Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
533/19.5T8BCL.G1
Relator: ANTERO VEIGA
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
TRANSMISSÃO DE POSIÇÃO DE EMPREGADOR
CONSTITUIÇÃO DE NOVA SOCIEDADE
EX TRABALHADORA SÓCIA GERENTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
Ocorrendo a transmissão de uma unidade económica para empresa constituída, em partes iguais, pelo anterior titular dessa unidade e por uma sua trabalhadora, que consigo passa a viver maritalmente, e que no ato de constituição da firma é nomeada gerente, funções que passa a exercer, gerindo a empresa sem interferência do outro sócio, configura-se um corte no que respeita ao contrato de trabalho da autora, na passagem da atividade daquela “unidade económica” para a sociedade, já que quando ocorre a transmissão, a autora é já sócia gerente da transmissário, nunca nela ingressando como trabalhadora.
Em tais circunstancias não é de considerar ter ocorrido transmissão da posição de empregador para aquela firma, em relação ao contrato de trabalho de tal trabalhadora.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social da Relação de Guimarães

AA, residente na Rua ..., ..., ..., intentou a presente declarativa comum, emergente de contrato de trabalho, contra EMP01..., Lda, com sede na Rua ..., ..., ..., pedindo a condenação da ré a pagar as quantias que descrimina.
Para tal alega que, tendo celebrado com a ré contrato de trabalho, este cessou por sua iniciativa, alegando justa causa, não tendo liquidado os créditos a que tinha direito.
A ré contestou, pronunciando-se pela improcedência do pedido, alegando nunca ter sido celebrado com a autora qualquer contrato de trabalho.
Foi realizada a audiência de julgamento, sendo proferida decisão absolvendo a ré do pedido.

Inconformada a autora interpôs recurso apresentando em síntese as seguintes conclusões:
- Impugna a decisão relativa à matéria de facto no que respeita aos pontos 14 e 15 da factualidade, e 3 dos factos não provados, com base no depoimento de parte do legal representante da ré, referindo a posição de subalternidade da autora e não ser a remuneração consentânea com as funções de gerente.
- O tribunal deveria ter-se pronunciado sobre a existência de um contrato de trabalho entre a A. e BB, e sobre a transmissão da empresa para a ré.
- A decisão é nula nos termos do artigo 615º, 1 do CPC.
- A qualidade de socio gerente de uma sociedade não impede o reconhecimento da qualidade de trabalhador.
Neste tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência.
Colhidos os vistos dos Ex.mos Srs. Adjuntos há que conhecer do recurso.
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Factualidade:

1. Autora e BB viveram como marido e mulher;
2. O que já se verificava em março de 2013;
3. Sendo que, em março de 2018, a autora deixou a habitação que constituía a casa de morada de família, ocorrendo a separação daqueles;
4. A sociedade EMP01..., Lda, foi constituída pela A. e BB, em 26 de março de 2013, com o capital social de 15.000,00€, ficando cada um destes sócios titular de metade deste capital social, na proporção de 7.500,00€ para cada, pertencendo a cada um uma quota com igual valor nominal;
5. Tendo sido inicialmente nomeados gerentes da R. a A. e o sócio BB, conforme o artigo 10.º do contrato de sociedade;
6. Tendo ficado também estabelecido no “Artigo 8.º Gerência” do contrato de sociedade, desde o início da constituição da R. e até hoje, que “A administração e representação da sociedade são exercidas por gerentes eleitos em assembleia geral.”, que “A sociedade obriga-se com a intervenção de um gerente” e que “A assembleia geral deliberará se a gerência é remunerada;
7. Em 05 de Abril de 2013, pelas dez horas, na sede da R., reuniu a Assembleia-Geral dos sócios da R., com a presença dos seus únicos sócios e gerentes, a A. e BB, com o “Ponto único: Deliberar quanto à remuneração da sócia-gerente AA”;
8. Na referida Assembleia-Geral “foi deliberado que a sócia-gerente AA passe a ser remunerada com o valor mensal ilíquido de 485,00 euros (quatrocentos e oitenta e cinco euros), com efeitos a partir do dia cinco de abril de dois mil e treze.”;
9. Tal facto este que foi comunicado à Segurança Social
10. O BB exerce, a tempo inteiro, desde ../../2011, conjuntamente com o outro seu sócio ..., as funções de gerente da sociedade EMP02... Lda, contribuinte ...13, com sede na Rua ..., ..., ..., concelho ..., constituída em agosto de 2011;
11. Sendo remunerado por essas funções naquela sociedade;
12. Em 06 de Julho de 2018 a autora comunicou à R., por carta registada com AR, a “Renúncia à gerência”;
13. Renúncia essa que foi levada a registo comercial pela própria A., na Conservatória do Registo Comercial, pela Ap. ... de 24 de julho de 2018
14. Desde a data da constituição da ré, e até ../../2018, era a autora quem efetuava as encomendas de mercadorias a fornecedores da R., fazia os pagamentos aos fornecedores e trabalhadores da R., aceitava e organizava as encomendas dos clientes da R., acompanhava a execução e entrega dessas mesmas encomendas, e dava ordens aos funcionários da R. para executarem, essas encomendas;
15. Trabalhadores estes que sempre exerceram o seu trabalho sob as ordens, direção e fiscalização da A;
16. Em 5 de Julho de 2018 a autora remeteu carta registada à ré, comunicando a resolução do contrato de trabalho, invocando justa causa.
Aditado (resulta de documento):
Consta da carta de rescisão:



