Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1383/22.7T8CHV-B.G1
Relator: JOSÉ AMARAL
Descritores: PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
ALTERAÇÃO DE MEDIDA PROVISÓRIA DE PROTECÇÃO
MENOR EM RISCO
TRÂNSITO EM JULGADO
NULIDADE DA DECISÃO - D)
DO Nº 1
DO ART.º 615º
CPC
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/19/2023
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. Encontrando-se a criança protegida com as medidas cautelares de “acolhimento residencial”, em instituição própria, e de proibição de os seus progenitores com ela “estarem” e “contactarem”, mas tendo surgido a necessidade, de ela ser internada em estabelecimento hospitalar, devido ao agravamento do seu estado de saúde, e, nesta circunstância, havendo sido decidida autorização àqueles para aí a visitarem, mediante supervisão e enquanto lá permanecer, esta decisão, por não eficazmente impugnada em recurso, transitou em julgado, nos termos em que resoluções deste tipo, em processo de promoção e proteção previsto na Lei 147/99, de 1 de Setembro – que, além das suas peculiares características, é de jurisdição voluntária –, adquirem o valor e eficácia dali decorrentes – artºs 628º, 619º e 621º, do CPC.
II. Com efeito, elas tornam-se obrigatórias, dentro e fora do processo, para as partes e para o próprio tribunal, nos termos e com os limites daquilo que foi julgado e decidido, enquanto durarem e não forem porventura revistas e alteradas – artºs 37º, nº 3, 62º, nºs 1, 2 e 4, e 63º, da referida Lei, e artº 988º, do CPC (aplicável ex vi do artº 100º).
III. A possibilidade de serem alteradas tem de fundamentar-se em apuradas circunstâncias fácticas supervenientes que tal justifiquem.
IV. Requerendo-se não só a alteração da decisão referida em I na parte em que autorizou as visitas e consequente reposição da sua proibição mas também, concomitantemente, a ampliação da sua abrangência subjectiva (a qualquer entidade ou pessoa à mesma ligada), objectiva e circunstancial (por qualquer meio ou forma, directos ou indirectos, em qualquer lugar, no presente e no futuro), tal pretensão não pode proceder se não se alegou nem demonstrou terem-se verificado factos susceptíveis de ser considerados como circunstâncias supervenientes à última decisão transitada e se apenas se reiteraram as anteriores e o pretenso agravamento da situação de perigo e das necessidades de protecção, porém já naquela ponderadas e cuja modificação não se vislumbra justificar-se, de facto.
V. Ainda que, na decisão que se pronunciou sobre tal requerimento, apenas se tenha referido que inexistiam circunstâncias supervenientes justificativas de qualquer alteração e expressamente mantido a autorização de visitas e, portanto, adversamente negado o restabelecimento da proibição de contactos requerida, ela não é nula, nos termos da alínea d), do nº 1, do artº 615º, CPC, por não se pronunciar, em concreto, sobre a pretendida ampliação subjectiva, objectiva e circunstancial daquela nos termos especificados, uma vez que o indeferimento desta está implícito no daquela decisão expressa.
VI. Na verdade, a referida abrangência da proibição (o seu âmbito, termos e condições) configura pedido aparente, uma vez que contido no pedido principal ou fundamental que constitui a questão decidenda, não tendo, em relação a esta, autonomia e independência, sendo-lhe acessório. Logo, se se negou aquela proibição, aí está contido implicitamente, como consequência, o indeferimento do alcance com que ela foi requerida.
VII. Ainda que o julgamento implícito deva ser considerado com parcimónia, na medida em que pode a sua aceitação não se coadunar com a certeza e a segurança jurídicas da decisão, uma vez que a determinação dos seus “limites e termos”, e portanto a definição do alcance do caso julgado, podem revelar-se complicados, mesmo por via de interpretação, ele deve, ainda assim, acolher-se quando evidente e até mesmo incontornável, face à substância do decidido e à razoabilidade do seu sentido lógico.
VIII. De todo o modo, sempre a questão da referida abrangência ficou prejudicada pelo indeferimento da autorização, não existindo, quanto a ela, o dever de pronúncia – nº 2, do artº 608º, CPC – e, mesmo que existisse e por tal omissão devesse ser declarada a correspondente invalidade, sempre isso redundaria em inutilidade uma vez que ela não exime o tribunal superior do dever de conhecer o objecto da apelação – nº 1, do artº 665º.
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO [[1]]

O Ministério Público instaurou, no Tribunal ..., Processo de Promoção e Protecção, ao abrigo da Lei nº 147/99, de 1 de Setembro, de AA, nascido em .../.../2022, registado como filho de BB e de CC.

Com base nos factos alegados no requerimento inicial pediu a aplicação da medida cautelar de acolhimento residencial.

No mesmo dia – 26-08-2022 – foi proferida a requerida decisão provisória [[2]], nos seguintes termos:

“-determina-se a aplicação provisória da medida de promoção e protecção urgente de acolhimento residencial, prevista no artigo 50.º, n.º 3 da LPCJP, a favor do menor AA, em Unidade Hospitalar apta a prestar-lhe os necessários cuidados médicos, neste caso no Centro Hospitalar ... e, após a sua alta clínica, em instituição apta a receber o menor, oportunamente a indicar pela Segurança Social, pelo período de 3 meses, sem prejuízo de ulterior prorrogação e/ou alteração.”.

Determinou-se, no mesmo despacho, o prosseguimento do processo e declarou-se aberta a instrução.

Na sequência de requerimento do Ministério Público no sentido de que, com base na situação por ele alegada, se proferisse decisão proibitiva de os progenitores não poderem “estar nem contactar” com o menor, foi proferida, em 30-08-2022, a seguinte decisão complementar [...]:

“Assim sendo, defiro o que vem promovido, e, em consequência:
A) Autoriza-se a proposta transferência do menor AA para a Unidade Hospitalar de ...– EPE;
B) Determino a manutenção da medida provisória de promoção e proteção urgente de acolhimento residencial, prevista no artigo 35.º, f) e 50.º, n.º 3 da LPCJP, a favor do menor AA, em Unidade Hospitalar apta a prestar-lhe os necessários cuidados médicos, passando a mesma, e a partir do dia 30.08.2022, a ser executada no Hospital ... (caso se verifique a anunciada transferência), e, após a sua alta clínica, em instituição apta a receber o menor, oportunamente a indicar pela Segurança Social, pelo período de 3 meses, sem prejuízo de ulterior prorrogação e/ou alteração;
C)  Determino ainda que se cumpra o já ordenado e, assim, se oficie, de imediato à EMAT, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 108.º, n.ºs 1 e 2 da LPCJP, como requerido pelo Ministério Público, solicitando que elabore, no prazo máximo de 5 dias, relatório referente ao menor e seus progenitores, indicando instituição apta a receber o menor após e quando possa ter alta médica e ainda apresentando proposta de intervenção in casu;
D) Determino que BB e DD, pais do menor AA, não possam estar, nem contactar com o mesmo, nos termos dos art.º 34º, 35.º, f), 37.º, n.º1, 91,º e 92.º da LPCJP;”. [[3]]

Em 20-09-2022, foi proferida a seguinte decisão:

“Veio a progenitora requerer autorização para visitar a criança, inclusive no dia de amanhã, em que a mesma perfaz cinco meses.
Porém, em face das diligências em curso no âmbito dos presentes autos, considera-se que inexistem, por ora, quaisquer circunstâncias supervenientes que determinem que se altere o já decidido na ref. CITIUS n.º ...65 quanto a esta matéria, para proteção do superior interesse da criança.
Assim, nesta fase, e sem prejuízo de oportuna reapreciação desta questão, os progenitores não poderão visitar, nem contactar a criança por qualquer meio.
Notifique, de imediato e pelo meio mais expedito, informando de que a criança está integrada na Casa de Acolhimento ..., em ... (artigo ...8.º, n.º3 da LPCJP).
Comunique também à Casa de Acolhimento, pelo meio mais expedito, que BB e CC estão, por ora, proibidos de visitar e de contactar o AA (ref. CITIUS n.º...65).”.

Em 30-09-2022, foi designada conferência de pais.

Em 10-10-2022, o Ministério Público requereu, entre o mais, a aplicação da medida de confiança a instituição com vista à sua futura adopção e, concomitantemente, que “se mantenha a proibição de visitas e contactos à criança por parte da sua família natural”.

Na diligência aprazada, em 13-10-2022, não se logrou acordo. Os progenitores requereram que “possam ter visitas supervisionadas, para não perderem o vínculo com a criança”. Auscultado o Ministério Público, pelo mesmo foi “dito que se opõe a qualquer tipo de visitas”, pelo que de seguida proferiu-se o seguinte despacho:

“Relativamente ao requerimento dos progenitores, relativo à realização de visitas ao AA, considera o Tribunal que, por ora, e conforme se consignou anteriormente, não existem circunstâncias supervenientes que determinem a alteração do que já foi decidido nesta matéria, para proteção do superior interesse da criança.
Sem prejuízo, em momento próprio e em face das diligências ora ordenadas, bem como das demais que se entenderem pertinentes tendo em vista a apreciação do requerido, será reavaliada a situação, e devidamente ponderado o teor do requerimento ora reiterado pelos progenitores.”.

Prosseguiu a instrução dos autos. Em 25-10-2022, foi exarado despacho, no qual consta:

“Consigno que tomei conhecimento de que o AA se encontra, atualmente, no Centro Hospitalar ..., E.P.E. e que, estabelecido contacto telefónico com o Diretor de Serviço de Cuidados Intensivos do aludido Centro Hospitalar, solicitei a remessa aos autos da informação identificada pela ref. CITIUS n.º ...36 e, bem assim, os contactos da médica que se encontra, no dia de hoje, no serviço de urgência (Dra. EE), para agilização de procedimentos.
*
Em face das informações obtidas e da urgência da situação, impõe-se designar, de imediato, hora, ainda no decurso do dia de hoje, para tomada de declarações aos progenitores.
Assim, determina-se que os mesmos sejam notificados para comparecer, neste Tribunal, no dia de hoje, pelas 15h:30m, assim como a Sra. Técnica da Segurança Social, a defensora da criança, a patrona dos progenitores, e o Ministério Público.”.

Consta da acta da diligência então realizada – 25-10-2022 – que, depois de os progenitores terem prestado consentimento, e de ter sido de imediato comunicada este ao Hospital ..., para realização de cirurgia ao menor de carácter urgente (antes assim indicada como necessária por esta instituição de saúde), pela Srª Juíza (“Equacionando-se a possibilidade, em face das alterações das circunstâncias e do atual estado de saúde do AA, de serem permitidos contactos supervisionados aos progenitores”), foi determinada a audição da Técnica da Segurança Social presente que acompanha o caso e que, após a sua audição (“a fim de aferir da viabilidade da supervisão integral dos eventuais contactos”), foram ouvidos o Ministério Público, pelo mesmo tendo sido “dito opor-se ao mesmo” e os Patronos da criança e o dos progenitores, por estes tendo sido “dito nada terem a opor”.

Em face disso e de imediato, foi proferido o seguinte despacho.

“Resulta documentada nos autos a atual situação de saúde do AA, que é grave e implica riscos substanciais para a sua integridade física e vida.
Neste contexto de natureza excecional, alteraram-se substancialmente as circunstâncias pré-existentes nos autos, considerando-se que é, nesta fase, imperioso autorizar que os progenitores visitem a criança e se inteirem pessoalmente do seu estado de saúde.
Efetivamente podendo tais visitas ser realizadas na presença de terceiros com idoneidade bastante, designadamente a Srª Técnica da Segurança Social ou da Srª diretora técnica da casa de acolhimento, considera-se que os progenitores não podem constituir um perigo para a vida ou integridade física desta criança, tanto mais quanto também ali se encontrará o pessoal médico de serviço.
Por outro lado, sendo grave e sensível o estado de saúde do AA, não pode este ficar totalmente privado dos contactos com os progenitores, nem estes com ele, principalmente considerando que existe risco de agravamento da sua situação de saúde, conforme decorre da informação clínica junta aos autos.
Assim, decide-se conceder aos progenitores a possibilidade de, querendo, visitarem o AA enquanto o mesmo se encontrar internando no Hospital ..., desde que estejam permanentemente acompanhados pela Sr.ª Técnica da Segurança Social, Dr.ª FF, ou, alternativamente, pela Srª Diretora Técnica da casa de acolhimento, Dr.ª GG, combinando, para o efeito, previamente, um horário e uma data especificas com a Sr.ª Técnica da Segurança Social e com a casa de acolhimento, e cumprindo todas as instruções que lhes forem dadas pelas referidas pessoas.
Não se consigna, por ora, possibilidade destas visitas terem lugar na presença de técnicos do serviço social do Hospital, conforme sugerido pela Sr.ª Técnica da Segurança Social, na medida em que, por ora, ainda não foi possível obter informação oficial sobre a viabilidade deste acompanhamento, sem prejuízo de oportuna reavaliação de tal possibilidade.
Comunique-se à casa de acolhimento na pessoa da Sr.ª Diretora Técnica e ao Hospital ..., remetendo-se ao médico que se encontra de serviço de urgência no dia de hoje, Drª EE, pelo meio mais expedito, cópia da presente ata, em que os progenitores expressamente autorizam que o AA seja submetido a craniotomia para drenagem da provável coleção abcedada parietal esquerda assim como trépano frontal esquerdo e direito para lavagem e drenagem dos higromas hemisféricos.
Informe-se ainda o Centro Hospitalar de que os progenitores estão, de ora em diante, e enquanto o AA se mantiver ali internado, autorizados a visitá-lo, mas apenas na condição de serem permanentemente acompanhados nessas visitas pela Dr.ª FF ou pela Dr.ª GG.
Solicite ao Centro Hospitalar que informe os autos caso o AA seja, entretanto, transferido para outra unidade hospitalar ou lhe seja dada alta clínica.”. [[4]]

O Mº Pº interpôs recurso desta decisão de 25-10-2022, esclarecendo nas respectivas alegações:

“O presente recurso reside, essencialmente, na discordância relativamente à decisão de autorização concedida aos progenitores, de visitarem a criança, no hospital onde este se encontra internado, alterando, sem fundamentação plausível ou atendível, o anteriormente decidido por douta decisão de 30/08/2022, (referência ...55) e mantido por douta decisão de 13/10/2022 (referência ...13).”

