Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6746/23.8T8BRG-A.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: ARRENDAMENTO
COMPORTAMENTO ILÍCITO DO INQUILINO
PRESTAÇÃO DE FIANÇA
FORMA
CONTEÚDO
OBRIGAÇÃO FUTURA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/13/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – A vontade de prestar fiança deve ser expressamente declarada pela forma exigida para a obrigação principal.
2 – Observada a forma, o conteúdo da fiança é o que resultar da sua declaração constitutiva, ou seja, quais as obrigações que garante e em que termos.
3 – A obrigação garantida pode ser futura, mas dos termos em que os contratantes estabelecem essa fiança tem de resultar a determinação ou determinabilidade dos seus elementos essenciais. O direto de crédito inerente à obrigação futura é indeterminado mas determinável se, em certo momento, não se conhecer o seu conteúdo, mas exista um critério convencionado para esse conhecimento. Será indeterminado e indeterminável quando se não conheça o seu conteúdo e não haja critério convencional para a sua determinação.
4 – Tendo os réus assinado o contrato de arrendamento apenas «na qualidade de terceiros outorgantes e fiadores», sem outra declaração complementar e sem que exista uma cláusula que defina o concreto conteúdo e extensão da fiança e muito menos um autónomo texto de constituição da fiança, deve interpretar-se essa declaração, de harmonia com o disposto no artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil, como tendo pretendido garantir com o seu património a obrigação de pagamento da renda e demais valores monetários expressamente referidos no contrato, bem como as consequências da mora e do incumprimento do contrato quanto a esses concretos e determinados créditos.
5 – Uma indemnização decorrente dum comportamento ilícito do inquilino, traduzido na danificação, negligente ou dolosa, do locado ou no infligir de danos morais ao senhorio tem, no mínimo, de decorrer de cláusula contratual expressa na declaração de fiança. De outro modo, as finalidades da exigência de forma ficarão frustradas e, sobretudo, um elemento definidor do âmbito da fiança e a consequência indemnizatória de um certo comportamento do devedor não são conhecidos ou cognoscíveis pelo fiador.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

1.1. AA Afonso propôs ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB e CC e mulher, DD, formulando os seguintes pedidos:

«a) Condenar os Réus, solidariamente, ao pagamento da indemnização de 20% sobre cada renda por motivo de mora no seu pagamento correspondente aos meses de janeiro e fevereiro, no valor de 140,00 €, de acordo com o preceituado no artigo 1041.º do Código Civil, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, até efetivo e integral pagamento;
b) Condenar os Réus, solidariamente, ao pagamento de 426,94 € respeitante a despesas de condomínio, cuja responsabilidade seria da 1ª Ré, nos termos da cláusula 7.1 do Contrato de Arrendamento, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, até efetivo e integral pagamento;
c) Condenar os Réus, solidariamente, ao pagamento do montante de 13 152,23 € despendido pela Autora para reparação dos danos que a 1ª Ré provocou no locado, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a data de cada fatura, melhor identificadas no artigo 55.º, da Petição Inicial a até efetivo e integral pagamento;
d) Condenar os Réus, solidariamente, ao pagamento do valor de 1 000,00€/ mês desde o dia 30 de junho de 2023 até 01 de novembro de 2023 pelos lucros cessantes consequência direta da impossibilidade de colocação do locado no mercado de arrendamento face aos danos provocados no mesmo, acrescido de juros de mora legais, desde 30 de junho de 2023 até efetivo e integral pagamento.
e) Deverão os Réus ser, solidariamente, condenados ao pagamento de uma indemnização pelos danos não patrimoniais causados aos Autores, num valor nunca inferior a 2 000,00 €, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento.»

