Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5310/19.0T8GMR.G1
Relator: PAULO REIS
Descritores: RENDIMENTO DISPONÍVEL
SUSTENTO MINIMAMENTE DIGNO DO DEVEDOR
OBRIGAÇÃO DE ALIMENTOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/30/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Relativamente à determinação do valor considerado razoável para garantir o sustento minimamente digno do devedor, o legislador apenas estabeleceu no artigo 239.º, n.º 3, al. b), i) do CIRE que tal valor não deve exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional, ou seja, estabeleceu um limite máximo obtido através de um critério quantificável e objetivo;
II- Já quanto ao limite mínimo da exclusão, o legislador prevê apenas um conceito indeterminado ou aberto, traduzido naquilo que é razoavelmente necessário ao sustento minimamente condigno do devedor e do seu agregado familiar, critério este a densificar e a ponderar casuisticamente em função do caso concreto, conforme as particularidades da situação do devedor, tal como tem vindo a ser reiteradamente afirmado pela jurisprudência e pela doutrina;
III- O encargo já fixado a título de pensão de alimentos a filhos menores deve integrar-se na previsibilidade do artigo 239.º, n.º 3, al. b), i) do CIRE, atenta a particular natureza da obrigação dos pais de prover ao sustento dos filhos por virtude do poder-dever emergente das responsabilidades parentais em que se encontram investidos, nos termos e com o âmbito que resulta designadamente do disposto no artigo 1878.º, n.º 1 do Código Civil, tratando-se, além do mais, de valor a cujo pagamento o insolvente se encontra adstrito, e que é prevalecente; o que sempre implicaria, no limite, a sua consideração nos termos do artigo 239.º, n.º 3, b), iii) do CIRE;
IV- Não se justifica que à quantia de €500 correspondente ao valor da pensão de alimentos fixada em benefício das filhas menores se acrescente o valor correspondente à retribuição mínima mensal garantida como o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor, quando este tem atualmente como único rendimento a quantia mensal de €600; quanto às restantes despesas, por necessidade, vive em casa de sua mãe, comparticipando com a quantia de cerca de €100, para ajuda no pagamento das despesas correntes e não resulta dos autos que o apelante tenha de fazer face a outras despesas senão aquelas que faz com a sua pessoa, ou que tenha de suportar despesas com habitação, pois vive em casa de sua mãe;
V- Mesmo vivendo o apelante com €600 mensais, e caso não fosse insolvente, sempre o artigo 738.º, n.º4 do CPC admitiria, em caso de execução pelo referido crédito de alimentos, a impenhorabilidade de um valor inferior à remuneração mínima mensal garantida, concretamente, da quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo, atualmente fixada em €211,79.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. Relatório

A. C., apresentou-se à insolvência em 1-10-2019, requerendo a exoneração do passivo restante.

Por sentença datada de 3-10-2019, foi declarada a insolvência do requerente e, além do mais, nomeado o administrador da insolvência.

O Administrador de Insolvência (AI) apresentou relatório nos termos do artigo 155.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), juntando ainda a Lista Provisória de Credores, pronunciando-se, além do mais, em sentido favorável ao deferimento do pedido de exoneração do passivo restante.
Notificados do relatório apresentado pelo AI vieram os credores Credora ... e Caixa ..., SA tomar posição, não se opondo ao deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante nem ao encerramento do processo por insuficiência da massa, mas pronunciando-se no sentido de ser determinada a cessão ao fiduciário do rendimento mensal que exceda o correspondente a 1 salário mínimo nacional como forma de conciliar os interesses do insolvente e dos credores.
Por requerimento apresentado a 14-01-2020 o requerente da insolvência informou que paga uma prestação de alimentos de €250 a cada uma das suas filhas, num total de €500 mensais, como resulta da certidão da CRC de Guimarães, junta com a petição inicial e que, quanto às restantes despesas, por necessidade, vive em casa de sua mãe, comparticipando com a quantia de cerca de €100, para ajuda no pagamento das despesas correntes.
Por despacho de 20-01-2020 foi proferido despacho inicial de admissão do pedido de exoneração do passivo restante, nomeando-se fiduciário o AI já designado, determinando que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido ao Fiduciário, mais decidindo adequado fixar em €660,00 o montante que o insolvente poderá dispor.
Foi declarado o encerramento do processo, nos termos do artigo 230.º, n.º1, al. e), do CIRE, o que transitou em julgado.