E acentuando:

“Ora, no presente caso, verifica-se que o AA se encontrou (e eventualmente se encontrará, pois não é possível, por ora, prever as sequelas), numa situação de grave perigo para a sua saúde, sendo suspeitos de terem sido responsáveis por tal situação, os seus pais, os quais não detêm as mínimas competências para dar à criança um ambiente familiar e prestar-lhe os cuidados básicos.”.

Perspectivando:

“Resulta, pois, dos autos, que o projeto de vida do AA deve ser a sua integração numa família, que não a biológica, por ser a única medida que protege e defende os interesses deste.
Assim, mostra-se necessária, proporcional e adequada a aplicação à criança AA, da medida de confiança a instituição com vista a futura adoção, nos termos dos art.ºs 35, n.º 1, al. g), 38º e 38º-A da LPCJP e 1978º, n.º 1, als c), d) e d) do Código Civil.”.

Criticando:
           
“Por isso, não deveria o douto Despacho recorrido ter concedido autorização aos progenitores para contactarem e visitarem a criança no hospital.
E não se diga que não existe perigo para a criança, por terem sido autorizadas, “desde que estejam permanentemente acompanhados” pela Técnica do ISS ou pela Diretora da Casa de Acolhimento. Obviamente que o perigo para a criança existe igualmente aquando das visitas a realizar nessas circunstâncias, porquanto não será possível garantir que não haja uma conduta por parte dos pais contra a saúde e integridade física da criança.”

E mais:

“Considerando como adequada, como o Ministério Público considera, a medida de promoção e protecção de confiança a instituição com vista a futura adopção, a que alude o artigo 35º, nº1, alínea g) da LPCJP, de modo algum se vislumbra adequada a autorização para que os progenitores contactem e visitem a criança.
A douta decisão sob recurso contraria os doutos despachos anteriores, em evidente violação do princípio rebus sic standibus, sem qualquer fundamentação atendível para o efeito, dado que as circunstâncias supervenientes entre os momentos dos doutos despachos de 30/08/2022 e de 13/10/2022, que proibiram e que mantiveram a proibição dos contactos dos pais com o menor, foram circunstâncias agravativas do estado de saúde do menor, sempre em consequência dos atos praticados pelos seus pais, porquanto o nexo causal entre aqueles atos e as lesões causadas se manteve e mantém.
A douta decisão de 25/10/2022, sob recurso, é totalmente incompreensível e injustificada.
Não só não ocorreram circunstâncias supervenientes positivas entre os momentos dos doutos despachos de 30/08/2022 e de 13/10/2022, como se agravaram as circunstâncias do alegado cometimento do crime pelos seus progenitores na pessoa do menor, decorrentes do próprio agravamento do estado de saúde da criança.
Impunha-se, pois, manter a validade e eficácia das decisões então proferidas a 30/08/2022 e 13/10/2022, enquanto permanecessem inalterados os pressupostos em que assentaram.
As circunstâncias agravativas verificadas nunca poderiam ter determinado o Tribunal a alterar, como alterou, o regime aplicado em benefício dos progenitores.
Enquanto não ocorressem alterações fundamentais ou significativas da situação existente à data em que foi decidida a proibição e manutenção da proibição dos contactos dos pais com o menor, não poderia o Tribunal ‘reformar’ essas decisões sob pena de, fazendo-o, como o fez, provocar a instabilidade jurídica decorrente de julgados contraditórios com inevitáveis reflexos negativos no prestígio dos tribunais e nos valores da certeza ou segurança jurídica, além de atentar de forma indesculpável contra a saúde, segurança e bem estar da criança.
Não desconhecemos a jurisdição voluntária subjacente a todas as decisões proferidas no âmbito da família e menores, mas até a jurisdição voluntária tem limites intransponíveis.
Se, por um lado, o Tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, por outro, deve adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna, podendo as resoluções ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, mas apenas com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração. E sempre prosseguindo e acautelando o superior interesse da criança, na solução que apresente reais vantagens para o menor e que se funde em motivos legítimos, o que não aconteceu in casu.
Não estamos perante um processo de parte; são, como dissemos, processos de jurisdição voluntária, nos quais está em causa o interesse do menor a que respeitem, subordinando-se a esse interesse principal os que eventualmente sejam encabeçados pelos outros intervenientes (os respectivos progenitores, no caso dos autos), e não o contrário.
O douto despacho recorrido configura uma decisão emocional, sem razoabilidade e em violação clara do superior interesse da criança AA. Quando se agravou o seu estado de saúde, correndo risco de vida, por ação dos seus progenitores, não esqueçamos, é que o Tribunal, sem fundamento atenuante que o justificasse, alterou o que havia sido decidido, e passou a permitir que os progenitores que o colocaram nesse estado de debilidade e perigo de vida efetivo, o possam contactar, revitimizar, atentar novamente contra a sua saúde, ainda mais desprotegido, por ainda mais frágil, violando o seu superior interesse.”.
           
E ainda:

“As circunstâncias atinentes ao agravamento do estado de saúde da criança, deveriam ser apreciadas pelo Tribunal como circunstância agravante e, portanto, reforçando a necessidade da manutenção da proibição de contactos dos pais com a criança, mas, paradoxal e contraditoriamente, a decisão de 25/10/2022, sem a menor explicação e fundamentação plausível e atendível, atenua a medida de proibição de contactos dos pais com a criança, permitindo-os em ambiente hospitalar, expondo novamente a criança ao perigo de contactos com os progenitores que atentaram gravemente contra a sua saúde, provocando-lhe as graves lesões documentadas nos autos.
Tal decisão viola ostensivamente os princípios contidos nos art.ºs 3.º e 4.º da LPCJP, violando a necessidade de uma intervenção judicial que proteja a sua saúde, o desenvolvimento físico, moral e psíquico do AA, na defesa do interesse superior da criança, da sua privacidade, no âmbito de uma intervenção precoce, proporcional e atual, em violação ao disposto nos art.º 3.º, 4.º, art.º 34º, 35.º, f), 37.º, n.º1, 91,º e 92.º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei n.º 147/99, de 1 de setembro).
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se o douto despacho recorrido, proferido a 25/10/2022, e ordenando-se a sua substituição por outro que mantenha a proibição de contactos e visitas entre os progenitores e a criança AA.”.

Tal recurso subiu à Relação, mas baixou sem que tivesse sido conhecido e decidido o respectivo objecto – julgado prejudicado – uma vez que o Mº Pº recorrente declarou que “não mantém interesse no recurso, por o mesmo se revelar inútil.”.
*
A partir daquela decisão de 25-10-2022, assim não eficazmente impugnada, mostram-se juntos aos autos os seguintes elementos probatórios, para cujo teor se remete e que aqui se considera reproduzido:

-em 02-11-2022, informação clínica, datada de 27-10-2022, do Centro Hospitalar ..., com cópia anexa do processo clínico ali existente desde o nascimento da criança – 102 páginas;
-em 10-11-2022, informação social, dos serviços respectivos da Segurança Social, datada de 09-11-2022, que refere: “Decorrente do acompanhamento ao processo e dando cumprimento ao Despacho datado de 25/10/2022, cumpre informar que, o menor AA ainda se mantém internado em Pediatria no Hospital ..., sendo o seu estado de saúde considerado estável, porém no dia de hoje, fomos informados através de contato telefónico da Assistente Social do Internamento Pediátrico, Dra. HH, que o menor AA no dia de hoje 11/11/2022 teve a necessidade de ser sujeito a nova intervenção cirúrgica para nova drenagem, como já aconteceu no passado dia 25/10/2022.
Cumpre ainda informar que se iniciaram as visitas supervisionadas dos progenitores ao menor AA no Hospital ..., tendo a primeira visita sido efetuada com a supervisão da Diretora Técnica da Instituição, Dra. GG, onde estiveram presentes os progenitores BB e CC.
Esta primeira visita realizou no dia 28/10/2022, tendo tido aproximadamente a duração de 1h15, e segunda a Dra. GG, ambos os progenitores mantiveram sempre uma postura correta e educada, mostraram uma boa interação com o filho e respeitaram todas as orientações que lhe foram transmitidas.
A segunda visita aconteceu no passado dia 04/11/2022, tendo sido supervisionada pela gestora do Processo, Dra. FF, e teve a duração de aproximadamente de 2h30, também nesta visita ambos os progenitores mantiveram um comportamento adequado e respeitador, interagiram com o filho, estando também AA sempre muito bem-disposto. Por orientação da equipa de enfermagem, a mãe ainda pode mudar a fralda ao menor e o pai pode dar o biberão de leite ao filho.
Mais cumpre informar que a próxima visita vai se realizar na próxima sexta feira dia 11/11/2022, sendo supervisionada pela Diretora Técnica da Instituição, Dra. GG, estando prevista que se inicie por volta das 11h.
Cumpre-nos ainda informar que, relativamente à possibilidade destas visitas terem lugar na presença de Técnicos do Serviço Social do Internamento Pediátrico, a equipa de Serviço Social não se disponibilizou para assegurar a supervisão destas visitas, pelo que, deste modo as visitas, vão continuar a ser supervisionadas pelas Técnicas que já estão a assegurar estas visitas atualmente, com a ressalva de poderem ficar condicionadas a não acontecerem por eventual indisponibilidade por questões profissionais, de ambas as Técnicas.”; [][5]
-em 16-11-2022, relatório social de acompanhamento da execução da medida provisória emitido pelo serviço respectivo da Segurança Social, datado de 15-11-2022, contendo anexo o relatório da Instituição de Acolhimento ..., daquele resultando, em resumo, que, desde que o menor foi integrado, em 13-09-2022, nesta, até que foi internado no Hospital ..., em 22-10-2022 (onde ainda se mantinha naquela data sem alta prevista), não há a registar qualquer dificuldade nem anormalidade, que a mãe, antes daquele internamento, ligava diariamente para a Instituição a procurar informações da criança sobre a sua situação e saúde fazendo-o com correcção e que, desde que foram autorizadas as visitas no Hospital, os progenitores têm mostrado postura correcta, educada e cumpridora das orientações, com concluindo com o Parecer de que “considerando a situação em que o menor AA se encontra, e estando ainda em curso o processo crime sobre as suspeitas de maus tratos dos progenitores ao menor, e estando ainda em falta a realização de avaliação pericial aos progenitores, parecesse-nos, que a medida aplicada ao menor AA se deva manter, pelo que se propõe […]  a prorrogação da medida de “Acolhimento Residencial”, por se entender ser a que por ora melhor defende o superior interesse do menor AA”.
*
Entretanto, notificados os interessados do Relatório de 16-11-2022 e para se pronunciarem na perspectiva de revisão então próxima da medida cautelar por despacho de 16-11-2022 [[6]], o Ministério Público atravessou nos autos, em 17-11-2022, longo requerimento (em que reitera a posição anterior, designadamente a explanada e defendida nas alegações da aludida impugnação – não conhecida – da decisão de 25-10-2022, e em que antecipa, quase na íntegra, o que virá a alegar no recurso posterior e que é objecto da presente apelação), justificando o que, no final dele, peticionou:

“1. Mostra-se necessária, proporcional e adequada a aplicação à criança AA, da medida de confiança a instituição com vista a futura adoção, nos termos dos art.os 4.º, 5.º, 35.º, n.º 1, alí. g), 38.º e 38.º-A da LPCJP e 1978.º, n.º 1, alí. d) do Código Civil, pelo que, por ora, face à impossibilidade legal da sua aplicação nesta fase do processo, deverá manter-se a medida de acolhimento residencial determinada (art.os 4.º, 35.º, n.º1, alí. f), 37.º, n.os 1 e 3, 50.º, 91.º e 92.º, todos da LPCJP), a única (neste momento processual), que é consentânea com a sua proteção e superior interesse;
2. Mostra-se necessário aplicar as seguintes proibições aos progenitores, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 4.º, 5.º, 34.º, 35.º, f), 37.º, n.os 1 e 3, 50.º , 91,º e 92.º da LPCJP:
- proibição de contactar, por qualquer meio ou forma e em qualquer lugar, diretamente ou por interposta pessoa, com a criança AA;
- proibição de contactar, por qualquer meio ou forma e em qualquer lugar, diretamente ou por interposta pessoa, com a(s) pessoa(s) que tenha(m) a sua guarda de facto no presente e/ou no futuro, Diretor(es) Técnico(s) e outras pessoas que exerçam funções na(s) casa(s) de acolhimento em que a criança se encontre acolhida e/ou venha a encontrar acolhida no futuro e ainda com médico(s), enfermeiro(s) e outras pessoas que exerçam funções na unidade hospitalar ou outra unidade de saúde em que se encontre e/ou venha a encontrar
no futuro por questões relacionadas com a criança;
- proibição de frequentar, permanecer ou se aproximar da casa de acolhimento/residência da criança/vítima AA atual e futura e/ou da unidade hospitalar ou outra unidade de saúde em que se encontre
e/ou venha a encontrar.”.

