéria de facto dada como provada no ponto 13 e de eliminar o ponto 17 dos factos provados.

26. Ademais, o douto Tribunal a quo, considerou provado em 13 e 17 dos factos provados, respectiva e sequencialmente, que a falecida M. O. e marido A. S. realizaram na casa “obras de vulto que se traduziram na demolição e reconstrução das estruturas que compunham o prédio, colocação de chão, colocação de placa ao nível do telhado, rasgo de janelas, construção de casas de banho, construção de dois anexos, vedação do logradouro e colocação de portões” (…) “foram substituídas as portas exteriores da casa, sem que a M. O. e o marido, alguma vez tenham entregado as chaves da mesma à autora ou a quem quer que seja”.
27. Não pode a Recorrente deixar de manifestar a sua discórdia em relação ao segmento “obras de vulto”, como se – sem desprimor para a casa que à Recorrente, aos Recorridos e demais consortes pertence -, tivesse ficado demonstrado em julgamento que dum palheiro se fez um palácio.
28. A inserção de tal expressão apenas se admite porque o Tribunal não foi ao local, não viu nem analisou as “obras” ou qualquer orçamento das mesmas.
29. O douto Tribunal a quo considerou que as obras realizadas, que elencou/individualizou, foram “de vulto” e foram realizadas pela M. O. e marido unicamente com base nos depoimentos das testemunhas.
30. Sucede que as únicas testemunhas que tiveram intervenção activa nas obras levadas a efeito na casa em causa nestes autos foram as já mencionadas testemunhas C. R., R. A. e ainda J. S. (o que, aliás, emana da segunda parte do ponto 15 dos factos provados e de págs. 11, in fine, da douta sentença).
31. As testemunhas dos Réus não tiveram qualquer intervenção nas obras, não tendo delas qualquer conhecimento directo, apenas lhe aludindo indirectamente.
32. Dos depoimentos testemunhas C. R. e R. A. que se transcreveram em 6.1 III do corpo da Alegação e para os quais se remete, resulta que estas testemunhas tiveram intervenção nas obras, mas que o fizeram desinteressadamente, como comproprietários que eram, na convicção de estarem a requalificar e melhorar o património da família e, porque não, a ajudar a irmã M. O. que, por não ter outra casa, ali habitava quando de férias em Portugal.
33. As testemunhas em causa, conotaram as obras realizadas como alguns “melhoramentos”, “obras de manutenção”, ora um “jeitinho na cozinha”, ora a “construção de um coberto”, ora “um arranjo de um fornozito”.
34. Já as testemunhas dos Recorridos referiram-se todos eles laconicamente a obras de melhoramento, referindo que a “M. O. e o A. S. fizeram obras”, “restauraram a casa e fizeram o armazém”, mas sem concretizar, de forma coerente, assertiva e unívoca, essas obras.
35. Daí que pareça à Recorrente extremamente temerário e injusto, que o Tribunal, sem mais prova, sem qualquer orçamento, sem inspecção ao local, unicamente com depoimentos indirectos, ou com expressões como “alguns melhoramentos”, “dar um jeitozinho na cozinha” ou “fazer o arranjo de um fornozito”, tenha considerado provado in totum o artigo 13.º da contestação/reconvenção!!!
36. Se a prova de concretas obras e benfeitorias se passasse a fazer com base em depoimentos genéricos e ambíguos, descoberta estaria a pólvora para milhares de processos a versar sobre empreitadas/benfeitorias que pululam pelos nossos Tribunais, muitos deles sujeitos a extensa prova documental e pericial, com os inerentes custos associados a esta última.
37. Em simétrico erro incorreu o douto Tribunal a quo ao considerar, em 17 dos factos provados, que “foram substituídas as portas exteriores da casa, sem que a M. O. e o marido, alguma vez tenham entregado as chaves da mesma à autora ou a quem quer que seja”
38. Basta uma análise da Fundamentação da sentença, a págs. 13 da mesma, para ver que a M.ª Juiz ali escreveu que “foi unânime do depoimento das testemunhas, no sentido que a o C. R. ficou na posse das chaves, apenas e só porque de tal ficou incumbido pela irmã e pelo cunhado”.
39. No mesmo sentido o depoimento de R. A., que se transcreveu no ponto 6.1 III do corpo da Alegação e para o qual se remete.
40. Do exposto, resulta difícil de entender como é que nos factos provados, até em contradição com a própria Fundamentação, se dá como provado, primeiro, que foram substituídas as portas exteriores da casa e, segundo, que a M. O. e marido nunca entregaram as chaves da mesma à autora ou a quem quer que seja.
41. Daí que, dentro dos poderes conferidos a este Venerando Tribunal da Relação (artigo 662.º do CPC), deva ser alterada a redacção do ponto 13 dos factos provados, passando o mesmo a ter a seguinte redacção: “O imóvel foi objecto de algumas obras de melhoramento realizadas entre 1990 e 2000”.
42. Caso assim não suceda, o que apenas por extrema cautela se admite, deverá em todo o caso ser expurgada/eliminada a expressão “obras de vulto”, por ser expressão de cariz conclusivo, sem qualquer sustentação, uma vez que nem sequer se apurou o valor das referidas obras ou o incremento patrimonial que trouxeram para a casa.
43. De igual modo, deve ser eliminado o ponto 17 dos factos provados, por contender frontalmente com a prova apreendida nos autos, sendo inclusive contraditório com a Fundamentação.