Para o efeito, alegou que em 26.01.2017 deu de arrendamento à 1.ª Ré, para habitação e pelo prazo de um ano, uma fração autónoma, mediante o pagamento da renda anual no valor de € 4.200,00, pagável em duodécimos, tendo os 2.ºs Réus assumido nesse contrato de arrendamento a qualidade de fiadores.
Mais alegou a mora no pagamento das rendas e encargos, permanecendo em dívida as quantias de € 140,00 a título de indemnização, dos meses de janeiro e fevereiro de 2023, e de € 426,94 respeitante a despesas de condomínio.
Na parte relevante para a apreciação do recurso, alegou que, em 24.02.2023, a 1.ª Ré interpelou a Autora para lhe comunicar a oposição à renovação do contrato de arrendamento, com efeitos a 30.06.2023, e que por carta datada de 28.06.2023 enviou à Autora as chaves do locado, a qual em 03.07.2023 verificou que o imóvel apresentava os danos que descreve, em cuja reparação despendeu a quantia global de € 13.152,23. Sustenta que os Réus têm a obrigação de indemnizar a Autora, ao abrigo do disposto no artigo 483.º e seguintes do Código Civil e da cláusula 6 e 7 do Contrato de Arrendamento, no valor dos montantes por ela suportados com a reparação e reposição do locado no estado em que a 1.ª Ré o recebeu.
Alegou ainda que esteve impossibilitada de retirar quaisquer rendimentos do seu imóvel desde 01.07.2023, pelo que a Ré deve indemnizá-la a título de lucros cessantes, uma vez que o imóvel seria arrendado por um valor compreendido entre os € 1.000,00 e os € 1.200,00 mensais, bem como pelos danos não patrimoniais sofridos pela Autora, no valor de 2.000,00, indemnizações pelas quais respondem os 2.ºs Réus na qualidade de fiadores.
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A 1.ª Ré e os 2.ºs Réus contestaram separadamente, tendo estes, além do mais, invocado que «é nula, por indeterminabilidade do seu objeto, a fiança de obrigações futuras, quando o fiador se constitua garante de todas as responsabilidades provenientes de qualquer operação em direito consentida, sem menção expressa da sua origem ou natureza e independentemente da qualidade em que o afiançado intervenha.»
A Autora exerceu o contraditório.
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1.2. Dispensada a audiência prévia, no despacho saneador, aquando da apreciação da exceção invocada pelos 2.ºs Réus, concluiu-se do seguinte modo:
«Face ao exposto constatando-se nos termos aduzidos pela inexistência de nulidade da fiança prestada, considera-se contudo e pelos motivos já referidos que os Réus fiadores não podem ser condenados nos pedidos constantes das alíneas c) e e), porquanto tais pedidos não se enquadram nas obrigações futuras emergentes das vicissitudes da respetiva relação contratual. Como tal vãos os réus fiadores absolvidos dos referidos pedidos.»
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1.3. Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação daquela decisão, formulando as seguintes conclusões:
«I. O presente recurso tem como objecto a matéria de Direito da decisão proferida nos presentes autos que absolveu o Segundo e a Terceira Réus dos pedidos em causa c) e e) da petição inicial por considerar que não se enquadram nas obrigações futuras típicas decorrentes da relação contratual locatícia garantida pela fiança.
II. Considera, na verdade, a Recorrente que os danos reclamados resultam diretamente do incumprimento das obrigações contratuais da arrendatária — nomeadamente a conservação e restituição adequada do imóvel —, e por isso devem estar cobertos pela fiança.
III. Ora, a fiança é válida se o vínculo contratual estiver claro e as obrigações garantidas forem determináveis; no caso, os fiadores assinaram expressamente como tal no contrato de arrendamento.
IV. As obrigações do locatário incluem a utilização prudente do imóvel, a sua manutenção e a devolução no estado em que foi recebido (artigos 1038.º, 1043.º e 1044.º do Código Civil).
V. Segundo o artigo 634.º do Código Civil, a fiança cobre também as consequências legais e contratuais da culpa ou mora do devedor.
VI. Aliás, os factos que originaram a obrigação indemnizatória ocorreram antes da devolução do imóvel, ou seja, durante o período coberto pela fiança.
VII. Assim, ao decidir como decidiu – i. e., que os pedidos c) e e) da petição inicial não se enquadram nas obrigações futuras típicas decorrentes da relação contratual locatícia garantida pela fiança, absolvendo os fiadores desses pedidos – o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 634.º, 1038.º, 1043.º, n.º 1, e 1044.º do Código Civil, preceitos estes que deveriam ter sido interpretados no sentido de que as obrigações decorrentes da restituição do locado em más condições inserem-se no período de vigência da fiança.