Então, em 24-11-2022, foi proferida a seguinte decisão – a ora recorrida:

Quanto à medida de promoção e proteção aplicada nos autos:
No dia 26 de agosto de 2016, foi aplicada à criança AA a medida de promoção e proteção de acolhimento residencial urgente, nos termos e pelos fundamentos que constam da ref. CITIUS n.º ...16, e que ora se dão por integralmente reproduzidos, para os devidos efeitos legais.
Por despacho proferido em 30 de agosto de 2022, identificado pela ref. CITIUS n.º ...65, foi determinada a proibição de contactos dos progenitores com a criança AA.
Seguidamente, foram remetidos aos autos vários requerimentos por parte da progenitora, no sentido de ser autorizado o estabelecimento de contactos entre esta e a criança, os quais foram sendo indeferidos, com fundamento no facto de não terem surgido circunstâncias supervenientes relevantes que permitissem ao Tribunal alterar a decisão anteriormente proferida a este propósito.
Foram ouvidos os progenitores em declarações, tendo ambos negado a prática de qualquer facto que possa ter colocado em causa a integridade física ou vida da criança (ref. CITIUS n.º ...78).
Foi, ainda, ouvida em declarações a Sra. Perita, Dra, II, que declarou que, do ponto de vista clínico, as lesões apresentadas pela criança AA são compatíveis com “Shaken Baby Syndrome” (ref. CITIUS n.º ...78).
A criança AA, que se encontrava inicialmente internada no Centro Hospitalar, foi entretanto encaminhada para a casa de acolhimento melhor identificada nos autos.
Em 15 de setembro de 2022, foi junta aos autos a informação social identificada pela ref. CITIUS n.º ...20, da qual decorre que a integração do AA na casa de acolhimento decorreu com normalidade.
Foram, entretanto, solicitadas informações clínicas relativas ao AA, a fim de ser completado o relatório pericial inicialmente junto aos presentes autos.
No dia 29 de setembro de 2022, foi junto aos autos o relatório social identificado pela ref. CITIUS n.º ...53, no âmbito do qual se menciona que foram identificados, neste caso, fatores de risco, designadamente a imaturidade da progenitora e o estado de vulnerabilidade em que se encontram ambos os progenitores, desempregados e com escassos rendimentos, dependendo da ajuda de familiares e sem habitação própria, e ainda as incertezas sobre se os progenitores foram autores de maus-tratos ao AA.
Nesta sequência, e não tendo sido identificada, no seio familiar, qualquer outra pessoa que possa acolher esta criança, a título permanente, foi sugerida a manutenção da medida de promoção e proteção de acolhimento residencial e, ainda, a realização de perícia psiquiátrica e psicológica aos progenitores, a fim de se aferir se padecem de alguma patologia e, ainda, das respetivas competências parentais.
Foi então agendada conferência, a fim de se procurar obter uma solução de consenso quanto à medida de promoção e proteção a aplicar.
Porém, em 10 de outubro de 2022 (ref. CITIUS n.º ...63), o Ministério Público apresentou requerimento no qual refere, além do mais, que considera estar demonstrado que foram os progenitores que abanaram o AA, assim determinando a ocorrência dos danos que o mesmo veio a sofrer.
Acrescenta-se, ainda, no aludido requerimento, que a progenitora afirma que o pai biológico do AA não é o CC (o que este, aliás, confirma), mencionando ainda a progenitora que o pai biológico é JJ.
Conclui-se, posteriormente, que o projeto de vida desta criança só pode passar pela integração numa família que não a biológica, pelo que a aplicação da medida de confiança com vista à futura adoção é, no entendimento do Ministério Público, a única que acautela o superior interesse desta criança.
Realizada a conferência (ref. CITIUS n.º ...13), os progenitores manifestaram que concordariam, por ora, com a manutenção da medida de acolhimento residencial, à qual o Ministério Público se opôs. Por outro lado, os progenitores declararam que não concordam com a adoção do AA.
Nesta sequência, foi determinada a realização de perícia psicológica/psiquiátrica aos progenitores, a fim de se aferir das respetivas competências parentais, do relacionamento existente entre estes e a criança, das suas principais características psicológicas e psiquiátricas, de que modo as mesmas poderão ter influenciado a sua alegada atuação relativamente ao AA e, ainda, se algum dos progenitores apresenta alguma disfunção, transtorno, perturbação ou patologia deste foro.
Foram solicitadas, ademais, as informações clínicas em falta, a fim de ser completado o relatório pericial inicialmente elaborado sobre a situação de saúde do AA.
Foi também questionada a casa de acolhimento sobre a integração do AA e, ainda, sobre as chamadas entretanto realizadas pela progenitora, a fim de se inteirar do estado da criança.
Seguidamente, a casa de acolhimento informou o Tribunal, no dia 21 de outubro, que o AA se encontrava internado desde o dia .../.../2023 (ref. CITIUS n.º ...94), tendo sido, posteriormente, no dia 24 de outubro de 2022 (ref. CITIUS n.º ...39), solicitada a intervenção do Tribunal a fim de autorizar a Diretora Técnica da Casa de acolhimento a dar o seu consentimento para qualquer intervenção invasiva que necessitasse de ser realizada na pessoa do AA.
Nesta sequência, foi imediatamente solicitada ao Hospital, com nota de máxima urgência, informação sobre o estado de saúde da criança, que foi apresentada ainda no dia 25 de outubro. De tal informação clínica resultava a necessidade urgente e absoluta de o AA ser sujeito a uma intervenção cirúrgica ao cérebro que teria como complicação possível o desfecho fatal.
Não se encontrando os progenitores inibidos do exercício das responsabilidades parentais, foram imediatamente contactados e compareceram neste Tribunal, nesse mesmo dia 25 de outubro, à tarde, tendo sido informados do estado de saúde do AA e consentido na realização da intervenção. Tal indicação foi imediatamente transmitida ao Centro Hospitalar que, de imediato, iniciou a realização da aludida cirurgia.
Foi neste preciso contexto que se proferiu o despacho que consta da ref. CITIUS n.º ...96, autorizando-se os contactos entre a criança e os progenitores, a que infra se aludirá com maior detalhe.
No dia 10 de novembro de 2022, o ... informou o Tribunal de que as visitas dos progenitores entretanto realizadas tinham decorrido tal como ordenado e sem registo de qualquer incidente.
No passado dia 16 de novembro de 2022, foi junto aos autos relatório social atualizado (juntamente com o relatório de acompanhamento à criança elaborado pela casa de acolhimento), no âmbito do qual descrevendo-se os factos considerados pertinentes, se propõe a prorrogação da medida de acolhimento residencial aplicada ao AA.
No exercício do contraditório quanto ao aludido relatório social, o Ministério Público reiterou que, no seu entendimento, em face dos fundamentos que expõe, apenas pode vir a ser aplicada à criança a medida de confiança a instituição com vista a futura adoção. Porém, não sendo possível a aplicação de tal medida nesta fase processual, considera que deve manter-se a medida de acolhimento residencial que, considerando o estado dos autos, é a única que é consentânea com a sua proteção e superior interesse.
Acrescenta, porém, posteriormente, que deve o Tribunal voltar a aplicar a medida de proibição de contactos desta criança com os progenitores, referindo que estes contactos criam perigo para esta criança, mesmo sendo supervisionados, pois são, em si mesmos, um ato de violência, atendendo ao seu estado de especial vulnerabilidade, considerando a situação de saúde que apresenta, referindo-se mesmo que o AA deve ser afastado dos progenitores agressores (sublinhado nosso).
Alude-se, também, para este efeito, à avaliação psicológica realizada à progenitora no âmbito de outro processo judicial, pretendendo-se que, com fundamento no teor desse relatório, e na demais factualidade invocada quanto ao alegado comportamento dos progenitores relativamente ao AA, se conclua que o projeto de vida desta criança só pode passar pela confiança com vista à adoção, e ainda que a situação de saúde em que se encontra atualmente o AA é consequência dos atos praticados pelos progenitores, razões pelas quais é injustificada a decisão proferida pelo Tribunal, no sentido de permitir os contactos entre a criança e os progenitores.
Os restantes intervenientes não se pronunciaram a propósito do relatório social junto aos autos.
Apreciando, considera-se que, de facto, atendendo aos indícios inicialmente recolhidos, que determinaram a aplicação da medida de promoção e proteção de acolhimento residencial, a título provisório e, também, às diligências ainda em curso (designadamente de natureza pericial), permanecem, nesta fase, inalterados os pressupostos indiciários que determinaram a aplicação daquela medida de promoção e proteção, não se encontrando, portanto, reunidas as condições necessárias para que se aplique ao AA qualquer outra medida de promoção e proteção (designadamente a medida de confiança com vista à adoção, atendendo à sua natureza definitiva).
Com efeito, impõe-se ainda investigar devidamente os factos, com relevância criminal, que deram origem a este processo, sendo certo que ainda não há notícia de que, quanto aos mesmos, tenha sido proferido qualquer despacho de acusação, muito menos uma decisão judicial com trânsito em julgado.
Por outro lado, é também relevante que se apure quem é o pai biológico do AA que, por si ou através da sua família alargada, poderá constituir uma alternativa à adoção desta criança.
De resto, importa ter em devida conta que as diligências, nomeadamente de natureza pericial, que se encontram ainda em curso são também essenciais ao exato apuramento dos contornos e da gravidade da situação de perigo reportada nestes autos, bem como à definição da concreta medida de promoção e proteção que é mais adequada à situação da criança.
No mais, quanto ao promovido a propósito da proibição de contactos, o Ministério Público parte de pressupostos que considera assentes, nomeadamente quanto à autoria dos factos que deram origem a este processo, pretendendo que o Tribunal decida com base na convicção que assertivamente plasmou nos requerimentos que dirigiu a estes autos. Porém, esta convicção, até ao momento, ainda não foi bastante para determinar que fosse proferido despacho final de inquérito quanto a estes factos, muito menos uma decisão judicial definitiva, com trânsito em julgado.
Neste contexto, se a prova indiciária que consta dos autos basta para que se tenha aplicado, e ora se mantenha, a medida de promoção e proteção de acolhimento residencial, a título provisório, certo é que não pode determinar que, assertivamente, se defenda que é inquestionavelmente verdadeira a versão dos factos apresentada pelo Ministério Público.
Não pode, portanto, este Tribunal, nesta fase, partir do pressuposto de que estes progenitores foram, indiscutivelmente, os causadores dos danos físicos constatados no AA.
Por outro lado, por referência ao dia 18 de outubro (data do novo internamento do AA), importa considerar que os progenitores não visitavam esta criança desde o final do mês de agosto, pelo que não poderá afirmar-se que a necessidade deste novo internamento decorreu, diretamente, de qualquer ato dos progenitores.
Acresce que também inexistem, por ora, nos autos, elementos de prova que permitam sustentar a existência de um nexo de causalidade entre este internamento, que teve lugar no dia 18 de outubro, e o anteriormente ocorrido, em agosto.
Neste contexto, importa ter em conta que da informação clínica oportunamente junta aos autos resultava, de forma clara, que o quadro clínico do AA era reservado e que a intervenção cirúrgica à qual o mesmo precisava de ser sujeito o colocava em risco de vida.
Foi neste contexto que se alterou a decisão proferida sobre a proibição de contactos, permitindo-se que os mesmos tivessem lugar na presença da Sr.ª Técnica da Segurança Social, Dr.ª FF, ou, alternativamente, da Srª Diretora Técnica da casa de acolhimento, Dr.ª GG.
Efetivamente, sem prejuízo da prova indiciária recolhida, na falta de decisão judicial que declare que os progenitores praticaram os factos descritos nos autos, presume-se que os mesmos não os praticaram (artigo 32.º, n.º2 da CRP).
Partindo deste pressuposto, é acima de tudo o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da CRP) que impõe que não se negue a esta criança e a estes pais a possibilidade de, no circunstancialismo descrito, manterem contacto, o que poderia ter acontecido, porventura, pela última vez.
Assim, considera-se que, nos moldes em que foram permitidos, os contactos do AA com os progenitores não o colocam em qualquer situação de perigo, permitindo, aliás, e ao invés, que não se verifique uma quebra absoluta dos vínculos entre o AA e os progenitores, tendo também em conta o interesse repetidamente manifestado pela progenitora, junto da casa de acolhimento, no sentido de saber como se encontrava esta criança.
Inexiste, assim, qualquer circunstância que, por ora, determine que se altere o decidido na ref. CITIUS n.º ...96 quanto aos contactos do AA com os progenitores, tendo em devida conta aquele que é o superior interesse desta criança e, ainda, o princípio da dignidade humana.
Nesta conformidade, e ao abrigo do disposto nos artigos 3.º, n.º 1 e 2, alíneas b) e c), 35.º, n.º 1, alínea f), e 37.º, todos da Lei n.º 147/99, de 1 de setembro, decide-se manter, por três meses, a medida provisória de acolhimento residencial já aplicada à criança AA, permanecendo este entregue à guarda e cuidados da Instituição onde se encontra acolhido (sem prejuízo do facto de se encontrar, de momento, internado), mantendo-se ainda, nos termos e pelos fundamentos expostos, o decidido na ref. CITIUS n.º ...96 a propósito da autorização de contactos dos progenitores com a criança.”