Do erróneo tratamento da incontornável questão da inversão do título da posse

44. O douto Tribunal a quo partiu do pressuposto, expresso a págs. 17 da sentença recorrida, que “um comproprietário pode tornar-se proprietário exclusivo, extinguindo a situação de compropriedade existente”, acomodando nos pontos 11, 12, 19 (no segmento “de forma exclusiva”), 20 e 21 dos factos provados os actos do corpus e do animus tendentes à aquisição por usucapião.
45. Ora, a matéria de facto dada como provada de 1 a 7 dos factos provados demonstra estarmos inequivocamente perante uma situação de compropriedade, pelo que, todos os comproprietários - tanto a Recorrente, como os Recorridos, como os demais irmãos e sobrinhos de ambos -, tinham toda a legitimidade de usufruir do prédio, nos termos do artigo 1406º, nº 1 do Cód. Civil, sendo certo também que o uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão de título (nº 2 do mesmo artigo).
46. Incumbia aos Réus/Recorridos a prova da verificação da inversão do mesmo título, nos termos do art. 342º, nº 2, do Cód. Civil, o que manifestamente não fizeram.
47. Aliás, lida e relida a sua contestação/reconvenção, constata-se que apesar de invocarem a aquisição por usucapião, não afloram sequer o instituto jurídico da inversão do título da posse.
48. Os Réus/Recorridos não alegaram, muito menos provaram, em que momento terá ocorrido a necessária inversão do título, não cabendo à Autora/Reconvinda e ao Tribunal adivinhá-la, exercício temerário ao qual o douto Tribunal a quo acabou por se prestar, acomodando nos pontos 11, 12, 19 (no segmento “de forma exclusiva”), 20 e 21 dos factos provados os actos do corpus e do animus tendentes à aquisição por usucapião.
49. Porém, os actos apurados nos autos tratam-se de actos que cabem, naturalmente, no exercício de facto do direito de qualquer proprietário, mas cabem também no exercício de facto do direito de qualquer comproprietário.
50. Enquanto comproprietários do prédio de que falamos (artigo 605.º da matriz predial urbana da freguesia de ...), a falecida M. O. e o marido podiam praticar os actos apurados (habitar a casa, comparticipar ou até realizar obras de melhoramento), mas esses actos mais não eram que o corpus, o exercício fáctico, do seu animus de comproprietários.
51. De notar uma outra questão: é que até à morte da M. O., corrida em 30-12-2000, só esta era verdadeiramente comproprietária - pois foi ela, e não o marido A. S., que herdou dos pais, J. R. e M. P. – e, portanto, só ela poderia inverter o título.
52. Aos Recorridos, para ver improceder a acção e proceder a reconvenção, competiria ter alegado e provado a inversão do título de posse, esse acto de frontal oposição da M. O. aos demais comproprietários, seus irmãos e sobrinhos, algo que lhes levasse o conhecimento disto: a partir deste momento eu estou a agir em relação às vossas quotas-partes na casa não como comproprietária convosco, mas como proprietária exclusiva contra vós (cfr. Ac. do STJ de 27.9.2007, rev.3233-06).
53. Ora, vendo a factualidade alegada e provada, não se vislumbra que tal tenha acontecido.
54. Assim sendo, com este fundamento, tomando como adquirida a factualidade dada como provada de 1 a 7 dos factos provados, deveria proceder integralmente a acção e consequentemente improceder a reconvenção.