Inconformado, veio o insolvente interpor recurso da decisão proferida a 20-01-2020, na parte relativa à exoneração do passivo restante, terminando as respetivas alegações com as seguintes Conclusões (que se transcrevem):

«1-O art. 239 nº3 al. b) i) do CIRE deve ser interpretado no sentido de que a exclusão aí prevista tem como limite mínimo o que seja razoavelmente digno do devedor e do seu agregado familiar e como limite máximo o valor equivalente ao triplo do salário mínimo nacional ( valor máximo este que só pode ser excedido em casos excecionais devidamente fundamentados).
2- Nos termos do disposto no ponto i), da al. b), do nº3. do art. 239º do CIRE, deve ser excluído da cessão ao fiduciário o que razoavelmente seja necessário para “sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar”.
3 - Ponderando as patenteadas condições socioeconómicas e familiares do Insolvente (fundamentalmente que o seu agregado familiar é composto por ele próprio e que paga de pensão de alimentos às suas duas filhas a quantia de €500 mensais);
4 - Fazendo apelo à velha escala da OCDE, também apelidada de “escala de Oxford”, que foi criada em 1982, para determinação da capitação dos rendimentos de um agregado familiar,
5 - O padrão a adotar deve ser aquele que, sem descurar os direitos dos credores, não afete o devedor, remetendo-o aos limites de uma sobrevivência penosa, socialmente indigna, sob pena de a proclamada intenção de o recuperar economicamente constituir uma miragem.
6 - Considerando que o sustento minimamente digno do requerentes é assegurado com o montante de um salário mínimo mensal, e considerando que é de 0,5 o peso dos filhos no aumento das necessidades do agregado familiar, in casu, traduzido na pensão de alimentos de €250 mensais para cada uma das filhas, deverá o rendimento mínimo disponível encontrado para o Requerente ser aumentado de 1 s.m.n, atingindo-se, deste modo, um montante equivalente a dois salários mínimos, como sustento mensal minimamente digno dos Recorrentes.

Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso, em consequência do que deve ser revogada a deliberação recorrida, que deve ser substituída por outra que determine que o sustento minimamente digno do devedor não poderá ser fixado em quantia inferior a dois salários mínimos nacionais, nos termos do disposto no artigo 239º, nº3, alínea b, do CIRE, isto é
O despacho inicial de exoneração do passivo restante, deve ser substituído por outro que, exclua do rendimento disponível que o Insolvente venha a auferir, o equivalente a dois salários mínimos».
Não foi apresentada resposta.
O recurso foi então admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.

II. Delimitação do objeto do recurso

Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso - artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), o objeto do presente recurso circunscreve-se apenas à questão de aferir qual o valor que deve ser excluído do rendimento disponível para efeitos de cessão de rendimentos do insolvente em benefício dos credores, concretamente, se é de alterar o despacho recorrido, na parte em que fixou o rendimento indisponível do apelante no montante de €660,00.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

III. Fundamentação

1. Os factos

1.1. Os factos, as ocorrências e elementos processuais a considerar na decisão deste recurso são os que já constam do relatório enunciado em I. supra, relevando ainda os seguintes factos que foram considerados provados pelo Tribunal a quo no âmbito do despacho proferido em 21-09-2018 que determinou a cessão ao fiduciário do rendimento disponível que o devedor venha a auferir durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência e fixou o valor do rendimento disponível:
1.1.1. O insolvente aufere mensalmente a quantia de € 600,00.
1.1.2. Paga uma prestação de alimentos de €250 a cada uma das suas filhas, num total de €500 mensais.
1.1.3. Quanto às restantes despesas, por necessidade, vive em casa de sua mãe, comparticipando com a quantia de cerca de €100, para ajuda no pagamento das despesas correntes.