O Ministério Público não se conformou e apelou a este Tribunal. Além de arguir a nulidade da decisão, por alegada omissão de pronúncia, pugna pela revogação da mesma e sua substituição por outra com aplicação das medidas preconizadas, terminando as suas alegações com estas conclusões [[7]]:

“I– Na sequência de “shaken baby”e restantes factos imputados aos progenitores, que provocaram graves lesões no cérebro da criança, foi aplicada a medida provisória urgente, de acolhimento residencial, prevista nos artigos 35.º, n.º1, f) e 50.º, n.º 3 da LPCJP.
II-Com efeito, a 26/08/2022 (referência n.º...16), foi proferida douta decisão, nos termos e ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 92.º, n.º 1, 35.º, 1, alínea f) e 37.º, n.º 1 e 3 da LPCJP, pela qual: “determina-se a aplicação provisória da medida de promoção e protecçãourgente de acolhimento residencial, prevista no artigo 50.º, n.º 3 da LPCJP, a favor do menor AA, em Unidade Hospitalar apta a prestar-lhe os necessários cuidados médicos, neste caso no Centro Hospitalar ... e, após a sua alta clínica, em instituição apta a receber o menor, oportunamente a indicar pela Segurança Social, pelo período de 3 meses, sem prejuízo de ulterior prorrogação e/ou alteração.”.
III-Num segundo momento, a 30/08/2022, (referência ...55), foi proferida segunda decisão, que essencialmente veio proibir os contactos dos progenitores com a criança.
IV– Posteriormente, a 07/09/2022 e a 13/10/2022, foram recolhidos novos factos e esclarecidos outros, mantendo-se, por douto Despacho datado de 13/10/2022 (com a referência ...13), a medida de promoção e proteção de acolhimento residencial, com proibição de contactos entre progenitores e criança.
V– Nos dias anteriores a 25/10/2022, o estado de saúde da criança agravou-se, levando ao internamento no Hospital ... e transferência para o Hospital ... no ..., com a necessidade de realização, urgente, de uma operação cirúrgica ao cérebro da criança.
VI – No dia 25/10/2022 foi realizada a craniotomia para drenagem da provável coleção abcedada parietal esquerda, assim como trépano frontal direito para lavagem e drenagem dos higromas hemisféricos (o componente abcedado parietal esquerdo apresenta ter septações que o separam do higroma hemisférico esquerdo e desta forma precisa de drenagem adicional através de craniotomia).
VII – Lesões estas que surgiram na sequência de “shaken baby” imputado aos progenitores.
VIII – No dia 25/10/2022, foi proferido douto Despacho, que autorizou os progenitores a visitarem o AA no Hospital ... no ..., depois da operação ao cérebro que este ia realizar.
IX-A criança AA, no dia 09/11/2022, teve a necessidade de ser sujeita a nova intervenção cirúrgica cerebral para nova drenagem.
X- A progenitora da criança AA fez chamadas telefónicas para a instituição de acolhimento residencial, nos seguintes dias: 28.09.2022, 02.10.2022, 03.10.2022, 04.10.2022, 06.10.2022, 07.10.2022, 09.10.2022, 12.10.2022, 13.10.2022, 15.10.2022, 16.10.2022, 18.10.2022, 19.10.2022, 20.10.2022 (2 vezes) e 21.10.2022.
XI– Não ocorreram circunstâncias supervenientes que atenuassem a factualidade imputada aos progenitores.
XII– Pelo contrário, antes a agravaram, com a necessidade de realização urgente da operação ao cérebro da criança.
XIII– Obviamente que o perigo para a criança existe igualmente aquando das visitas a realizar nessas circunstâncias. Basta atentar nos factos indicados sob os n.os 23.º, 24.º e 25.º, para se concluir inequivocamente pela existência de perigo para a criança.
XIV-Tendo presente a caracterização do estado psicológico e psiquiátrico da mãe da criança, bem como o seu passado de inobservância da lei, e o seu presente de, pelo menos alegada, igual inobservância da lei, designadamente penal, para concluir, inequivocamente que a mãe da criança não deve ter qualquer contacto com este. Na verdade, a sua perturbação mental, a sua inadaptação social e o seu descontrole emocional são de tal modo evidentes que qualquer contacto com a criança, atento o seu mais que frágil estado de saúde, poderá redundar numa ainda maior regressão do estado clínico da criança AA.
XV-Por outro lado, tendo em conta o objeto do processo, o concreto estado de saúde do AA e as lesões que apresenta, e que os principais suspeitos da autoria dos factos em investigação são os seus próprios pais, é, ainda, evidente, a necessidade de garantir que tais pessoas se não possam acercar da vítima.
XVI-A douta decisão de 24/11/2022, sob recurso, contraria os doutos despachos anteriores, em evidente violação do princípio rebus sic standibus, sem qualquer fundamentação atendível para o efeito, dado que as circunstâncias supervenientes entre os momentos dos doutos despachos de 30/08/2022 e de 13/10/2022, que proibiram e mantiveram a proibição dos contactos dos pais com a criança, foram circunstâncias agravativas do estado de saúde da criança, sempre em consequência dos atos praticados pelos seus pais, porquanto o nexo causal entre aqueles atos e as lesões causadas se manteve e mantém.
XVII-A douta decisão sob recurso, é totalmente incompreensível e injustificada. Não só não ocorreram circunstâncias supervenientes positivas entre os momentos dos doutos despachos de 30/08/2022 e de 13/10/2022, como se agravaram as circunstâncias do alegado cometimento do crime pelos seus progenitores na pessoa da criança, decorrentes do próprio agravamento do seu estado de saúde, como se conclui pela necessidade da criança AA ter sido submetida a intervenções cirúrgicas nos dias 25/10/2022 e 09/11/2022, tendo nesta segunda data havido necessidade de ser sujeita a nova intervenção cirúrgica cerebral para nova drenagem.
XVIII- Impunha-se, pois, que o Tribunal mantivesse as decisões então proferidas a 30/08/2022 e 13/10/2022, enquanto permanecerem inalterados os pressupostos em que assentaram. As circunstâncias agravativas verificadas nunca poderiam ter determinado o Tribunal a alterar, como alterou, o regime aplicado em benefício dos progenitores.
XIX-Enquanto não ocorrerem alterações fundamentais ou significativas da situação existente à data em que foi decidida a proibição e manutenção da proibição dos contactos dos pais com a criança, não poderia o Tribunal ‘reformar’ essas decisões sob pena de, fazendo-o, como o fez, provocar a instabilidade jurídica decorrente de julgados contraditórios com inevitáveis reflexos negativos no prestígio dos tribunais e nos valores da certeza ou segurança jurídica, além de atentar de forma indesculpável contra a saúde, segurança e bem estar da criança.
XX-Não desconhecemos a jurisdição voluntária subjacente a todas as decisões proferidas no âmbito da família e menores, mas até a jurisdição voluntária tem limites intransponíveis. Se, por um lado, o Tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, por outro, deve adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna, podendo as resoluções ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, mas apenas com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração. E sempre prosseguindo e acautelando o superior interesse da criança, na solução que apresente reais vantagens para a criança e que se funde em motivos legítimos, o que não aconteceu in casu.
Não estamos perante um processo de parte; são, como dissemos, processos de jurisdição voluntária, nos quais está em causa o interesse da criança a que respeitem, subordinando-se a esse interesse principal os que eventualmente sejam encabeçados pelos outros intervenientes (os respectivos progenitores, no caso dos autos), e não o contrário.
XXI-Quando se agravou o seu estado de saúde, correndo risco de vida, por ação dos seus progenitores, não esqueçamos, é que o Tribunal, sem fundamento atenuante que o justificasse, alterou o que havia sido decidido, e passou a permitir que os progenitores que o colocaram nesse estado de debilidade e perigo de vida efetivo, o possam contactar, revitimizar, atentar novamente contra a sua saúde, ainda mais desprotegido, por ainda mais frágil, violando o seu superior interesse.
XXII-Com efeito, e tendo em conta o agravamento do estado de saúde da criança AA, descrito nos pontos 56. a 62., essas circunstâncias atinentes ao agravamento do estado de saúde da criança, deveriam ser apreciadas pelo Tribunal como circunstância agravante e, portanto, reforçando a necessidade da manutenção da proibição de contactos dos pais com a criança, mas, paradoxal e contraditoriamente, a decisão sob recurso, sem fundamentação plausível e atendível atenua a medida de proibição de contactos dos pais com a criança, permitindo-os em ambiente hospitalar, expondo novamente a criança ao perigo de contactos com os progenitores que atentaram gravemente contra a sua saúde, provocando-lhe as graves lesões documentadas nos autos.
XXIII-A decisão sob recurso, na parte em que autoriza visitas dos progenitores à criança, ainda que em ambiente hospitalar, é totalmente paradoxal e contraditória com o afirmado pressuposto de que os progenitores constituem um perigo para a criança, e que esteve na base da douta decisão de 30/08/2022, (referência ...55), pela qual o Tribunal proibiu os contactos dos progenitores, com a criança.
XXIV-Por outro lado, afigura-se ser absolutamente essencial não só a proibição de contactar, por qualquer meio ou forma e em qualquer lugar, diretamente ou por interposta pessoa, com a criança AA, mas, também, a proibição de contactar, por qualquer meio ou forma e em qualquer lugar, diretamente ou por interposta pessoa, designadamente, com a(s) pessoa(s) que tenha(m) a sua guarda de facto no presente e/ou no futuro, bem como com o(s) Diretor(es)Técnico(s) e outras pessoas que exerçam funções na(s) casa(s) de acolhimento em que a criança se encontre acolhida e/ou venha a encontrar acolhida no futuro e ainda com médico(s), enfermeiro(s) e outras pessoas que exerçam funções na unidade hospitalar ou outra unidade de saúde em que se encontre e/ou venha a encontrar no futuro por questões relacionadas com a criança; bem como a proibição de frequentar, permanecer ou se aproximar da casa de acolhimento/residência da vítima AA atual e futura e/ou da unidade hospitalar ou outra unidade de saúde em que se encontre e/ou venha a encontrar.
XXV -Na verdade, a situação vivencial da criança é particular, atenta a sua tenra idade, a ausência de autonomia, a instabilidade e recente agravamento do seu estado de saúde e a situação deacolhimento residencial em que se encontra, reclamando, por isso, a aplicação aos  progenitores, em face das referidas particularidades, proibições de contacto e de visitas adequadas a afastar a concretização dos perigos vigentes nos presentes autos, para proteção da criança e prosseguir o seu superior interesse.
XXVI- Se não forem proibidos os contactos supra enunciados, tal situação permitirá injustificadamente que os progenitores contactem, sem restrições, com a criança, ainda que o façam por via indireta e encoberta, qual seja, por via de contactos (telefónicos ou presenciais) com os seus cuidadores habituais, com as pessoas que exerçam funções na casa de acolhimento em que se encontre (no fundo, a sua residência) e com as quais a vítima diariamente contacta e interage e das quais precisa, e ainda com as pessoas que, designadamente por força do estado de saúde da vítima, estão/estejam incumbidas de lhe prestar assistência, sendo certo que dúvidas não há de que tais contactos visarão única e exclusivamente a criança (atenta a ausência de notícia de qualquer outra razão que os pudesse justificar).
XXVII -Afigura-se, de resto, por outro lado, que tais permitidos contactos serão perturbadores da vivência diária da criança e dos seus cuidadores (com efeitos, ainda que reflexamente, na criança) e, bem assim, potenciadores de tentativas de contactos diretos e de reaproximação por parte dos progenitores com a mesma, na medida em que, podendo aqueles tomar conhecimento, sem restrições e quando lhes aprouver, designadamente do local em que a criança se encontra, com quem e qual o seu estado, e podendo estabelecer, até com frequência diária, contactos com os seus cuidadores, não será possível garantir que não intentem aproximar-se da criança, perpetuando contactos que, atentas as condutas fortemente indiciadas, se afiguram prejudiciais para o desenvolvimento da mesma.
XXVIII-É ainda de salientar a perigosidade e predisposição para a prática de atos ilícitos evidenciadas por BB, resultando dos relatórios social e de avaliação psiquiátrica e psicológica, que a progenitora denota insensibilidade social, ausência de capacidade de sentir culpa, empatia ou identificação positiva com o outro, evolução desarmónica da personalidade, reduzida preocupação pelos sentimentos e ideias dos outros, baixa empatia e manipulação, deficiente sensibilidade às necessidades e sentimentos dos outros e dificuldade em experienciar arrependimento/remorso, evidenciando ainda um entendimento reduzido das noções de vítima, dano e reparação.
XXIX-Pese embora se admita que o ambiente institucional, seja na casa de acolhimento, seja na unidade hospitalar, em que AA se encontra, representa uma maior proteção do mesmo, não é possível garantir que os progenitores não intentem, naqueles locais ou noutros, aproximar-se da criança; tanto mais que, não tendo sido os progenitores proibidos de encetar contactos com os seus cuidadores habituais e demais pessoas com as quais diariamente interage, podendo tomar conhecimento, como se disse, da sua vivência diária, a medida de colocação aplicada, do ponto de vista protetor e securizante, não terá uma efetiva garantia de cumprimento.
XXX- Por outro lado, a gravidade dos factos em causa, a extensão, natureza e irreversibilidade das lesões provocadas no corpo e na saúde da criança (de resto, ainda não estabilizadas),constituem circunstâncias agravativas da necessidade de aplicação daquelas  proibições, para proteção da criança.
XXXI- Pelo que o Ministério Público considera ser imperioso aplicar as seguintes proibições aos progenitores, o que requer que o Venerando Tribunal da Relação determine:
- proibição de contactar, por qualquer meio ou forma e em qualquer lugar (mesmo em ambiente hospitalar), diretamente ou por interposta pessoa, com a criança AA;
- proibição de contactar, por qualquer meio ou forma e em qualquer lugar, diretamente ou por interposta pessoa, com a(s) pessoa(s) que tenha(m) a sua guarda de facto no presente e/ou no futuro, bem como com o(s) Diretor(es) Técnico(s) e outras pessoas que exerçam funções na(s) casa(s) de acolhimento em que a criança se encontre acolhida e/ou venha a encontrar acolhida no futuro e ainda com médico(s), enfermeiro(s) e outras pessoas que exerçam funções na unidade hospitalar ou outra unidade de saúde em que se encontre e/ou venha a encontrar no futuro por questões relacionadas com a criança;
-proibição de frequentar, permanecer ou se aproximar da casa de acolhimento/residência da criança/vítima AA atual e futura e/ou da unidade hospitalar ou outra unidade de saúde em que se encontre e/ou venha a encontrar.
XXXII-Por tal ser indispensável para impedir a reiteração de comportamentos atentatórios de bens jurídicos fundamentais na pessoa da criança.
XXXIII-Relativamente a estas proibições que o Ministério Público requereu, a douta decisão incorreu, ostensivamente, na nulidade de omissão de pronúncia, prevista no art.º 615.º, n.º1, d) do CPC, porquanto não se pronunciou sobre pretensões relevantes para a decisão de mérito, que foram expressamente requeridas pelo Ministério Público na sua promoção de 17/11/2022 (referência ...80), e que devia apreciar.
XXXIV-A decisão sob recurso, datada de 24/11/2022, viola os princípios contidos nos art.os 3.º e 4.º da LPCJP, violando a necessidade de uma intervenção judicial que proteja a saúde, o desenvolvimento físico, moral e psíquico do AA, na defesa do interesse superior da criança, da sua privacidade, no âmbito de uma intervenção precoce, proporcional e atual, em violação ao disposto nos art.os 3.º, 4.º, art.º 34º, 35.º, f), 37.º, n.º1, 91,º e 92.º da LPCJP, e incorreu na nulidade prevista no art.º 615.º, n.º, 1, d) do CPC.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a douta decisão recorrida e ordenando-se a sua substituição por outra que determine a aplicação das seguintes proibições aos progenitores da criança, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 4.º, 5.º, 34.º, 35.º, f), 37.º, n.os 1 e 3, 50.º , 91,º e 92.º da LPCJP:
- proibição de contactar, por qualquer meio ou forma e em qualquer lugar (também em unidades hospitalares), diretamente ou por interposta pessoa, com a criança AA;
- proibição de contactar, por qualquer meio ou forma e em qualquer lugar, diretamente ou por interposta pessoa, com a(s) pessoa(s) que tenha(m) a sua guarda de facto no presente e/ou no futuro, Diretor(es) Técnico(s) e outras pessoas que exerçam funções na(s) casa(s) de acolhimento em que a criança se encontre acolhida e/ou venha a encontrar acolhida no futuro e ainda com médico(s), enfermeiro(s) e outras pessoas que exerçam funções na unidade hospitalar ou outra unidade de saúde em que se encontre e/ou venha a encontrar no futuro por questões relacionadas  com a criança;
- proibição de frequentar, permanecer ou se aproximar da casa de acolhimento/residência da criança/vítima AA atual e futura e/ou da unidade hospitalar ou outra unidade de saúde em que se encontre e/ou venha a encontrar, assim se fazendo JUSTIÇA !”.

