Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3574/19.9T8VCT-C.G1
Relator: MARGARIDA ALMEIDA FERNANDES
Descritores: NULIDADE DE CITAÇÃO
FALTA DE CITAÇÃO
REGULAMENTO (CE) Nº 1393/2007 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO
DE 13 DE NOVEMBRO DE 2007
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – Enquanto a falta de citação consubstancia uma nulidade processual, sanável pela intervenção do citando no processo sem a arguir imediatamente, de conhecimento oficioso e pode ser arguida ou suscitada em qualquer estado do processo enquanto não deva considerar-se sanada, a nulidade da citação é arguível pelo interessado dentro do prazo indicado para a contestação.
II – A citação de pessoa colectiva de direito espanhol ocorrida em Março de 2020 é regulada pelo Regulamento (CE) nº 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de novembro de 2007, nos termos do qual a mesma pode ser efectuada em língua portuguesa e mediante carta registada com aviso de recepção desde que assegurada ao citando, através do modelo uniforme constante do Anexo II e na língua oficial do Estado-Membro do destino, a possibilidade de recusar a recepção do acto nos termos referidos no art. 8º nº 1 desse regulamento.
III – É jurisprudência uniforme do TJUE que o Regulamento (CE) n° 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de novembro de 2007, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional segundo a qual a omissão do formulário a que alude o art. 8º e anexo II desse regulamento gera a nulidade da citação ou da notificação, entendendo aquele tribunal que o regulamento exige que tal omissão seja regularizada através da comunicação ao interessado do mencionado formulário.
IV - Prevalecendo o Direito da União sobre a nossa lei processual civil não é de considerar que a citação com preterição desta formalidade seja nula nos termos do art. 191º nº 1 do C.P.C., antes deve ser regularizada tal omissão com a comunicação ao citando do referido formulário.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

AA instaurou, em 23/10/2019, acção declarativa com processo comum contra BB e E..., S.A. pedindo a condenação solidária dos réus a pagar-lhe a quantia global de € 459.9112,92, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, acrescida de juros vincendos desde a citação até integral pagamento.
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A 2º ré, em 27/11/2019, apresentou contestação em que, além do mais, requereu a intervenção acessória de X..., SE, ... e da V... - SEGUROS, S.A..
O 1º réu apresentou contestação.
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Por despacho de 13/01/2020 foi ordenado o cumprimento do disposto no art. 322º nº 2 do C.P.C..
Por despacho de 07/02/2020 foi deferida a peticionada intervenção acessória e ordenado o cumprimento do art. 323º do C.P.C..
Em 12/02/2020 foram elaborados e enviadas as cartas de citação.
O aviso de recepção para citação de V... - SEGUROS, S.A. mostra-se assinado em 17/02/2020.
O aviso de recepção para citação de X..., SE, ... mostra-se assinado em 13/03/2020 e devolvido ao tribunal em 08/05/2020.
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V... - SEGUROS, S.A. apresentou contestação em 01/04/2020
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Em 15/02/2020 mostra-se junto ofício do Processo nº 2789/20...., em que é autora Companhia de Seguros A..., S.A. e réus E..., S.A. e BB, referente aos mesmos factos.
Em 18/02/2021 Companhia de Seguros A..., S.A. pediu a apensação desses autos.
Por despacho de 12/04/2021 foi determinada a apensação da referida acção.
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Acção apensa – Apenso A
Companhia de Seguros A..., S.A. instaurou, em 22/09/2020, a presente acção declarativa com processo comum contra E..., S.A. e BB pedindo a condenação solidária da 1ª ré e 2º réu no pagamento de € 104.281,79, acrescido de juros de mora, vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento e no pagamento das quantias que vierem a ser suportadas pela autora a liquidar oportunamente.
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A 1º ré, em 11/11/2020, apresentou contestação em que, além do mais, requereu a intervenção acessória de X..., SE, ... e da V... - SEGUROS, S.A..