2. Apreciação sobre o objeto do recurso

Está em causa na presente apelação aferir qual o valor que deve ser excluído do rendimento disponível para efeitos de cessão de rendimentos do insolvente em benefício dos credores, concretamente, se é de alterar o despacho recorrido, na parte em que fixou o rendimento indisponível do apelante no montante de €660,00.

No caso vertente, estamos perante uma insolvência requerida pelo próprio devedor, na qual foi liminarmente admitido o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo mesmo e fixado que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível, abrangendo todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, se considera cedido ao Fiduciário. Mais se observa que o despacho recorrido fixou em € 660,00 o montante que o insolvente poderá dispor, entendendo ser tal valor o limite que assegura a subsistência com o mínimo de dignidade e considerando os factos antes enunciados em 1.1.

A justificação para o inovador instituto da Exoneração do Passivo Restante, tal como previsto no Título XII, Capítulo I, do CIRE consta desde logo do preâmbulo do diploma que o aprovou, o DL n.º 53/2004, de 18-03, quando destaca o respetivo regime no âmbito do tratamento dispensado às pessoas singulares, procurando com o mesmo conjugar «o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica». Trata-se da consagração do denominado princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa-fé incorridas em situação de insolvência, e que se traduz na atribuição da possibilidade ao devedor pessoa singular de se exonerar «dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste». Porém, o aludido princípio fundamental do ressarcimento dos credores impõe que a efetiva concessão do benefício de exoneração dos créditos sobre a insolvência esteja dependente do cumprimento pelo devedor de diversos deveres que lhe são impostos, supondo, assim, que «após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos - designado período da cessão - ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.

A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica».

No caso em apreciação, mostra-se indiscutível que o ora recorrente ficou adstrito ao cumprimento das obrigações enumeradas no artigo 239.º, nºs. 2 e 4 do CIRE, entre as quais figura a de entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão [artigo 239.º, n.º4, al. c), do CIRE], no âmbito da obrigação já enunciada de, nos cinco anos posteriores ao encerramento do processo, ceder o seu rendimento disponível ao fiduciário designado pelo tribunal, a quem incumbe afetar o montante recebido ao pagamento dos credores, ao pagamento das custas, da remuneração já vencidas, despesas efetuadas, e aos reembolsos devidos ao organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça (artigos 239.º, n.º 2, e 241.º do CIRE).

Ora, o artigo 239.º, n.º 3 do CIRE enuncia expressamente os rendimentos que integram o rendimento disponível, esclarecendo para o efeito que «Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:

a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:

i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor».

Neste domínio, cumpre destacar que o preceito é claro no sentido de determinar que «integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor (…)», delimitando o âmbito dos rendimentos que integram o rendimento disponível por exclusão, ou seja, em resultado da conjugação do corpo do respectivo n.º 3 com as suas alíneas a) e b) e subalíneas i), ii), e iii). Deste modo, “no período da cessão, considera-se cedido ao fiduciário o rendimento disponível que o devedor venha a auferir. E isto apesar de a massa insolvente só abranger, em regra, «o património do devedor à data da declaração de insolvência» e «os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo» (art. 46.º, 1). A cessão abrange todos os rendimentos que o devedor receba, seja a que título for, apenas se excluindo os que são indicados no artigo 239.º, n.º 3 do CIRE”(1).