TERMOS EM QUE
e noutros que VV. Exas. suprirão, concedendo-se a apelação e revogando-se a decisão revidenda, substituindo-se por outra que não absolva o Segundo e a Terceira Réus dos pedidos c) e e) da petição inicial, devendo a acção prosseguir, também quanto a esses pedidos, contra esses Réus, far-se-á JUSTIÇA.»
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Os 2.ºs Réus apresentaram contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
O recurso foi admitido.
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1.4. Questão a decidir

Atentas as conclusões do recurso interposto pelos 2.ºs Réus, as quais delimitam o seu objeto (artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, incumbe decidir se os pedidos identificados na petição inicial pelas letras c) e e) se inserem nas obrigações futuras assumidas no âmbito da fiança.
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II – Fundamentos

2.1. Fundamentação de facto
Relevam para a apreciação do objeto do recurso as incidências processuais mencionadas em I e ainda os seguintes factos:
2.1.1. Em 26.01.2017, mediante contrato escrito, cujo teor consta do documento n.º 1 junto com a petição inicial, a Autora deu de arrendamento à Ré BB a fração autónoma designada pela letra ..., destinada a habitação, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida ..., ..., na União de Freguesias ... (... e ...), inscrito na matriz predial sob o artigo ...9, pelo prazo de um ano, com início em 01.02.2017, renovável por períodos de um ano, salvo denúncia por qualquer das partes, pela renda anual de € 4.200,00, paga em prestações mensais de € 350,00, com vencimento no primeiro dia útil de cada mês anterior àquele a que respeitar, ficando ainda as despesas de condomínio a cargo da inquilina.
2.1.2. Mais estipularam as partes, na cláusula 6) do contrato, que a arrendatária se obriga a repor a fração no estado em que a tomou de arrendamento.
2.1.3. O contrato foi ainda assinado pelos Réus CC e mulher, DD, «na qualidade de terceiros outorgantes e fiadores.»
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2.2. Do objeto do recurso
Diz-nos o n.º 1 do artigo 627.º do Código Civil (CCiv[1]) que o fiador garante a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor. Portanto, a fiança é o vínculo jurídico pelo qual um terceiro (fiador) se obriga pessoalmente perante o credor, garantindo com o seu património a satisfação do direito de crédito sobre o devedor[2], o mesmo é dizer que responde pela obrigação do devedor. É, por isso, qualificada como uma garantia pessoal das obrigações.
O n.º 2 do artigo 627.º define o princípio geral da acessoriedade na relação entre fiança e obrigação garantia, segundo o qual o fiador assume uma obrigação (acessória) de garantia, perante o credor, de que a obrigação (principal) do devedor será cumprida[3]. As vicissitudes da obrigação principal refletem-se na fiança, desde logo por o incumprimento daquela ser um pressuposto do acionamento desta.
A vontade de prestar fiança deve ser expressamente declarada pela forma exigida para a obrigação principal (art. 628.º, n.º 1). Por isso, se a fiança se destinar a garantir um direito de crédito emergente de um contrato de arrendamento, deve revestir a forma deste, in casu, a forma escrita. Observada essa forma, as partes podem fixar livremente, dentro dos limites da lei, o conteúdo positivo ou negativo da prestação, a qual deve corresponder a um interesse do credor digno de proteção legal (artigo 398.º).
Decorre do disposto no artigo 628.º, n.º 2, que a obrigação garantida pode ser futura ou condicional. Porém, dos termos em que os contratantes estabelecem a fiança relativa a obrigação futura, que é a situação relevante no âmbito do presente recurso, tem de resultar a determinação ou determinabilidade dos seus elementos essenciais. No fundo, a declaração constitutiva da fiança, depois de interpretada e eventualmente integrada, tem de conter um modo de referenciar os elementos essenciais da obrigação futura, ainda que sejam meios indiretos de determinação, o que redunda na característica da determinabilidade. A indeterminabilidade do objeto do negócio, de harmonia com o disposto no artigo 280.º, n.º 1, torna o negócio jurídico nulo.
Em resumo, o direto de crédito inerente à obrigação futura, que é o objeto da fiança, é indeterminado mas determinável se, em certo momento, não se conhecer o seu conteúdo, mas exista um critério convencionado para esse conhecimento. Será indeterminado e indeterminável quando se não conheça o seu conteúdo e não haja critério convencional para a sua determinação.
Por outro lado, ainda com relevo para a apreciação do recurso, dispõe o artigo 634.º que «a fiança tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor.»
Em anotação ao aludido preceito, Pires de Lima e Antunes Varela[4] dizem que «o fiador é responsável, portanto, não só pela prestação devida, como pela pena convencional (cfr. art. 810.º), ou pela reparação dos danos, havendo culpa do devedor (cfr. art. 798.º), salvo se outra coisa se tiver convencionado, já que, como resulta do artigo 631.º, n.º 1, a fiança pode ser contraída em menos onerosas condições.»
Por sua vez, Joana Farrajota[5], igualmente em anotação ao referido artigo, salienta que «o fiador responde não só pela prestação principal, mas por quaisquer prestações que venham a surgir – por efeito da lei ou do contrato – na esfera do devedor em resultado do incumprimento – temporário, defeituoso ou definitivo – da obrigação. Donde, se, vencida a obrigação, o devedor não cumprir e forem devidos juros de mora, o fiador responderá igualmente por estes, sem necessidade de qualquer interpelação, da mesma forma que responderá por quaisquer danos sofridos pelo credor em resultado do incumprimento do devedor. Em síntese, dir-se-á que o fiador responde por tudo o que o devedor se encontre obrigado.»