O 2º réu apresentou contestação.
A autora apresentou resposta.
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Por despacho de 12/04/2022 foi ordenada a remessa destes autos aos acima referidos.
Por despacho de 14/04/2020 foi consignado que estes autos passam a ser tramitados com os autos supra referidos.
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Em 15/05/2021 foi dispensada a audiência prévia, proferido despacho saneador, fixado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova. A 2ª ré recorreu do despacho que julgou improcedente as excepções peremptórias por si invocadas, o que deu origem ao Apenso B.
A ré D..., S.A., não se conformando com a improcedência das excepções peremptórias por si invocadas, veio interpor recurso que deu origem ao Apenso B.
Por despacho de 06/07/2021 foram admitidos os requerimentos probatórios.
Por despacho de 04/01/20222 foi ordenada perícia e foram admitidos os requerimentos probatórios da acção apensa.
Neste despacho foi, além do mais, ordenada a notificação de X..., SE para que venha aos autos confirmar a exactidão, genuinidade e veracidade dos doc. nº ...5, ...6 e ...7 juntos com a contestação apresentada pela Ré D.... Esta notificação mostra-se datada de 02/03/2022.
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Na sequência desta notificação, em 06/04/2022, veio X..., SE requerer um prazo suplementar com termo não inferior a 22/04/2022 para o fazer alegando a complexidade do caso, a não recepção da citação e a não apresentação de contestação. Este prazo foi concedido por despacho da mesma data.
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Em 28/04/2022 X..., SE veio requerer, além do mais, a declaração da nulidade da citação que está dada como feita em 13/03/2020, por não ter sido feita nas condições previstas no artigo 8 do Regulamento (CE) 1393/2007 devendo-lhe ser dada oportunidade e prazo para apresentar contestação e pronunciar-se sobre o regime do “chamamento”.
A ré D..., S.A. pronunciou-se.
Em 03/06/2022 foi proferido despacho que, quanto à nulidade suscitada pela X... SE, ordenou o cumprimento do disposto no art. 201º do C.P.C. (tendo em conta que a D..., S.A. já se pronunciou).
A..., S.A., em 06/06/2022, deu como reproduzida a posição de D..., S.A..
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Em 29/06/2022 foi proferido o seguinte despacho:

“A X... SE veio suscitar a nulidade da sua citação.
Alega a mesma que dita citação, ainda que enviada para a sua sede em ..., não respeitou as condições previstas no Regulamento (CE) 1393/2007, com poder vinculativo próprio, de aplicação direta, e por remissão geral convergente do número 1 do artigo 239º do CPC, também aplicável por via do artigo 246º do CPC à citação de pessoas coletivas: (a) nem foi feita a citação na língua do País de residência da entidade a citar; nem (b) lhe foi oferecida, nas condições previstas sob o Formulário II do Regulamento, a possibilidade de, nos termos expressamente previstos sob o seu artigo 8º, vir a poder, no prazo geral próprio, “recusar a receção do ato”.
A preterição de tais condições – citação na língua do País de residência e nas condições do Regulamento, ou indicação, na língua do País de residência e em formulário próprio - de que poderia vir a opor-se à citação se a mesma, e os documentos que a acompanhassem, não lhe fossem remetidos em língua do País de residência - constitui vício que deve determinar a declaração de nulidade de tal dita citação, invocada no primeiro momento processual em que isso se torna material e processualmente possível à Requerente, porque tal vício afetou a eugenia do Ato e de quaisquer das consequências que do mesmo se pretendesse ou pretenda retirar.
Pretende a Requerente que seja declarada a nulidade da citação que está dada como feita em 13-3-2020, por não ter sido feita nas condições previstas no artigo 8 do Regulamento (CE) 1393/2007, sendo-lhe dada oportunidade e prazo para apresentar Contestação própria nestes Autos, no âmbito que eles agora têm, e se pronunciar sobre o regime do “chamamento”.