Os progenitores responderam concluindo: [[8]]

“1. No dia 5 de agosto AA deu entrada nas Urgências do Hospital ..., após sofrer episódio de convulsão e hiporreatividade.
2. No dia 26 de agosto de 2022, foi aplicada a medida de promoção e proteção de acolhimento residencial urgente a AA, porquanto os pais eram suspeitos de episódio de “Shaken baby”, compatível com a identificação de “hemorragias retinianas”.
3. Em 30 de agosto de 2022, foi determinada a proibição de contactos dos progenitores com a criança AA por despacho com referência nº ...65.
4. Não se conformando com a decisão e de modo a manter o vínculo afetivo com a criança AA, a progenitora remeteu ao tribunal vários requerimentos, no sentido de lhe ser autorizado contactos com AA, tendo os mesmos sido indeferidos, “com o fundamento de não existirem circunstâncias  supervenientes que permitissem ao tribunal alterar a douta decisão”
5. Os progenitores prestaram declarações, onde negaram a prática de quaisquer atos que colocassem em causa a integridade física ou vida do AA.
6. A Sra. Perita, Drª II, prestou declarações no sentido de que as lesões que a criança apresentava seriam compatíveis com episódio de “shaken baby Syndrome”
7. Nestes termos, foi a criança AA encaminhada para o acolhimento residencial.
8. Desde então, a progenitora contactou diariamente a instituição de modo a obter  informações sobre o estado do seu filho AA, demonstrando uma permanente preocupação com o mesmo.
9. Foi designada uma conferência no sentido de se obter acordo quanto à medida de promoção a aplicar.
10. Contudo, em 10 de outubro de 2022, o Ministério Publico apresentou um requerimento, onde considera que se verifica que os danos causados à criança foram consequência do facto de os progenitores terem abanado a mesma, promovendo que a aplicação da medida de confiança com vista à futura adoção é a única que acautela o interesse superior da criança.
11. Aquando a realização da conferência os progenitores opuseram-se à medida promovida pelo Ministério Público
12. Os progenitores em sede de conferencia declararam que embora considerassem uma tremenda injustiça, concordariam com a manutenção da medida de acolhimento residencial.
13. Mostrando-se dispostos a colaborar com o tribunal, no sentido se apurar a verdade material, nomeadamente não se importariam de ser sujeitos a perícias psiquiátricas e psicológicas.
14. Tendo para este efeito, sido determinada a realização de perícia psicológica/psiquiátrica aos progenitores.
15. Sucedeu, porém, que a criança AA foi internada no dia 18 de outubro, com febre e episódio de convulsão.
16. Inicialmente os médicos referiram que se tratava de uma gastroenterite, tendo posteriormente o quadro clínico sido alterado para meningite.
17. Face ao exposto, no dia 24 de outubro, foi solicitada uma intervenção cirúrgica a AA que de acordo com a informação clínica teria possíveis complicações agravantes.
18. Sendo que para o efeito foram os progenitores contactados para dar o seu consentimento para a realização da intervenção cirúrgica, uma vez que não estão inibidos das responsabilidades parentais.
19. Ora, não podemos deixar de considerar que a criança sofreu um episódio de convulsão aquando se encontrava na residência de acolhimento sendo certo que não havia contacto com os progenitores desde o final do mês de agosto.
20. Ademais, não há qualquer elemento que prove que uma ligação entre o alegado “shaken baby”, o internamento datado a 18 de outubro e a posterior a necessidade de intervenção cirúrgica.
21. Pelo que fica a dúvida se efetivamente AA sofre de alguma doença patológica que possa originar estes episódios de convulsão.
22. Perante estes factos que puseram em risco a vida de AA, entendeu a Exma. Sra. Juiz autorizar os contactos entre os progenitores e a criança AA supervisionados por pessoas com idoneidade.
23. Estamos claramente perante uma alteração superveniente de circunstâncias, onde se considera fundamental que os progenitores mantenham contacto com a criança, atendendo à informação clínica junto aos autos que indica que há risco de agravamento.
24. Não se vislumbra também que os progenitores possam constituir perigo para o AA.
25. A este respeito a ... informou o tribunal que as visitas haviam decorrido tal como ordenado pela Exma. Sra. Juiz.
26. Pelo que, é manifestamente claro que os progenitores não constituem qualquer perigo para AA.
27. No respeitante aos factos que deram origem ao processo que se encontra em curso, nos Serviços do Ministério Público do Tribunal ..., inquérito crime, com o NUIPC 622/22.9, no qual se investiga a pratica do crime de “Homicídio Qualificado sob a forma tentada”, na pessoa do AA, sendo suspeitos os seus pais, que originou o processo de promoção e proteção, cumpre ainda investigar e apurar os factos indiciários do processo identificado, pois até á data não existe qualquer despacho de acusação ou uma decisão judicial com trânsito em julgado.
28. Atendendo á ausência de decisão judicial transitada em julgado no respeitante ao alegadamente praticado pelos progenitores, presume-se que os mesmos não praticaram tais atos.
29. Sendo imperioso que se permita o contacto entre os progenitores e a criança, e de modo a manter o vínculo afetivo entre os mesmos, que poderia, atendendo à alteração das circunstâncias não ter voltado a acontecer.
30. Neste sentido, E do que fica exposto pode concluir-se, que são três os grandes princípios em que assenta a LPCJP:
- O do interesse superior da criança.
- O da intervenção precoce: entendido no sentido de que intervenção das entidades competentes para o efeito (cfr. artºs. 4º, al. c), e 6º) deverá ter lugar logo que a situação de perigo seja detetada ou noticiada.
- O da atualidade e proporcionalidade: entendidos no sentido de que a medida adotada deverá ser necessária e adequada à situação concreta de perigo em que o menor se encontra (cfr. artº. 4º al. e)).
Por fim, e nesta análise que vimos fazendo, nunca nos poderemos esquecer que este tipo de processos têm a natureza de jurisdição voluntária (cfr. artº. 100º).
Significa tal, e antes de mais, que neste tipo de processos não existe um verdadeiro conflito de interesses a compor, mas tão só um interesse a proteger, o da criança ou jovem em perigo, muito embora possa existir um conflito de representações ou de opiniões acerca desse mesmo interesse.
Assim, neste tipo de processos, e ao contrário do que sucede nos processos de jurisdição contenciosa, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo, antes e sempre, adotar a solução que julgar mais conveniente e oportuna para o caso concreto, sempre com os olhos postos nos reais interesses das crianças ou jovens envolvidos em termos do seu futuro desenvolvimento físico-psicológico, intelectual e moral, que se pretende o mais harmonioso e equilibrado possível, e que, no fundo, consubstancia o tal interesse superior e o desenvolvimento integral, e sem nunca esquecer que, por isso, neste domínio as decisões nunca são definitivas, já que podem ser alteradas ou modificadas sempre que circunstâncias supervenientes o justifiquem.
Termos em que deverá ser rejeitado o recurso apresentado pelo Digno Procurador do Ministério Público, e por via dele, pela manutenção do despacho de autorização recorrido, assim se fazendo a devida e ACOSTUMADA JUSTIÇA!!”.

Tal recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito devolutivo. Porém, o Tribunal a quo não observou, quanto à nulidade arguida, o disposto no nº 1, do artº 617º, e no nº 1, do artº 641º, CPC – o que se entende, desde já, dispensável, nos termos do nº 5, daquele.