No contrato de arrendamento consta uma cláusula 6), onde se estabelece que a arrendatária se obriga a repor a fração no estado em que a tomou de arrendamento.
Também o n.º 1 do artigo 1043.º dispõe que «na falta de convenção em contrário, o locatário é obrigado a manter e restituir a coisa no estado em que a recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato.»
Mais, o artigo 1044.º estabelece que «o locatário responde pela perda ou deterioração da coisa, não excetuadas no artigo anterior, salvo se resultarem de causa que não lhe seja imputável nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização dela.»
Releva ainda o artigo 798.º, onde se dispõe que «o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor.»
Por conseguinte, a obrigação de indemnizar os prejuízos causados ao credor é o efeito fundamental do não cumprimento imputável ao devedor. Segundo Antunes Varela[6], «este prejuízo compreende tanto o dano emergente como o lucro cessante (art. 564º) – todo o interesse contratual positivo, na hipótese de a obrigação provir de contrato – e é determinado em função dos danos concretamente sofridos pelo credor. (…) O interesse positivo ou de cumprimento é aquele que resultaria para o credor do cumprimento curial do contrato. Abrange, portanto, não só o equivalente da prestação, mas também a cobertura pecuniária (a reparação) dos prejuízos restantes da inexecução, de modo a colocar-se o credor na situação em que estaria, se a obrigação tivesse sido cumprida.»

Dito isto, verifica-se, em primeiro lugar, que não consta do contrato de arrendamento qualquer cláusula relativa à fiança. Apenas se refere que os Réus CC e mulher, DD, intervêm «na qualidade de terceiros outorgantes e fiadores.»
Tendo assinado o contrato na qualidade de fiadores, coloca-se a questão de saber se pretenderam prestar uma fiança e, em caso afirmativo, qual o âmbito da fiança, isto é, que obrigações se obrigaram pessoalmente a garantir.
Há que interpretar o sentido que resulta de os 2.ºs Réus terem declarado que intervêm na qualidade de “fiadores”.
Essa interpretação deve ser feita com base na impressão real do destinatário, pois, nos termos do artigo 236.º, n.º 1, «a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.» Não nos podemos socorrer do eventual conhecimento pela Autora (declaratário) da vontade real dos 2.ºs Réus (declarantes)[7], pois os autos não fornecem qualquer elemento sobre essa situação.
Tratando-se de um negócio formal, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha o mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (art. 238.º, n.º 1).
Tendo declarado a «qualidade de fiadores», tal declaração deve ser interpretada como a vontade de prestar uma fiança por referência àquele concreto contrato.