O Tribunal entende que é de indeferir a nulidade da citação arguida pela Interveniente, por manifesta extemporaneidade, nos termos do disposto nos artigos 191.º, n.º 2 e 223.º, n.º 3 do CPC, bem como por considerar-se já ter sido sanada, nos termos do disposto no artigo 189.º do CPC (a primeira intervenção processual da Interveniente em 06/04/2022).
Custas do incidente pela X... SE, fixando-se a taxa de justiça em uma UC.
Notifique.
(…)
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Da intervenção acessória provocada requerida pela 2ª Ré na ação apensa (por lapso, ainda não apreciada): Cumpra o disposto no art. 322º nº 2 do CPC.”
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Não se conformando com esta sentença veio a interveniente X... SE dela interpor recurso de apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:

“I. O recurso tem por objeto o Despacho com a referência ...70, assinado em 29-06-2022 e notificado em 4-7-2022;
II. É objetivo do presente recurso que, sem prejuízo do que tenha sido praticado nos Autos e não colida com a legitimidade dos interesses da recorrente, seja declarada a nulidade da citação da recorrente para intervir a título acessório nos Autos, a chamamento da Ré D..., dada como feita em 13- 3-2020 através de ofício com data de 12-2-2020;
III. Tal pretensa citação – como só depois de 6-4-2022 a recorrente alcançou apurar – não respeitou as regras essenciais do regulamento (CE) 1393/2007: não foi feita na íngua do País de residência (...) da entidade a citar e também ofereceu à mesma a possibilidade de a recusar, o que aliás, a fazer-se, teria de ser feito nos termos do formulário II do mencionado Regulamento;
IV. A falta de formalidade essencial faz nula a pretendida citação e deixou sem qualquer valor probatório ou processual o aviso de receção que está dado como assinado em 13-4-2020;
V. A nulidade da citação só poderia ter-se por superada se tivesse ocorrido, entretanto, até ao Requerimento que a recorrente apresentou nestes Autos em 28-3-2022, qualquer intervenção processual substantiva;
VI. Carece de sentido e ofende o princípio da confiança no direito e nos Tribunais, o entendimento, vertido no Despacho “a quo” de que a junção de procuração aos Autos, com pedido de prazo, feita por requerimento de 6-4-2022, possa ser vista e tida como uma “intervenção processual”, nos termos do artigo 189º do CPC;
VII. Tal entendimento é em si impossível, por si mesmo, e ainda mais porque na situação caberia ao próprio Tribunal fazer conformar segundo o direito aplicável os termos da citação, e caberia depois, fazer reparar o erro da citação, a apreciar no Despacho Saneador;
VIII. Não pode valer substantivamente como intervenção processual nos Autos a intervenção adjetiva que ficou formalizada pelo mencionado requerimento da Interveniente com a referência ...96, de 6-4-2022, em que a recorrente apenas pediu, e apenas poderia pedir, que lhe fosse concedido prazo complementar para se pronunciar como lhe fosse legalmente consentido;
IX. Pedir para entrar eletronicamente nos Autos não é intervir nos Autos;
X. Ao conceder o prazo solicitado o Tribunal concedeu prazo para tudo o que à data do pedido pudesse ser dito e alegado;
XI. O que a recorrente disse, alegou e requereu em 28-4-2022, no prazo processual que lhe foi concedido, foi a sua primeira intervenção processual nos Autos posterior à pretensa citação que teve e que tem por nula;
XII. Só depois da junção de procuração, e no prazo que expressamente requereu, poderia a recorrente apreciar o que estava e o que ocorrera nos Autos e sindicar as condições da sua alegada citação para os mesmos;
XIII. A aceitação da notificação de 28-3-2022, para um ato secundário nos Autos, em documento singelo, não sanou nem poderia sanar a nulidade original e insuperada da pretendida citação de março de 2020;