Da absolvição da instância reconvencional

55. Sem prejuízo do que vai dito sobre a imperiosa improcedência da reconvenção, certo é que autora/reconvinda teria sempre que ser absolvida da instância reconvencional.
56. Isto porque a Autora/Reconvinda, desacompanhada dos demais consortes, herdeiros de J. R. e M. P., não é sequer dotada de legitimidade ad causam por preterição do litisconsórcio necessário.
57. É verdade que o despacho de 09-04-2019 admitiu a reconvenção, todavia aquele despacho não discutiu nem apreciou a legitimidade da autora/reconvinda para a instância reconvencional e, portanto, não a julgou em concreto.
58. Como se limitou a admitir a reconvenção, sem verificar a legitimidade da autora/reconvinda em concreto, a decisão correspondente não adquiriu a força de caso julgado formal e, por isso, nada obstava a que a sentença final viesse a apreciar essa excepção dilatória - do que se fez tábua rasa – como nada impede, que o tribunal ad quem dela venha a conhecer (artigos 595 nº 3, 1ª parte, e 608 nº 1 do CPC), e, caso conclua pela sua falta, absolver o autor da instância reconvencional (artºs 278 nº 1 d), 571 nºs 1 e 2, 576 nºs 1 e 2, 577 e) e 578.º do CPC).
59. A falta de qualquer parte, activa ou passiva, numa hipótese de litisconsórcio necessário determina sempre a ilegitimidade da parte ou partes presentes em juízo (artigo 33 nº 1 do CPC).
60. Os recorridos visam com a reconvenção estes exactos efeitos jurídicos: a declaração de que são únicos e exclusivos proprietários do prédio em causa nos autos.
61. Todavia, como emerge do contraditório desenvolvido pelas partes nos articulados, e dos pontos 1 a 7 dos factos provados, esse prédio encontra(va)-se em regime de compropriedade, sendo comproprietários, para além da Reconvinda e dos Reconvintes, os demais herdeiros de J. R. e M. P., irmãos e sobrinhos dos intervenientes nestes autos.
62. Nestas condições, a sentença proferida no tocante à reconvenção só poderia produzir o seu efeito útil normal com a intervenção de todos os interessados / comproprietários, porque só essa participação comum asseguraria uma decisão uniforme entre eles, dado que a ausência de qualquer desses interessados torna admissível uma nova acção sobre a mesma relação ou com o mesmo objecto (compropriedade / propriedade plena e exclusiva, com a inexorável análise da questão da inversão do título, enquanto oposição clara e frontal do detentor contra cada um dos consortes), susceptível de originar decisões contraditórias entre eles.
63. Deve, pois, entender-se que a lei impõe o litisconsórcio natural entre a autora/reconvinda e todos os demais comproprietários, herdeiros de J. R. e M. P..
64. Sendo isto exacto, segue-se, como corolário que este Venerando Tribunal da Relação não recusará, que efectivamente, a Recorrente não é dotada de legitimidade ad causam para a reconvenção, por preterição do litisconsórcio necessário natural e, por isso, que esta deve ser absolvida da instância correspondente.

