Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1143/18.0TELSB.G1
Relator: BRÁULIO MARTINS
Descritores: CRIME DE BURLA
PROVA INDICIÁRIA
TENTATIVA IMPOSSÍVEL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/03/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1. O nosso Código de Processo Penal não se pronuncia sobre os graus ou medida de prova exigíveis para dar como provado um determinado facto, estabelecendo no seu artigo 127.º o basilar princípio da livre apreciação da prova.
2. Prova direta é aquela em que o julgador verifica com os seus próprios sentidos o facto a averiguar, quando nada se interpõe ente o juiz e o facto a apurar, o juiz é posto em contacto imediato com objeto da prova (v.g., a inspeção ao local ou a observação de objetos apreendidos que constituam tema da prova).
3. Prova indireta é aquela em que se interpõem entre o facto e a sua representação mental pelo juiz fenómenos de transmissão do conhecimento, como, por exemplo, documentos ou testemunhas, tendo o juiz que usar agora, para além dos sentidos, outros instrumentos, como o raciocínio e as regras da experiência.
4. Provas críticas ou indiciárias, constituem uma subclassificação das provas indiretas, e nelas o facto, ou objeto, posto ao alcance da perceção do juiz, sem representar o outro, permite induzir, argumentar, tirar ilações – segundo as máximas da experiência – no sentido da realidade desse outro facto. Constitui índice dele, suscita a respetiva ideia atuando sobre o raciocínio, e não sobre os sentidos e sobre a imaginação.
5. Assim, a ilação ou inferência é uma forma de julgar como provado um facto com base em prova crítica ou indiciária, a qual é uma subespécie da prova indireta.
6. A prova indiciária pressupõe um facto, demonstrado através de uma prova direta, ao qual se associa uma regra da ciência, uma máxima da experiência ou uma regra de sentido comum. Este facto indiciante permite a elaboração de um facto-consequência em virtude de uma ligação racional e lógica; são, assim, dois, os elementos constituintes da prova indiciária: o indício e a presunção ou inferência, a qual se deve apoiar numa regra geral, e constante, e permite passar do estado de ignorância sobre a existência de um facto para a certeza, ultrapassando o estado de dúvida e probabilidade.
7. É ainda necessário que o indício seja grave, isto é, que resista às objeções e que seja marcadamente persuasivo, preciso, isto é, insuscetível de outras interpretações, e concordante, ou seja, que não haja entre os indícios, se forem plurais, divergência direcional- e se for veemente pode até ser de verificação singular.
8. As situações de tentativa ou crime impossível resultam de circunstâncias relativas ao agente, ou ao meio utilizado, ou ao objeto - há uma impossibilidade, ou uma inidoneidade, no sentido de que esse meio não é apto a causar um certo resultado, ou esse objeto, pura e simplesmente não existe, ou esse agente não tem uma qualidade essencial para poder preencher esse tipo de crime.
9. O atual Código estatui que a tentativa impossível só não é punida se for manifesta a inaptidão do meio empregado ou a inexistência do objeto essencial à consumação do crime. Assim, caso tal inaptidão ou inexistência não sejam ostensivos, a punibilidade mantém-se, apesar da incolumidade do bem jurídico protegido.
10. A entrega, para cumprimento de obrigação, de um cheque bancário falso, que, apresentado numa agência bancária para pagamento, determinou a realização de diligências junto da sua entidade emissora, que confirmou a sua falsidade, levando à respetiva recusa de pagamento, não configura uma tentativa impossível de comissão de crime de burla.
Decisão Texto Integral:
I RELATÓRIO

1
No processo n.º 1143/18...., do Juízo Central Criminal de ... – J ..., do Tribunal Judicial da Comarca de ..., teve lugar a audiência de julgamento, durante a qual foi proferido acórdão com o seguinte dispositivo:

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem o Tribunal Colectivo em julgar procedente a acusação pública e, em consequência, decide-se:

a) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 22.º, n.º 1, 23.º, 217.º, n.ºs 1 e 2 e 218.º, n.º 2, alínea a), ambos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão;
b) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsificação ou contrafação de documento, previsto e punido pelos artigos 255.º, alínea a) e 256.º, n.º 1, alíneas a) e c) e n.º 3, do Código Penal, absolvendo-se das alíneas e) e f), na pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão;
c) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsificação ou contrafação de documento, previsto e punido pelos artigos 255.º, alínea a) e 256.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Código Penal, absolvendo-se das alíneas e) e f) e do n.º 3, na pena de 10 (dez) meses de prisão;
d) Em cúmulo jurídico das penas enunciadas, condenar o arguido AA na pena única de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na sua execução, por igual período de 4 (quatro) anos, nos termos do art.º 50.º, nº 5 do Código Penal, subordinando-se a referida suspensão da execução da pena ao dever de, nos termos do artigo 51.º, n.º 1, al. c) e n.º 2 do Código Penal, proceder à entrega da quantia de 10 000,00€ (dez mil euros), no prazo da suspensão da execução da pena, à razão de 2500,00€ (dois mil e quinhentos euros) ao fim de cada ano, à instituição de solidariedade social Lar..., de ..., prazo contado do trânsito em julgado do presente Acórdão.

2
Não se tendo conformado com a decisão, o arguido apresentou recurso, formulando as seguintes conclusões:

I - Foi o Arguido, ora Recorrente, condenado, pela prática de 1 crime de burla qualificada, na forma tentada, p. e p. no Art. 217º e 218º do Código Penal e 2 crimes de falsificação de documento, na pena única, em cúmulo jurídico, de 4 anos de prisão, suspensa por igual período, custas e encargos.

II - No que ao presente recurso interessa, o Tribunal deu por provados os factos 14 a 21
(numeração do próprio douto Acórdão).

III - Para formar a convicção e fundamentar a decisão, afirma-se no douto Acórdão que a matéria de facto dada por provada resultou do seguinte: “Na ausência de confissão integral, tal prova foi feita por ilações, retiradas dos indícios, e também de uma leitura de um comportamento exterior e visível do agente,…”, dizendo-se que “A convicção do Tribunal alicerçou-se na análise crítica e ponderada, à luz dos princípios que regem a matéria nos termos do art.º 127.º do Código de Processo Penal, da prova produzida e/ou examinada em audiência de julgamento. Segundo a regra base do artigo 127.º do Código de Processo Penal, fora das situações em que a lei dispuser diferentemente, a mesma é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador…”.

IV - O Recorrente entende que o Tribunal não podia ter dado por provados aqueles factos que assim julgou já que, conforme o próprio acórdão expressamente admite, não existem provas directas, materiais, que permitam sustentar ou fundamentar, forma suficiente, as tais “ilações”.

V - Não existe nenhuma prova válida nos autos que permita sustentar que tenha sido o Recorrente, ou alguém por mando dele, a falsificar o cheque bancário - «Banker’s draft», em todos os seus dizeres, bem como a declaração emitida em nome da «EMP01...».

VI - Há por isso manifesta insuficiência de prova para a decisão da matéria dada por provada e erros graves de julgamento, os quais determinaram o tribunal à decisão condenatória, em total violação da lei, dos princípios gerais de direito e dos direitos fundamentais do Recorrente constitucionalmente garantidos, sendo estes os fundamentos legais do presente recurso, que aqui se deixam desde já expressamente consignados nos termos e para os efeitos do disposto no Art. 410º, nº 2, aln a) e c) e 412º, nº 2, ambos do CPP).

VII - A prova documental obrante nos autos e         os depoimentos do Recorrente e das testemunhas BB, CC e DD – para os quais aqui expressamente se remete desde já e que deverão ser reapreciados pelo Venerando Tribunal – é manifestamente insuficiente para fundamentar a decisão daqueles pontos da matéria de facto dados por provados.

VIII - Conforme é jurisprudência pacífica, superior e mais esclarecida, a prova por presunção em direito penal, se bem que legalmente admissível, tem de estar suportada em factos provados por outros meios de prova, que não outras presunções.

IX - Ora, neste caso concreto, o tribunal limita-se a tirar as tais “ilações” sem que as mesmas estejam assentes em qualquer facto material.

X - Não existem quaisquer factos incriminatórios (factos básicos) do Recorrente assentes em quaisquer provas, o que inviabiliza as “ilações”, a presunção judicial ou os factos presumidos de que o Recorrente tenha forjado ou mandado forjar o cheque e a declaração da EMP01....

XI - Pelo contrário, estão nos autos documentos e resulta dos depoimentos prestados na audiência de julgamento, que provam à saciedade e sem qualquer dúvida que o cheque e a declaração foram entregues ao Recorrente pelo EE, estando aquele convencido de que os mesmos eram verdadeiros e legítimos.

XII - Verifica-se assim um notório erro de julgamento no recurso à presunção ou “ilação” judicial neste caso, em evidente ofensa e violação do princípio fundamental da presunção de inocência do Recorrente em processo penal e das suas garantias de defesa constitucionalmente consagradas no Art. 32º, nº 2 da Constituição da República que foi assim violado pelo Douto Acórdão, violação esta que aqui vai expressamente invocada e alegada para os legais efeitos.

Assim AcRP de 14/07/2020 publicado na base de dados do ITIJ.

XIII - O Tribunal não considerou e desvalorizou totalmente vários factos apurados nos autos que, por si mesmos ou conjugados entre si e com as regras e juízos da experiência comum, da lógica e da razão teriam necessariamente levado à conclusão de que o Recorrente não poderia nunca ter cometido o crime de burla na forma tentada de que foi acusado por absoluta inidoneidade do meio.

XIV - Ficou provado que, após ter sido entregue pelo CC (que não depositado) no Banco 1..., o banco confirmou que o “draft check” era falso ou forjado e, como tal, em circunstância alguma seria pago ou, por conta dele, alguma vez o banco adiantaria qualquer valor.

XV - A testemunha FF, gerente bancária do Banco 1..., no seu depoimento, afirmou e confirmou esta realidade e “modus operandi” dos bancos, conforme transcrição parcial supra.

XVI - E esclareceu que o cheque nem sequer chegou a ser formalmente depositado na conta bancária do CC, facto este que, por si só, impediria ou inviabilizaria qualquer pagamento pelo banco com base naquele.

XVII - Esta realidade constitui, aliás, facto notório, de conhecimento geral e generalizado: nenhum banco autoriza o pagamento de valor algum sobre qualquer instrumento bancário, nomeadamente cheques, sem que previamente esse instrumento seja verificado e confirmado quanto à sua autenticidade, legitimidade e veracidade dos seus elementos e assinatura e, especialmente, quanto à sua solvabilidade ou “cobertura”.

XVIII - Dispõe o nº 3 do Art. 23º do Código Penal que “A tentativa não é punível quando for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objecto essencial à consumação do crime”e a jurisprudência é pacífica no sentido de definir que a manifesta inaptidão do meio empregado pelo agente não é adequada a preencher o tipo legal de crime.

XIX - Isto é, o Recorrente, caso alguma vez tivesse tido qualquer intenção de tentar burlar o banco através do depósito do “draft” – que teria necessariamente de saber ser falso e/ou forjado – visando receber o respectivo valor, nunca lograria alcançar este seu desígnio, porquanto o banco nunca, em circunstância alguma, lhe entregaria qualquer quantia por conta daquele título de crédito!

XX - Ou seja, a putativa tentativa de burla estava sempre necessária e absolutamente votada ao insucesso, pelo que a mesma não pode deixar de ser considerada como tentativa impossível ou inidónea e, como tal, não punida e o tribunal errou ao condenar o Recorrente, em violação directa e necessária do disposto naquele nº 3 do Art. 23º do Código Penal.

Nestes termos e nos mais de Direito que V.Exªs doutamente suprirão, deve o presente recurso ser admitido e merecer provimento e, a final, o Recorrente ser absolvido, com todas as consequências legais.

3
O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência.

4
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação de Guimarães, o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

5
Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, nada mais foi dito.

6
Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

II FUNDAMENTAÇÃO

1
Objeto do recurso:

A
A decisão recorrida enferma do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal?


B
Ocorre erro de julgamento em relação aos factos dados como provados na decisão recorrida sob os n.ºs 14 a 21?

C
A tentativa julgada nos autos deve ser qualificada como impossível, nos termos do artigo 23.º, n.º 3, do Código Penal, e, portanto, como não punível?

2 Decisão recorrida (excertos relevantes):


II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
                       
A. Factos provados:
Discutida a causa, resultaram provados, com interesse para a decisão a proferir, os factos seguintes:
                       
Da acusação

1) Em data não concretamente apurada, mas certamente anterior a ../../2018, CC (doravante CC) planeava a elaboração de um projeto de produção de «Moringa» e produção energética (biomassa e solar), em cerca de 6000ha (seis mil hectares) de terreno, em ..., para o qual necessitava de investidores.
2) Na busca por investidores, também em data não concretamente determinada, mas anterior a ../../2018, foi-lhe apresentado por DD (abreviadamente DD), AA, representante da sociedade «EMP02..., S.A. – Sucursal em Portugal».
3) Após as negociações, AA aceitou financiar o projeto de CC com a quantia de €50.000.000,00 (cinquenta milhões de euros), que seriam pagos através de um cheque bancário que AA iria receber, no valor de €120.000.000,00 (cento e vinte milhões de euros), referente a um empréstimo concedido por um banco estrangeiro.
4) Em ../../2018, CC e AA, na qualidade de representante da sociedade «EMP02..., S.A. – Sucursal em Portugal» celebraram o contrato de empréstimo com constituição de penhor com as seguintes cláusulas: 
«1ª
O 1° contratante compromete-se nesta data a emprestar ao Segundo Contratante a quantia de 200.000.000,00€ (duzentos milhões de Euros).
A quantia será disponibilizada pelo Primeiro Contratante através do depósito na conta bancária do Segundo, no Banco 1.../..., com o IBAN PT50-...5, através de qualquer instrumento financeiro legalmente admitido.
Para o efeito de depósito de instrumentos financeiros na conta do Segundo Contratante e caso o primeiro opte por instrumentos que exijam confirmação como garantias bancárias internacionais, este deverá entregar ao Primeiro a respetiva carta/declaração ao emitida pelo Banco 1.../Banco 1... na qual este banco se reconhece habilitado e disponível para aceitar o depósito.
Entrega nesta data ao 2º contratante a quantia de 200.000.000,00€ (duzentos milhões de Euros) a título de empréstimo, quantia que será pelo primeiro entregue através de depósito ou transferência para conta bancária a indicar pelo segundo outorgante e após a sua recepção este reconhece e confessa-se devedor. 

O Segundo Contratante confessa-se devedor ao Primeiro Contratante daquela quantia de  200.000.000,00€ (duzentos milhões de Euros), a partir da data em que o valor emprestado fique disponível na sua conta bancária.