XIV. A recorrente louva-se em jurisprudência de Acórdãos da Relação de Guimarães, de 15-10-2013, da Relação de Évora de 30-5-2019 e de 14-7-2021, e da Relação de Lisboa de 8-7-2021, estando este expressamente referido ao Regulamento 1393/2007 e a citação feita em ...;
XV. A citação da aqui recorrente teria de ser feita em ..., e teria de ser feita nas condições alternativas do artigo 8º do Regulamento 1393/2007, aplicável diretamente em Portugal;
XVI. A situação dos Autos não é obstáculo a que seja proferida a declaração de nulidade da citação e que, sem prejuízo da sua evolução, seja ainda dada oportunidade à recorrente para neles apresentar contestação e de ainda obviar a qualquer efeito processual decorrente da falta de apresentação tempestiva de contestação;
XVII. A parte do Despacho “a quo” que fez ter por processualmente inoportuno ou indevido sob os números 20 a 22 (âmbito do chamamento), 23 (regime de intervenção) e 29 a 34 (sobre as apólices e o certificado), do Requerimento da recorrente de 28-4-2022, não pode precludir o seu direito de, confirmada a nulidade da citação, se virem a pronunciar sobre tais temas essenciais para os seus direitos processuais;
XVIII. O Despacho “a quo” também deixou sem resposta a alegação que, condicionalmente, a recorrente fez no seu mencionado Requerimento de 28-4-2022 sobre a impossibilidade de quaisquer efeitos decorrentes da citação e da falta de contestação poderem abranger o processo apenso, já que a dita apensação ocorreu bem depois da pretensa citação;
XIX. Qualquer efeito legal cominatório decorrente da falta de contestação não poderia nunca incluir nada que não tivesse sido antes processado nos Autos, o que a recorrente alega e reitera à cautela;
XX. O Despacho Saneador não avaliou a questão da irregularidade crucial da citação da aqui recorrente, não avaliou a questão da falta da contestação que tal irregularidade propiciou, nem ponderou a questão do âmbito passivo da apensação dos Autos depois requerida pela A... SA;
XXI. Preterir o direito de a recorrente invocar a nulidade da pretensa citação que está dada nos Autos como feita, ou alegar que tal vício – gerado pelo Tribunal e passível de correção pelo próprio tribunal – foi sanado, ou que foi perdida a oportunidade de o invocar, ofende nuclearmente o âmbito normativo das disposições invocadas do CPC, ofende o direito de defesa e o direito ao contraditório da recorrente, nos termos previstos nos artigos 2º, 3º e 4º do CPC, que são materialmente constitucionais, e ofende também a regra igualmente constitucional da prevalência do direito da União Europeia nas matérias em causa;
Por tudo,
XXII. Deverá ser considerado e aceite o presente recurso, dando sem efeito o douto mas surpreendente Despacho “a quo”, substituindo-o por outro que declare a nulidade da citação dada como feita em 13-3-2020, que dê à recorrente oportunidade e prazo para apresentação de contestação própria, e de nela se poder pronunciar sobre a) o pedido e sobre o âmbito do chamamento, b) sobre a PI nos Autos e ainda c) sobre o que, para a recorrente, possa decorrer da apensação que foi posteriormente requerida e aceite nestes Autos;
XXIII. Em qualquer caso, qualquer efeito cominatório decorrente da falta de contestação, ainda que assente na falta de eugenia da citação, só poderá valer, como expressamente e à cautela ainda se alega, no âmbito dos Autos à data da citação feita com preterição de formalidade essencial, tendo o mesmo de ser circunscrito ao âmbito coevo dos Autos e ao que neles estava a essa data,
XXIV. Qualquer que seja ou devesse ser o regime de intervenção da recorrente nestes Autos, o mesmo comporta necessariamente, por imperativo processual, de natureza constitucional, o direito de contestar e o direito de recorrer no âmbito da sua pretendida intervenção.