Os recorridos contra-alegaram, defendendo a total improcedência do recurso.

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, as questões a decidir são estas:

a) eventual absolvição da instância reconvencional por ilegitimidade da reconvinda
b) ocorreu erro no julgamento da matéria de facto
c) questão da inversão do título da posse

III
A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:

1. A autora e a ré são filhas de J. R. e de M. P., falecidos, respectivamente em 13/08/1977 e 29/02/1988 – cfr. certidão do assento de nascimento de fls. 8, certidão de assento de nascimento de fls. 30 v.º, certidão de óbito de fls. 9, e certidão de óbito de fls. 10.
2. O património dos falecidos integrava o prédio urbano sito em ..., ..., freguesia de ..., concelho de Chaves, composto de casa de habitação de rés do chão e primeiro andar, inscrito na matriz sob o art. … - certidão matricial de fls. 11.
3. O prédio foi construído por J. R. e M. P., que nele habitaram ininterruptamente durante mais de 20 anos, ali pernoitando, fazendo refeições, recebendo familiares e amigos, criando e educado os filhos, o que sempre fizeram á vista de todos, sem oposição de ninguém e na convicção de não lesarem qualquer direito de terceiros.
4. Na sequência da morte de J. R., que ocorreu em 13/08/1977 foi instaurado inventário obrigatório, tendo o prédio referido em 2 sido adjudicado na proporção de ½ para a viúva M. P. e 1/18 para cada filho – cfr. cópia do processo de inventário de fls. 12 e ss.
5. M. P. faleceu a 29/02/1988, sendo que, por testamento datado de 26/11/1984 legou à filha M. O., por conta da “quota disponível”, o ½ da referida casa de que era titular – cfr. cópia do testamento de fls. 35.
6. Na sequência do inventário que correu termos por morte de M. P., o ½ do imóvel, foi adjudicado à M. O. – cfr. cópias do processo de inventário de fls. 18 e ss.
7. M. O. faleceu no dia 30/12/2000, deixando como único herdeiro o seu cônjuge A. S..
8. Por testamento datado de 12/01/2016 A. S. legou aos seus cunhados A. R. e marido A. C., a totalidade do referido prédio – cfr. cópia do testamento de fls. 36.
9. Tendo os réus procedido à inscrição a seu favor no Cód. do Registo Predial, do direito de propriedade sobre o prédio pela Ap. 1061 de 2016/02/18 – cópia da certidão predial de fls. 11.
10. Após a partilha efectuada por óbito de M. P., a M. O., verbalmente, comprou, a alguns dos irmãos, a sua quota (1/18) pelo valor de 30 contos (150 €).
11. Assim, desde finais do ano de 1990, até ao seu falecimento, ocorrido em 30/12/2000 o da M. O., e o do cônjuge sobrevivo A. S. em 03/02/2016, sempre habitaram o imóvel na sua totalidade, agindo como únicos e exclusivos proprietários do prédio em causa.
12. Do que os demais irmãos tinham conhecimento.
13. Ali realizando obras de vulto que se traduziram na demolição e reconstrução das estruturas que compunham o prédio, colocação de chão, colocação de placa ao nível do telhado, rasgo de janelas, construção de casas de banho, construção de dois anexos, vedação do logradouro e colocação de portões.
14. Após a morte de A. S., os réus ainda colocaram uma cobertura em chapa de zinco no armazém anexo à casa.
15. Tais obras foram realizadas à vista de todos tendo auxiliado na mesmas C. R. e R. A. irmãos da autora e da ré.
16. Nunca tendo existido oposição de quem quer que fosse, designadamente da autora.
17. Foram substituídas as portas exteriores da casa, sem que a M. O. e o marido, alguma vez tenham entregue as chaves da mesma à autora ou a quem quer que seja.
18. Nem tal lhe foi alguma vez solicitado, por quem quer que seja, designadamente pela autora.
19. Durante mais de 20 anos a M. O. e o marido habitaram o imóvel de forma exclusiva, durante alguns anos apenas nas férias, uma vez que se encontravam emigrados em França, e, posteriormente, como residência permanente.
20. O que sempre fizeram à vista e na presença de todos, sem encontrar oposição de quem quer que seja, designadamente da autora, de modo ininterrupto, com a convicção de que o mesmo lhes pertencia na totalidade, de forma plena e exclusiva, ali habitando, sem dar nem prestar contas a ninguém, pagando os respectivos impostos e com a consciência de não lesarem direitos de terceiros.
21. E foi com essa convicção que A. S., legou o prédio aos réus.