O Prazo do presente empréstimo é de dez anos, findos os quais O Segundo Contratante obrigase a restituir o empréstimo ao Primeiro Contratante numa única prestação findo que seja o referido prazo, sem prejuízo de poder fazer amortizações parciais a qualquer momento. 4ª
O empréstimo vence juros a taxa anual de 5% (cinco por cento) ao ano sobre o capital em dívida, contados a esta data e cobrados por adiantado e que as partes fixam em 100.000.000,00€ (Cem milhões de Euros) e que são pelo mutuário pagos por adiantado, após a recepção do capital mutuado a pagar por transferência bancária para a conta que o Primeiro Contratante indique. 5ª
Para garantia do pagamento e liquidação da quantia mutuada, é constituído um penhor a favor do primeiro outorgante nos seguintes termos:
A quantia mutuada destina-se ao financiamento de um contrato de exclusividade  mundial de exploração da patente de uma tecnologia designada THYPER (technology  High Yield Performance), que as partes declaram conhecer e ainda para a aquisição de 20 (vinte) máquinas THYPER bem como ainda para a construção de uma fábrica de polpa de papel que as partes declaram conhecer o respectivo projecto.
O penhor recai quer sobre o referido direito de exploração exclusivo de exploração e uso das referidas vinte máquinas, bem como a sua propriedade, quer sobre a propriedade da referida fabrica na sua globalidade, que assim ficando na posse disponibilidade do Segundo Contratante este fica impedido de transmitir os referidos bens até que a quantia mutuada seja integralmente devolvida.
O objecto do penhor é reduzido proporcionalmente à medida que o capital mutuado seja devolvido.

Para dirimir conflitos ente os contratantes resultantes da aplicação ou interpretação do presente contrato é competente o tribunal da comarca de ....
O presente contrato revoga e substitui qualquer outro celebrado anteriormente entre as partes com este objecto». 
5) Em data não concretamente apurada, mas anterior a ../../2018, AA, CC e DD encontraram-se em ..., ... e AA entregou a CC um cheque bancário - «Banker’s draft», com o n.º ...54, emitido pelo Banco «Banco 2...», com sede em 8 ..., ..., ..., emitido em nome de CC, no valor de €119.000.000,00 (cento e dezanove milhões de euros), solicitando-lhe que efetuasse o depósito do referido cheque na sua conta bancária e que após lhe devolvesse o remanescente em relação ao valor acordado, ou seja,  €69.000.000,00 (sessenta e nove milhões de euros), uma vez que o cheque tinha sido emitido em seu nome e não poderia pedir a emissão de um novo cheque.
6) Em 09-07-2018, CC deslocou-se às instalações da sucursal do Banco 1..., S.A., em ..., onde foi atendido por BB (abreviadamente BB), exibindo-lhe o sobredito cheque e o mencionado contrato, onde esta o informou que, provavelmente, o cheque era falso.
7) CC contactou telefonicamente AA, tendo ficado acordado que este último se deslocaria com aquele às instalações da sucursal do Banco 1..., S.A., em ..., no dia seguinte.
8) Em 10-07-2018 AA e CC deslocaram-se às instalações da sucursal do Banco 1..., S.A., em ..., tendo efetuado o depósito do mencionado cheque na conta bancária n.º ...84, pertencente a CC. 9) O Banco 1..., S.A., em ... enviou o referido cheque bancário - «Banker’s draft» - para cobrança junto da instituição bancária «Banco 2...», tendo esta última procedido à sua devolução, alegando que o mesmo era falso. 
10) Nessa sequência, CC foi contactado telefonicamente por BB, que o informou que o sobredito cheque era falso.
11) CC voltou a contactar telefonicamente AA que lhe propôs que se deslocassem à sucursal do Banco 1..., S.A. do ..., no ....
12) Em 10-08-2018, CC e AA deslocaram-se à sucursal do Banco 1..., S.A., do ..., no ..., onde AA pediu a CC que solicitasse a devolução do cheque, o que este fez, e entregou uma declaração datada de 09-08-2018, emitida pela «EMP01...» onde é referido que o cheque bancário mencionado foi tratado pelo Banco 1..., S.A. como um cheque regular, não sendo respeitados os procedimentos desta transação e solicitando a devolução do cheque informando que a transação seria cancelada.
13) Sucede que a «EMP01...» está liquidada desde 2017.
14) Assim, em data não concretamente determinada, mas anterior a ../../2018, AA, ou alguém a seu mando e com o seu conhecimento, elaborou o cheque bancário - «Banker’s draft», em todos os seus dizeres, bem como a declaração emitida em nome da «EMP01...», levando a que CC apresentasse tais documentos junto do Banco 1..., S.A.. 
15) O Arguido AA ou alguém a seu mando e com o seu conhecimento, em datas e em circunstâncias concretamente não apuradas, criou o mencionado cheque bancário, apondo as assinaturas das pessoas nele contantes, sabendo não eram verdadeiras e que o fazia sem autorização e contra a vontade dos seus titulares, apondo o respetivo carimbo, criando a aparência de um verdadeiro cheque bancário, por forma a que o mesmo fosse apresentado para pagamento, fazendo crer que esse cheque estava regularmente emitido e pondo em causa a fé pública que merecia tal título de crédito.
16) Do mesmo modo, o Arguido AA ou alguém a seu mando e com o seu conhecimento, elaborou a declaração mencionada em nome da «EMP01...», forjando os elementos identificativos neles constantes, apondo um carimbo, que não corresponde ao da «EMP01...», criando a aparência de que tal documento era verdadeiro, por forma a ser-lhe devolvido o sobredito cheque bancário. 
17) AA sabia que ao levar a efeito a conduta descrita estava a pôr em crise a confiança de que gozam os documentos em apreço, visando levar o Banco 1..., S.A, bem como CC, a crer que os mencionados documentos eram verdadeiros, sabendo que, desse modo, conseguiria um benefício a que sabia não ter direito, o que tudo quis e só não conseguiu por motivos alheios à sua vontade. 
18) AA agiu de modo livre, voluntário e consciente, fazendo crer a CC que se encontrava a negociar um verdadeiro contrato de mútuo, por forma a alcançar o   depósito do sobredito cheque na conta bancária de CC e assim obter  €119.000.000,00 (cento e dezanove milhões de euros).
19) Mais sabia o Arguido AA que, dessa forma, poderia obter para si um benefício ilegítimo a que não tinha direito, causando igual prejuízo a CC e ao Banco 1..., S.A., o que só não logrou alcançar por motivos alheios à sua vontade.
20) Agiu ainda o Arguido de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta atentava contra a segurança, como conseguiu, e abalou a genuinidade e credibilidade no tráfico jurídico probatório e que o cheque ora em causa deve merecer.
21) O Arguido AA actuou sempre de forma livre, deliberada e voluntária, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal e, tendo capacidade para o determinar de acordo com o seu conhecimento.

Das condições pessoais, socioeconómicas e dos antecedentes criminais

22) O arguido encontra-se emigrado em ... desde os seus 20 anos de idade.
23) Contraiu matrimónio em 1981, tendo ao casal nascido 2 filhos, actualmente maiores de idade e autonomizados, sendo que ambos residem em ....
24) Refere o arguido que sempre trabalhou na área da construção civil, quer por conta de outrem, quer por conta própria.
25) Mencionou que desde 2020 encontra-se em situação desemprego, projetando este quadro nas dificuldades que vivenciou no período pandémico, realçando incluso que face às dificuldades vivenciadas nessa altura, viu-se obrigado, em conjunto com o cônjuge, a acolher-se junta da filha, onde reside actualmente, na morada indicada no presente documento.
26) Anteriormente, referiu que residia com o cônjuge em habitação arrendada, em zona da cidade ... / ..., conforme também, acontece no presente.
27) No presente, o agregado familiar constituiu-se então pelos seguintes elementos: a) GG / filha / 42 anos / trabalha por conta própria na área da construção civil; b) HH / companheiro de a) / 42 anos / condutor do metro de ...; c) Arguido; d) II / cônjuge de c) / 64 anos / doméstica.
28) Neste agregado integram-se ainda mais 3 filhos menores (10 anos, 8 anos e 3 anos) de a) e b).
29) Sublinhou o arguido que mantém ainda relação próxima com o seu outro filho, bem como com os filhos (2) menores deste, sendo que no total serão 5 netos, mantendo com estes convivência regular e diária, o que nos refere valorizar no seu quotidiano.
30) O agregado acima descrito reside em casa que será propriedade da filha do arguido (elemento a), mencionado este último que não suporta pagamento de qualquer quantia a título de renda de casa, referindo, todavia, que vai colaborando nas despesas domésticas do agregado familiar, de acordo com as suas disponibilidades.
31) Em termos financeiros o arguido mencionou-nos que tem procurado gerir as poupanças que foi amealhando ao longo da sua vida, estando, todavia, em curso junto da Segurança Social Francesa o seu processo de aposentação.
32) Em termos globais, considerou o arguido que tem conseguido, concretizar uma gestão adequada dos recursos financeiros existentes.
33) Mencionou o arguido que vem a Portugal de forma irregular, mencionando-nos que o seu quotidiano, aos mais diversos níveis, está organizado em ....
34) O arguido foi condenado:
- em 2011, em ... pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez;
- em 2013, em ..., pela prática de um crime de trabalhos de construção não autorizados e de um crime urbanístico;
- no processo 1576/15.... do Juízo Local Criminal do Porto – Juiz ..., por sentença de 5.03.2021, transitada em julgado em 3.05.2022, pela prática, em 5.12.2014, de um crime de burla qualificada e de um crime de falsificação de documento na pena única de 310 dias de multa, à taxa diária de 8,00€, já declarada extinta pelo pagamento.
*
B. Factos não provados:

Não se provaram quaisquer outros factos, com interesse para a boa decisão da causa, e, designadamente, os seguintes da contestação:

a) Em 5 de Junho de 2018, o arguido celebrou um contrato de compra e venda com o cidadão francês EE, nos termos do qual este iria adquirir bobines de níquel que aquele tinha depositados numa empresa especializada na ... (IGAS), pelo preço de € 119.000.000,00.
b)  Para pagamento do preço, o comprador EE entregou ao Arguido o “certified Banker’s Draft” naquele valor, para que este procedesse ao seu desconto, após o qual as bobines de níquel seriam entregues ao comprador.
c) Após, o CC ter informado o Arguido que o Banco 1... tinha confirmado que o cheque era falso, tentou contactar o EE para o confrontar com estes factos, mas este mostrou-se totalmente incontactável e desapareceu.
d) O Arguido informou então o IGAS de que, caso o EE ali comparecesse para proceder ao levantamento de qualquer bobine de níquel ao abrigo do contrato de 5 de Julho, deveria recusar a entrega, uma vez que preço não tinha efectivamente sido pago.
e) O Arguido pretendia desencadear os procedimentos judiciais em ... contra o ....
*
Quanto ao demais alegado na contestação, tal não se incluiu nos factos provados ou não provados, por constituir matéria de direito e ter natureza genérica ou conclusiva, motivo pelo qual foi excluído deste elenco factual.
*
C. Fundamentação da convicção do tribunal
(…)
Abalancemo-nos no exame critico da prova produzida.
O Tribunal analisou e deu relevância a toda a prova pré-constituída, nomeadamente pesquisas de fls. 20 a 24, informação de serviço de fls. 25, print de identificação civil de CC, de fls. 38, print de identificação civil de AA de fls. 39, certidão permanente da sociedade «EMP02..., S.A. Sucursal em Portugal» de fls. 42 a 44, documento de deposito de cheque S/O Estrangeiro e cheques de viagem de fls. 104, informação do Banco 1..., S.A. de fls. 107 e 108, contrato de empréstimo com constituição de penhor, de fls. 120 a 122, informação da «EMP01...», de fls. 156, 157, 184 e 185 e anexo ao processo n.º 1143/18...., contendo cópias do processo n.º 602/18.....
O arguido confessou integralmente os factos elencados de 1) a 13) pelo que os mesmos se deram como provados, nos termos do art.º 344.º, n.º 4 do Código de Processo Penal.
E foram confessados pela ostensividade da prova coligida.
Quanto ao remanescente dos factos, de 14) a 21), os mesmos têm por objecto a autoria da falsificação do cheque bancário e da declaração referida em 12) e 13) e, naturalmente a intenção do arguido ao praticar os factos.
O arguido prestou declarações que se nos afiguraram completamente desrazoáveis, sem nexo, ao arrepio das regras da experiência comum e do normal suceder das coisas.
O mesmo intitulou-se como vítima de todo o processo e negou a prática dos factos em causa.
Referiu que, em 2018, o DD, seu amigo, disse-lhe que conhecia um amigo, o CC, que mora em ... e que tinha um grande projecto. Disse-lhe que podia emprestar dinheiro, porque estava a vender bobines a um JJ, o qual trabalha para grandes empresas - que não conhece - e compra esse material e vendeu a esse JJ através da empresa de que é proprietário, EMP02..., pessoa que não sabe onde se encontra, sendo desconhecido o seu paradeiro.
Aduziu que o CC lhe disse que precisava de 50 milhões de euros, ao que respondeu que estava a fazer um negócio em ... de 120 milhões de euros, através de um ... que só iria ser pago no prazo de 1 ano e 1 dia, “mas os Bancos podem pagar antes”. E que só quando tivesse o dinheiro na sua conta e fosse pago é que entregava a mercadoria que está na Alemanha e é o IGAS.
Disse que foi o JJ que lhe entregou o cheque bancário e que o CC tinha de devolver 69 milhões de euros.
Aduziu que os seus bancos não pegavam neste tipo de cheque, sendo que  tem contas em Portugal e o Banco 3... e a Banco 4..., mas o CC disse que o banco dele fazia.
Justificou o negócio de emprestar os 50 milhões por ter margem, pois, naquela altura, trabalhava na construção em ... mas também fazia este tipo de negócios.
Referiu que teve empresas em ... e correu mal porque lhe ficaram a dever dinheiro. Até ao Covid trabalhou, depois disto ficou sem emprego. Em 2018 ajudava os filhos, mas já não trabalha. A EMP02... desde 2014 esteve sempre activa. Dedicava-se a ajudar os filhos e tinha umas poupanças de lado dos anos que estive em .... Disse ter direito a uma pensão de reforma de cerca de 1000 euros, mas depois disse ser de 1300 ou 1500 euros.
Explicou que acreditou no projecto de CC, por conher bem ... e saber que dava rendimento para fazer isso, mas não foi a este país, “vi que dava”, “ele estava a pagar 5% ao ano de juro”, “quem não arrisca não petisca”
Quando soube que o CC não obteve o pagamento, decidiu ligar para o JJ e ele disse que visse no banco porque pensavam que é um cheque bancário, mas era uma letra com garantia que fica vencida.
Referiu não conher a sociedade EMP01..., só o JJ.
Questionado sobre se JJ sabia que sendo falso o cheque bancário, nunca obteria pagamento, qual o benefício que ele poderia retirar para que o arguido fosse vítima, disse que talvez o JJ também fosse enganado.
Tendo sido o CC quem lhe disse que o banco dele pagava aquele cheque, não tentou o arguido junto de outros bancos que pagassem o cheque, embora saiba que existem bancos no estrangeiro fazem isso. Sabe que podia ir a ... e faziam o levantamento do dinheiro, porque lá aceitam o cheque bancário.
Com relevo, referiu que se não soubesse que o CC lhe conseguisse obter o pagamento, não tinha sido aceite o cheque bancário entregue pelo JJ, nem fazia o negócio com o mesmo, não vendendo as bobines. Tinha que dizer para aguentar mais um bocadinho, “vou a ... e abro a conta e meto na conta”.
No entanto, o JJ não dava tempo para fazer isso, porque tinha muita pressa de comprar o material.
Relativamente à declaração falsa, disse que foi o JJ que lhe enviou a declaração, a qual está em inglês porque o cheque vem de ....
Referiu que “nunca depositei uma coisa dessas, nunca usei um Banker’s Draft”  e que este tipo de investimentos foi a primeira vez, porque trabalhava na construção civil.
Disse que as bobines são fabricadas na ..., estando na Alemanha e que apenas arranjava alguém que lhe comprasse as mesmas, sendo que a EMP02... diz que comprou as bobines por x e depois recebe uma comissão. Não paga nada, tendo apenas uma comissão, sendo pago o preço ao russo.
Questionado sobre o porquê de o JJ não ter passado um cheque normal, por ter, alegadamente, mais garantias de receber mais rápido o dinheiro, disse que o Banco é que iria adiantar o dinheiro e que o JJ lhe afirmou que não queria cheque mas tinha de ser Cheque bancário, por ser um avanço dos fundos, “é como uma letra”.
Afirmou que já sabia o que era um Banker’s Draft e da dificuldade em obter pagamento e que tinha 20 a 30% de comissão, mas talvez fosse aos 60%.
Vejamos.
Por apelo às regras da experiência somos levados a concluir pela existência de prova indirecta que sendo grave e concordante permite estabelecer a certeza da autoria dos factos pelo arguido.
(…)
Cumpre avaliar desde já a personalidade do arguido, o que muito releva em crimes como os dos autos, em que está em causa o engano de alguém e tentativa de obter um enriquecimento indevido.
O arguido negou que alguma vez tenha praticado factos semelhantes aos que lhe são imputados, mas tal não corresponde à verdade.
Como deflui da certidão de fls. 195 a 233, o mesmo foi condenado, no âmbito do processo 1576/15.... do Juízo Local Criminal do Porto - Juiz ..., por sentença de 5.03.2021, transitada em julgado em 21.12.2022, depois de devidamente confirmada pelo Tribunal da Relação do Porto, pela prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos art.ºs 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 1, por referência ao art.º 202.º, al. b), do Código Penal e como autor material de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.º, n.º 1, al. d), do Código Penal.
Tais factos reportam-se aos anos de 2014 e 2015 dos quais se retiram, com relevo, os seguintes:
- Pretendia o arguido AA vender tais imóveis, com urgência, para desse modo evitar que os mesmos fossem alvo de execução judicial, uma vez que pendia contra o mesmo o processo de execução com o nº 2184/13...., bem como o processo 12/03..., intentado no Tribunal de Grande Instância de ..., em ....
- Nas diligencias realizadas com vista à venda dos supra referidos imóveis, o arguido ocultou a incidência de penhora sobre o imóvel – fração autónoma designada pela letra ..., sito em ..., informando apenas que existia a execução com o nº 2184/13...., a correr termos no 3º s. Execução – J..., em ....
- Com efeito, no ano de 2012 a Banco 5..., SA, ..., já havia intentado uma ação contra o arguido e mulher, II, ação com o nº 12/03..., que correu seus termos no Tribunal de Grande Instância de ..., em ..., por incumprimento por parte do arguido e mulher de contratos de crédito, cujo montante global da dívida ascendia a €289.371,70. O arguido e mulher foram citados para a ação e, em 16 de Setembro de 2014, notificados da sentença condenatória proferida no aludido processo, sendo tal decisão reconhecida pela ordem jurídica portuguesa, tendo a mesma eficácia executiva.
- Perante o conhecimento do teor da sentença proferida pelos tribunais franceses condenando-o ao pagamento de 289.371,70€, à sucursal da Banco 5... naquele país e, bem sabendo que o seu património constituía garantia patrimonial dos credores, concretamente, a credora Banco 5..., e com vista a evitar a execução do seu património, o arguido decidiu vender os imóveis de que era proprietário, o que fez logo após ser conhecedor da referida sentença proferida pelo Tribunal em ....
- O arguido, na urgência de alienar o imóvel e sabendo da necessidade da apresentação de Alvará de Utilização, documento que não possuía, decidiu alterar e aproveitar-se do facto de possuir o alvará de utilização nº ...05, emitido pela Câmara Municipal ..., pertencente a um outro imóvel sito em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...39 e inscrito na matriz sob o artigo ...26, também propriedade do arguido até 29/03/2012, apresentando-o no âmbito da escritura de compra e venda do prédio descrito na Conservatória de Registo Predial ..., sob o número ... - ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...92 e inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o artigo ...04.
- Na verdade o arguido fez constar de tal documento a indicação do imóvel que pretendia alienar, quando tal documento correspondia a outro prédio, sito em ..., freguesia ..., o qual, segundo a certidão de registo predial junta aos autos o qual foi propriedade de AA até ../../2012, facto que o arguido não poderia desconhecer.
- Com efeito, o imóvel registado sob o nº ...30 (vendido à lesada KK), não dispõe de licença de utilização, nem chegou a ser requerida a emissão de alvará de utilização.
- O arguido adulterou e utilizou o referido documento, bem sabendo que o prédio não dispõe de licença de utilização, como também não chegou a ser requerida a emissão de alvará de utilização.
- O arguido retirou efetiva vantagem patrimonial ao proceder à venda do prédio sito em ..., apresentando para efeito um documento falso, destinado a atestar a licença de utilização daquele imóvel, sendo documento essencial para a concretização de tal negócio, que era inviável sem a sua apresentação.
- Na posse de tal documento (alvará de utilização) que sabia não conter informação verdadeira, o arguido conseguiu convencer a compradora KK que o imóvel se encontrava em condições legais para ser vendido.
- Logrou, assim, retirar benefício indevido, assim como induzir em erro todos os intervenientes naquele negócio, nomeadamente, a lesada KK provocando-lhe prejuízo patrimonial.
- Em resultado da atuação do arguido, nunca chegou a ser realizada a escritura pública relativamente ao imóvel – apartamento T1 (letra ...), nem o mesmo está na posse da lesada KK, não obstante esta ter efetuado pagamentos por conta da sua compra, encontrando-se prejudicada, pelo menos, no valor de cerca de € 40.000,00, acrescido do montante correspondente ao pagamento da guia emitida pela agente de execução LL, no montante de €66.728,53, para cancelamento da penhora existente sobre o imóvel.
- Acresce que pende contra KK, AA e esposa deste II, uma ação Pauliana, que corre termos no Tribunal de Santa Maria da Feira – ... J..., em que é autora Banco 5..., SA – ..., em que esta reivindica ser credora de AA e esposa na quantia global de €289.371,70, que advém do incumprimento no pagamento de créditos contraídos junto desta entidade bancária em ..., que culminou na prolação de sentença nº14/247, em 24/01/2014, cuja ação correu em ..., condenando-os ao pagamento daquela importância.
Ora estes factos demonstram que o arguido, ao contrário do que parecia supor, uma pessoa que se apresentava, nos presentes autos, perante CC para lhe emprestar 50 milhões de euros e fazer um negócio internacional de vende de bobines de níquel de 119 milhões de euros, afinal, como aliás o próprio confirmou, não tinha posses nem capacidade financeira para gerar ou mover tais quantias, ao ponto de a Banco 5..., SA – ... ser credora de uma quantia de 289.371,70€ e ter feito diligências para obter a cobrança dessa quantia, levando mesmo à instauração de uma acção pauliana, tendo-se o arguido apressado, antes disso, a vender o seu património, forjando um alvará de utilização e causando um prejuízo patrimonial a uma das compradoras, o que denota um desespero total e uma personalidade de absoluto desprezo pelos bens jurídicos em presença, com o único objectivo de amealhar dinheiro que sabia não ter direito.
E tal é importante porque se tal sucursal francesa da Banco 5... não conseguiu obter cobrança de tal quantia em ..., onde reside o arguido há longos anos, sendo emigrante, demonstra que, afinal, o arguido não tem quaisquer posses, nem capacidade financeira para se poder apresentar como um grande empresário, como foi apresentado pela testemunha DD a CC.
E é o próprio arguido que diz que a Covid-19 lhe desgraçou o alegado negócio da construção civil, mas depois afirmou que antes disso, ajudava os filhos nesse ramo, quando questionado sobre as suas posses e capacidade financeira.
Pasme-se: acabou por afirmar, que está em vias de ser reformado em ... com uma pensão que disse primeiramente ser em torno de 1000 euros e, depois perante a incredulidade do Tribunal, disse que poderá ser de 1300 a 1500 euros, ou seja, sempre numa quantia abaixo do salário mínimo nacional em ....
É que não conseguiu identificar uma única empresa da construção civil de que fosse dono, dizendo apenas que ajudava os filhos.
Por outro lado, afirmou em audiência de julgamento, que esta foi a primeira vez a fazer negócios de milhões, acabando por querer afirmar-se como alguém pouco experiente nestas matérias dos cheques bancários e de grandes fluxos financeiros.
Sucede que se encontra junto aos autos um apenso extraído do processo n.º 602/18.... relativo a bloqueio de contas bancárias.
Se analisarmos o teor de fls. 33, 46 a 50 verificamos um grande fluxo de tentativas de fluxos financeiros, alguns dos quais com cheques falsos, num dos casos, com o valor de 50 milhões de euros, cuja cobrança fora tentada no Banco 1... (vd. fls. 49), envolvendo o arguido e a empresa EMP02... do mesmo.
No rol de movimentos financeiros suspeitos e com a mesma natureza do dos presentes autos é envolvida a sociedade «EMP01..., sociedade que o arguido, nas suas declarações, em audiência de julgamento, disse desconhecer, apenas referindo conhecer, afinal, um tal de EE que lhe teria entregue, alegadamente, o cheque bancário nos autos.
Assim, as suas declarações, logo por aqui, foram totalmente descredibilizadas, não conseguindo o arguido lidar com a verdade.
Mas o resto da prova foi concludente no sentido de confirmar que o arguido agiu do modo descrito na acusação.