Pugna pela tempestividade da arguição de nulidade de citação feita através do requerimento de 28/04/2022, pela nulidade de citação dada como feita em março de 2020 e deve-lhe ser dada a faculdade de apresentar contestação própria e de nela questionar o fundamento do seu chamamento, bem como o respectivo regime e âmbito e ainda de se pronunciar acerca da apensação ordenada.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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Tendo em atenção que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (art. 635º nº 3 e 4 e 639º nº 1 e 3 do C.P.C.), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, observado que seja, se necessário, o disposto no art. 3º nº 3 do C.P.C., a única questão a decidir é saber se a citação efectuada à interveniente X..., S.E. é nula e, na positiva, se deve ser dada à mesma a possibilidade de apresentar contestação.
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II – Fundamentação

Os factos que relevam para a decisão a proferir são os que constam do relatório que antecede.
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Princípio estruturante do processo civil é o princípio do dispositivo, nos termos do qual o processo só se inicia sob o impulso da parte mediante o respectivo pedido e a alegação da causa de pedir que o fundamenta (art. 3º, nº 1, 1ª parte do C.P.C., diploma a que pertencerão os preceitos a citar sem menção de origem).
Outro princípio igualmente estruturante é o do contraditório. Como refere Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Reimp., 1993, Coimbra Ed., p. 379, “O processo civil reveste a forma de um debate ou discussão entre as partes (audiatur et altera pars) (…)”. Antes do Dec.-Lei nº 329-A/95 de 12 de Dezembro este princípio era concebido restritivamente abrangendo apenas o direito de conhecimento da pretensão contra si formulada e o direito de pronúncia prévia à decisão (art. 3º nº 1 segunda parte e nº 2), mas, com aquele diploma foram introduzidos os nº 3 e 4 do art. 3º, que foram aperfeiçoados pelo Dec.-Lei nº 120/96 de 25 de Setembro e mantidos na Revisão do C.P.C. de 2013, que prevêem o direito de ambas as partes intervirem para influenciar a decisão da causa evitando decisões-surpresa. Esta a concepção ampla do referido princípio.
Assim, a citação, acto pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada acção e se chama ao processo para se defender (art. 219º nº 1) é de maior importância. Daí que a mesma seja exaustiva e cuidadosamente regulada pela lei processual.
A falta de citação é uma realidade distinta da nulidade de citação strito sensu.
Na primeira estão abrangidas as situações previstas no art. 188º - a omissão completa do acto de citação, o erro de identidade do citado, o emprego indevido da citação edital, a citação efectuada depois do falecimento do citando ou depois da extinção da pessoa colectiva ou sociedade, a demostração de que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento, por facto que não lhe seja imputável.
A segunda verifica-se quando ocorre inobservância das formalidades prescritas na lei para a realização da citação - art. 191º, nº 1 – e só é atendida se puder prejudicar a defesa do citado – art. 195º, nº 4.
A falta de citação consubstancia uma nulidade processual (art. 187º a)), sanável pela intervenção do citando no processo sem a arguir imediatamente (art. 189º), de conhecimento oficioso (art. 196º) e pode ser arguida ou suscitada em qualquer estado do processo enquanto não deva considerar-se sanada (art. 198º nº 2, 200º).
A nulidade da citação é arguível pelo interessado dentro do prazo indicado para a contestação (art. 196º 2ª parte, 197º, nº 1, 200º, nº 3).
A citação de pessoas colectivas encontra-se prevista no art. 246º que dispõe: Em tudo o que não estiver especialmente regulado na presente subsecção, à citação de pessoas coletivas aplica-se o disposto nas subsecções anteriores, com as necessárias adaptações (nº 1).
Assim, nos termos do art. 239º, Quando o réu resida no estrangeiro, observa-se o que tiver sido estipulado nos tratados e convenções internacionais (nº 1) e Na falta de tratado ou convenção, a citação é feita por via postal, em carta registada com aviso de receção, aplicando-se as determinações do regulamento local dos serviços postais (nº 2).