Mais duvidosa é a questão do âmbito da fiança que prestaram.
Tratando-se de uma declaração emitida pelos 2.ºs Réus num contrato de arrendamento, deve interpretar-se que a fiança está circunscrita a responsabilidades emergentes desse contrato para a 1.ª Ré, aí 2.ª outorgante. A fiança assim prestada garante apenas obrigações contratuais decorrentes da relação locatícia. Pelo próprio facto de a fiança ser prestada no âmbito do contrato de arrendamento, estão afastadas quaisquer outras responsabilidades não decorrentes do contrato celebrado.
Essas obrigações são de qualificar como futuras, pois o arrendamento só teria início daí a alguns dias, em 01.02.2017. Isto se entendermos as obrigações futuras, a que se referem os artigos 628.º, n.º 2, e 654.º, como aquelas que se constituam no futuro, ou seja, que surgem posteriormente à prestação da fiança.
Como já se referiu, a fiança pode garantir obrigações futuras, desde que determináveis.
A questão essencial é esta: será que a declaração de alguém que, sem qualquer outro desenvolvimento declarativo, simplesmente se vinculou como fiador, como sucede com os 2.ºs Réus, que apenas declararam a «qualidade de fiadores», deve ser interpretada no sentido de que pretendeu responsabilizar-se por danos não patrimoniais provocados pelo arrendatário ao senhorio ou por danos causados no imóvel?
A resposta é, em nosso entender, negativa.
Em primeiro lugar, a situação típica ou comum é a da existência de uma cláusula que delimita o concreto âmbito da fiança, designadamente quais as obrigações objeto da garantia. Regra geral, no domínio dos contratos de arrendamento, o fiador declara que a fiança abrange todas as obrigações suscetíveis de expressão pecuniária previstas no contrato. No caso, existe um menos relativamente àquela que é a situação comum.
Em segundo lugar, objetivamente o contrato não contém qualquer referência sobre se a fiança abrange a cláusula 6.ª do contrato de arrendamento.
Em terceiro lugar, como ponto de referência, um cidadão médio, dotado de normal discernimento e diligência, que declara somente que intervém no contrato de arrendamento na qualidade de fiador ou que se vincula como fiador, sem que exista uma cláusula que defina o concreto conteúdo e extensão da fiança e muito menos um autónomo texto de constituição da fiança, naturalmente que pretenderá garantir com o seu património a obrigação de pagamento da renda e demais valores monetários expressamente referidos no contrato, bem como as consequências da mora e do incumprimento do contrato quanto a esses concretos e determinados créditos.
Em quarto lugar, não é à partida expectável que um inquilino normal, minimamente diligente, destrua ou provoque danos de monta num imóvel arrendado, muitos menos que, através da sua conduta, produza danos não patrimoniais ao senhorio, designadamente sofrimento, «profunda tristeza», «instabilidade emocional e psicológica», «impotência, angústia e desespero», etc.
Em quinto lugar, tratando-se de danos imprevisíveis no momento em que se presta a fiança, em regra ninguém pretenderá, aquando da prestação da garantia pessoal, responsabilizar-se pelas consequências de factos futuros aleatórios, sem limite quanto à responsabilização que pode atingir e cuja dimensão quantitativa e valorativa desconhece, e que não consegue então determinar. Um fiador, em regra, não pretenderá operar como uma seguradora. E com isto não estamos a pretender dizer que a fiança não pode destinar-se a garantir uma obrigação resultante dum facto ilícito ou do risco, mas sim que essa não é a função corrente da fiança, matéria relevante para determinar o sentido e âmbito da declaração.
Em sexto lugar, no caso concreto dos autos, os valores indemnizatórios decorrentes desses danos não são diretamente quantificáveis em face do clausulado contratual e do regime legal do arrendamento, sobretudo no que respeita aos danos não patrimoniais.