Ao contrario do que afirmou o arguido, o «Banker’s draft» não é o instrumento financeiro pagável a 1 ano e 1 dia e que seria como que uma letra de câmbio.
O «Banker’s draft»  mais não é, como deflui da prática bancária, do que um cheque bancário.
“Um Banker's draft (também chamado de cheque bancário , cheque bancário no ... ou, nos ... , cheque bancário ) é um cheque (ou cheque ) fornecido a um cliente de um banco ou adquirido de um banco para fins de remessa, que é sacado pelo banco e sacado em outro banco ou pagável através de ou em um banco.
Um cheque normal representa uma instrução para transferir uma quantia em dinheiro da conta do sacador para a conta do beneficiário. Quando o beneficiário deposita o cheque na sua conta, o cheque é verificado como genuíno (ou 'compensado', um processo que normalmente leva vários dias) e a transferência é realizada (normalmente através de uma câmara de compensação ou sistema semelhante). Qualquer indivíduo ou empresa que opere uma conta corrente (ou conta corrente) tem autoridade para sacar cheques contra os fundos armazenados nessa conta.
Porém, é impossível prever quando o cheque será depositado após ser sacado. Como os fundos representados por um cheque não são transferidos até que o cheque seja depositado e compensado, é possível que a conta do sacador não tenha fundos suficientes para honrar o cheque quando a transferência finalmente ocorrer. Este cheque desonrado ou “devolvido” agora não tem valor e o beneficiário não recebe dinheiro, razão pela qual os cheques são menos seguros do que o dinheiro.
Em contrapartida, quando um indivíduo solicita um saque bancário, deve transferir imediatamente o valor do saque (mais quaisquer taxas e encargos aplicáveis) da sua própria conta para a conta do banco. (Um indivíduo sem conta no banco emissor pode solicitar um saque bancário e pagá-lo em dinheiro, sujeito à lei antilavagem de dinheiro aplicável e às políticas de emissão do banco.) Como os fundos de um saque bancário já foram transferidos, eles são comprovadamente disponíveis; a menos que o saque seja falsificado ou roubado, ou o banco que o emitiu feche as portas antes que o saque seja depositado e compensado, o saque será honrado. Há uma ressalva de que os protocolos bancários podem declarar o saque muito antigo para ser válido; sabe-se que isso acontece quando o projeto tem mais de seis anos. Como outros tipos de cheques, um saque ainda deve ser compensado e, portanto, levará vários dias para que os fundos fiquem disponíveis na conta do beneficiário. ”
Mas em todo o caso, irreleva, o que é, face à circunstância de o documento em causa nos autos, com esse nome, ser falso (fls. 3-10 e facto 9).
Tal documento foi forjado e fabricado com vista a tentar-se obter um pagamento que não era devido.
E foi o arguido quem o fabricou ou mandou fabricar pelas razões que passaremos a expor.
Primeiro, a testemunha CC explicou que foi apresentado pela testemunha DD ao arguido ao qual lhe apresentou um projecto em ... que mais não era do que uma ideia, pois que não havia qualquer estudo financeiro ou de viabilidade, tendo-lhe exibido apenas uma fotografia com uns terrenos com moringa. Mais afirmou que o arguido apenas decorridos mais de 6 meses é que lhe confirmou que tinha interesse, ou seja, era este o hiato de tempo perfeito para o arguido poder congeminar um plano de usar a testemunha CC para tentar obter o pagamento do cheque em causa nos autos, eximindo-se a qualquer responsabilidade derivada da falta de cobrança do mesmo ou da conclusão de que afinal o mesmo era falso, pelo cruzamento de informações bancárias.
A testemunha CC revela-se ser uma pessoa simples e humilde, facilmente manipulável, pelo que seria a pessoa ideal para que o arguido tentasse esta operação.
Segundo, para melhor justificar a tentativa em causa, o arguido apressou-se a redigir um contrato falso com esta testemunha que esta assinou, por naturalmente lhe parecer favorável, que afinal já não seriam 50 milhões de euros que seriam emprestados mas antes (pasme-se) 200 milhões. Questionado sobre isso, referiu o arguido que depois dos 50 milhões, se conseguisse vender mais bobines de níquel poderia chegar a esse valor de empréstimo.
Terceiro, empréstimo para um projecto que o arguido disse não ter analisado, não ter consultado qualquer documento, acreditando na palavra do CC (o qual tinha um projecto baseado numa fotografia dos terremos onde poderia ser implantado, em ...). Pasme-se, para um investimento de 50 milhões de euros e depois de 200 milhões por uma pessoa como o arguido sem recursos financeiros dessa grandeza.
Quarto, tinha subjacente, segundo o arguido, o cheque bancário em causa nos autos num negócio de venda de bobines de níquel de que era proprietário. Perguntado sobre como conseguia ser proprietário das mesmas, no valor de 120 milhões de euros, atrapalhado, referiu que afinal não era proprietário e que o mesmo era um russo, sem o conseguir identificar, e que celebrou um contrato com ele com vista a, caso as conseguisse vender, obter uma comissão de 20%. Insistindo o Tribunal pelo valor, pois que os 20% seriam 24 milhões de euros, o que não chegaria aos 50 milhões, muito menos aos 200 milhões prometidos emprestar ao CC, confuso, afirmou que já não se recordava da comissão, mas que até poderia chegar aos 60% (pasme-se). Ou seja o comissionista ganharia uma percentagem superior à do proprietário. Russo esse que nunca foi identificado e contrato com o mesmo que nunca apareceu.
Quinto, referiu o arguido que o sociedade que solicitou a emissão do cheque bancário, a sociedade «EMP01...» não conhece, mas antes um EE que queria adquirir as bobines de níquel e lhe entregou o mesmo. Sucede que o arguido desconhece onde pára o mesmo, quem é, quem representa, juntando aos autos, com a sua contestação, documentos alegadamente assinados pelo mesmo e juntando cópia do passaporte. Ou seja num negócio de 120 milhões de euros, segundo o arguido, de 119 milhões porque fez um desconto, o arguido não sabe nada acerca do mesmo.
Diga-se, desde já, que os documentos juntos pelo arguido, face às contradições e total falta de credibilidade, não foram atendidos, colocando-se em dúvida a sua genuinidade, pelo que se vem de expor, não sendo valorados.
Sexto, o arguido referiu que se não aparecesse o CC não fazia o negócio com o EE, não vendendo as bobines, por não conseguir obter o pagamento do cheque bancário, o que denota que o arguido aproveitou-se da frágil situação do primeiro para ser a “cobaia” da experimentação de cobrança de um cheque bancário de um banco inglês em Portugal.
Sétimo, o arguido alegou que o cheque bancário apenas poderia ser cobrado em ... e noutros países da Europa e não em Portugal, a não ser no Banco 1..., porque lhe havia sido dito pelo CC que era possível, É rotundamente falso que um cheque bancário do tipo do que está em causa não possa lograr pagamento em qualquer instituição bancária portuguesa. Basta fazer uma pesquisa na internet, nos sites das mesmas, para se verificar ser possível, sendo um reconhecido instrumento financeiro na prática bancária, até porque o seu pagamento apenas é possível, naturalmente, depois da sua confirmação pela entidade bancária estrangeira emitente, diligências que foram realizadas nos presentes autos pelo Banco 1... e que desembocaram na informação de que o cheque era falso, sendo devolvido pela instituição bancária «Banco 2...».
Isto mesmo foi confirmado pela testemunha BB, bancària no Banco 1..., que também afirmou que tal cheque pode ser aceite por qualquer banco.
Questionou-se o arguido sobre a razão pela qual, face às dificuldades alegadas pelo arguido de obter o pagamento deste tipo de cheque bancário, o tal EE não lhe entregou um cheque bancário normal para poder ser depositada tal quantia em conta do arguido em ..., o mesmo não conseguiu dar explicação, nem podia, pois que seria evidente, segundo as regras da experiência comum e do normal suceder das coisas, que tal sucedesse, até para defesa dele próprio, num alegado negócio com uma pessoa que nem conhecia bem, nem sabe o seu paradeiro, nem se interessou pelo mesmo.
Oitavo, se como afirmou o arguido, o EE apenas pudesse levantar as bobines em níquel após a boa cobrança do cheque bancário que interesse teria o mesmo de entregar um documento falso ao arguido que nunca obteria pagamento e por, conseguinte, nunca teria acesso às famigeradas bobines?
É claro que foi o arguido a congeminar todo este plano ardiloso, falsificando ou mandando alguém a seu mando falsificar o cheque bancário para obter para si uma quantia que sabia não ter direito. Pensou o arguido que, por algum lapso da entidade bancária, poderia ser pago o referido cheque, caso não se apercebessem de tal falsidade, e mesmo perdendo 50 milhões de euros que poderiam ir para às mãos de CC, sempre ficaria com 69 milhões de euros.
Alguém acredita que o arguido, na situação em que se encontrava, apostaria 50 milhões de euros (ou 200) num projecto baseado numa fotografia de terrenos de ..., havendo grande probabilidade de perder uma quantia elevadíssima? Não conhecia o CC para poder dizer que teve confiança no mesmo, não analisou o projecto, não o viu, não havia nada de palpável no mesmo, pelo que atenta contras as regras da lógica que assim procedesse, como está bom de ver.
Por outro lado, para prova de que foi o arguido a engendrar este esquema e a fabricar por si ou a seu mando o cheque bancário, importantíssimo se revelam os factos 12) e 13).
A testemunha CC afirmou, em audiência de julgamento, que estava já em contacto com a Polícia Judiciária que lhe indicou os procedimentos a tomar e, assim, perante a pressão que exerceu perante o arguido, driigiram-se à sucursal do Banco 1..., S.A., do ..., no ..., onde este lhe pediu que solicitasse a devolução do cheque, o que este fez, e entregou uma declaração datada de 09-08-2018, emitida pela «EMP01...» onde é referido que o cheque bancário mencionado foi tratado pelo Banco 1..., S.A. como um cheque regular, não sendo respeitados os procedimentos desta transação e solicitando a devolução do cheque informando que a transação seria cancelada. No entanto a «EMP01...» está liquidada desde 2017.
Consta dos autos a fls. 184 a resposta do legal representante de tal sociedade, dizendo ser absolutamente falso esse mesmo documento.
O depoimento de DD foi totalmente confuso e parcial, querendo favorecer o arguido seu amigo.
Sobre as bobines de níquel, referiu que as viu, mas não conseguiu especificar a que título, nem confirmar de quem seriam, designadamente se pertenciam ao arguido, tomando apenas como certa a versão deste, a qual, como vimos, passou de ser ele o proprietário a depois ser comissionista por pertencerem a um russo que não conseguiu identificar.
Do mesmo modo, esta testemunha disse ter estado num almoço com o arguido e o EE em Portugal, pessoa que, como já referimos, não se comprovou ter qualquer intervenção neste episódio, não sendo identificado pelo arguido, pelo que o depoimento desta testemunha foi totalmente descredibilizado, não tendo a virtualidade de servir como meio de prova nos autos.
Mais não fez do que vir trazer a versão do arguido, a qual como vimos é absolutamente desprovida de lógica, sem respaldo nas regras da experiência comum.
Acresce ainda o demais do depoimento da testemunha CC.
O mesmo afirmou que a testemunha DD lhe apresentou o arguido como dono de umas bobines de níquel que teria depositadas num Banco e através da penhora das mesmas conseguia emprestar os tais 50 milhões de euros.
Mais disse que o arguido, durante todos os factos, nunca lhe falou no EE e que lhe disse que o cheque em causa era um cheque normal “semelhante ao do Banco 6...” e que, depois da primeira informação da gerente do Banco 1... de ... de que o mesmo era falso, o arguido lhe disse que o cheque podia ser depositado na sua conta, mas que demoraria uns dias, nunca lhe tendo dito o arguido que demoraria 1 ano e 1 dia, ao contrário do que este afirmou em audiência de julgamento.
Explicou que também é falso que o arguido – ao contrário do que este afirmou em audiência de julgamento – lhe dissera que o cheque em causa não seria aceite em todos os bancos em Portugal.
Questionado sobre o porquê de o contrato que celebrou com o arguido fazer menção a um empréstimo de 200 milhões, explicou que o arguido lhe disse que o negócio que estava a fazer com as bobines de níquel era desse valor e o cheque também seria nesta quantia, mas depois disse que só conseguiria emprestar 119 milhões de euros.
Mais adiantou que, afinal,  o projecto não chegou a ir para a frente, sendo que alguém em ... analisou o mesmo, mas não tinha nenhum estudo, sendo que era tudo por palavra, por causa de um planta medicinal: moringa.
Referiu que não apresentou documentação, apenas uma fotografia dos terrenos, pois que o projecto em si não havia, era apenas uma ideia.
Assim, o arguido por forma a obter a devolução do cheque entregou uma declaração falsa, a qual sabia perfeitamente ser falsa pois que o Banco 1... não tratou o cheque bancário como um cheque regular, muito menos sendo verdade que não foram respeitados os procedimentos da transacção.
É claro que o arguido, questionado sobre isto, escudou-se na mesma desculpa, tal declaração foi-lhe entregue pelo EE. Sucede que a referida declaração está dirigida a si e dela não consta o nome dessa pessoa.
Nunca nos autos foi referido o nome desse tal EE. Não consta dos autos qualquer referência ao mesmo, nem no processo onde se verificam tentativas de transacções sendo interveniente a EMP01... já depois de liquidada (processo n.º 602/18.... relativo a bloqueio de contas bancárias), sendo uma pessoa introduzida pelo arguido em sede de contestação, não fornecendo ao Tribunal qualquer dado sobre a sua localização.
Assim, o Tribunal não ficou com quaisquer dúvidas, face às contradições evidentes do arguido, anteriormente expostas, que foi o mesmo o autor das falsificações ou alguém a seu mando, por só ele ter interesse nas mesmas, e que mais não quis do que obter pagamento do cheque em causa nos autos, através da testemunha CC.
E por tudo quanto se expôs, deram-se como não provados os factos de a) a e).
Por força dos mesmos meios de prova e da forma como actuou o arguido, nenhuma dúvida ressumou de que quis praticar tais factos, nos termos dados enunciados, bem sabendo que se tratava de algo proibido. Na ausência de confissão integral, tal prova foi feita por ilações, retiradas dos indícios, e também de uma leitura de um comportamento exterior e visível do agente, nos termos que demonstrámos. 
Os actos interiores ou factos internos, respeitantes à vida psíquica, raramente se provam directamente, porque não são externamente observáveis, pelo que a demonstração da existência do dolo é frequentemente feita por inferência ou dedução lógica, partindo dos factos conhecidos que são os modos de execução dos tipos de crime, associados à capacidade de discernimento e à liberdade de vontade do autor desses factos e demais circunstâncias que contextualizam a prática do crime.
O dolo é um fenómeno psicológico que, situando na vida interior de cada um, só é observável diretamente por quem o experiencia. Da sua natureza subjetiva, nasce a sua insusceptibilidade de apreensão directa por terceiros, com base em prova indirecta, tão válida quanto seria, caso o arguido tivesse confessado integralmente e sem reservas os factos.
Relativamente à matéria de facto sobre a situação económica, social e familiar do arguido, dada como provada de 22) a 33), o Tribunal tomou em consideração o relatório elaborado pela DGRSP e junto aos autos.
No que concerne aos antecedentes criminais, em 34), tal foi concluído da análise do teor dos Certificados de Registo Criminal juntos aos autos.
*
III – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A) ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL DOS FACTOS