O primado do Direito da União encontra-se previsto no art. 8º nº 4 da C.R.P. e no art. 288º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).
No que concerne a citação e à notificação dos actos judiciais e extrajudiciais em matérias civil e comercial nos Estados-Membros rege o Regulamento (CE) nº 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de novembro de 2007, que revogou o Regulamento (CE) nº 1348/2000 do Conselho e que foi entretanto revogado pelo art. 36º Regulamento (UE) 2020/1784, de 25 de novembro, diuploma este que entrou em vigor em 01/07/2022.
Nos termos do art. 4º nº 2 a transmissão de actos pode ser feita por qualquer meio adequado: através das entidades designadas pelos Estados-Membros (art. 4º a 11º), por via diplomática ou consular (12º), através de agentes diplomáticos ou funcionários consulares (13º), pelos serviços postais (14º) ou citação ou notificação directa por diligência de oficiais de justiça, funcionários ou outras pessoas competentes do Estado-Membro requerido (15º).
No caso da citação por via postal a mesma deve ser efectuada mediante carta registada com aviso de recepção ou equivalente. Deste diploma não resulta a obrigatoriedade da tradução do acto para a língua oficial do estado requerido, contudo terá que ser assegurada ao citando ou notificando - através do modelo uniforme constante do Anexo II e na língua oficial do Estado-Membro do destino - a possibilidade de recusar a recepção do acto, quer no momento da citação ou notificação, quer devolvendo o acto à entidade requerida no prazo de uma semana, se este não estiver redigido ou não for acompanhado de uma tradução numa das seguintes línguas: a) Uma língua que o destinatário compreenda; ou b) A língua oficial do Estado-Membro requerido ou, existindo várias línguas oficiais nesse Estado-Membro, a língua oficial ou uma das línguas oficiais do local onde deva ser efectuada a citação ou notificação – art. 8º nº 1 a) e b). Este preceito é aplicável à citação por via postal por força do art. 8º nº 4.
Revertendo ao caso em apreço verificamos que a apelante, por requerimento de 06/04/2022, começou por referir que a carta para citação não foi recebida nos serviços da ré pelo que foi surpreendida pela notificação datada de 02/03/2022, mas limitou-se a requerer a prorrogação de prazo para se pronunciar acerca do requerido.
Por requerimento de 28/04/2022 não veio arguir a falta de citação, mas apenas requerer a declaração de nulidade da citação por inobservância do disposto no art. 8º do acima referido Regulamento acrescentando que a mesma não pode ser considerada sanada e é tempestiva, o que reiterou na presente apelação.
Ora, está em causa a citação da apelante nos termos e para os efeitos do art. 323º, a qual foi efectuada em língua portuguesa, mediante carta registada com aviso de recepção para a sede da mesma em ..., sendo que o aviso de recepção se mostra assinado em 13/03/2020.
Esta citação, que é regulada pelo acima referido Regulamento nº 1393/2007, não foi acompanhada do formulário constante do Anexo II, nos termos do qual o citando é advertido da possibilidade de recusar a recepção da mesma no caso de verificação dos pressupostos previstos no art. 8º daquele diploma, o que a torna indiscutivelmente nula por preterição desta formalidade essencial em face do nosso direito processual civil (art. 191º nº 1).
Neste sentido vide Ac. do S.T.J. de 05/03/2013 (Gregório Silva Jesus), da R.L. de 17/11/2009 (Pires Robalo), da R.G. de 15/10/2013 (Maria Rosa Tching), da R.E. de 29/01/2015 (Silva Rato). Esta mesma jurisprudência defende que, nos termos do art. 191º nº 2 primeira parte, essa nulidade tinha que ser arguida no prazo da contestação, sob pena de extemporaneidade.
Contudo, este não é o entendimento uniforme do Tribunal de Justiça da União Europeia que prevalece sobre a nossa lei processual civil.