Caracterizando a figura jurídica da cessão do rendimento disponível, reconhece Luís Manuel Teles de Menezes Leitão (2) que «existe aqui uma efetiva cessão de bens ou de créditos futuros, determinada por decisão judicial, o que implica que sejam aplicados neste caso os arts. 577º e ss. do CC» (3), referindo, em conformidade, que «os rendimentos que o insolvente venha a adquirir transferem-se, no momento da sua aquisição, para o fiduciário, independentemente do consentimento dos devedores desses rendimentos (art. 577º,º 1, CC), transmitindo-se igualmente as garantias e outros acessórios dos créditos que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente (art. 582º, nº1, CC)», para depois concluir: «A cessão do rendimento disponível abrange todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, não se estando, portanto, apenas perante rendimentos em sentido técnico, sendo antes abrangidos quaisquer acréscimos patrimoniais. Assim, se o insolvente receber uma herança durante o período de cessão, o património hereditário que lhe compete deve igualmente considerar-se cedido ao fiduciário. A tal não obsta o art. 2028º, nº 2, dado que a cessão do rendimento disponível constitui uma hipótese legalmente prevista». Deste modo, e tal como referem ainda Luís A. Carvalho Fernandes/ João Labareda (4), em anotação ao artigo 239.º do CIRE, «[s]egundo o n.º 3, constituem rendimento disponível os rendimentos que advenham ao devedor após o despacho inicial, qualquer que seja a sua fonte, que não estejam excluídos nos termos das als. a) e b) desta norma», mais esclarecendo que as exclusões referidas nas alíneas a) e b) do n.º 3 do referido preceito assumem mais de uma modalidade, tendo fundamentos diferentes:

Assim, quanto à al. b), «há que distinguir.

As exclusões previstas nas suas subals. i) e ii) decorrem da chamada função interna do património, enquanto suporte de vida económica do seu titular. Em qualquer delas, embora em planos diferentes, está em causa essa função.
(…)
Quanto à subal. iii) da al. b), prevê-se nela a exclusão da parte dos rendimentos do devedor «razoavelmente necessária» para satisfazer outras despesas que o juiz expressamente ressalve. Esta ressalva depende de requerimento do devedor, podendo constar, desde logo, do despacho inicial ou de outra decisão posterior. Na falta de critério específico, a determinação do valor dos rendimentos excluídos da cessão é deixada ao prudente arbítrio do juiz».

Aqui chegados, facilmente se constata que apenas a exclusão prevista na alínea a), do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE configura uma verdadeira norma de exclusão de rendimentos, «no sentido de que afasta do rendimento disponível certa categoria de rendimentos do devedor» (5, ou seja, atendendo à natureza dos rendimentos ou correspondentes acréscimos patrimoniais.

Daí que a resolução da questão em causa na presente apelação dependa apenas de saber qual o valor que deve ser excluído do rendimento disponível para efeitos de cessão de rendimentos do insolvente em benefício dos credores por ser razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar assim permitindo consubstanciar quais os rendimentos que integram, em concreto, as exclusões previstas no citado artigo 239.º, n.º 3, b), subalínea i), do CIRE.

Passando então à questão da quantificação e fixação do valor considerado razoável para garantir o sustento minimamente digno do devedor, importa constatar que o legislador apenas estabeleceu no artigo 239.º, n.º 3, al. b), i), que tal valor não deve exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional, ou seja, estabeleceu um limite máximo obtido através de um critério quantificável e objetivo. Já relativamente ao limite mínimo da exclusão, o legislador prevê apenas um conceito indeterminado ou aberto, traduzido naquilo que é razoavelmente necessário ao sustento minimamente condigno do devedor e do seu agregado familiar, critério este a densificar e a ponderar casuisticamente em função do caso concreto, conforme as particularidades da situação do devedor, tal como tem vindo a ser reiteradamente afirmado pela jurisprudência e pela doutrina (6). Neste domínio, deve ainda ponderar-se que no instituto da exoneração do passivo restante está em causa determinar o estritamente necessário para o sustento do devedor e do seu agregado familiar, e não necessariamente manter o nível de vida que tinham antes da declaração de insolvência, posto que tal instituto não assenta na desresponsabilização do devedor, antes implica empenho e sacrifício do devedor no sentido de que deve comprimir ao máximo as suas despesas, reduzindo-as ao estritamente necessário, em contrapartida do sacrifício imposto aos credores na satisfação dos seus créditos, por forma a se encontrar um equilíbrio entre dois interesses contrapostos (7). Ora, assentando o traço característico da concessão do benefício da exoneração do passivo restante ao devedor insolvente na conciliação entre o ressarcimento dos credores e a garantia do mínimo necessário ao sustento digno do devedor e do seu agregado familiar, tal implica que não se deva estabelecer logo à partida o valor do salário mínimo nacional como critério-base de referência para a determinação do limite mínimo do que se deve entender por «o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar». Todavia, consabido que o salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente necessária indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador, nada impede que, em determinada situação concreta, o montante equivalente ao do salário mínimo nacional possa corresponder a tal limite (8). Neste enquadramento, «não serão, nesta sede, de aplicar automaticamente as regras de impenhorabilidade de salários e outros rendimentos consagradas no artigo 738º do NCPC – anterior 824º – (impenhorabilidade de 2/3 do vencimento ou outros rendimentos periódicos, ou de um valor inferior à remuneração mínima mensal garantida), embora possam, e devam, servir de referenciais para a fixação do valor a excluir do rendimento disponível (assim como o valor do rendimento mínimo garantido), juntamente com a avaliação dos gastos necessários à subsistência e custo das necessidades primárias do devedor e do seu agregado familiar» (9).