O arguido encontra-se acusado pela prática, como autor material, em concurso real (artigo 30.º, n.º 1 do Código Penal), de:
- um crime de burla qualificada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, n.º 1, 23.º, 217.º, n.ºs 1 e 2 e 218.º, n.º 2, alínea a), ambos do Código Penal, e
- dois crimes consumados de falsificação ou contrafação de documento, previstos e punidos pelos artigos 255.º, alínea a) e 256.º, n.º 1, alíneas a), c), e) e f) e n.º 3, ambos do Código Penal.
*
Do crime de burla qualificada

Prescreve o artigo 217.º, n.º 1 do Código Penal que “quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem prejuízo ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
Por outro lado, de harmonia com o artigo 218.º, n.º 1 do Código Penal – crime imputado ao arguido [burla qualificada] “quem praticar o facto previsto no n.º 1 do artigo anterior é punido, se o prejuízo patrimonial for de valor elevado, com pena de prisão ou com pena de multa até 600 dias.

Nos termos do n.º 2:
“A pena é a de prisão de dois a oito anos se:
a) O prejuízo patrimonial for de valor consideravelmente elevado;
b) O agente fizer da burla modo de vida;
c) O agente se aproveitar de situação de especial vulnerabilidade da vítima, em razão de idade, deficiência ou doença; ou
d) A pessoa prejudicada ficar em difícil situação económica.
3 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.os 2 e 3 do artigo 206.º
4 - O n.º 1 do artigo 206.º aplica-se nos casos do n.º 1 e das alíneas a) e c) do n.º 2.”
Finalmente, define o artigo 202º, al. b) do mesmo Código que “Valor consideravelmente elevado: aquele que exceder 200 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto.”
No ano de 2018 – data dos factos – a unidade de conta cifrava-se em 102,00€, pelo que o valor consideravelmente elevado é o correspondente a 20.400,00€ euros.
Conforme resulta de normativo ora enunciado, a burla recobre situações em que o agente, com a intenção de conseguir um enriquecimento ilegítimo (próprio ou alheio), induz outra pessoa em erro, fazendo com que a última, por esse motivo, pratique actos que causem a si mesma ou a terceiro prejuízos de carácter patrimonial.
Deste modo, os elementos do crime de burla simples são os seguintes:
a) emprego de astúcia pelo agente;
b) erro ou engano da vítima devido ao emprego da astúcia;
c) “prática de atos” pela vítima em consequência do erro ou engano em que foi induzida;
d) “prejuízo patrimonial” – da vítima ou de terceiro – resultante da prática dos referidos atos;
e) Intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo.  (cf. Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal de 1982, Vol. IV, Rei dos Livros, p. 142).
Vejamos, com mais pormenor, cada um dos elementos.
A conduta do agente, causadora de erro ou engano no sujeito passivo, deve ser astuciosa e enganosa, caraterizando-se por ser um crime de execução vinculada.
Por erro deve entender-se a falsa ou nenhuma representação da realidade concreta, que funcione como vício do consentimento da vítima; já o engano equivale “à simples mentira” (Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal de 1982, Vol. IV, Rei dos Livros, p. 143).
E este erro ou engano do sujeito passivo, consistente na provocação de uma falsa representação da realidade, pode ser causado por palavras, gestos ou outros atos concludentes, entendendo-se por atos concludentes aqueles que “têm um sentido social inequívoco, que não corresponde à vontade do agente do crime, mas que ele aproveita para enganar o burlado”. - Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 5ª edição actualizada, p. 848.
Mas não haverá erro ou engano quando a vítima não procede com a diligência mínima que lhe é exigida no tráfego comercial.
Acresce que, como se disse, este erro ou engano tem de ser provocado astuciosamente, por meio de artifícios ou ardis.
A astúcia consiste no “aproveitamento de uma vantagem cognitiva do agente sobre o burlado, que lhe permite manipular a vontade do burlado”. – Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 5ª edição actualizada, pág. 849.
Ou como se afirma no Ac. TRC 13.12.2000, CJ, V, p. 54 a astúcia deve ser entendida como exigindo um domínio do erro pelo agente, que manipula o sujeito passivo. Mas este domínio do erro só releva quando viola os ditames da boa fé objetiva por implicar uma deslealdade tida por inadmissível no comércio jurídico.
Por outro lado, exige-se que a conduta astuciosa do agente deva ser adequada à prática de certos atos pelo burlado e que estes atos do burlado sejam causa adequada da verificação do prejuízo patrimonial do ofendido ou de terceiro.
Daí que o ato de disposição seja o elemento do tipo que está em contacto com o elemento intelectual (que é o erro ou engano de quem os pratica) e com a consequência exterior patrimonial da burla (prejuízo do enganado ou de terceiro).
Destarte, o prejuízo patrimonial deverá determinar-se através da aplicação de critérios objetivos de natureza económica à concreta situação patrimonial da vítima, concluindo-se pela existência de um dano sempre que se observe uma diminuição do valor económico por referência à posição em que o lesado se encontraria se o agente não houvesse realizado a sua conduta. - Almeida Costa, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, pág. 284-285. 
Assim, para a verificação do crime de burla há a considerar, num primeiro momento, a verificação de uma conduta astuciosa que induza directamente ou mantenha em erro ou engano o lesado, e num segundo momento deverá verificar-se um enriquecimento ilegítimo de que resulte prejuízo patrimonial do sujeito passivo ou de terceiro.
Por outro lado, deverá existir uma sucessiva relação de causa-efeito entre os meios empregues e o erro ou engano e entre estes e os actos que vão directamente defraudar o património do terceiro ou do lesado (vide neste sentido, o Ac. do STJ de 08FEV96, in CJ, Acs. do STJ, 1996, Tomo I, 208).
Na determinação do enriquecimento ilegítimo importa considerar o conceito civilístico do enriquecimento sem causa: o enriquecimento de alguém, com o consequente empobrecimento de outrem, o nexo causal entre a primeira e a segunda destas situações e a falta de causa justificativa de tal empobrecimento (vide Ac. do STJ de 23JAN97, in BMJ, 463, 276).
Astúcia no sentido semântico do termo, é a habilidade em exercer fraude, em enganar alguém, sem que este se aperceba, para daí obter benefício (vide "Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea", Academia das Ciências de Lisboa, Ed. Verbo).
O crime de burla é um crime material ou de resultado, que apenas se consuma com a saída das coisas ou dos valores da "disponibilidade fáctica" do sujeito passivo ou da vítima, e, assim, quando se dá o "evento", que embora integre uma consequência da conduta do agente, se apresenta autónomo em relação a ele. Por outro lado, a burla integra um delito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma muito forma particular forma de comportamento.
Traduz-se na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios.
Para que se esteja em face de um crime de burla, não basta, porém, o simples emprego de um meio enganoso: torna-se necessário que ele consubstancie a causa efectiva da situação de erro em que se encontra o indivíduo. De outra parte, também não se mostra suficiente a simples verificação do estado de erro: requer-se ainda, que nesse engano resida a causa da prática, pelo burlado, dos actos de que decorrem os prejuízos patrimoniais.
Tratando-se de um crime material ou de resultado, a consumação da burla passa, assim por um duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática pelo burlado, de actos tendentes a uma diminuição do património (próprio ou alheio), e, depois entre os últimos a efectiva verificação do prejuízo patrimonial (vide A. M. Almeida Costa, in Comentário Conimbrinsense ao Código Penal, Parte Especial, tomo II, pág. 292-293). Como refere JESCHECK, in Tratado de Derecho Penal, Vol. I, pág. 360-361, «Dentro dos delitos de multiplicidade de actos e de resultado, constituem grupos específicos dos delitos imperfeitos de dois actos e dos delitos de resultado cortado (de resultado parcial ou cortado).
Por vezes, o legislador transpõe o segundo momento do acto do facto punível ao tipo subjectivo com o objectivo de prevenir a protecção típica.
Nos delitos imperfeitos de dois actos basta que no momento da primeira acção concorra a intenção do agente de realizar mais adiante a segunda acção que todavia inexiste, assim, na falsificação de documentos basta a intenção de enganar o comércio jurídico no momento da falsificação.
Diferente é o caso dos delitos de resultado parcial ou cortado – caracterizando-se por uma "descontinuidade" ou falta de congruência entre os correspondentes tipos subjectivo e subjectivo -, antes da verificação do resultado - Nestes a verificação do resultado não faz parte do tipo de ilícito, pelo contrário, basta a intenção do agente dirigida ao resultado; por exemplo na burla, a intenção do lucro. Enquanto que no primeiro grupo a intenção se dirige a um comportamento ulterior do próprio sujeito, no segundo a produção do resultado pretendido é independente da própria actuação do agente».
No plano dos factos, a conduta do agente comporta a manipulação de outra pessoa, caracterizando-se por uma sagacidade ou penetração psicológica que combina a antecipação das reacções do sujeito passivo com a escolha dos meios idóneos para conseguir o objectivo em vista. Por outro lado, a experiência de todos os dias revela que, longe de envolver, de forma inevitável, a adopção de processos rebuscados ou engenhosos, aquela sagacidade comporta uma regra de "economia de esforço", limitando-se o burlão ao que se mostra necessário em função das características e da situação da vítima.
Numa tal adequação de meios – adequação essa que, atentas as particularidades do caso, pode encontrar o "ponto óptimo" no menos sofisticado dos procedimentos – radica em suma, a inteligência ou astúcia que preside ao estereótipo social da burla e, sob pena de um divórcio perante as realidades da vida, tem de subjazer à fattispecie do nº1 do artigo 217º.
Refira-se, por último que só nesta perspectiva se harmoniza com o entendimento, hoje pacífico, de que a idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente se afere tomando em consideração as características do concreto burlado». (vide A. M. Almeida Costa, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, tomo II, pág. 298). «Na imputação objectiva, subjacente aos pressupostos da chamada teoria da adequação, tendo em atenção a particular credulidade ou falta de resistência do burlado (v.g. mercê da fragilidade intelectual, de inexperiência, ou de especiais relações de confiança com o agente), admite-se a possibilidade de concluir pela idoneidade de um meio enganador via de regra incapaz de persuadir a generalidade das pessoas» (vide A. M. Almeida Costa, in ob. cit., pág. 294-295) «No quadro da compreensão da burla como um delito contra o património, exige-se a verificação de um genuíno domínio-do-erro, como pressuposto da responsabilização do agente pelo crime consumado, nesse domínio-do-erro terá de ancorar o fundamento da imputação do resultado à conduta.
De harmonia com a exposição anterior, na medida em que se exprime a adequação do comportamento do agente às características do caso concreto, aquele domínio-do-erro esgota o conteúdo útil da inclusão do advérbio "astuciosamente" no n.º1, do artigo 217º, enquanto nota caracterizadora do modus operandi da burla: por referência ao artigo 10º, nº1, do Código Penal, ele exprime, no contexto de um iter criminis que comporta, de permeio, a intervenção de outra pessoa (= sujeito passivo), a exigência de um rigor intensificado – o mesmo que se coloca na esfera da autonomia mediata fundada no domíniodo-erro – ao nível da aplicação dos critérios gerais da imputação objectiva. (vide A. M. Almeida Costa, in ob. cit., pág. 299-301).
Em esquema, dir-se-á que a actuação do agente é um comportamento astucioso, que implica um erro ou engano, que leva o sujeito passivo do crime a ter uma determinada actuação, que implica uma disposição patrimonial da sua parte, que lhe causa prejuízo.
Isto posto, vejamos o caso dos autos.
Não há dúvida que a actuação do arguido se subsume à prática do crime de burla.
O arguido com intenção que de obter para si uma vantagem patrimonial [que não obteve por razões alheias à sua vontade], de obter um enriquecimento, que bem sabia ser ilegítimo, usou artifícios para lograr tal intento. E esse artifício consistiu em forjar um cheque bancário, que dava a aparência de ter sido da lavra de uma entidade bancária, para pagamento a CC, de 119 milhões e posterior  entrega de 69 milhões de euros a si, valor este com que pretendia locupletar-se.
Em data não concretamente determinada, mas anterior a ../../2018, o arguido AA ou alguém a seu mando e com o seu conhecimento, elaborou o cheque bancário - «Banker’s draft», em todos os seus dizeres, bem como a declaração emitida em nome da «EMP01...», levando a que CC apresentasse tais documentos junto do Banco 1..., S.A..
O Arguido AA ou alguém a seu mando e com o seu conhecimento, em datas e em circunstâncias concretamente não apuradas, criou o mencionado cheque bancário, apondo as assinaturas das pessoas nele contantes, sabendo não eram verdadeiras e que o fazia sem autorização e contra a vontade dos seus titulares, apondo o respetivo carimbo, criando a aparência de um verdadeiro cheque bancário, por forma a que o mesmo fosse apresentado para pagamento, fazendo crer que esse cheque estava regularmente emitido e pondo em causa a fé pública que merecia tal título de crédito.
Do mesmo modo, o Arguido AA ou alguém a seu mando e com o seu conhecimento, elaborou a declaração mencionada em nome da «EMP01...», forjando os elementos identificativos neles constantes, apondo um carimbo, que não corresponde ao da «EMP01...», criando a aparência de que tal documento era verdadeiro, por forma a ser-lhe devolvido o sobredito cheque bancário.
O arguido AA sabia que ao levar a efeito a conduta descrita estava a pôr em crise a confiança de que gozam os documentos em apreço, visando levar o Banco 1..., S.A, bem como CC, a crer que os mencionados documentos eram verdadeiros, sabendo que, desse modo, conseguiria um benefício a que sabia não ter direito, o que tudo quis e só não conseguiu por motivos alheios à sua vontade.
O arguido AA agiu de modo livre, voluntário e consciente, fazendo crer a CC que se encontrava a negociar um verdadeiro contrato de mútuo, por forma a alcançar o depósito do sobredito cheque na conta bancária de CC e assim obter €119.000.000,00 (cento e dezanove milhões de euros).
Mais sabia o arguido AA que, dessa forma, poderia obter para si um benefício ilegítimo a que não tinha direito, causando igual prejuízo a CC e ao Banco 1..., S.A., o que só não logrou alcançar por motivos alheios à sua vontade.
O Arguido AA atuou sempre de forma livre, deliberada e voluntária, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal e, tendo capacidade para o determinar de acordo com o seu conhecimento.
Está assim comprovado que o arguido provocou o erro de outrém descrevendo-lhe por palavras ou declarações expressas (orais ou escritas) uma falsa representação da realidade;
O erro foi induzido através de actos concludentes;
O erro resulta de condutas que à luz de um critério objectivo - das regras da experiência comum e dos padrões ético-sociais vigentes no sector da actividade - se mostram adequadas a criar uma falsa convicção sobre certo facto, considerando as particularidades da situação, a tal ponto que o Banco 1... teve de fazer diligências junto do banco emissor do cheque bancário para conluir que o mesmo era falso.
Por isso, não restam dúvidas que a conduta da arguida preencheu o tipo criminal da burla qualificada, uma vez que o valor em causa é consideravelmente elevado.
No entanto, no artigo 22.° do Código Penal estabelece-se que “Há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que ele chegue a consumar-se.”, estabelecendo-se no n° 2 do mesmo artigo serem actos de execução, além dos que preencham um elemento constitutivo de um tipo de crime e dos que segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies anteriores, os que “forem idóneos a produzir o resultado típico”.
Dúvidas inexistem de que o arguido MM, nos termos descritos, praticou actos de execução idóneos à verificação do resultado típico pretendido, mas não chegando a crime a consumar-se, por razões alheias à sua vontade.
Por outro lado, o arguido actuou com dolo directo, nos termos do disposto no artigo 14.º nº 1 do Código Penal.
Estão, assim, preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime imputado, inexistindo causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, pelo qual será condenado.
*
Dos crimes de falsificação ou contrafacção de documento
O arguido vem acusado pela prática de dois crimes consumados de falsificação ou contrafação de documento, previstos e punidos pelos artigos 255.º, alínea a) e 256.º, n.º 1, alíneas a), c), e) e f) e n.º 3, ambos do Código Penal, que se transcreve:
“1 - Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:
a) Fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo;
b) Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram;
c) Abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento;
d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante;
e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores; ou
f) Por qualquer meio, facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito;
é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2 - A tentativa é punível.
3 - Se os factos referidos no n.º 1 disserem respeito a documento autêntico ou com igual força, a testamento cerrado, a vale do correio, a letra de câmbio, a cheque ou a outro documento comercial transmissível por endosso, ou a qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 267.º, o agente é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias.”
Documento, conforme prescreve o artigo 255.º, al. a) do Código Penal, é declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente; e bem assim, o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta.
O crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, e 3 do Código Penal está inserido no Capitulo II - «Dos crimes de falsificação» - do Titulo IV do Livro Segundo do Código Penal, sob a epígrafe «Dos crimes contra a vida em sociedade». Analisando este Titulo IV, refere o Dr. J.M. Damião Cunha ("Comentário Conimbricense do Código Penal", Tomo II, pág. 599) que uma das alterações fundamentais após a revisão do Código Penal levada a efeito pelo DL n.º 48/95, de 15 de Março, foi «... a redução do âmbito deste título à incriminação de condutas que digam respeito a valores supraindividuais;...». São os interesses da sociedade e não os interesses patrimoniais que estão especialmente protegidos no dito Título IV.
No crime de falsificação, mais do que a protecção da fé pública dos documentos, traduzida num sentimento geral de confiança nos actos públicos, o que a norma protege é a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental. O crime de falsificação de documento afecta toda a sociedade e daí que o crime seja público. É um crime de perigo, pois que o legislador não exige, para a respectiva consumação, a efectiva lesão do bem jurídico tutelado. Basta-se com a intenção de causar prejuízo.
“O documento tem três funções, que constituem simultaneamente os elementos da noção jurídico-penal de documento: a função representativa, isto é, o documento é uma representação de um pensamento humano; a função probatória, isto é, o documento é apto para a prova de um facto juridicamente relevante (isto é, de um facto com o efeito de constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica); e a função de garantia, isto é, o documento é uma declaração com identificação do emitente (pessoa física ou jurídica)” - Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, pág. 927.
Trata-se de tipo legal de crime de perigo abstrato, quanto às condutas previstas nas alíneas a) a d) e um crime de dano, quanto às condutas referidas nas alíneas e) e f).
Já quanto ao elemento objetivo, são elementos constitutivos do crime sob análise um comportamento do agente concretizado em qualquer uma das atividades enumeradas nas diversas alíneas do n.º 1 do citado artigo 256º, sendo as alíneas a) a d) situações típicas de falsificação de documento, enquanto a alínea e) e f) reportam-se à circulação de documento falso.
Relativamente à falsificação propriamente dita, podemos distinguir a falsificação material ou ideológica.
Será material quando o “agente altera, total ou parcialmente, um documento já existente. Aqui, o documento não é genuíno, não é autêntico pois a sua integridade material foi sujeita a alteração”. Trata-se do próprio documento, que é alterado ou modificado, total ou parcialmente.
Será ideológica quando “o documento integra uma declaração escrita distinta da prestada pelo declarante [v.g. quando o funcionário notarial faz constar da escritura facto contrário ao afirmado pelo ou pelos outorgantes], (…) e quando o agente presta no documento uma declaração de facto falsa juridicamente relevante [v.g., o outorgante de escritura de justificação que aí faz declarações que sabia não serem verdadeiras quanto à aquisição de direito de propriedade, para depois, registar o imóvel em seu nome]. (…) Aqui o documento é inverídico isto é, não tendo sofrido qualquer alteração na sua materialidade, incorpora declarações originárias que não têm correspondência com a verdade”. O problema reside, pois, no conteúdo do documento, ou seja, na desconformidade desse conteúdo com a verdade (cf. Ac. TRP de 05.12.1990, proc. 0310711; Ac. TRC de 16.12.2015, proc. 1018/13.9TAGRD.C1, disponível em www.dgsi.pt  e Helena Moniz, em “anotação ao art. 256 (falsificação de documento), Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 676). 
Mas, nem todo o facto falso integra a falsificação de documentos; para que haja falsificação de documentos é necessária a integração de «facto falso juridicamente relevante», ou seja, “a integração de facto que crie, modifique ou altere uma relação jurídica” - Helena Moniz, Comentário Conimbricense, II, pág. 683.
Por isso, a falsificação pode consistir na fabricação ex novo de um documento não verdadeiro ou na sua modificação parcial (falsidade material). Ou então, pode tratar-se de um documento regular e que contenha uma declaração de um facto não verdadeiro, juridicamente relevante (falsificação ideológica).
Na alínea a), quanto à falsificação material, “há fabrico de documento quando o agente forja, na íntegra, um documento falso. Assim sucede sempre que se fabrica, desde a origem, um documento que não existia. Há aqui pois uma contrafacção total, isto é, a feitura «ex novo» e «ex integro» de um documento.” - Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, “Código Penal Anotado – Parte Especial”, 5.ª Edição, 2023, pág. 1234. 
Quanto à alínea c), “a integração no documento de uma assinatura de outra pessoa inclui não apenas o caso de ao assinante não ser o autor do documento e assinar com o nome de outra pessoa, mas também o caso de o assinante ser o autor do documento, mas assinar com o nome de outra pessoa. Estas condutas constituem uma fraude na identificação.” – Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal”, 5.ª Edição actualizada, julho de 2022, pág. 1031.
Também está abrangido a chamada circulação de documento falso que engloba o uso por pessoa que não é o autor da falsificação, bem como a detenção por pessoa que não o autor da fabricação ou falsificação e a cedência do documento a pessoa que não é o seu autor.
O tipo subjetivo abrange qualquer modalidade de dolo, ou seja, o conhecimento e vontade de praticar o facto (artigo 14º do CP). Mas é ainda exigível um elemento subjetivo específico, como seja a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime. Trata-se, pois, de um crime intencional.
Contudo, como refere Pinto de Albuquerque, “não é exigível que se verifique o prejuízo efectivo de outra pessoa ou do Estado, nem o benefício ilegítimo do agente ou de terceira pessoa e nem mesmo o cometimento de outro crime. Portanto, o crime de falsificação de documento é um crime de resultado cortado.” - Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal”, 5.ª Edição actualizada, julho de 2022, pág. 1034-1035.
Isto posto, vejamos o caso dos autos.
Um dos documentos, o cheque bancário, é desde logo subsumível ao n.º 3 do art.º 256.º do Código Penal.
Já assim não sucede com a declaração referida em 12) dos factos provados.
Encontra-se provado que:
- Em data não concretamente determinada, mas anterior a ../../2018, AA, ou alguém a seu mando e com o seu conhecimento, elaborou o cheque bancário - «Banker’s draft», em todos os seus dizeres, bem como a declaração emitida em nome da «EMP01...», levando a que CC apresentasse tais documentos junto do Banco 1..., S.A.. 
- O Arguido AA ou alguém a seu mando e com o seu conhecimento, em datas e em circunstâncias concretamente não apuradas, criou o mencionado cheque bancário, apondo as assinaturas das pessoas nele contantes, sabendo não eram verdadeiras e que o fazia sem autorização e contra a vontade dos seus titulares, apondo o respetivo carimbo, criando a aparência de um verdadeiro cheque bancário, por forma a que o mesmo fosse apresentado para pagamento, fazendo crer que esse cheque estava regularmente emitido e pondo em causa a fé pública que merecia tal título de crédito.
- Do mesmo modo, o Arguido AA ou alguém a seu mando e com o seu conhecimento, elaborou a declaração mencionada em nome da «EMP01...», forjando os elementos identificativos neles constantes, apondo um carimbo, que não corresponde ao da «EMP01...», criando a aparência de que tal documento era verdadeiro, por forma a ser-lhe devolvido o sobredito cheque bancário. 
AA sabia que ao levar a efeito a conduta descrita estava a pôr em crise a confiança de que gozam os documentos em apreço, visando levar o Banco 1..., S.A, bem como CC, a crer que os mencionados documentos eram verdadeiros, sabendo que, desse modo, conseguiria um benefício a que sabia não ter direito, o que tudo quis e só não conseguiu por motivos alheios à sua vontade. 
- AA agiu de modo livre, voluntário e consciente, fazendo crer a CC que se encontrava a negociar um verdadeiro contrato de mútuo, por forma a alcançar o   depósito do sobredito cheque na conta bancária de CC e assim obter  €119.000.000,00 (cento e dezanove milhões de euros).
- Mais sabia o Arguido AA que, dessa forma, poderia obter para si um benefício ilegítimo a que não tinha direito, causando igual prejuízo a CC e ao Banco 1..., S.A., o que só não logrou alcançar por motivos alheios à sua vontade.
- Agiu ainda o Arguido de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta atentava contra a segurança, como conseguiu, e abalou a genuinidade e credibilidade no tráfico jurídico probatório e que o cheque ora em causa deve merecer.
- O Arguido AA actuou sempre de forma livre, deliberada e voluntária, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal e, tendo capacidade para o determinar de acordo com o seu conhecimento.
Demonstrou-se que foi o arguido ou alguém a seu mando a fazer aquela fabricação e falsificação, forjando tais documentos, preenchendo-os e apondo assinaturas, usando-os nos termos em causa, encontrando-se preenchidas as alíneas a) e c) do n.º 1 do art.º 256.º do Código Penal.
Mas já não as alíneas e) e f).
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, “a circulação do documento falso inclui o uso por pessoa que não o autor da fabricação ou falsificação (portanto, seja qual for a modalidade de falsificação ideológica ou material), bem como a detenção por pessoa que não o autor da fabricação ou falsificação e a cedência do documento a pessoa que não o autor da fabricação ou falsificação (precisamente nestes termos, Miguez Garcia e Castela Rio, 2014, 1013, anotação 11.ª ao art.º 256.º.” – “Comentário do Código Penal”, 5.ª Edição actualizada, julho de 2022, pág. 1033.
Do mesmo modo, Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques defendem que “nesta hipótese pune-se aquele que usa o resultado da falsificação praticada por terceiro. Se a falsificação resulta de acto do próprio utilizador, o uso não é punido por falta de autonomia da conduta, uma vez que ela é absorvida pela própria falsificação em si.” – “Código Penal Anotado – Parte Especial”, 5.ª Edição, 2023, pág. 1236-1237 . 
No mais, o arguido agiu com dolo directo (art.º 14.º, n.º 1 do Código Penal.
Inexistindo causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, estão, assim, preenchidos os elementos objectivos e subjectivos, da autoria material e na forma consumada, de:
- um crime de falsificação ou contrafação de documento, previsto e punido pelos artigos 255.º, alínea a) e 256.º, n.º 1, alíneas a) e c) e n.º 3, do Código Penal, absolvendo-se das alíneas e) e f), quanto ao cheque bancário:
- um crime de falsificação ou contrafação de documento, previsto e punido pelos artigos 255.º, alínea a) e 256.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Código Penal, absolvendo-se das alíneas e) e f) e do n.º 3, quanto à declaração descrita em 12):
*
3 O direito.