Nada, pois, parece obstar ao seu conhecimento, de que se irá tomar imediata e singularmente – dada a urgência do processo e a forma e conteúdo sucintos [[9]] inerentes às decisões respectivas, a natureza cautelar das medidas vigentes, o carácter provisório das pretendidas modificações em causa, o nível sumário das averiguações exigidas, o grau (indiciário) de suficiência das provas relativas às  circunstâncias factuais visadas (apenas as alegadamente alteradas), a espécie de jurisdição implicada (voluntária), a simplicidade, como se verá, das questões em apreço (apesar do volume do processo e da extensão das alegações) e, ainda, ponderando o efeito prático, nesta fase prognosticável, da decisão deste apelo, qualquer que ela seja, em face da especial efemeridade da medida cautelar mantida e aqui principalmente questionada (sujeita a uma espécie de “termo resolutivo”: autorização de visitas “enquanto” a criança permanecer no Hospital, cuja cessação, por verificação daquele ou em consequência de próxima revisão necessária, estarão iminentes) – nos termos dos artºs 652º, nº 1, alínea c), e 656º, CPC.

II. QUESTÕES A RESOLVER

Pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo dos poderes oficiosos do tribunal, se fixa o thema decidendum e se definem os respectivos limites cognitivos.

Assim é por lei – artºs 5º, 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 4, 637º, nº 2, e 639º, nºs 1 e 2, do CPC.

Também assim o entende pacificamente a jurisprudência: “o objecto do recurso é composto apenas pela matéria constante das conclusões do recorrente na alegação de recurso, das conclusões do recorrido na ampliação do recurso e das questões de conhecimento oficioso” [[10]].

O ponto de partida do recurso, por princípio, é sempre a própria decisão recorrida.

Com efeito, no nosso modelo (de reponderação e não de reexame da causa), por meio daquele reapreciam-se questões já julgadas na instância inferior e visa-se alterar o decidido, se e na medida em que afectado por invalidade ou por erro de julgamento.

As que, apesar de invocadas, aí não tenham sido apreciadas permanecerão fora do âmbito do conhecimento do tribunal ad quem [[11]]. Tal como as que sejam suscitadas como novidade. [[12]]

Compreende-se, assim, a função das conclusões e a importância de elas se limitarem concisamente, em obediência ao disposto no nº 1, do artº 639º, CPC, aos fundamentos sintéticos do pedido recursivo, de alteração ou de anulação da decisão impugnada, e por estrita referência a esta.

Sob esta perspectiva, importa fazer e destacar um prévio enquadramento do presente recurso, de modo a focarmos a sua análise no essencial do respectivo objecto.

Assim, recorde-se que, na sua génese, está o requerimento de 17-11-2022, apresentado pelo Ministério Público, ora apelante, em que, de novo [[13]], além de dever manter-se a medida de acolhimento residencial (na altura, em execução no Hospital ...), peticionou que se decretasse a proibição de os progenitores contactarem, em qualquer lugar, por qualquer meio ou forma, directamente ou por interposta pessoa, a criança ou as entidades (de acolhimento ou hospitalares) e/ou pessoas a estas ligadas que a tenham ou venham a ter à sua guarda de facto, no presente ou no futuro, e de se acercarem da mesma.

Ou seja, no fundo, e de novo (voltamos a sublinhar), o que se requereu foi que, preconizando-se a repristinação da medida anterior tal como emergente das decisões de 26-08-2022, de 30-08-2022 [[14]] e de 13-10-2022, para tal se revogasse ou fizesse cessar a alteração de 25-10-2022, na qual, tão só e de diferente, apenas se decidira permitir as visitas dos progenitores “enquanto o mesmo se encontrar internado no Hospital ...” (na condição de serem acompanhadas nos termos aí estabelecidos), e se explicitasse/aditasse que a almejada reposição da proibição de contactos deveria ter a descrita abrangência (subjectiva, objectiva e circunstancial).

E saliente-se, também a propósito, que o que se decidiu, no despacho ora recorrido de 24-11-2022 proferido na sequência e sobre o aludido requerimento, foi (indeferindo tais alterações):

- manter inalterada a situação anterior (aliás, prorrogando até, por 3 meses, a medida de acolhimento residencial vigente defendida pelo apelante);
- manter a autorização de contactos, também então vigente, nos mesmos termos e condições (em que se destaca a sua interinidade: “enquanto …se encontrar internado …), assim se indeferindo a pretensão do recorrente.

Em face do exposto, constata-se, fácil e simplesmente, que, para além da arguida invalidade da decisão, o que sobra das 34 conclusões e seu epílogo como exclusivos temas do recurso, depois de necessariamente decantadas, restringe-se às visitas (questão em que o Mº Pº requerente na verdade ficou “vencido” e, por isso mesmo, revestido, como decorre do artº 631º, nº 1, CPC, de legitimidade para impugnar). [[15]]

Assim:

a) É nula a decisão recorrida por omissão de pronúncia?
b) Deve a mesma ser revogada e, em sua substituição, decidir-se fazer cessar a autorização das visitas e ampliar, nos termos requeridos, a proibição de contactos?

III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Relevam os que emergem do relato antecedente, notando-se que, no recurso, nenhuma questão relativa à matéria de facto considerada no despacho recorrido vem suscitada.

IV. APRECIAÇÃO
           
1ª questão: nulidade

De facto, no requerimento decidido pelo despacho em crise, o Ministério Público, como se relatou, além de pedir a cessação da autorização de visitas e consequente retorno aos termos e condições da medida anterior decorrentes dos despachos de 26 e de 30 de Agosto e de 13 de Outubro, acrescentou que a proibição daquelas se definisse com a abrangência subjectiva, objectiva e circunstancial descrita.

No despacho de 27 de Novembro ora em apreço, decidiu-se manter o de 25 de Outubro, e, assim, a autorização de contactos, nos termos aí estabelecidos e “enquanto” subsistir o internamento hospitalar.

Portanto, nada se disse, expressamente, quanto à requerida abrangência da proibição.

Daí que – porém, sem razão, adiante-se – o recorrente questione (conclusão XXXIII): “Relativamente a estas proibições que o Ministério Público requereu, a douta decisão incorreu, ostensivamente, na nulidade de omissão de pronúncia, prevista no art.º 615.º, n.º 1, d) do CPC, porquanto não se pronunciou sobre pretensões relevantes para a decisão de mérito, que foram expressamente requeridas pelo Ministério Público na sua promoção de 17/11/2022 (referência ...80), e que devia apreciar.”.

É certo que o nº 2, do artº 608º, CPC, impõe o dever de o juiz resolver “todas as questões …”.

E não o é menos que, se deixar de o fazer, a sentença (ou despacho) é nula, conforme alínea d), do nº 1, do artº 615º.

Sucede, todavia, que, a questão decidenda – proibição ou autorização de visitas – é, no fundo única. E foi decidida.

O que ela contém, acumulada, é uma espécie de outros pedidos, mas só aparentemente diversos, sem autonomia e independência, porquanto respeitantes ao âmbito, termos e condições da proibição, no caso de esta ser deferida.

A proibição/autorização consubstancia a questão (ou pedido) principal ou fundamental. As referidas condições são acessórias dela e estão pressupostas nela.

Ora, se a autorização foi mantida e adversamente negado o restabelecimento da proibição de contactos pretendida, tal significa que, implicitamente, também a pretensão relativa à dita abrangência subjectiva, objectiva e circunstancial da medida negada o foi. Ou seja, se necessária e consequentemente, ao manter a autorização “enquanto…”, se decidiu indeferir a proibição, mesmo como ela vigorou em função dos despachos do final de Agosto e do princípio de Outubro, indeferido foi também necessariamente o requerido quanto aos termos e condições desta nela pressupostos e que só faria sentido determinar se ela houvesse sido deferida e reposta.

Repisando: se o Tribunal decidiu que continuassem as visitas autorizadas, nenhuma lógica, nem utilidade, teria, então, ele enveredar ainda pela apreciação dos referidos termos e condições e pronunciar-se, expressa mas inutilmente, sobre os mesmos depois que a proibição a que se refeririam ficou afastada.

Deve, pois, concluir-se que estas sub-questões parcelares foram implicitamente decididas. [[16]]

O julgamento implícito deve ser considerado com parcimónia, na medida em que pode a sua aceitação não se coadunar com a certeza e a segurança jurídicas da decisão, uma vez que a determinação dos seus “limites e termos”, e portanto a definição do alcance do caso julgado (artº 621º), podem revelar-se complicados, mesmo por via de interpretação.

Ele deve, porém, acolher-se quando evidente e até mesmo incontornável, face à substância do decidido e à razoabilidade do seu sentido lógico.

Como se refere, a tal propósito, no sumário do Acórdão da Relação de Coimbra, de 08-11-2016: [[17]]

“Deve acolher-se a tese da admissibilidade do julgamento implícito em processo civil apenas nas situações em que o objecto do processo é composto por uma cumulação aparente de pedidos, correspondendo a decisão implícita a um pressuposto necessário do julgamento expresso.”.

Ainda que assim não se entendesse, ou seja, que há julgamento implícito, inevitavelmente a “questão” dos termos e condições da proibição, sempre estaria prejudicada por ter sido mantida a autorização – reverso que logicamente inutiliza qualquer pronúncia sobre aquela.

É que, do dever de apreciar “todas as questões”, estão excepcionadas, na referida norma, ”aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.

De qualquer modo, convém sempre lembrar-se que a arguição de invalidades da decisão redunda, na maior parte das vezes – e esta seria uma delas –, em inutilidade, por força do nº 1, do artº 665º, CPC.

De facto, mesmo que aquela existisse e fosse declarada, sempre este Tribunal estaria sujeito ao dever de conhecer do objecto da apelação.

E é este que, ao fim e ao cabo, interessa, tanto que não foi peticionado qualquer efeito prático-jurídico consequente à nulidade, mas, pelo contrário, que se “revogue” e se “substitua” a decisão proferida, resultados estes que têm, a ver com eventual erro de julgamento na mesma e pressupõem a sua validade.

Negativa, portanto, a resposta à primeira questão recursiva.

2ª questão: revogação/substituição do despacho de 24-11-2022

Para além do carácter marcadamente provisório, revisível e, portanto, não duradouro, das decisões, sobretudo as cautelares, neste especial processo, que resultam do regime de promoção dos direitos e de protecção das crianças e dos jovens em perigo – Lei nº 147/99, de 1 de Setembro, artigos 37º, nº 3, e 62º, nº 1 – e cuja alteração pressupõe “que ocorram factos que a justifiquem” e logicamente uma decisão “fundamentada de facto e de direito” – artº 62º, nº1, 2 e 4 –, também o artº 988º, nº 1, do CPC, aplicável por força do artº 100º daquele outro diploma, prevê que, em tais processos, “as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração; dizem-se supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso.”.

Da referida natureza do procedimento e das referidas normas decorre, assim, por um lado, que, “nas providências a tomar o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna, podendo as resoluções ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstancias supervenientes que justifiquem a alteração, tanto as ocorridas posteriormente à decisão, como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso” [[18]], mas, por outro, um velho e peculiar problema consistente em distinguir o que há, em cada decisão, de definitivo, imutável, obrigatório (para os interessados e para o próprio Tribunal), nos termos dos artºs 628º, 619º e 621º, do CPC), ou seja, do sentido e efeitos ou do alcance do caso julgado, e do que pode, e em que condições, ser alterado, apesar do valor e da obrigatoriedade imanentes à certeza e segurança jurídicas que aquele lhe confere mas, nestas situações, condicionados e relativizados à ocorrência de “circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração”.

Como, sobre isso, lapidarmente se refere no Acórdão da Relação de Évora, de 16-03-2006 [[19]]:

“I - Nos processos de jurisdição voluntária, as decisões, ao invés do que sucede nos outros tipos de processo, não são, após o seu trânsito em julgado, definitivas e imutáveis. Elas são alteráveis sempre que se alterarem as circunstâncias em que se fundaram.
II - Trata-se duma espécie de caso julgado, sujeito a uma cláusula “rebus sic stantibus”, ou seja, um caso julgado com efeitos temporalmente limitados. Mas desta especificidade da alterabilidade das resoluções nos processos de jurisdição voluntária, não decorre, porém, um menor valor, uma menor força ou menor eficácia da decisão.
III - Na verdade enquanto não for alterada nos termos e pela forma processualmente adequada, pelo Tribunal competente, a decisão impõe-se tanto às partes, como a terceiros afectados pela mesma (art.º 671 do CPC) e até ao próprio Tribunal – caso julgado material e formal – na medida em que proferida a decisão fica esgotado o poder jurisdicional (art.º 666º n.º 1 do CPC) só podendo ser alterada nos termos prescritos na lei. Enquanto isso não suceder a decisão tem a plena força do caso julgado material.”.

Assim, como também se proclama no Acórdão do STJ, de 13-09-2016 [[20]]:

“IV - O caso julgado forma-se no processo chamado de jurisdição voluntária nos mesmos termos em que se forma nos demais processos e com a mesma força e eficácia. Apenas sucede que as resoluções naquele tomadas, apesar de cobertas pelo caso julgado, não possuem o dom da “irrevogabilidade”, pois podem ser modificadas com fundamento num diferente quadro factual superveniente que justifique a alteração (como o admite o art. 988.º do CPC).
V - As «circunstâncias supervenientes», a que o preceito citado alude, justificativas da alterabilidade das resoluções tomadas em processos de jurisdição voluntária hão-de reconduzir-se aos factos em si mesmos, a realidades sobrevindas, com reflexo na alteração substancial da «causa de pedir» – no conceito previsto no art. 581.º do CPC […].
VI - Por conseguinte, sem a eventual demonstração de «circunstâncias supervenientes» e, por isso, sem a pronúncia sobre esse (eventual) diferente quadro factual superveniente, não deve nem pode o juiz, […], alterar a anterior decisão transitada em julgado.”.