Vejamos,

O Acórdão deste Tribunal de 16/09/2015, Alpha Bank Cyprus, C-519/13, considerou que, embora o regulamento em causa se destine essencialmente a melhorar a eficácia e a celeridade dos processos judiciais (considerandos (6) a (8)), estes objectivos não podem ser alcançados à custa do enfraquecimento dos direitos de defesa dos destinatários dos actos em causa.
Aí lê-se:

Ponto 61 - “(…) no que se refere às consequências da recusa do destinatário do ato de o rececionar por não ser acompanhado de uma tradução numa língua que ele compreenda ou na língua oficial do EstadoMembro requerido, o Tribunal de Justiça já considerou, a propósito do Regulamento n.° 1348/2000, que é anterior ao Regulamento n.° 1393/2007, que não havia que declarar a nulidade do processo, mas sim permitir, em contrapartida, que o remetente sane a falta do documento requerido, enviando a tradução solicitada (v., neste sentido, acórdão Leffler, C443/03, EU:C:2005:665, n.os 38 e 53).”
Ponto 63 - “(…) solução semelhante deve ser acolhida nas hipóteses em que a entidade requerida não transmitiu ao destinatário do ato o formulário tipo constante do Anexo II deste último regulamento.”
Ponto 66 - “declarar a nulidade do ato a notificar ou do processo de notificação seria incompatível com o objetivo prosseguido pelo Regulamento n.° 1393/2007, que consiste em prever um modo de transmissão direto, rápido e eficaz entre os EstadosMembros dos atos em matéria civil e comercial.”
Ponto 70 – “(…) há que recorrer exclusivamente ao Regulamento n.° 1393/2007 para sanar uma omissão como a que está em causa nos processos principais.”
Ponto 72 – “incumbirá assim à entidade requerida proceder imediatamente à informação aos destinatários do ato do direito que lhes assiste de recusar a receção deste último, transmitindolhes, nos termos do artigo 8.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1393/2007, o formulário tipo constante do Anexo II deste regulamento.”
E proferiu a seguinte decisão:
“O Regulamento (CE) n.° 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de novembro de 2007, relativo à citação e à notificação dos atos judiciais e extrajudiciais em matérias civil e comercial nos EstadosMembros («citação e notificação de atos») e que revoga o Regulamento (CE) n.° 1348/2000 do Conselho, deve ser interpretado no sentido de que:
– a entidade requerida está obrigada, em qualquer circunstância e sem margem de apreciação a este respeito, a informar o destinatário do ato do seu direito de recusar a receção do mesmo, utilizando sistematicamente para o efeito o formulário tipo constante do Anexo II do referido regulamento; e
– a circunstância de a entidade requerida, quando procede à notificação de um ato ao seu destinatário, não ter juntado o formulário tipo constante do Anexo II do Regulamento n.° 1393/2007 não constitui um fundamento de nulidade do processo, mas uma omissão que deve ser regularizada em conformidade com o disposto no referido regulamento.”
No âmbito do processo da Relação de Évora, que deu origem ao acima citado Ac. de 29/01/2015, o aí requerido requereu a reforma do acórdão invocando que o mesmo era contrário ao Direito da União pelo que esse tribunal suspendeu a instância e colocou ao TJUE, entre outras, a questão prejudicial de saber se a aplicação do disposto no art. 191º nº 2 do C.P.C. viola o acima referido regulamento e os princípios que lhe estão subjacentes, o que deu origem ao Acórdão de 02/03/2017, Andrew Marcus Henderson, C-354/15, que decidiu:
“O Regulamento (CE) n.° 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de novembro de 2007 (…) deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional como a que está em causa no processo principal, nos termos da qual, no caso de um ato judicial citado a um demandado residente no território de outro EstadoMembro não ter sido redigido ou acompanhado de uma tradução quer numa língua que esse demandado compreenda quer na língua oficial do EstadoMembro requerido ou, existindo várias línguas oficiais nesse EstadoMembro, na língua oficial ou numa das línguas oficiais do local onde deva ser efetuada a citação ou notificação, a omissão do formulário constante do Anexo II desse regulamento gera a nulidade da referida citação ou da referida notificação, ainda que essa nulidade tenha de ser arguida por esse mesmo demandado num prazo determinado ou desde o início da instância e antes de qualquer defesa quanto ao mérito.