A
A decisão recorrida enferma do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal?

A matéria de facto dada como provada numa decisão jurisdicional pode ser escrutinada em recurso por dois modos: o primeiro, que é também de verificação oficiosa, está previsto no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e consubstancia uma imperfeição do texto da própria decisão e/ou do raciocínio nele expendido, por si só considerado ou conjugado com o objeto do processo e as regras da experiência, desdobrando-se nos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, e erro notório na apreciação da prova; o segundo, previsto no artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, através do qual, e mediante a reanálise de segmentos probatórios testemunhais ou outros, devidamente circunscritos e identificados, se discute a bondade do juízo efetuado na decisão, igualmente em relação a pontos factuais específicos devidamente individualizados, quer por imparidade entre o selecionado conjunto probatório existente e o que foi julgado como assente, quer por incorreta aplicação do principio da livre apreciação da prova.

Vejamos o que consta do Código de Processo Penal a respeito do primeiro modo:

  Artigo 410.º
Fundamentos do recurso
1 - Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada

Para melhor compreender o disposto neste artigo 410.º convém analisar a sua história.
O artigo 410.º do Código de Processo Penal corresponde quase na íntegra à versão original desta norma – a única exceção é o acrescento da alínea b) “(…) ou entre a fundamentação e a decisão”.
E na versão original do Código de Processo Penal, os tribunais superiores conheciam, em regra, de direito – o Supremo Tribunal de Justiça, por natureza, dir-se-ia, e os tribunais da relação por causa do disposto nos artigos 364.º , n.ºs 1 e 2, e 389.º, n.º 2, que fazia depender o recurso da matéria de facto da declaração no inicio da audiência de julgamento de que se não prescindia da documentação em ata das declarações ali prestadas oralmente, o que só era possível perante tribunal singular e/ou em processo sumário, que, como todos sabemos, raramente ocorria, por corresponder a um  julgamento com depoimentos escritos, naturalmente demorado. Ainda na versão original do Código, os recursos apresentados das decisões do tribunal coletivo e de júri eram da competência do Supremo Tribunal de Justiça – cfr. art.º 432.º, alínea c), dessa versão original.
Por isso, o artigo 410.º do Código de Processo Penal constituía, por assim dizer, uma válvula de segurança do sistema, uma salvaguarda extrema, para situações gritantes e absolutamente evidentes, através da qual a lei processual garantia ao tribunal de recurso, que apenas tinha poderes de cognição em relação à matéria de direito, algumas competências excecionais para entrar no campo da matéria de facto, naqueles casos, como se disse, gritantes e incontornavelmente óbvios. Foi por isso que se passou a chamar este mecanismo “revista alargada”, pois, o Supremo Tribunal de Justiça, que, tradicionalmente, apenas conhecia de revista, passou a ter alguns poderes de cognição em sede de matéria de facto; claro que esses poderes também estavam ao alcance da relação quando conhecia apenas de direito, que como se viu, também era a regra, mas neste caso não se tratava de revista alargada porque a recurso para a relação nunca foi designado por recurso de revista – cfr. sobre o tema, o interessantíssimo estudo do Prof. Paulo Merêa Bosquejo Histórico do Recurso de Revista, in BMJ, n.º 7, 1948, pag. 43 e segs.
E, quer na altura, quer agora, precisamente por se tratar de tão grave e evidente imperfeição da decisão, a consequência consistia e consiste, regra quase geral, no reenvio, que obriga a novo julgamento, total ou parcial, com outros juízes (isto mais tarde) – cfr. art.º 426.º, 39.º (original) e 40.º (atual) do Código de Processo Penal, sendo certo que a redação original do primeiro sofreu apenas alterações de pormenor (é certo que o art.º 430.º do Código de Processo Penal prevê a possibilidade de o tribunal da relação, perante a existência de um dos vícios elencados no n.º 2 do art.º 410.º, ordenar, a requerimento, a renovação da prova se tiver razões para crer que isso permitirá evitar o reenvio do processo, mas, como é consabido, esse não é o procedimento habitualmente seguido pelos tribunais superiores).
Todavia, os excecionais (como acima se explicou) fundamentos de recurso previstos no art.º 410.º, designadamente no seu n.º 2, do Código de Processo Penal tornaram-se atualmente, de modo absolutamente incompreensível, quase invariável e sistematicamente invocados, quando é certo e seguro que o cerne do recurso de facto se encontra previsto no art.º 412.º, n.º 3, do mesmo Código, que contém apertados e exigentes requisitos no que se refere à sua invocação, nem sempre respeitados e cumpridos pelos recorrentes – dir-se-ia até que o vício do erro notório na apreciação da prova previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal, perdeu razão de ser, atendendo à atual dimensão da impugnação do julgamento de facto prevista no artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do mencionado Código.
Este é mais um dos processos onde se brande em via principal uma, ou até, aparentemente, destas excecionalíssimas invalidades; recorde-se que são excecionalíssimas porque gravíssimas e evidentíssimas, do ponto de vista técnico – a matéria de facto que padeça deste vícios está ” (…) ostensivamente divorciada da realidade das coisas, quer por ser insuficiente, quer por ser contraditória, quer por erroneamente apreciada.” – cfr. Conselheiro Pereira Madeira, in Código de Processo Penal Comentado, Almedina, pag. 1356/7. Ainda por isso, o seu conhecimento é oficioso.
E é preciso ter bem presente que a “(…) indagação, por parte do tribunal ad quem dos vícios a que se refere o art.º 410.º (…)” constituiu “ (…) uma tarefa puramente jurídica, de matéria de direito afinal, já que mais nenhuma prova é necessária ao tribunal respetivo para que possa concluir pela eventual existência ou não dos falados vícios. (…). Já a eventual correção dos vícios aqui elencados, implica sempre uma decisão sobre a matéria de facto a levar a cabo nos termos do art.º 426.º, n.ºs 1 e 2, quer pelo próprio tribunal de recurso com jurisdição em matéria de facto, ou, tal não sendo possível, pelo tribunal reenviado para o efeito.” -  Cfr. Conselheiro Pereira Madeira, ob. cit., loc. cit.
No que concerne à configuração técnica teórica dos vícios previstos no n.º 2 do art.º 410.º do CPP, passamos a transcrever, na parte que aqui interessa, os brilhantes ensinamentos do Conselheiro Pereira Madeira na obra acima citada, que são sintéticos e absolutamente esclarecedores:
“Tem causado alguma dificuldade de perceção em alguns interlocutores judiciários a precisão e alcance da expressão <<insuficiência da matéria de facto para a decisão>>.
Deve notar-se antes de mais, que a fórmula não se refere ou especifica o tipo de decisão <<decisão condenatória>> ou decisão <<absolutória>>. A formulação legal é abrangente <<para a decisão>> e compreende toda e qualquer que seja a natureza da decisão. Assim para ser <<insuficiente para a decisão>> a matéria de facto apurada no seu conjunto há de ser incapaz de a suportar em abstrato, isto é, seja ela condenatória ou absolutória. Quando se afirma, como se vê fazer muitas vezes, que a matéria de facto provada é insuficiente para a condenação proferida pelo tribunal, não se está a proceder à invocação deste vício, antes, em suma, a afirmar que o tribunal errou na aplicação do direito aos factos provados, o que nada tem a ver com os vícios da matéria de facto. Na verdade, sob esta perspetiva, a matéria de facto seria sempre <<insuficiente>>: pois, em caso de absolvição ela seria insuficiente para a condenação … e em caso de condenação, sê-lo-ia para a absolvição…
A afirmação do vício ora em causa, importa, sempre, uma adequada perspetiva do objeto do processo, cujos confins são fixados pela acusação e ou pronúncia complementada pela pertinente defesa. A partir daí impõem-se o confronto de tal objeto processual com o que o tribunal de julgamento em concreto indagou, independentemente de o resultado dessa indagação ter tido ou não êxito, isto é, independentemente de os factos indagados terem sido dados como provados ou não provados. Importa, sim, que esses factos pertinentes ao objeto do processo tenham sido averiguados em julgamento do facto e obtido a necessária resposta, seja positiva seja negativa. Se se constatar que o tribunal averiguou toda a matéria de facto postulada pela acusação/defesa pertinente – afinal o objeto do processo – ainda que toda ela tenha porventura obtido resposta de <<não provado>>, então, o vício de insuficiência está afastado. Os factos pertinentes obtiveram resposta do tribunal, a matéria de facto é bastante para a decisão.
Já assim não será se o tribunal de julgamento deixou de dar resposta a um facto essencial postulado pelo referido objeto do processo, isto é, deixou por esgotar o thema probandum. É o caso, por exemplo, num julgamento por homicídio doloso, não haver qualquer referência nos factos provados e ou não provados, ao elemento subjetivo da ação do acusado pronunciado. Num caso destes, tenha sido condenatória ou absolutória a decisão, ela assenta em matéria de facto insuficiente, já que sem se saber qual a intenção ou atuação subjetiva do agente, a decisão condenatória peca por excesso, pois o arguido pode não ter agido com intenção de matar, e a decisão absolutória por defeito, pois o arguido pode ter agido com essa intenção. Nenhuma daquelas decisões (condenatória ou absolutória) é segura, daí o vício.” - cfr. ob. cit., loc. cit., pag. 1357/9.
Retenha-se, ainda, a não menos lúcida explicação de Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 2.ª Edição, atualizada, pag. 1055: “a insuficiência para a decisão a matéria de facto corresponde materialmente ao vício previsto nos artigos 712.º, n.º 4, e 729.º, n.º 3, do CPC. Contudo, o alargamento do objeto do processo obedece em processo penal a regras muito restritas (artigos 358.º e 359.º do CPP) e o controlo do vício da insuficiência não pode constituir um artifício para subverter estas regras.” – note-se que, atualmente, a referência deve considerar-se como sendo efetuada para os artigos 662.º e 682.º do Código de Processo Civil.
A insuficiência pressupõe, portanto, por assim dizer, sempre, um alargamento da análise do objeto do processo.
(…)
O erro notório na apreciação da prova é o terceiro dos vícios da matéria de facto aqui em causa. Estão incluídas, evidentemente, as hipóteses de erro evidente, escancarado, de que qualquer homem médio se dá conta.
Porém, a ser assim, com um alcance tão restrito, o preceito acabaria por perder grande parte do seu interesse prático, acabando afinal por deixar encobertas, situações de erro clamoroso, ainda que porventura não acessíveis ao cidadão comum. Impor-se-á, assim, uma leitura algo mais abrangente que não acoberte situações de julgamento erróneo não inteiramente escancaradas à observação do homem comum, todavia, que numa visão consequente e rigorosa da decisão no seu todo, seja possível, ainda que só ao jurista, e, naturalmente ao tribunal de recurso, assegurar, sem margem para dúvidas, que a prova foi erroneamente apreciada. Certo que o erro tem de ser <<notório>>. Mas basta para assegurar essa notoriedade que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada – ainda que para além das perceções do homem comum – e sopesado à luz de regras da experiência. Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que a sua existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem.” – cfr. ob. cit., loc. cit., pag. 1357/9.
Os números 1 e 3 do art.º 410.º do CPP não oferecem dificuldade especial de interpretação, nem são, normalmente, invocados nos recursos.
*