No caso em apreço, os rendimentos auferidos pelo insolvente (apurou-se que o insolvente aufere mensalmente a quantia de €600,00) não atingem o valor da remuneração mínima mensal garantida, vulgarmente conhecida por salário mínimo nacional, com referência à presente data ou à do despacho recorrido, já que tal prestação ascende atualmente a €635,00 (Dec. Lei n.º 167/2019, de 21-11). Apesar disso, verifica-se que no despacho recorrido o Tribunal a quo fixou em €660,00 o montante relativo às exclusões previstas na alínea b), do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE, por entender ser este o limite que assegura a subsistência do insolvente com o mínimo de dignidade. Ora, atendendo ao valor concretamente apurado dos rendimentos do insolvente quando em confronto com o valor do rendimento indisponível fixado pelo Tribunal a quo, resta reconhecer que, neste momento, o devedor não tem qualquer rendimento disponível, estando por isso dispensado da cessão de qualquer rendimento enquanto a presente situação se mantiver. Não obstante o valor dos rendimentos atualmente auferidos pelo insolvente, com a evidente constatação de que se encontra dispensado da cessão de qualquer rendimento no contexto atual, vem ainda assim o apelante defender nas alegações de recurso que o valor do rendimento indisponível deve ser fixado em montante equivalente a dois salários mínimos, como sustento mensal minimamente digno do recorrente, propondo para o efeito o recurso aos critérios enunciados na escala da OCDE, também apelidada de “escala de Oxford”, que foi criada em 1982, para determinação da capitação dos rendimentos de um agregado familiar, tendo como referência o montante de um salário mínimo mensal e considerando que é de 0,5 o peso dos filhos no aumento das necessidades do agregado familiar, in casu traduzido na pensão de alimentos de €250 mensais para cada uma das suas duas filhas, sustentando dever o rendimento mínimo disponível encontrado para o requerente ser aumentado de 1 s.m.n, atingindo-se, deste modo, um montante equivalente a dois salários mínimos. Tal como refere o Ac. TRG de 8-01-2015 (relatora: Manuela Fialho) (10), alguma jurisprudência vem acolhendo o recurso a escalas de equivalência que permitam ter em conta as diferenças nas necessidades de cada membro do agregado familiar, designadamente a denominada escala de Oxford criada em 1982, para determinação da capitação dos rendimentos de um agregado familiar, segundo a qual o índice 1 é atribuído ao 1.º adulto do agregado familiar e o índice 0,7 aos restantes adultos do agregado familiar, enquanto às crianças se atribui sempre o índice 0,5. Porém, tal como também decorre do aresto agora enunciado, a aplicabilidade de tal critério sempre dependeria da constatação de uma situação de convivência em economia comum entre o ora apelante e as suas filhas menores, o que no caso manifestamente não ocorre. Com efeito, resulta dos factos provados que o apelante vive em casa de sua mãe, ainda que efetivamente pague uma prestação de alimentos de €250 a cada uma das suas filhas, num total de €500 mensais. Acresce que, conforme sublinha o Ac. TRG de 17-05-2018 (relator: António Barroca Penha) (11), «[c]om a aplicação da dita “escala de Oxford”, deixaríamos de ter aquele critério, que resulta da própria lei (art. 9º, do C. Civil), genérico e indeterminado, a definir casuisticamente pelo julgador, como defendemos supra, para passarmos a ter, praticamente, uma “fórmula de aplicação matemática”, encontrando-se o rendimento mínimo disponível para o devedor/insolvente de acordo com a aplicação dos índices previstos naquela escala para os elementos que compõem o agregado familiar do insolvente (índice 1 para o 1º adulto insolvente do agregado familiar; 0,7 para os demais adultos do agregado familiar; e 0,5 para cada uma das crianças que compõem o mesmo agregado).