Aditados:
- A autora foi admitida ao serviço de BB em data não concretamente apurada, mas pelo menos desde dezembro 2007, para exercer funções sob suas ordens e direção e fiscalização.
- A atividade do referido BB passou a ser assumida pela firma ré, constituída por autora e pelo referido BB, exercendo a autora as funções de gerente, conforme referidas em 5, 14 e 15.
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Factos não provados:

1. Que a autora tivesse exercido, para a ré, as funções de encarregada, auferindo um vencimento mensal de 1.200,00 €;
2. Que exercesse, para a ré, as funções de costureira;
3. Que a autora exercesse a sua atividade, na ré, no seguimento de ordens do sócio desta.
4. Que a autora não recebesse qualquer remuneração.
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Conhecendo do recurso:

Nos termos dos artigos 635º, 4 e 639º do CPC, o âmbito do recurso encontra-se balizado pelas conclusões do recorrente.

As questões colocadas:
- Alteração de decisão relativa à matéria de facto

Pontos 14 e 15 da factualidade, e 3 dos factos não provados

Existência de vinculação por contrato de trabalho antes de transmissão de estabelecimento para a ré.
- Omissão de pronúncia quanto à existência de uma relação laboral entre autora e ré e quanto à rescisão por justa causa.
*
Relativamente à factualidade refere a depoente o depoimento de BB.
O depoente refere a relação com a autora desde ../../2006, referindo que depois houve um intervalo, “que ela saiu de casa”, depois voltou e terminou em março de 2018.
Referiu que a autora foi sua funcionária até fazerem a “EMP01...”, em março de 2013. Antes era funcionaria do depoente, em nome individual, era costureira e desde ../../2007. Referiu que a partir de março de 2013 ela era gerente, era a única a gerir a empresa, o depoente tem outra empresa, e estava nessa outra. O depoente não tinha ordenado na EMP01.... Era ela que fazia absolutamente tudo. Passou-lhe 50%. Quando saiu, a autora não apareceu mais na empresa. Referiu a baixa médica da autora dizendo ser “farsada”, e que estava a trabalhar num bar. Do depoimento visto na sua totalidade, designadamente o referido quanto à não apresentação da autora para “trabalhar”, não resulta qualquer reconhecimento da qualidade de trabalhadora. O depoente refere apenas, “não se apresentou para trabalhar, como devia”, nunca apareceu mais. Ora o trabalho dela era gerir a empresa, como resulta da totalidade do depoimento. Tanto que, como ela deixou de aparecer, teve que ser ele a “tomar conta da empresa” para aquilo não fechar. A referência que a recorrente faz às págs. 48, 49, 64 e 65, da transcrição do depoimento, referem-se no essencial a outro período, quando o depoente exercia em nome individual. Durante a gestão da autora, resulta do depoimento, era ela que geria, o depoente podia ir ao banco, se a ela não dava jeito, fazer levantamentos, que depois lhe entregava. Referiu ainda, que por vezes os clientes ligavam-lhe a dizer que ela não atendia os telefones, e ele ligava com ela. Às vezes chegavam à fabrica e ela não estava.
A recorrente pretende retirar ilações das referências do depoente, quando se refere à preocupação com a firma, inquirindo, designadamente junto do pessoal, porque “não dava”, e por ter “emprestado” dinheiro. Tais circunstâncias não indicam qualquer subalternidade da autora quanto à gerência, relativamente à qual, no seu essencial e segundo o depoente, era da responsabilidade da autora, já que o depoente tinha outra firma onde normalmente estava.
A depoente CC, referiu a autora como ex patroa, era quem lhe dava ordens. Refere que quando mudou passou a ser “mais “a D. AA, a gerir a empresa. Ele, BB, não mandava lá tanto como a D. AA. A DD referiu ter sido contratada pela autora, que era quem estava diariamente na empresa. De forma idêntica depôs EE. Foi a D. AA que a contratou, falou com ela, embora também tenha falado com ele.
Assim e quanto aos pontos 14 e 15 da factualidade, e 3 dos factos não provados, é de manter a decisão.
Tendo em conta o alegado pela autora na petição inicial, e a invocação do depoimento do BB sobre tal matéria, importa tomar posição sobre a relação anterior à constituição da firma. Tendo em conta o depoimento de BB, não havendo provas em sentido diverso, resulta que a autora foi por si admitida, aditando-se a seguinte factualidade, suprindo a invocada omissão de pronúncia quanto à mesma:
- A autora foi admitida ao serviço de BB em data não concretamente apurada, mas pelo menos desde dezembro 2007, para exercer funções sob suas ordens e direção e fiscalização.