Ora, atenta a explanação do tema assim por nós efetuada, compaginada com a argumentação expendida no recurso, não restam quaisquer dúvidas da evidente imprecisão dos conceitos técnicos esgrimidos pelo recorrente, o qual confunde a jurídico-processual insuficiência com a literal insuficiência (falta, incompletude), e mistura o também jurídico-processual erro notório, com o erro de julgamento, sendo que os vícios assinalados a itálico imanem à própria decisão, ao passo que as restantes invocadas imperfeições dizem respeito ao concreto modo como foi exercido o poder soberano de decidir a matéria de facto, e são escrutináveis em face das provas produzidas, da sua apreciação e do resultado por esta obtido. Na verdade, o que o recorrente afirma, pugnacíssimo até à absoluta exaustão, é que não há prova para estes ou aqueles factos, e que quando se considerou que havia se cometeu um erro claro de apreciação das provas, ou seja, um erro de julgamento. Mas isto, como é, ou devia ser, consabido, nada tem que ver com as invalidades que ora nos ocupam, e será, naturalmente, apreciado a propósito da seguinte questão enunciada como objeto do recurso.

Assim sendo, não existe, como é absolutamente óbvio, qualquer insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, nem o recorrente, como é natural, diz qual é. Pelo contrário, a decisão é exaure o objeto do processo, nada ficando por apreciar, sendo certo que tal apreciação não agradou ao recorrente, o que é um direito seu. E também não se constata qualquer erro notório a apreciação da prova, porque a decisão se mostra coerente, verosímil, devidamente fundamentada e perfeitamente inteligível, não se surpreendendo nela qualquer afirmação, juízo, inferência ou conclusão que afronte de modo evidente a lógica, a razoabilidade ou as regras da experiência comum.

Assim sendo, e sem necessidade de ulteriores considerandos, o recurso tem necessariamente de improceder nesta parte.

B
Ocorre erro de julgamento em relação aos factos dados como provados na decisão recorrida sob os n.ºs 14 a 21?

Vejamos agora o segundo dos modos acima indicados de sindicar o julgamento de facto, consubstanciado na invocação de erro de julgamento.
Atentemos no que consta no Código de Processo Penal em relação ao que ora nos ocupa:

Artigo 412.º
Motivação do recurso e conclusões
(…)
3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
(…)
6 - No caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.

Estamos, deste modo, em face do triplo dever (ónus, segundo outros) que legalmente impende sobre o inconformado recorrente de facto.
Assim, se a indicação dos concretos pontos de facto que se consideram incorretamente julgados não apresenta dificuldade de maior, bastando indicá-los tout court, sendo certo que a maior parte das decisões têm a factualidade estruturada através de numeração (convém, todavia, ter presente que alguns números contêm vários pontos concretos), já as concretas provas dizem respeito ao conteúdo específico das provas, não sendo suficiente a simples indicação de uma testemunha ou perícia, por exemplo, para fundar aquela pretensão – quanto à prova gravada, é necessário indicar com precisão o ficheiro áudio de que consta, e até a data da sessão da audiência em que foi produzida, se forem várias, bem como o momento inicial e final (minutos e segundos), na dita gravação, do excerto em causa, e quanto às restantes provas (documental, pericial, apreensões, etc.), o preciso local dos autos em que foram adquiridas e produzidas, designadamente a data ou referência da sua junção, bem como a explicitação da parte ou partes do seu teor que, no entender do recorrente, impõem decisão diversa, não sendo necessária, todavia, atualmente, a transcrição da gravação áudio invocada, tal como defende o Conselheiro Pereira Madeira, ob., cit., pag. 1390, nota 6.
Observação importantíssima tem que ver com as condições de procedência do recurso em sede de impugnação da matéria de facto. Na verdade, o julgamento efetuado em primeira instância beneficia, em pleno, dos princípios da oralidade e imediação da produção de prova, o que, consabidamente, confere aos julgadores melhores possibilidades de apreciar a prova com rigor e clarividência, permitindo um juízo mais aproximado da verdade material e, portanto, uma mais precisa reconstituição desta.
Por isso, a lei estabelece no preceito ora em análise que a argumentação do recorrente deve conter a indicação das provas que impõem uma decisão diversa, bem como, naturalmente, qual é ela. Que impõem, e não apenas que aconselham, permitem, autorizam ou facultam. E tal exigência não deriva, como muitas vezes se afirma, do princípio da livre apreciação da prova, ínsito no art.º 127.º do Código de Processo Penal, pois este tanto se aplica ao julgamento do tribunal recorrido como ao julgamento do tribunal de recurso; na verdade, tão livre é um tribunal quanto o outro para apreciar a prova; a diferença entre ambos radica, precisamente, na aludida proximidade em relação à prova produzida na primeira instância, a qual confere particulares garantias de fiabilidade do juízo que assim sobre elas se produz, ideia que a lei acolhe expressamente, quando opta pelo vocábulo impõe para autorizar uma alteração daquele julgamento primordial – basta pensarmos na diferença entre um julgador numa sala de audiências com várias pessoas olhar diretamente o arguido, a testemunha ou o perito nos olhos, assistir às suas reações, postura corporal, esgares, hesitações ou assertividade, e olhares, assistir ao seu interrogatório ou formular-lhe as perguntas que entender necessárias, no momento que lhe parecer ser pertinente ou adequado, mostrar-lhe documentos ou outras partes do processo, apreciar, no decurso da audiência,  comparativa e simultaneamente as reações isoladas ou recíprocas de uns e outros, enfim, ter perante si este completíssimo e riquíssimo cenário, dir-se-ia teatro até, por um lado, e entre um outro julgador que está durante umas horas, dias ou até mais, fechado no seu gabinete, com uns auscultadores nos ouvidos e de olhos abertos, cerrados ou semicerrados, tentando captar a maior parte que lhe é humanamente possível de toda aquela riqueza de pormenores através da simples audição, para percebermos por que (acertado) motivo a lei tomou a opção acima referida. É, na verdade, esta diferença fundamental de condições que justifica que a intervenção do tribunal de recurso no julgamento da matéria de facto só ocorra se estiver irrefutável e cabalmente demonstrado que há um claro e evidente erro de apreciação, seja por inexperiência, desconhecimento, precipitação ou outro qualquer motivo, de tal modo que se torne absolutamente indiscutível proceder à correção ou acerto da decisão nesta sede.
Assim, e em conclusão, o art.º 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, apenas autoriza a alteração do julgamento de facto quando as provas invocadas pelo recorrente impõem uma decisão diversa, não bastando que a permitam; trata-se de concluir que se impõe quase como um imperativo categórico kantiano um “julgamento necessário” e não apenas que se configura como aceitável ou possível um “julgamento diferente”.
Além disso, é consabido que a jurisprudência e a doutrina entendem de forma unânime que o recurso do julgamento da matéria de facto não se traduz na realização de um novo e inteiro julgamento pelo tribunal recorrido, antes constituindo um meio de sanar evidentes erros, devidamente circunscritos, sendo certo que não se pode negar que a verificação de um desse erros de julgamento possa ter consequências mais ou menos extensas na decisão da matéria de facto, consoante a sua relevância e a matéria a que respeitar. Seguro é que uma pretensão recursiva de inconformismo genérico e total com o julgamento da matéria de facto, traduzida na proposta de uma completa inversão do decidido se afigura como quase inaceitável à luz do teor da nossa lei e da interpretação que dela é feita, como se disse.
O princípio da livre apreciação da prova, previsto no art.º 127.º do Código de Processo Penal, estatui que o tribunal aprecia o valor da prova de acordo com as regras da experiência e a sua livre convicção; a ele se contrapõe ao princípio da prova legal, nos termos do qual o valor dos meios de prova é legalmente tarifado.
“O princípio da livre apreciação da prova significa, negativamente, a ausência de critérios legais que predeterminem o valor da prova e, positivamente, que as entidades a quem caiba valorar a prova o façam de acordo com o dever de perseguir a realização da justiça e a descoberta da verdade material, numa apreciação que terá de ser sempre objetivável, motivável, e, por conseguinte, suscetível de controlo.” – cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, Almedina, 4.ª edição, pag. 202.
Ou seja, este princípio não constitui, evidentemente, uma autorização genérica da lei para decidir de forma  arbitrária ou caprichosa, pois a livre convicção terá de resultar sempre de um esforço intelectual e emocional sério, profundo e rigoroso, e da conjugação aturada de todos os elementos nesse campo aproveitáveis dos autos, conferindo e validando essa íntima opção com os dados objetivos e consabidos das regras da experiência, de modo a chegar a uma decisão compreensível e verosímil, da qual até se pode discordar, mas que, intelectualmente, se aceita, pelo menos como possível, razoável, numa palavra, normal. Não é, portanto, necessário que todos concordem com a decisão para que se conclua que foi aplicado o principio em causa com rigor; o que é preciso é que essa decisão observe estritamente os passos e requisitos acima elencados na difícil tarefa de reconstituição histórica e aplicação da lei que aos tribunais incumbe levar a cabo no seu múnus de dirimir litígios na comunidade. Depois disto, e cumprido isto, aceitar ou não a confissão como livre ou eficaz (neste caso, se o crime for punido acima de cinco anos), acreditar nesta ou naquela testemunha, conferir ou não relevância a um documento (sendo autêntico, pode a falsidade afastar o seu valor legal), apoiar-se ou não numa perícia (com especial fundamentação em caso de divergência, é claro), considerar seguro inferir um facto a partir de outro, por exemplo, é uma prerrogativa exclusiva do poder jurisdicional. E, como dissemos, este campo da decisão também é sindicável nesta sede, mas para que com ele se bula ter-se-á de concluir pela análise da prova que a decisão assim livremente tomada contraria frontalmente as regras da experiência, põe em causa os mais elementares bom senso e prudência, desafia de modo incontroverso as circunstâncias práticas e humanas da vida, enfim, constitui um autêntico paradoxo, não sendo nunca suficiente a simples invocação do desrespeito dos mencionados preceitos empíricos, ainda que com invulgar clamor, sendo, pelo contrário, sempre e simultaneamente, exigível a sua concreta individualização ou identificação, o que constitui, aliás, um verdadeiro dever intelectual e processual, não podendo,  este respeito, esquecer-se a profunda lição do magnifico Óscar Wilde, no Retrato de Dorian Gray, pois, muitas vezes, “ a experiência é o nome que damos aos nossos erros.”
Não obstante tudo o que se disse, devemos procurar sempre dar cumprimento ao norteador Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/10/2010, processo n.º 3518/06-3, citado por Simas Santos/Leal Henriques, Recursos penais, Rei dos Livros, 9.ª Edição, pag. 151, nota 1, segundo o qual “o recurso em matéria de facto (quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto) não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas uma reapreciação sobre  a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o recorrente considere incorretamente julgado, na base da avaliação das provas que, na indicação do recorrente, imponham «decisão diversa» da recorrida (…)  ou da renovação da prova nos pontos em que entenda que esta deve ocorrer. A reapreciação da matéria de facto, se não impõe uma avaliação global, também se não poderá bastar com meras declarações gerais quanto à razoabilidade do decidido no acórdão recorrido, requerendo sempre, nos limites traçados pelo objeto do recurso, a reponderação especificada, em juízo autónomo, da força e da compatibilidade probatória entre os factos impugnados e as provas que serviram de suporte à convicção. (…). Paralelamente, o regime de impugnação das decisões em matéria de facto não consente a afirmação de que o tribunal de recurso «só pode afastar-se do juízo feito pelo julgador de primeira instância, naquilo que não tiver origem nos dois princípios (oralidade e imediação), ou seja, naqueles casos em que a formulação da convicção não se tiver operado em consonância com as regras da lógica e da experiência comum»”.
Na verdade, costuma ler-se nas posições enunciadas pelos sujeitos processuais, quando ocorre a impugnação da decisão sobre a matéria de facto que lhes é favorável, a proclamatória afirmação de erigir a oralidade e a imediação a sacrossantos e absolutamente inultrapassáveis pressupostos da decisão, inalcançáveis pela Relação, e, por isso, conferidores de inexpugnável solidez ao assim decidido. Como se vê, não é assim, de todo, sendo que os poderes da Relação tanto se dirigem às puras imparidades probatórias como à razoabilidade da operacionalização da livre apreciação da prova, sendo que, em qualquer caso, se tratará sempre de uma imposição, afigurando-se evidente ser mais fácil surpreender essa imposição nos casos de imparidade do que nos restantes - uma coisa é saber se a testemunha A ou o documento x dizem isto ou aquilo, outra é apreciar se o que é dito ou o que está escrito corresponde à verdade. E tenha-se presente que, se bem que a imediação da Relação com as provas pessoais seja impossível de alcançar (salvo nos – inexistentes, de resto - casos de renovação da prova), ela é alcançada com outras provas, como a prova documental, por exemplo, e que a oralidade está decididamente, pelo menos parcialmente, ao alcance desta instância, uma vez que as audiências de julgamento são objeto de gravação áudio digital, sendo possível, pelo menos, ouvir tudo o que é dito, quando é dito e como é dito, o que representa instrumento de análise não totalmente despiciendo – ou seja, mesmo na instância de recurso permanece uma réstia de oralidade, ao contrario de antanho, em que a impugnação da matéria de facto era levada a cabo com base em depoimentos escritos, o que faz, se não toda, muita diferença.
E não há dúvida de que a pretensão aqui formulada pelo recorrente está muito próxima, se não a abraçar mesmo, da dita postura de varrimento completo do decidido, tantos são, comparativamente com os que constam da acusação, os pontos concretos cuja alteração reclama – e repare-se que não são pontos concretos constantes de pontos relativos à numeração da factualidade dada como provada na decisão, são os textos integrais de muitos (praticamente todos, dir-se-ia) desses pontos com função numerativa, metamorfoseando uma condenação numa absolvição.
E, repare-se bem, toda a argumentação recursiva tem que ver com a credibilidade das provas, e não com desconformidades ou imparidades de julgamento em relação à prova produzida, e, principalmente, com a alegada inadmissibilidade das inferências probatórias de que o tribunal se socorreu para decidir. No julgamento efetuado, o tribunal recorrido, perante meios de prova com diferentes conteúdos, decidiu, optou, explicando essa opção, por acreditar nuns em detrimento de outros, por valorizar alguns e desconsiderar outros, por se considerar na posse de elementos autorizadores de inferências probatórias , tudo ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, o que, compreensivelmente, desagradou ao recorrente, o qual, na argumentação a este respeito expendida na motivação e nas conclusões, se alonga na elaboração de comentários à prova produzida, interpretação desta e sua valoração – na verdade, o que o recorrente apresenta, é um autêntico, novo e diametralmente diferente julgamento da matéria de facto nos segmentos em causa, da sua inteira autoria, eventualmente defensável, é certo, intelectualmente aceitável ou possível, é verdade, mas descabido, por não recair sobre si essa tremenda responsabilidade que se traduz na reconstituição histórica do passado através da apreciação das provas recolhidas e apresentadas; na verdade sobre si recaem também enormes responsabilidades processuais, mas não essa.