Com relevância para a decisão nada mais se provou, designadamente que:

a) A autora é comproprietária, na proporção de 1/18 do prédio descrito em 2.
b) Que os réus impedem a autora de usar e fruir o prédio.
c) A M. O. e o marido pagaram a C. R. e a R. A., os trabalhos que realizaram na casa.
d) Na altura das obras também se fechou uma porta que deitava para o prédio provindo de um outro prédio que pertence a C. R..
e) Após a morte da sua mãe, a M. O. comprou a todos os irmãos as suas quotas pelo valor de 150 € (30 contos).

IV
Conhecendo do recurso.

Questão prévia: ilegitimidade da autora para a instância reconvencional.

É habitual começar a apreciação do recurso pela impugnação do julgamento da matéria de facto, pois a apreciação das questões jurídicas depende dos factos que emergiram provados.

Porém, neste caso importa começar pela questão da invocada ilegitimidade da autora para ser demandada na instância reconvencional, pois a ilegitimidade, como pressuposto processual, configura uma excepção dilatória que obsta ao conhecimento da substância da causa (art. 278º CPC). Como o próprio nome indica, pressuposto processual significa que é necessário garantir que as partes têm legitimidade, para que se possa apreciar a substância do que é pedido.

A recorrente alega que ela própria, desacompanhada dos demais consortes, herdeiros de J. R. e M. P., não é dotada de legitimidade ad causam por preterição de litisconsórcio necessário. Mais alega que não é o facto de o Tribunal ter proferido despacho transitado em julgado a admitir a reconvenção, sem verificar a legitimidade da autora/reconvinda em concreto, que impede agora o conhecimento de tal questão, e a absolvição da autora da instância reconvencional (arts. 278º,1,d), 571º,1,2, 576º,1,2, 577º,e e 578º do CPC).

Em síntese, afirma a recorrente que a sentença proferida no tocante à reconvenção só poderia produzir o seu efeito útil normal com a intervenção de todos os interessados / comproprietários, porque só essa participação comum asseguraria uma decisão uniforme entre eles, dado que a ausência de qualquer desses interessados torna admissível uma nova acção sobre a mesma relação ou com o mesmo objecto (compropriedade / propriedade plena e exclusiva, com a inexorável análise da questão da inversão do título, enquanto oposição clara e frontal do detentor contra cada um dos consortes), susceptível de originar decisões contraditórias entre eles.

E por isso, entende a recorrente que a lei impõe o litisconsórcio natural entre a autora/reconvinda e todos os demais comproprietários, herdeiros de J. R. e M. P..

Os recorridos responderam, dizendo que o pedido reconvencional deduzido pela ré tem a mesma finalidade de uma acção de simples apreciação positiva, ou seja, pôr termo a uma situação de incerteza quanto à existência ou inexistência de um direito ou de um facto. E neste tipo de acções, é parte legítima do lado passivo, o pretenso titular do direito que foi negado, in casu, a autora. Donde, concluem, não estamos perante uma situação de litisconsórcio necessário, previsto no artigo 33º do C.P.Civil, porquanto, nem a lei ou contrato o impõem, nem da própria natureza da relação jurídica resulta a sua necessidade para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal. Acrescentam ainda que nem em sede da réplica que deduziu, nem em sede de audiência prévia, a autora arguiu a excepção, sendo esse o momento processual para o fazer.