Como é sabido, esta antiga escala da OCDE tem a sua aplicação legal, no nosso País, em casos que nada têm a ver com o nosso, mais concretamente aplica-se para efeitos da determinação da condição de recursos a ter em conta na atribuição e manutenção das prestações do subsistema de proteção familiar e do subsistema de solidariedade, bem como para a atribuição de outros apoios sociais públicos.

Nestes casos, é evidente as vantagens que a aplicação daquela escala traz consigo, pois que permite, de forma igualitária ou equivalente, encontrar critérios de cálculo de capitação dos rendimentos de cada agregado familiar, através dos diversos elementos que o compõe, para efeitos de atribuição e manutenção dos referidos apoios sociais.

No nosso caso, para além de não se nos afigurar ter sido essa a intenção do legislador, também sempre consideraríamos que a aplicação daquela “escala de Oxford” conduziria a situações manifestamente injustas (…)».

Daí que se conclua não serem aplicáveis à situação dos autos os critérios enunciados na escala da OCDE, também apelidada de “escala de Oxford”, que foi criada em 1982, para determinação da capitação dos rendimentos de um agregado familiar.

Sendo assim, a questão que se coloca é a de saber se atento o encargo que o apelante comprovou ter com a prestação de alimentos em benefício das suas filhas menores - pois paga uma prestação de alimentos de €250 a cada uma das suas filhas, num total de €500 mensais (1.1.2.) -, deve tal valor ser abatido ao valor compreendido no seu sustento mínimo, devendo então o valor equivalente ao salário mínimo nacional, tido pelo apelante como indispensável ao seu sustento minimamente digno, ficar integralmente liberto, não se incluindo no mesmo o valor correspondente à referida prestação de alimentos.

Ora, admite-se que a despesa em causa deve integrar-se na previsibilidade do artigo 239.º, n.º 3, al. b), i) do CIRE, atenta a particular natureza da obrigação de alimentos dos pais a filhos menores, decorrente da obrigação dos pais de prover ao sustento dos filhos por virtude do poder-dever emergente das responsabilidades parentais em que se encontram investidos, nos termos e com o âmbito que resulta designadamente do disposto no artigo 1878.º, n.º 1 do Código Civil, tratando-se, além do mais, de valor a cujo pagamento o insolvente se encontra adstrito, e que é prevalecente (12); o que sempre implicaria, no limite, a sua consideração nos termos do artigo 239.º, n.º 3, b), iii) do CIRE. Porém, julgamos que nada justifica, no caso em apreciação, que à quantia de €500 correspondente ao valor da pensão de alimentos fixada em benefício das filhas menores se acrescente o valor correspondente à retribuição mínima mensal garantida como o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor. Na verdade, vivendo o apelante com €600 mensais, e caso não fosse insolvente, sempre o artigo 738.º, n.º4 do CPC admitiria, em caso de execução pelo referido crédito de alimentos, a impenhorabilidade de um valor inferior à remuneração mínima mensal garantida, concretamente, da quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo, atualmente fixada em €211,79 (artigo 18.º, n.º1 da Portaria n.º 28/2020, de 31-01). Note-se, a propósito, que já o Supremo Tribunal de Justiça, ainda que em data anterior à da entrada em vigor do atual CPC, havia entendido que estando em causa a realização coerciva do direito a prestação alimentar no confronto de filho menor, o referencial do rendimento intangível, - como forma de assegurar o limiar de subsistência do obrigado, titular de subsídio de desemprego, operando um balanceamento adequado entre o mínimo de existência constitucionalmente garantido quanto ao progenitor, vinculado a um dever fundamental de prestação de alimentos ao seu filho menor, e o próprio direito à dignidade e sobrevivência do filho - é o rendimento social de inserção – e não o montante do salário mínimo nacional (13).Também o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 306/2005 (14), julgou inconstitucional, por violação do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito, com referência aos n.ºs 1 e 3 do artigo 63.º da Constituição, a norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 189.º da Organização Tutelar de Menores, aprovada pelo Decreto-lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, interpretada no sentido de permitir a dedução, para satisfação de prestação alimentar a filho menor, de uma parcela da pensão social de invalidez do progenitor que prive este do rendimento necessário para satisfazer as suas necessidades essenciais - e considerou que o referencial de isenção de penhorabilidade não devia ser o critério do salário mínimo nacional mas o critério do rendimento social de inserção que no subsistema de solidariedade social se assume como o mínimo dos mínimos compatível com a dignidade da pessoa humana.