- - A atividade do referido BB passou a ser assumida pela firma ré, constituída por autora e pelo referido BB, exercendo a autora as funções de gerente, conforme referidas em 5, 14 e 15.
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- Existência de uma relação laboral entre autora e ré.
A recorrente sustenta em primeira linha que sempre foi trabalhadora da ré, nunca tendo exercido funções de gerente, sendo o seu vínculo de natureza laboral, sob as ordens do gerente da ré, BB.
Sobre esta questão referimos no Ac. RG 16-12-2021, processo 1154/20.5T8BCL-A.G1:
 “no sentido da possibilidade de exercício da gerência mediante contrato de trabalho, posição que é minoritária na doutrina e relativamente à qual pouca adesão descortinamos na jurisprudência, conquanto alguns acórdãos não descartem a possibilidade. Veja-se o Ac. STJ de 14/2/1995, processo nº 086242, no qual se referiu:
“Temos, pois, que a qualidade dos gerentes advém dum contrato celebrado entre a sociedade e o gerente: o contrato de administração.
Como se qualifica, porém, este contrato?
Quanto a nós, sufragando a posição tomada a este respeito pelo Professor Duarte Rodrigues, no seu estudo sobre "A Administração das Sociedades por Quotas e Anónimas", onde o tema que vimos abordando é largamente tratado (páginas 260 e seguintes) - "o contrato de administração constituirá um contrato de trabalho sempre que, tendo o administrador direito a retribuição, tenha sido atribuído à sociedade, o poder de organizar a execução do seu trabalho, particularmente pela fixação do tempo de trabalho a prestar e do modo de o executar; constituirá um contrato de prestação de serviço sempre que não seja remunerado ou, sendo-o caiba ao próprio administrador organizar a execução do seu trabalho (cfr. também, Professor Raul Ventura, ob. cit. [Sociedades por Quotas, III] páginas 28-29)…”
No acórdão do STJ de 19/12/2018, processo nº 2353/13.1TBVFX.L2.S1, refere-se que; “ admitindo-se que o clausulado do contrato dos autos tenha sido inspirado na figura do contrato de trabalho, julga-se que isso não basta para lhe conferir natureza laboral, pois, não se reconhece, no clausulado contratual em que a ação se funda, a existência de subordinação jurídica do Autor em relação a qualquer das Rés, sendo certo que o Autor foi contratado para exercer as funções de administrador das sociedades Rés. Mais adiante o acórdão, não esclarecendo embora de forma cabal a sua posição, parece propender para a não admissão do exercício da gerência por contrato de trabalho, ao relevar a circunstância de o autor ter sido contratado apenas para exercer funções de administrador.
No Ac. STJ de 30/9/2004, processo nº 03S2053, refere-se:
“A situação dos administradores, gerentes e diretores das sociedades e cooperativas, que praticam atos em nome das pessoas coletivas que representam e são por estas retribuídos, apresenta uma configuração especial que merece alguma reflexão.
Deduz-se do preceituado no art. 986º, n.º 3 do Código Civil que os administradores das sociedades civis devem ser qualificados como mandatários, sendo também o regime do mandato aquele para que remete o art. 987º, n.º 1 daquele diploma.
Da mesma forma os gerentes comerciais, mas também os auxiliares, os caixeiros e os comissários (ou comissionistas) são considerados pelo Código Comercial como mandatários pois as disposições que aos mesmos se reportam (arts. 248º e ss. e 266º e ss.) estão inseridas respetivamente nos capítulos II e III, ambos do Título V do Código Comercial sob a epígrafe "Do Mandato".
Todavia, não é o facto de os Códigos Civil e Comercial estabelecerem que são mandatários que impede a referida qualificação como trabalhadores subordinados já que é o próprio art. 5º, nº3 da L.C.T. que estabelece a possibilidade de um trabalhador ter também um mandato com representação e, por outro lado, o conceito de mandato utilizado no C. Comercial (arts. 231º, 248º, 256º, 259º, 260º, 263º e 264º) não coincide exatamente com o utilizado no C.Civil (arts. 1155º e 1157º), referindo-se a atos de comércio - que abrangem quer atos materiais, quer atos jurídicos - e podendo ter por objeto tanto um resultado como uma atividade (7).
Assim, esta qualificação como mandatários por parte da lei não obsta a que se deva considerar que os comissários, caixeiros, etc., exercem uma relação laboral e que em determinadas circunstâncias os gerentes das sociedades por quotas também o exerçam, desde que estejam preenchidos no caso concreto os pressupostos do contrato de trabalho.”