Pedem, assim, a improcedência do recurso.

Começando por este último argumento. É verdade que na réplica, a autora não arguiu esta excepção, tendo-o vindo fazer apenas agora em sede de recurso. A sentença recorrida também não abordou a questão, não lhe dedicando uma linha.
Poderia pois haver a tentação de dizer que estaríamos perante questão que não faz parte do objecto do processo, sendo uma questão nova. E os recursos não se destinam a conhecer de questões novas, antes sendo a sua natureza a reapreciação de questões já decididas.
Porém, a única excepção a esta regra, como bem se compreende, são as questões de conhecimento oficioso, das quais o Tribunal tem a obrigação de conhecer, mesmo perante o silêncio das partes.
E é o que se passa. A ilegitimidade das partes é questão de conhecimento oficioso (arts. 577º,e e 578º CPC). Como tal, pode e deve ser conhecida agora, previamente às demais questões colocadas pela recorrente.

Vejamos.

A questão em causa consiste em saber se a autora/reconvinda, sozinha, desacompanhada dos restantes comproprietários, é parte legítima para ser demandada numa reconvenção em que o que se pede é que os reconvintes sejam declarados únicos e exclusivos proprietários do prédio urbano, situado em ..., ..., freguesia de …, concelho de Chaves, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo …, e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº …, encontrando-se, a aquisição, pelos réus, registada através da inscrição AP. 1061 de 2016/02/18.

É por demais sabido que o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer (art. 30º,1 CPC). O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha (art. 30º,2 CPC). E, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.

Na actual relação controvertida há uma zona que é pacífica: a autora e a ré são filhas de J. R. e de M. P., já falecidos, e cujo património integrava o prédio urbano sito em ..., ..., freguesia de ..., concelho de Chaves, composto de casa de habitação de rés do chão e primeiro andar, inscrito na matriz sob o art. 606º. Na sequência da morte de J. R., que ocorreu em 13/08/1977 foi instaurado inventário obrigatório, tendo o prédio supra referido sido adjudicado na proporção de ½ para a viúva M. P. e 1/18 para cada filho.
Mais sabemos que na sequência do inventário que correu termos por morte de M. P., o ½ do imóvel foi adjudicado à M. O.. Esta faleceu no dia 30/12/2000, deixando como único herdeiro o seu cônjuge A. S.. Este, por sua vez, por testamento datado de 12/01/2016 legou aos seus cunhados e ora réus A. R. e marido A. C., a totalidade do referido prédio.
Ora, o que daqui se pode retirar é que o imóvel em causa pertence a todos os herdeiros (filhos) de J. R. e de M. P., em regime de compropriedade. A autora intentou esta acção para, entre outras coisas, que os réus fossem “condenados a reconhecê-la” como legítima comproprietária, na proporção de 1/18 avos indivisos, desse prédio.

É quanto basta para podermos concluir que a presente relação material controvertida não abrange apenas a autora e os réus. Porque se trata de uma questão de compropriedade, são interessados na mesma todos os herdeiros de J. R. e de M. P..

A questão da legitimidade em relações materiais controvertidas que respeitam a várias pessoas está regulada nos artigos 32º e 33º CPC.

O primeiro, no seu nº 1, estabelece a regra do litisconsórcio voluntário: se a relação material controvertida respeitar a várias pessoas, a acção respectiva pode ser proposta por todos ou contra todos os interessados; mas, se a lei ou o negócio for omisso, a acção pode também ser proposta por um só ou contra um só dos interessados, devendo o tribunal, nesse caso, conhecer apenas da respectiva quota-parte do interesse ou da responsabilidade, ainda que o pedido abranja a totalidade.

Já o art. 33º regula o chamado litisconsórcio necessário. Dispõe o nº 1 que “se, porém, a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade”.

Acrescenta o nº 2 que “é igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal”.