Deste modo, considerando que o apelante tem atualmente como único rendimento a quantia mensal de €600,00; paga uma prestação de alimentos de €250 a cada uma das suas filhas, num total de €500 mensais; quanto às restantes despesas, por necessidade, vive em casa de sua mãe, comparticipando com a quantia de cerca de €100, para ajuda no pagamento das despesas correntes; atendendo aos critérios e limites antes aludidos, entendemos adequado que à quantia de €500 correspondente ao valor da pensão de alimentos fixada em benefício das filhas menores se acrescente o valor correspondente à totalidade da pensão social do regime não contributivo, atualmente fixada em €211,79 como o valor razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor. Com efeito, para além do valor de €100 com o qual comparticipa para ajuda no pagamento das despesas correntes, não resulta dos autos que o apelante tenha de fazer face a outras despesas senão aquelas que faz com a sua pessoa, ou que tenha de suportar despesas com habitação, pois vive em casa de sua mãe (1.1.3.), sendo que estas últimas constituem, na normalidade dos casos, despesas substanciais no orçamento de um agregado familiar. Por outro lado, revela-se imperativo o já anteriormente aludido empenho e sacrifício do devedor no sentido de que deve comprimir ao máximo as suas despesas, reduzindo-as ao estritamente necessário, em contrapartida do sacrifício imposto aos credores na satisfação dos seus créditos, por forma a se encontrar um equilíbrio entre dois interesses contrapostos.

Tudo ponderado, decide-se aumentar ligeiramente o valor fixado para o sustento minimamente digno do devedor/insolvente, em cada mês, ascendendo, assim, a € 712 o valor global a fixar nos termos e para os efeitos do citado artigo 239.º, n.º 3, al. b), i) do CIRE, em substituição do valor fixado na sentença recorrida correspondente a €660.

Procede, assim, ainda que parcialmente, a apelação.

Síntese conclusiva:

I - Relativamente à determinação do valor considerado razoável para garantir o sustento minimamente digno do devedor, o legislador apenas estabeleceu no artigo 239.º, n.º 3, al. b), i) do CIRE que tal valor não deve exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional, ou seja, estabeleceu um limite máximo obtido através de um critério quantificável e objetivo;
II - Já quanto ao limite mínimo da exclusão, o legislador prevê apenas um conceito indeterminado ou aberto, traduzido naquilo que é razoavelmente necessário ao sustento minimamente condigno do devedor e do seu agregado familiar, critério este a densificar e a ponderar casuisticamente em função do caso concreto, conforme as particularidades da situação do devedor, tal como tem vindo a ser reiteradamente afirmado pela jurisprudência e pela doutrina;
III - O encargo já fixado a título de pensão de alimentos a filhos menores deve integrar-se na previsibilidade do artigo 239.º, n.º 3, al. b), i) do CIRE, atenta a particular natureza da obrigação dos pais de prover ao sustento dos filhos por virtude do poder-dever emergente das responsabilidades parentais em que se encontram investidos, nos termos e com o âmbito que resulta designadamente do disposto no artigo 1878.º, n.º 1 do Código Civil, tratando-se, além do mais, de valor a cujo pagamento o insolvente se encontra adstrito, e que é prevalecente; o que sempre implicaria, no limite, a sua consideração nos termos do artigo 239.º, n.º 3, b), iii) do CIRE;
IV - Não se justifica que à quantia de €500 correspondente ao valor da pensão de alimentos fixada em benefício das filhas menores se acrescente o valor correspondente à retribuição mínima mensal garantida como o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor, quando este tem atualmente como único rendimento a quantia mensal de €600; quanto às restantes despesas, por necessidade, vive em casa de sua mãe, comparticipando com a quantia de cerca de €100, para ajuda no pagamento das despesas correntes e não resulta dos autos que o apelante tenha de fazer face a outras despesas senão aquelas que faz com a sua pessoa, ou que tenha de suportar despesas com habitação, pois vive em casa de sua mãe;
V - Mesmo vivendo o apelante com €600 mensais, e caso não fosse insolvente, sempre o artigo 738.º, n.º4 do CPC admitiria, em caso de execução pelo referido crédito de alimentos, a impenhorabilidade de um valor inferior à remuneração mínima mensal garantida, concretamente, da quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo, atualmente fixada em €211,79.

IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, fixando-se em € 712 o valor global mensal a fixar nos termos e para os efeitos do citado artigo 239.º, n.º 3, al. b), i) do CIRE, em substituição do valor fixado na decisão recorrida.
Custas pela massa insolvente (artigos 303.º e 304.º do CIRE).
Guimarães, 30 de abril de 2020
(Acórdão assinado digitalmente)

Paulo Reis (relator)
Espinheira Baltar (1.º adjunto)
Luísa Duarte Ramos (2.º adjunto)


1. Cfr. Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Coimbra, Almedina, 2017, p. 600.
2. Cfr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão Direito da Insolvência, 7.ª edição, Coimbra, Almedina, 2017, p. 345.
3. Quanto à natureza da cessão do rendimento disponível, também Luís A. Carvalho Fernandes/ João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição, Lisboa, QUID JURIS, 2015, p. 860 entendem existir uma cessão cuja fonte só pode ser a lei, ainda que na dependência de despacho judicial.
4. Ob. cit., pgs. 858-859.
5. Cfr. Ac. TRC de 28-03-2017 (relator: Emídio Francisco Santos), p. 178/10.5TBNZR.C1, disponível em www.dgsi.pt.
6. Neste sentido, cfr., por todos, os Acs. TRG de 15-05-2012 (relatora: Ana Cristina Duarte), p. 3264/11.0TBGMR-D.G1; TRL de 4-12-2011 (relatora: Ana Resende) p. 1359/09TBAMD.L1-7, acessíveis em www.dgsi.pt.
7. Cfr. Ac. TRG de 15-05-2014 (relatora: Purificação Carvalho) p. 3456/13.8TBGMR-C.G1, disponível em www.dgsi.pt.
8. Cfr. o Ac. TRG de 3-05-2011 (relatora: Rosa Tching) p. 4073/10.0TBGMR-A.G1, disponível em www.dgsi.pt.
9. Cfr. o Ac. TRC de 12-01-2016 (relatora: Maria João Areias) p. 612/15.8T8GRD-C.P1, disponível em www.dgsi.pt.
10. P. 1980/14.4TBGMR-E.G1, disponível em www.dgsi.pt.
11. P. 4074/17.7T8GMR.G1, disponível em www.dgsi.pt.
12. Neste sentido, cfr. o Ac. TRG de 22-02-2011 (relatora: Luísa Duarte Ramos) p. 2115/10.8TBGMR-F.G1, disponível em www.dgsi.pt.
13. cfr. o Ac. do STJ de 06-05-2010 (relator: Lopes do Rego) p. 503-D/1996.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
14. P. n.º238/2004, publicado no DR II SÉRIE n.º 150, de 5-08-2005.