No Ac. RP de 21/1/2019, processo nº 2602/16.9T8PRT.P1, defende-se que que a qualidade de sócio gerente de uma sociedade por quotas não impede o reconhecimento da qualidade, também, de trabalhador, dependendo esse reconhecimento de um vinculo laboral da demonstração de indícios relevantes de subordinação jurídica a outros gerentes ou a deliberações da gerência no seu todo. Veja-se ainda RG de 22-9-2022, processo nº 2859/20.6T8BCL.G1.
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A questão colocada, contudo, não se prende sequer com saber se o exercício da gerência era efetuado (e se tal é possível legalmente) mediante contrato de trabalho. Antes se refere que nunca foi exercida gerência, antes se mantendo como trabalhadora.
Competia-lha a prova de tal factualidade – artigo 342 do CC-, o que não logrou, antes se tendo provado que a partir da 2013, com a constituição da ré e a tomada por esta da atividade exercida a titulo individual pelo referido BB, a autora passou a ser a gerente desta, dando ordens às empregadas, contratando com clientes e fornecedores e demais funções próprias de gerente. Não resultou provado que tais funções fossem exercidas sob ordens do outro gerente.
Consequentemente e relativamente a esta questão, improcede a alegação.
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A recorrente funda a sua posição ainda na transmissão do estabelecimento, e consequente transmissão do contrato de trabalho que mantinha com o BB.
É incontornável, dispensando grandes considerações, a existência de uma transmissão de estabelecimento tal como configurado pelo artigo 285º do CT, interpretado de acordo com a jurisprudência do TJ, já que toda a estrutura produtiva que girava em nome individual, passou a ser assumida pela ré.
Contudo, resulta da prova que a “firma” que assume a atividade perseguida pelo BB, foi constituída pela autora, com metade do capital, e que sempre esta foi gerente desde início. Aquando da constituição logo a autora foi nomeada gerente no contrato social. Assim sendo, não ocorreu quanto a ela qualquer transmissão de contrato de trabalho, que pudesse posteriormente ficar eventualmente suspenso (Vd. STJ de 23-11-2023, processo nº 2529/21.8T8MTS.P1.S1, embora exista jurisprudência contrária); antes se configurando um corte, um hiato, no que respeita ao contrato de trabalho da autora, na passagem da atividade do BB para a sociedade, já que quando a atividade passa a ser exercida pela firma, a autora é já sócia gerente desta, nunca nela ingressando como trabalhadora. A autora não foi apenas nomeada gerente, foi ela que conjuntamente com o BB, com quem por essa altura passou a viver como marido e mulher, constituiu a sociedade, entrando com metade do capital. É a sociedade assim constituída e de que a autora desde inicio é gerente, que toma a atividade que aquele exercia individualmente.
Consequentemente improcede o alegado.
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 Assim sendo, e porque não demonstrada a existência de uma relação laboral entre a autora e a sociedade, quanto aos mais, designadamente as invocadas nulidades, fica prejudicada a sua apreciação, sendo de confirmar a decisão.

DECISÃO:

Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão.
Custas pela recorrente
4/6/2020
Antero Veiga
Francisco Pereira
Vera Sottomayor