Sublinha-se, pois: a alteração da resolução tomada depende da prova da ocorrência de circunstâncias fácticas supervenientes aptas a justificarem uma alteração.

Ao invés, não se verificando tal ocorrência, a decisão está blindada, desde logo, pelo esgotamento do poder jurisdicional do juiz respectivo e, depois, pelo efeito de caso julgado que a cobre e torna inatacável.

Ora, a precedente decisão de 25 de Outubro – ... –, porque dela não foi interposto recurso (ou, o que é o mesmo, a parte recorrente entendeu desistir daquele que interpôs, por o considerar inútil), transitou em julgado e, por isso, ficou coberta pela força respectiva – artºs 628º e 619º a 621º, CPC.

Tal significa que não podem tal decisão nem os respectivos pressupostos rediscutir-se em nova tentativa e mediante a simples insistência em novo requerimento, a menos que – bem entendido – neste se aleguem factos concretos integrantes do tal quadro de circunstâncias supervenientes que, em face do regime legal cuja aplicação se persegue, justifiquem a alteração da resolução/medida anterior.

Ora, o Ministério Público, nas 32 páginas do seu douto requerimento de 17 de Novembro, como circunstâncias factuais supervenientes, alegou, tão só, que:

“59. O menor AA foi operado ao crânio no Hospital ... no ..., no dia 25/10/2022.
60. Onde permanece internado na Ala Pediátrica, com situação clínica estável.”.
61. A criança AA, no dia 09/11/2022, teve a necessidade de ser sujeito a nova intervenção cirúrgica para nova drenagem, como já aconteceu no passado dia 25/10/2022.
62. A progenitora da criança AA fez chamadas telefónicas para a instituição de acolhimento residencial, nos seguintes dias: 28.09.2022, 02.10.2022, 03.10.2022, 04.10.2022, 06.10.2022, 07.10.2022, 09.10.2022, 12.10.2022, 13.10.2022, 15.10.2022, 16.10.2022, 18.10.2022, 19.10.2022, 20.10.2022 (2 vezes) e 21.10.2022. “ [[21]]

A partir daí, ligando isto com tudo aquilo que já constava no processo antes da decisão de 25 de Outubro e reiterando a esta as críticas formuladas no recuso dela interposto – como se vê cotejando o dito requerimento com as alegações naquele produzidas, de que no relatório deste se verteram largos extractos, e agora nas deste amplamente repetidas, recurso aquele já findo, como se mencionou – pretendeu revertê-la e ampliá-la, percutindo, para tal, a sua leitura e valoração subjectivas que, salvaguardado o devido e merecido respeito, não atinam com o quadro factual considerável e as regras legais aplicáveis.

Com efeito, sucede que a necessidade de operação ao crâneo e a perspectiva de ela se realizar de imediato, como realizou, foi precisamente o pressuposto justificativo em que assentou a decisão de 25 de Outubro.

A permanência no internamento 23 dias depois disso não é novidade, atento o quadro grave que já então se lobrigou e ponderou.

O mesmo sucede quanto à nova cirurgia realizada em 09 de Novembro.

Quanto às dezasseis chamadas telefónicas feitas pela mãe para a instituição de acolhimento residencial entre Setembro e Outubro, a última em 21 deste mês, além de anteriores também à decisão de 25, nenhum constrangimento entretanto lhes foi referido de modo a valorizá-las negativamente.

De resto, em relação a novas circunstâncias fácticas, como se relatou apenas foram, entre 25 de Outubro e 24 de Novembro, aportadas a informação clínica do Centro Hospitalar ..., a informação social que dá conta da permanência do menor no Hospital e da nova intervenção cirúrgica e que as visitas dos progenitores autorizadas decorreram normalmente sem qualquer intercorrência assinalável como negativa (pelo contrário), e o relatório social de acompanhamento de que ressalta a normalidade da integração da criança e nenhuma censura da mãe em função das ligações telefónicas feitas (pelo contrário).

Ora, a decisão recorrida, em face de tal quadro, considerou que os pressupostos indiciários determinantes das medidas anteriores permanecem inalterados, salientando que do procedimento criminal entretanto desencadeado e em curso não brota qualquer notícia sobre a responsabilidade da mãe diversa da antes perspectivada [[22]] e em termos de, pelo menos para já, basear acusação contra ela, assim refutando a qualificação que, no seu requerimento de 17 de Novembro, o Mº Pº faz da sua conduta e inerente personalidade e perigosidade e, para tal, observando que aquela “parte de pressupostos que considera assentes, nomeadamente quanto à autoria dos factos que deram origem a este processo, pretendendo que o Tribunal decida com base na convicção que assertivamente plasmou nos requerimentos” mas que “esta convicção, até ao momento, ainda não foi bastante para determinar que fosse proferido despacho final de inquérito quanto a estes factos, muito menos uma decisão judicial definitiva”; que, face às dúvidas existentes sobre a paternidade registada, falta apurar a biologicamente verdadeira, quadro em que poderá desenhar-se uma alternativa à adoção, assim se desconsiderando tal hipótese como critério das medidas, apesar de ali ser dada como solução factualmente inevitável e, por isso, justificativa da essencialidade da absoluta proibição de contactos preconizada; que o resultado das diligências instrutórias em curso é essencial “ao exato apuramento do contornos e da gravidade da situação de perigo […], bem como à definição da concreta medida de promoção e protecção”.

Considerou, ainda, não defensável que seja “inquestionavelmente verdadeira a versão dos factos apresentada pelo Ministério Público” e, por isso, não pode o Tribunal “partir do pressuposto de que estes progenitores foram, indiscutivelmente, os causadores dos danos físicos constatados no AA”, nem que “a necessidade deste novo internamento decorreu diretamente de qualquer ato dos progenitores” e que inexistem “elementos de prova que permitam sustentar a existência de um nexo de causalidade entre este internamento, que teve lugar no dia 18 de outubro, e o anteriormente ocorrido, em agosto”. [[23]]

De resto, percute, ainda, que a autorização de visitas se baseou na ponderação de que a intervenção cirúrgica de Outubro implicava “risco de vida”, focando, por último, princípios constituições como a da “dignidade da pessoa humana” que justificavam a autorização no específico circunstancialismo então configurado e de que resultava poder estar em perspectiva a “ultima vez”.

Assim, tudo conflui na conclusão de que “Inexiste qualquer circunstância que, por ora, determine que se altere o decidido”.

Em face disto, o recorrente, brandindo a nova intervenção cirúrgica (conclusão IX) e o rol de chamadas telefónicas (conclusão X), reitera os seus argumentos já vertidos no requerimento de 17 de Novembro (conclusões XXI e XXII) e censura de “paradoxal e contraditória” a decisão recorrida (conclusões XXII e XXIII), pugnando pela sua revogação.

Ora, cabe perguntar:

À parte, as circunstâncias pregressas, cobertas, como se disse, pelo caso julgado (mas em que insiste) e aquelas que, resultando de convicção e de avaliação próprias, realmente não defluem dos autos e, por isso, não merecem adesão, aquilo que resta como comprovadamente ocorrido depois de 25 de Outubro e até à decisão de 17 de Novembro que temos em mira, é passível de constituir circunstancialismo superveniente, novo, justificativo das alterações pretendidas?

Decidida e seguramente, a resposta é: não!

Recorde-se que ainda não findou a instrução aberta no despacho de 26-08-2022 e, portanto, que o diagnóstico da situação e a terapêutica para a mesma permanecem no âmbito da provisoriedade.

As medidas cautelares nesta cabíveis foram tomadas e estão consolidadas em função das circunstâncias indiciariamente apuradas. Elas só podem ser alteradas em função de outras supervenientes. Nunca em função das prognosticáveis à luz do catálogo legal mas ao arrepio daquelas.

Note-se que mesmo a autorização de visitas só perdurará, face às decisões em vigor, se enquanto subsistir o internamento hospitalar.

Estas circunstancias anteriores que justificaram as medidas tomadas, maxime a dita permissão, persistiam à data do requerimento de 17 e da decisão de 24 de Novembro. Não desapareceram, pois, nem evoluíram – que resulte dos autos, ao menos com um grau de suficiência probatória bastante nas providências cautelares – para mais graves e perigosas, pese embora todo o esforço argumentativo lançado naquele e renovado nas alegações.

Nada justificava, factual e juridicamente, atenta a manifesta escassez nos autos de provas supervenientes, em 24 de Novembro, o agravamento das medidas, sequer a reversão da autorização condicionada à duração do internamento.

Enfim, não sendo aqui e agora questionável nem reapreciável o decidido em 25 de Outubro, apesar de em grande parte repetido nesta apelação, o teor das alegações apresentadas no recurso interposto contra aquela  – em relação a cuja decisão transitada e respectivos fundamentos vale igualmente a regra rebus sic stantibus tão enfatizada (conclusões XVI e XVII) quanto às de 26 e 30 de Agosto ou de 13 de Outubro, e sendo verdade, como o Ministério Público apelante reconhece (conclusão XIX), que “Enquanto não ocorrerem alterações fundamentais ou significativas da situação existente à data em que foi decidida a proibição e manutenção da proibição dos contactos dos pai com a criança, não poderia o Tribunal “reformar” essas decisões sob pena de, fazendo-o, como fez, provocar a instabilidade jurídica decorrente de julgados contraditórios com inevitáveis reflexos negativos no prestígio dos tribunais e nos valores da certeza ou segurança jurídica, além de atentar de forma indesculpável contra a saúde, segurança e bem estar da criança” –, mais não é necessário acrescentar para se concluir que, tendo a decisão de 25 de Outubro transitado em julgado e não se verificando circunstâncias supervenientes justificativas de qualquer alteração, então mutatis mutandis, não podia o Tribunal a quo alterá-la  com o risco de desencadear precisamente aqueles recusados efeitos indesejáveis, pelo que deve simplesmente confirmar-se a decisão criticada por a mesma não ter desrespeitado tal princípio nem qualquer regra legal.

É negativa, pois, também a resposta à segunda questão recursiva.
           
V. DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se julgar improcedente o recurso e, consequentemente, negando provimento à apelação, confirma-se a decisão recorrida.

Sem custas – artºs 527º, nº 1, do CPC, e 4º, nº 1, alínea a), RCP.
*
Notifique.

Considerando a natureza e objecto do processo (cuja tramitação e instrução têm decorrido de forma manifestamente acelerada e implicado múltiplas e sucessivas decisões de âmbito cautelar) e sem embargo do efeito do recurso (devolutivo) atribuído em 1ª instância (e nesta mantido) e, ainda, de a presente decisão não estar transitada mas afigurando-se oportuno e conveniente que do estado deste recurso haja conhecimento actualizado no Tribunal recorrido, comunique-se-lhe a mesma, de imediato, com simples cópia.
***
Guimarães, 16 de Janeiro de 2023

Esta Decisão vai assinada digitalmente no Citius, pelo seu Relator José Fernando Cardoso Amaral, Juiz-Desembargador.