E o nº 3: “a decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado”.

Interessa-nos agora o conceito de litisconsórcio necessário natural, ou seja, aquele que é imposto pela natureza da relação jurídica litigiosa. Como escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, in CPC anotado, em anotação ao art. 33º, “o litisconsórcio necessário natural deve ser encarado com excepcionalidade, verificando-se apenas quando a sentença que porventura vier a ser proferida fique numa situação instável em face de outra eventual sentença que venha a ser proferida noutra acção com intervenção de outros interessados (STJ 27-0-99, 99A295, STJ 26-6-03, 03B1371 e STJ 22-10-15, 2394/11). Dito de outra forma, o litisconsórcio natural existe quer quando a repartição dos interessados por acções diferentes impeça a composição definitiva entre as partes, quer quando obste a uma solução uniforme entre todos os interessados (Teixeira de Sousa, As partes, o objecto e a prova na acção declarativa, p. 70). Com tal exigência procura-se evitar que a sentença nem sequer entre os sujeitos vinculados consiga produzir o seu efeito útil normal, o qual consiste na composição definitiva do litígio entre as partes relativamente ao pedido formulado, de modo que o caso julgado material possa abranger todos os interessados, evitando tornar-se incompatível (por que contraditória, total ou parcialmente) com a decisão eventualmente obtida noutra acção (Remédio Marques, Acção declarativa à luz do Código revisto, 2ª edição, p. 380)”.

“O efeito útil normal da sentença é declarar o direito de modo definitivo, formando caso julgado material. Se este resultado não puder conseguir-se sem que estejam em juízo todos os interessados, estaremos em presença dum caso de litisconsórcio necessário emanado da própria natureza da relação jurídica, só nestes casos se verificando litisconsórcio necessário passivo decorrente da própria natureza da relação jurídica” (cfr. Alberto dos. Reis, in CPC, anotado, Vol I, pg. 95).

A esta luz, não é difícil de perceber que na situação destes autos, a sentença que julgou procedente o pedido reconvencional não tem condições para atingir o seu efeito útil normal, que é a composição definitiva do litígio entre as partes relativamente ao pedido formulado. Estamos a falar de uma pretensão de uma parte que se arroga proprietária exclusiva de um determinado imóvel, que esteve em situação de compropriedade mas que por força de usucapião passou a ser só dela. E que quer ver isso declarado pelo Tribunal, no confronto com apenas um dos comproprietários, sendo pacífico que existem outros que não estão na acção.

Não existindo o obstáculo do caso julgado, amanhã poderia qualquer um dos outros comproprietários vir demandar os ora reconvintes, pondo em causa o seu direito de propriedade sobre o imóvel, e a acção ter um desfecho oposto ao desta, bastando para o efeito os aqui reconvintes não conseguirem demonstrar a inversão do título da posse (art. 1406º,2 e 1265º CC). Essa sentença iria ter influência na posição jurídica da aqui autora/recorrente. E, daí, não se pode afirmar que a primeira sentença se manteria útil porque pelo menos regulava definitivamente o litígio entre os ora reconvintes e reconvinda, pois uma posterior sentença que viesse a ser proferida poderia alterar esse estado de coisas. Que vale por dizer que nenhuma dessas sentenças atingiria o seu efeito útil normal, pois basta que haja um só comproprietário que não tenha sido vencido e convencido em juízo sobre essa questão, para que ele possa fazer renascer a questão em juízo. Perda de tempo, de recursos, e de prestígio do sistema judicial, que é justamente o que a figura do litisconsórcio necessário visa impedir.

Donde, uma sentença favorável que recaia sobre a pretensão agora formulada por via reconvencional só produz o seu efeito útil normal se estiverem no lado passivo dessa instância todos os herdeiros de J. R. e de M. P..