Em contrapartida, este mesmo regulamento exige que tal omissão seja regularizada em conformidade com as disposições nele enunciadas, através da comunicação ao interessado do formulário constante do Anexo II do referido regulamento.”
No mesmo sentido pronunciou-se o acórdão do TJUE de 06/09/2018, Catlin Europe, C-21/17.
E também o acórdão do TJUE de 05/05/2022, ING Luxembourg, C-346/21, este na sequência das questões prejudiciais colocadas pelo Tribunal da Relação do Porto no âmbito do Proc. nº 2165/18.6T8VFR.P1. Neste processo o tribunal, no seu Ac. de 08/06/2022 (Paulo Dias da Silva), acabou por não respeitar totalmente o entendimento do TJUE cfr. foi assinalado na declaração de voto aí proferida, que acompanhamos.
Pelo exposto, não é de considerar que a citação em apreço seja nula, ficando consequentemente prejudicado o conhecimento da tempestividade da sua arguição ou da sanação da mesma com fundamento na intervenção nos autos sem a invocar.
Assim, a apelação procede sendo de determinar que, com vista a regularizar a omissão do formulário constante do Anexo II ao Regulamento (CE) n° 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de novembro de 2007, seja comunicado à interessada apelante o referido formulário.
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As custas do incidente e da apelação são da responsabilidade da ré D..., S.A. e da interveniente A..., S.A. face ao respectivo decaimento (art. 527º, nº 1 e 2 do C.P.C.).
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Sumário – 663º nº 7 do C.P.C.:

I – Enquanto a falta de citação consubstancia uma nulidade processual, sanável pela intervenção do citando no processo sem a arguir imediatamente, de conhecimento oficioso e pode ser arguida ou suscitada em qualquer estado do processo enquanto não deva considerar-se sanada, a nulidade da citação é arguível pelo interessado dentro do prazo indicado para a contestação.
II – A citação de pessoa colectiva de direito espanhol ocorrida em Março de 2020 é regulada pelo Regulamento (CE) nº 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de novembro de 2007, nos termos do qual a mesma pode ser efectuada em língua portuguesa e mediante carta registada com aviso de recepção desde que assegurada ao citando, através do modelo uniforme constante do Anexo II e na língua oficial do Estado-Membro do destino, a possibilidade de recusar a recepção do acto nos termos referidos no art. 8º nº 1 desse regulamento.
III – É jurisprudência uniforme do TJUE que o Regulamento (CE) n° 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de novembro de 2007, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional segundo a qual a omissão do formulário a que alude o art. 8º e anexo II desse regulamento gera a nulidade da citação ou da notificação, entendendo aquele tribunal que o regulamento exige que tal omissão seja regularizada através da comunicação ao interessado do mencionado formulário.
IV - Prevalecendo o Direito da União sobre a nossa lei processual civil não é de considerar que a citação com preterição desta formalidade seja nula nos termos do art. 191º nº 1 do C.P.C., antes deve ser regularizada tal omissão com a comunicação ao citando do referido formulário.
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III – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogam a decisão recorrida e ordenam que, no que concerne à citação da apelante, se cumpra o disposto no art. 8º e Anexo II do Regulamento (CE) n° 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de novembro de 2007.
Custas pela ré D..., S.A. e interveniente A..., S.A.
A presente decisão é elaborada conforme grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa salvaguardando-se, nas transcrições efectuadas, a grafia do texto original.
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Guimarães, 15/12/2022

Relatora: Margarida Almeida Fernandes
Adjuntos: Afonso Cabral de Andrade
Alcides Rodrigues