Em sétimo lugar, no momento da constituição da fiança, quando em 26.01.2017 os 2.ºs Réus declararam assumir «a qualidade de fiadores», não sabiam, nem podiam antever, em face da não especificação do concreto objeto da fiança, que poderia estar em causa a sua responsabilização por danos patrimoniais decorrentes da danificação do locado no valor de € 13.152,23 («pagamento do montante de 13 152,23 € despendido pela Autora para reparação dos danos que a 1ª Ré provocou no locado, acrescida de juros de mora») e por danos não patrimoniais causados pela 1.ª Ré à Autora, sua senhoria, «num valor nunca inferior a 2 000,00 €».
Dada a ausência de qualquer cláusula sobre a fiança, não constava do contrato o estabelecimento de qualquer critério ou parâmetro objetivo suscetível de definir o montante do crédito garantido quanto à cláusula 6.ª, ou sequer o limite quantitativo da responsabilidade assumida pelos fiadores, 2.ºs Réus, quanto a tais eventuais danos.
Como bem salienta Manuel Januário da Costa Gomes[8] «a determinação do crédito garantido é concreta e não abstracta; isto é, só releva o crédito específico determinado e na medida do determinado, não podendo ser opostas - e impostas - ao fiador evoluções no direito de crédito que não constituam desenvolvimento natural do crédito, tal qual determinado».
Em oitavo lugar, o crédito pelos aludidos danos não pode ser qualificado como uma indemnização conexa com a prestação principal, que é a obrigação de pagamento de renda; é a garantia do pagamento da renda e de todas as prestações conexas com esta que um homem médio, colocado na posição do fiador, tenderá a considerar que se vinculou a garantir com o seu património quando declara simplesmente que é fiador num contrato de arrendamento, sem qualquer outra declaração complementar ou concretização. Uma indemnização decorrente de um comportamento ilícito do inquilino, traduzido na danificação, negligente ou dolosa, do locado ou no infligir de danos morais ao senhorio tem, no mínimo, de decorrer de cláusula contratual expressa na declaração de fiança, em conformidade com o disposto no artigo 628.º, n.º 1. De outro modo as finalidades da exigência de forma ficarão frustradas e, sobretudo, um elemento definidor do âmbito da fiança e a consequência indemnizatória de um certo comportamento do devedor não são conhecidos ou cognoscíveis pelo fiador. No fundo, se não for assim, estaríamos a considerar como admissível que o fiador, ao garantir ao credor a satisfação do direito de crédito, não saiba, nem tenha possibilidade de saber, que parcelas integrarão esse crédito por si garantido por obrigações futuras.
Menezes Cordeiro refere a este propósito que «Temos, pois, de exigir que, havendo consequências contratuais da “mora ou culpa” do devedor, as mesmas constem de expressa declaração de fiança (628.º/1): ou as finalidades da exigência de forma ficarão frustradas»[9].
Neste enquadramento, o sentido normal da declaração emitida pelos 2.ºs Réus não pode ser interpretado, por um declaratário normal, como pretendendo vincular-se a garantir um crédito por futuros danos causados na fração autónoma arrendada e por danos não patrimoniais à Autora.
Assim sendo, acompanhamos a sentença na parte em que concluiu os Réus fiadores não podem ser condenados nos pedidos constantes das alíneas c) e e), razão pela qual tinham de ser absolvidos dos referidos pedidos.
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2.3. Sumário
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III – Decisão

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, julga-se improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a suportar pela Recorrente.
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Guimarães, 13.11.2025
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida
Maria Luísa Duarte Ramos
José Carlos Dias Cravo


[1] São do Código Civil todas as normas que se citarem sem indicação da respetiva fonte.
[2] Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. II, Almedina, 5.ª edição, pág. 475.
[3] Joana Farrajota, Código Civil Anotado, vol. I, Ana Prata (Coord.), pág. 811.
[4] Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª edição, Coimbra Editora, pág. 651.
[5] Ob. cit., pág. 818.
[6] Ob. cit., pág. 92.
[7] Art. 236º, nº 2.
[8] Assunção fidejussória de dívida: sobre o sentido e o âmbito da vinculação como fiador, Coleção Teses, Almedina, 2000, págs. 601 e 602.
[9] Tratado de Direito Civil, X – Direito das Obrigações, 2015, págs. 462 e 463.