           


 [1]Por opção do relator, o texto próprio não segue as regras do novo acordo ortográfico.
[2] Com base na seguinte factualidade aí julgada indiciariamente provada:
1. Aquando do nascimento do menor AA, em 21.04.2022, foi o mesmo referenciado à CPCJ ..., pelo Centro Hospitalar ..., porquanto os pais eram portadores de escabiose, o que havia sido detectado há várias semanas, sendo possível que não cumprissem o tratamento.
2. A CPCJ ... recolheu os consentimentos para intervenção, junto dos pais do menor em 26.04.2022, mas nunca chegou a com os mesmos celebrar qualquer acordo de promoção e proteção a favor do menor, pese embora se tenham mantido em contacto telefónico com os pais e tenham efetuado uma visita domiciliária em 10.05.2022, tendo o processo sido mantido em avaliação e diagnostico.
3. No dia 05 de Agosto, o menor AA, actualmente [?] com 3 meses de idade, deu entrada no Centro Hospitalar ..., transportado pela mãe e pai, ao serviço de urgência do Centro Hospitalar ... (Centro Hospitalar ...) no dia 04/08/2022, em contexto de um episódio de convulsão e hiporreatividade.
4. De acordo com a história contada pela mãe à equipa médica, a criança estaria com a mãe e o padrasto na cama, quando sofreu uma "crise convulsiva". Depois, uma vez que o menor não responderia a estímulos e "parecia que não estava a respirar", o casal tê-lo-á tentado reanimar com estimulação abdominal.
5. Ainda no serviço de urgência do Centro Hospitalar ..., terá realizado TC crânio-encefálica, que terá revelado hemorragia cerebral e hematoma subdural recente. Realizou ainda radiografia do esqueleto, que não terá mostrado fraturas.
6. Foi depois transferido para o Hospital ... e internado no Serviço de Medicina Intensiva Pediátrica. Neste hospital, foi observado pelas especialidades de Neurocirurgia e Oftalmologia, que detetou a presença de hemorragias retinianas bilaterais.
7. Repetiu também a TC crânio-encefálica, mantendo evidência de hemorragia intracraniana e, no dia 05/08/2022, fez eletroencefalograma que revelou encefalopatia difusa.
8. Adicionalmente, realizou uma ecografia renopélvica, que não terá revelado alterações.
9. No dia 09/08/2022, durante a manhã, a criança terá apresentado um novo episódio de crise convulsiva, caracterizado por mioclonias dos membros superiores, razão pela qual teve que ser sedada, entubada e ventilada.
10. De acordo com a informação prestada pela assistente social, à admissão, a criança apresentaria alguns sinais de falta de cuidados de higiene ("unhas sujas").
11. Foram identificadas “hemorragias retinianas” nos quatro quadrantes, bilateralmente pela especialidade de oftalmologia que aponta “compatível com “shaken baby” e imagiologicamente “hemorragia subdural aguda na região da alta convexidade à direita” e “pequenos focos de hemorragia subaracnoídea nas regiões parietais bilaterais”.
12. De acordo com a observação por Neurocirurgia, estes achados imagiológicos encontram- se "em diferentes fases (subagudo/ agudo), portanto suspeito de lesões em tempos diferentes", o que aponta para mais de um momento de produção.
13. Ao exame físico foram objectivadas equimoses no abdómen, braço esquerdo e pé esquerdos, que são compatíveis com traumatismo(s) de natureza contundente recente(s).
14. Relativamente às equimoses no abdómen, os progenitores terão referido à equipa médica que estas teriam sido produzidas em contexto de "estimulação abdominal" com o objectivo de reanimação do examinando no dia em que foi transportado ao Serviço de Urgência, sendo de admitir que essas lesões tenham tido origem nesse contexto.
15. Relativamente às equimoses no braço e pé esquerdos, não foi relatada qualquer explicação.
16. Contudo, a sua produção em contexto acidental afigura-se, segundo a Perita do Gabinete Medico Legal que levou a cabo o a perícia de avaliação de dano corporal, como inverosímil, tendo em conta a idade do examinando e inerente incapacidade de locomoção ou deambulação bem como a sua localização atípica, na ausência de um relato que faculte uma justificação adequada para a sua origem.
17. Tendo em conta a natureza das lesões, os tratamentos e os exames complementares ainda em curso, não é possível nesta data caracterizar eventuais consequências permanentes do ponto de vista médico-legal.
18. De igual modo e tal como resulta do relatório elaborado pela Perita do Gabinete Medico Legal que levou a cabo o a perícia de avaliação de dano corporal que o contexto familiar apurado e atrás descrito configura uma situação de risco para o menor, por isso, a adopção de medidas psicossociais tendentes a assegurar a sua protecção.
19. No caso concreto, os pais do menor são suspeitos de terem provocado ao menor graves lesões cerebrais, tal como resulta dos elementos clínicos juntos aos autos e da perícia de avaliação de dano corporal realizada pelo GML.
20. Encontra-se em curso, nos Serviços do Ministério Público do Tribunal ..., inquérito crime, com o NUIPC 622/22.9, no qual se investiga a pratica do crime de “Homicídio Qualificado sob a forma tentada”, na pessoa do menor, sendo suspeitos os seus pais.”.
[3] Tal decisão assentou na seguinte fundamentação: “O que está em causa nos autos é essencialmente saber se deve manter-se a medida provisória de promoção e proteção urgente de acolhimento residencial, prevista no artigo 35.º, f) e 50.º, n.º 3 da LPCJP, a favor do menor AA, em Unidade Hospitalar apta a prestar-lhe os necessários cuidados médicos, desta feita, e a partir do dia 30.08.2022, a ser executada no Hospital ..., e, após a sua alta clínica, em instituição apta a receber o menor, oportunamente a indicar pela Segurança Social, pelo período de 3 meses, sem prejuízo de ulterior prorrogação e/ou alteração, bem como se deve permitir-se que os pais do menor […], poderão contactar com o este, ainda que em ambiente hospitalar.
Começando por esta última questão, basta ter presente o que acima consta, na transcrição da promoção referida, em relação à caracterização do estado psicológico e psiquiátrico da mãe do menor, que aqui se dá por reproduzido, por economia processual, bem como o seu passado de inobservância da lei, e o seu presente de, pelo menos alegada, igual inobservância da lei, designadamente penal, para concluir, intuitivamente, dir-se-ia, que a mãe do menor não deve ter por ora qualquer contacto com este. Na verdade, a sua perturbação mental, a sua inadaptação social e o seu descontrole emocional são de tal modo evidentes que qualquer contacto com o menor, atento o seu mais que frágil estado de saúde, poderá redundar numa regressão dos lentos progressos do seu estado clínico.
Por outro lado, tendo em conta o objeto do processo, o concreto estado de saúde do AA e as lesões que apresenta, e que os principais suspeitos da autoria dos factos em investigação são os próprios pais do menor, é, ainda, evidente, a necessidade de garantir, por ora, e até ulterior e cabal investigação, que tais pessoas se não possam acercar da vítima, sejam eles pais ou não.”.
[4] Sublinhados ora apostos.
[5] Sublinhados ora apostos.
[6] Despacho esse que refere: “Atendendo à proximidade do prazo de revisão da medida cautelar aplicada, determina-se que, com cópia do documento em referência e de imediato, se abra vista ao MP e se notifiquem os intervenientes elencados nos artigos 84.º e 85.º da LPCJP, a fim de, querendo, se pronunciarem, até ao próximo dia 21 de novembro de 2022 (inclusive), sobre a eventual prorrogação da medida cautelar aplicada nestes autos, considerando as diligências ainda em curso”.
[7] Manifestamente desalinhadas com o dever de síntese imposto no nº 1, do artº 639º, CPC.
[8] Igualmente sem atentarem no dever de síntese imposto no nº 1 do artº 639º, do CPC.
[9] Tanto quanto o permite o caso, o volume do processo e a extensão das peças produzidas nele.
[10]Acórdão do STJ, de 10-11-2022, processo nº 815/20.3T8BGC-B.G1.S1 (Maria da Graça Trigo).
[11] Caso não seja arguida a nulidade com base em tal omissão de pronúncia e se não trate de matéria de conhecimento oficioso.
[12] Isto mesmo foi lembrado no Acórdão desta Relação de 07-10-2021, proferido no processo nº 886/19.5T8BRG.G1 (Vera Sottomayor).
[13] De novo, note-se, sobretudo, em relação ao decidido em 25-10-2022 (e já estabilizado, por não eficazmente impugnado).
[14] Nesta, como relatado, se proibiram os progenitores de “estar” com o menor (já sujeito à medida de acolhimento residencial) e de “contactar com o mesmo”.
[15] Aliás, nos parágrafos introdutórios das alegações, precisa-se – precisão na verdade útil, dada a extensão das alegações e a profusão das referências a toda a tramitação, situação e decisões anteriores, e dado também o que mais adiante se dirá quanto às condições em que a decisão de 25-10-2022 poderia ser modificada – que se recorre da decisão de 24-11-2022 “na parte em [que] não acolheu o promovido pelo Ministério Público na sua promoção de 17/11/2022” quanto à proibição de os progenitores contactarem a criança, nos termos ampliados ali requeridos, sendo certo que, como se explicita a seguir, a motivação do recurso “reside, por um lado, na discordância relativamente à decisão que autoriza os progenitores a visitarem” – ou seja, na de 25-10-2022, objecto, porém, da outra apelação, entretanto finda, e não desta – e, “por outro lado, o recurso visa que [o Tribunal] determine a alteração da decisão sob recurso, no sentido de serem decretadas as proibições dos progenitores de contactarem com a criança”, proibições estas nos termos alargados já referidos.
[16] Como consta do Acórdão da Relação do Porto, de 10-07-2019, processo nº 557/17.7T8OVR-A.P1 (João Diogo Rodrigues), citando também decisão do STJ, de 12-09-2007 (processo 07S923, relatado por Sousa Peixoto), “uma decisão é implícita quando está subentendida noutra que foi expressamente tomada; ou seja, quando está tacitamente contida noutra decisão expressa. «E sendo assim, para que se possa falar de decisão implícita é necessário que a solução da questão sobre que recaiu a decisão expressa pressuponha a resolução prévia de uma outra questão, ou seja, é necessário que a resolução de determinada questão esteja dependente da resolução dada a outra que constitui um seu antecedente lógico».”. Como na anotação a esta passagem daquele aresto se menciona, “A decisão implícita pode, inclusive, formar caso julgado, como se decidiu, entre outros, no Ac. STJ de 14/05/2014, Processo n.º 120/13.1TTGRD-A.C1S1, consultável no mesmo endereço eletrónico.”.
[17] Processo nº 170/14.0TBCTB-A.C1 (Jorge Arcanjo), cuja fundamentação vale a pena aqui deixar para melhor esclarecimento:
O art.660 do CPC de 1939 continha um parágrafo único que dizia - “Consideram-se resolvidas tanto as questões sobre que recair decisão expressa, como as que, dados termos da causa, constituírem pressuposto ou consequência necessária do julgamento expressamente proferido”.
Sobre ele ensinava Alberto dos Reis que “o parágrafo único contém uma regra da maior importância e ao mesmo tempo da maior delicadeza. Aceita o julgamento implícito, aplicando-o às questões que, dados os termos da causa, constituírem pressuposto ou consequência necessária do julgamento expresso. É a doutrina dos autores de maior categoria científica. Mas não pode deixar de reconhecer-se que o princípio é perigoso, pelo que a jurisprudência deve fazer dele uso prudente e moderado” (CPC Anotado, vol.V, pág.59 ).
A Reforma de 1961 suprimiu esse parágrafo único, com a seguinte justificação: ”o problema da extensão (objectiva) do caso julgado aos motivos da decisão não está ainda suficientemente amadurecido na doutrina nem na jurisprudência, em termos de permitir ao legislador o enunciado claro duma posição. Por isso, à semelhança do que se fez no artigo 96, julga-se que a atitude mais prudente é a de não tocar no problema e deixar à doutrina o seu estudo mais aprofundado e à Jurisprudência a sua solução, caso por caso, mediante os conhecidos de integração da lei “(BMJ 123, pág.120 ).
A posição generalizada é no sentido da inadmissibilidade de julgamentos implícitos, devido ao princípio da segurança jurídica e ao dever de fundamentação, e pese embora a supressão do § único do art.660 do CPC/1939, há quem entenda que a possibilidade de julgamentos implícitos postula um problema de interpretação da decisão, e neste contexto, com as devidas cautelas, pois “só deve admitir-se como julgamento implícito aquele que seja consequência necessária, irrecusável, do julgamento expresso“ (Ac RC de 14/5/2014 ( proc. nº 120/13), em www dgsi.pt).
Contudo, a identificação do julgamento implícito exige a necessidade de um critério de conexão lógica entre decisões implícitas e as decisões expressas, não bastando, para o efeito, que em face dos termos da causa, as decisões (implícitas) constituam pressuposto necessário do julgamento expresso, porque um tal entendimento pode originar incerteza e violar o princípio da segurança jurídica e do contraditório.
Deve, no entanto, acolher-se a tese da admissibilidade do julgamento implícito, mas apenas “quando, dados os termos da causa, este corresponda a um pressuposto ou consequência necessária do julgamento expressamente proferido sobre um determinado pedido que, com o implicitamente decidido, forme uma acumulação de pedidos” (cf. Luís Guilherme Pereira, A Possibilidade Jurídica de Julgamentos Implícitos no Processo Civil, 2012, Salvador da Baía, pág. 135 e segs.).
Por conseguinte, admissibilidade do julgamento implícito em processo civil deve ser acolhida somente nas situações em que o objecto do processo é composto por uma cumulação aparente de pedidos, correspondendo a decisão implícita a um pressuposto necessário do julgamento expresso.”.
[18] Sumário do Acórdão da Relação de Lisboa, de 13-10-2016, processo nº 808/14.0TBSCR-6ª Secção (Anabela Calafate).
[19] Processo nº 156/06-3 (Bernardo Domingos).
[20] Processo nº 671/12.5TBBCL.G1.S1 (Alexandre Reis).
[21] E outros não descortinou o Tribunal recorrido aquando da decisão em crise nem se descortinam e que pudessem e devessem ser consideradas – artº 986º, nº 2, CPC.
[22] Na decisão inicial, consideraram-se os progenitores “suspeitos” de terem causado as lesões à criança, mas, por ora, tais suspeitas ainda não atingiram sequer o patamar da “suficiência” exigida nos nºs 1 e 2, do artº 283º, do Código de Processo Penal, para por tal poderem ser “acusados”.
[23] De facto, sobre tal nexo não existia ainda nos autos qualquer pronúncia pericial médico-legal, motivo porque, então, se insistiu até pela mesma, apesar do que o Mº Pº, dando-a como dado fáctico adquirido, enveredou pelo seu juízo de agravamento do quadro anterior, maxime quanto à perigosidade, essencialmente neste baseando o seu requerimento e agora o recurso.