Pode ver-se, no mesmo sentido, o Acórdão deste TRG de 17 de Outubro de 2019 (Maria Luísa Ramos): “I. Impõe-se a intervenção de todos os interessados, no lado passivo, quando se pretende o reconhecimento por um deles, e relativamente aos demais comproprietários, do direito de compropriedade de imóvel, ocorrendo a situação de litisconsórcio necessário passivo. II. In casu, ocorre a situação de litisconsórcio necessário passivo pois que da própria natureza da relação jurídica resulta a necessidade da intervenção de todas as comproprietárias do imóvel para que a decisão produza o seu efeito útil normal e a possibilidade de o Tribunal regular de forma definitiva o direito, formando caso julgado relativamente à concreta situação dos autos”.

E, ainda deste TRG, o acórdão de 15.12.2016 (Carvalho Guerra): “1. Em acção em que se pretende a afirmação de direitos determinados em relação a imóvel em compropriedade, para que a legitimidade das partes seja assegurada é mister que todos estejam na acção pois esta só produzirá o seu efeito útil normal, só regulará definitivamente as situações concretas das partes relativamente aos pedidos formulados se estiverem na acção todos os comproprietários uma vez que, caso contrário, qualquer decisão não será oponível àqueles que não intervierem na acção. 2. Encontrando-se findos os articulados, face ao disposto no artigo 590º, n.º 2, a) do Código de Processo Civil importará dar cumprimento àquela disposição, proferindo-se despacho destinado a providenciar pelo suprimento da excepção da ilegitimidade das partes, sendo prematuro afirmar sem mais tal ilegitimidade”.

Assim, concluímos que assiste razão à recorrente, devendo ela ser considerada parte ilegítima para ser demandada nesta instância reconvencional, por preterição de litisconsórcio necessário natural (art. 33º,1,2 CPC).

A questão seguinte é saber a consequência dessa ilegitimidade.
A recorrente pretende ser absolvida da instância reconvencional, invocando os arts. 278º,1,d, 571º,1,2, 576º,1 e 2, 577º,e e 578º do CPC).

Porém, essa solução drástica apenas se aplica aos casos em que o vício processual é insuprível, como acontece, por exemplo, com a ilegitimidade singular. Já a ilegitimidade plural é suprível, pela intervenção dos interessados que não estão na acção. Donde, a norma mas próxima da situação é, em primeiro lugar, a do art. 266º,4 CPC: “se o pedido reconvencional envolver outros sujeitos que, de acordo com os critérios gerais aplicáveis à pluralidade de partes, possam associar-se ao reconvinte ou ao reconvindo, pode o réu suscitar a respectiva intervenção”.

No caso, já sabemos que, infelizmente, isso não sucedeu.

Então, deveria ter sido o Juiz da causa, findos os articulados, a interpelar os réus no sentido deles suscitarem a intervenção dos restantes interessados, ao lado da autora (art. 6º,2 e 590º,2,a CPC).

O que também não sucedeu.

Tal omissão constituiu nulidade (art. 195º,1 CPC), pois manifestamente influiu na decisão da causa. Se os restantes interessados tivessem sido chamados à acção, estaríamos agora em condições de decidir a substância do litígio.

Não tendo sido, apenas resta agora declarar a nulidade dessa omissão, e determinar que seja praticado o acto omitido, anulando os termos subsequentes que dele dependam absolutamente (art. 195º,2 CPC).

O conhecimento das outras questões suscitadas no recurso torna-se assim inútil, devido à necessária repetição dos actos praticados, nomeadamente da audiência de julgamento.

V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar parcialmente procedente o recurso, e em consequência, considerando verificada a ilegitimidade da reconvinda por preterição de uma situação de litisconsórcio necessário natural do lado passivo da instância reconvencional, determina a anulação da tramitação subsequente à audiência prévia, momento em que deveria ter sido proferido despacho a convidar os réus a deduzir o adequado incidente de intervenção de terceiros.

Custas a cargo da parte vencida a final (art. 527º,1,2 CPC).
Data: 30/4/2020

Relator (Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto (Alcides Rodrigues)
2º Adjunto (Joaquim Boavida)