Nessa extensa argumentação, o recorrente chega mesmo ao ponto de ser desnecessariamente desprimoroso, deselegante e desrespeitoso mesmo, com o órgão de soberania tribunal, quando, no ponto 14 da sua motivação, de modo totalmente descortês e injusto diz:

O arrazoado do Douto Acórdão para tentar demonstrar aquela desrazoabilidade e a falta de nexo das declarações do ora Recorrente, mostram à saciedade o pré-juízo que os Meritíssimos Juízes formaram contra este e, por outro lado, o desconhecimento pessoal que terão da realidade da vida real nesta matéria de transações financeiras com recurso a instrumentos bancários inusuais.

Para além do desconcertante oximoro consubstanciado na utilização dos vocábulos arrazoado e Douto em relação a algo que tão asperamente se verbera, cumpre afirmar com vigor que imputar a um juiz um pré-juízo constitui uma ofensa ao seu mais nuclear múnus profissional, sendo certo que a sobranceira e inaceitavelmente jactante imputação do desconhecimento acima referido, para além de absolutamente infundada, aporta uma indesejável nota de pessoalidade na argumentação, totalmente inútil, indevida e imprópria do elevado nível intelectual que deve balizar a discussão processual – a discussão tem de se centrar unicamente na decisão e não nos seus autores. Não obstante a sempre devida e cabida cerimónia recíproca, imposta pelo especial dever de urbanidade que vincula magistrados e advogados nas suas relações mútuas, dispensam-se os encómios, mas também as afrontas. Citando uma célebre máxima de um não menos célebre português nosso contemporâneo: Não havia necessidade!

O nosso Código de Processo Penal não se pronuncia sobre os graus ou medida de prova exigíveis para dar como provado um determinado facto, estabelecendo no seu artigo 127.º o basilar princípio da livre apreciação da prova, já acima referido.

Devemos, assim, socorrer-nos das orientações da Jurisprudência e da Doutrina a este respeito formuladas, designadamente na medida do pacifica e comummente aceite por tais setores como válido para decidir.

Antes, contudo, devemos levar a cabo algumas precisões conceituais que nestas discussões muitas vezes andam arredadas das mentes dos intervenientes, louvando-nos em eminentes processualistas civis, uma vez que historicamente, o processo civil contém o aparato teórico fundamental destas categorias, à semelhança, aliás, do que se passa, no direito substantivo, com o direito civil e demais ramos do direito, como o penal que aqui nos ocupa.
Prova direta é aquela em que o julgador verifica com os seus próprios sentidos o facto a averiguar, quando nada se interpõe ente o juiz e o facto a apurar, o juiz é posto em contacto imediato com objeto da prova – Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pag. 210; Castro Mendes, Do Conceito de prova em processo Civil, pag. 176, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, 3.º, pag. 241. Exemplos deste tipo de prova é a inspeção ao local ou a observação de objetos apreendidos que constituam tema da prova.
Prova indireta é aquela em que se interpõem entre o facto e a sua representação mental pelo juiz fenómenos de transmissão do conhecimento, como, por exemplo, documentos ou testemunhas, tendo o juiz que usar agora, para além dos sentidos, outros instrumentos, como o raciocínio e as regras da experiência – Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1980, III, 209, nota 2; Alberto dos reis, Código de Processo Civil Anotado, 3., pag. 242.
Provas críticas ou indiciárias, constituem uma subclassificação das provas indiretas, e nelas o facto, ou objeto, posto ao alcance da perceção do juiz, sem representar o outro, permite induzir, argumentar, tirar ilações – segundo as máximas da experiência – no sentido da realidade desse outro facto. Constitui índice dele, suscita a respetiva ideia atuando sobre o raciocínio, e não sobre os sentidos e sobre a imaginação – Manuel de Andrade, ob. cit., pag. 210.
Assim, não raras vezes se afirma, em evidente equívoco, que se o facto foi dado como provado com base no depoimento de uma testemunha, que o afirmou, esteve em causa prova direta, e se foi resultado de inferência ou ilação, esteve em causa a prova indireta. Como se vê, não é assim, pois, rigorosamente, a ilação ou inferência é uma forma de julgar como provado um facto com base em prova crítica ou indiciária, a qual é uma subespécie da prova indireta.
A problemática da prova indiciária encontra-se elucidativamente exposta pelo Conselheiro Pereira Cabral no Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, com extensas referências doutrinárias (pag. 421 e segs.), a qual aqui seguiremos de perto.
Assim, e como também já se escreveu na decisão recorrida, a prova indiciária pressupõe um facto, demonstrado através de uma prova direta, ao qual se associa uma regra da ciência, uma máxima da experiência ou uma regra de sentido comum. Este facto indiciante permite a elaboração de um facto-consequência em virtude de uma ligação racional e lógica (v.g., a prova direta – impressão digital – colocada no objeto furtado permite presumir que o seu autor está relacionado com o furto; da mesma forma, o sémen do suspeito na vítima de violação).
São, assim, dois, os elementos constituintes da prova indiciária: o indício, que será todo o facto certo e provado com virtualidade de dar a conhecer outro facto que com ele está relacionado, constituindo a premissa menor do silogismo, que, associado a uma regra da experiência vai permitir alcançar uma convicção sobre o facto a provar;  a presunção, que é a inferência que, aliada ao indício, permite demonstrar um facto distinto, constituindo a conclusão do silogismo construído sobre uma premissa maior: a lei baseada na experiência, na ciência ou no sentido comum que apoiada no indício - premissa menor – permite a conclusão sobre o facto a demonstrar. A inferência deve apoiar-se numa regra geral, e constante, e permite passar do estado de ignorância sobre a existência de um facto par a certeza, ultrapassando o estado de dúvida e probabilidade – caso típico deste tipo de percurso probatório verifica-se a propósito do dolo (quando não existe confissão válida, naturalmente), cuja demonstração não se afigura viável por outro modo.
Na fundamentação da decisão inferente, o juiz deve indicar o facto base, ou indícios, que vai servir de fundamento à dedução ou inferência, e ainda explicitar o raciocínio através do qual tal inferência se materializou.
É ainda necessário que o indício seja grave, isto é, que resista às objeções e que seja marcadamente persuasivo, preciso, isto é, insuscetível de outras interpretações, e concordante, ou seja, que não haja entre os indícios, se forem plurais, divergência direcional.
Finalmente, tenhamos presente que, como naquela anotação se refere expressamente, “(…) quando o indício, mesmo isolado, é veemente, embora único, será suficiente para formar a convicção sobre o facto” e que “(...) os indícios se avaliam e não se contam (…), assim se apontando decididamente para uma perspetiva qualitativa e não quantitativa na sua apreciação.

Desde já se diga que o teor das conclusões não satisfaz os requisitos legais acima enunciados, porque não é permitida invocação de meios de prova integrais e sua completa reapreciação, tal com o recorrente faz, como se pode ver pelo seguinte exemplo:

VII - A prova documental obrante nos autos e         os depoimentos do Recorrente e das testemunhas BB, CC e DD – para os quais aqui expressamente se remete desde já e que deverão ser reapreciados pelo Venerando Tribunal – é manifestamente insuficiente para fundamentar a decisão daqueles pontos da matéria de facto dados por provados.

No que concerne à ilegitimidade das inferências, o recorrente afirma essencialmente que:

X - Não existem quaisquer factos incriminatórios (factos básicos) do Recorrente assentes em quaisquer provas, o que inviabiliza as “ilações”, a presunção judicial ou os factos presumidos de que o Recorrente tenha forjado ou mandado forjar o cheque e a declaração da EMP01....

A este respeito, o tribunal fez constar da fundamentação da decisão e facto extensa justificação, que agora reproduzimos:
Tal documento foi forjado e fabricado com vista a tentar-se obter um pagamento que não era devido.
E foi o arguido quem o fabricou ou mandou fabricar pelas razões que passaremos a expor.
Primeiro, a testemunha CC explicou que foi apresentado pela testemunha DD ao arguido ao qual lhe apresentou um projecto em ... que mais não era do que uma ideia, pois que não havia qualquer estudo financeiro ou de viabilidade, tendo-lhe exibido apenas uma fotografia com uns terrenos com moringa. Mais afirmou que o arguido apenas decorridos mais de 6 meses é que lhe confirmou que tinha interesse, ou seja, era este o hiato de tempo perfeito para o arguido poder congeminar um plano de usar a testemunha CC para tentar obter o pagamento do cheque em causa nos autos, eximindo-se a qualquer responsabilidade derivada da falta de cobrança do mesmo ou da conclusão de que afinal o mesmo era falso, pelo cruzamento de informações bancárias.
A testemunha CC revela-se ser uma pessoa simples e humilde, facilmente manipulável, pelo que seria a pessoa ideal para que o arguido tentasse esta operação.
Segundo, para melhor justificar a tentativa em causa, o arguido apressou-se a redigir um contrato falso com esta testemunha que esta assinou, por naturalmente lhe parecer favorável, que afinal já não seriam 50 milhões de euros que seriam emprestados mas antes (pasme-se) 200 milhões. Questionado sobre isso, referiu o arguido que depois dos 50 milhões, se conseguisse vender mais bobines de níquel poderia chegar a esse valor de empréstimo.
Terceiro, empréstimo para um projecto que o arguido disse não ter analisado, não ter consultado qualquer documento, acreditando na palavra do CC (o qual tinha um projecto baseado numa fotografia dos terremos onde poderia ser implantado, em ...). Pasme-se, para um investimento de 50 milhões de euros e depois de 200 milhões por uma pessoa como o arguido sem recursos financeiros dessa grandeza.
Quarto, tinha subjacente, segundo o arguido, o cheque bancário em causa nos autos num negócio de venda de bobines de níquel de que era proprietário. Perguntado sobre como conseguia ser proprietário das mesmas, no valor de 120 milhões de euros, atrapalhado, referiu que afinal não era proprietário e que o mesmo era um russo, sem o conseguir identificar, e que celebrou um contrato com ele com vista a, caso as conseguisse vender, obter uma comissão de 20%. Insistindo o Tribunal pelo valor, pois que os 20% seriam 24 milhões de euros, o que não chegaria aos 50 milhões, muito menos aos 200 milhões prometidos emprestar ao CC, confuso, afirmou que já não se recordava da comissão, mas que até poderia chegar aos 60% (pasme-se). Ou seja o comissionista ganharia uma percentagem superior à do proprietário. Russo esse que nunca foi identificado e contrato com o mesmo que nunca apareceu.
Quinto, referiu o arguido que o sociedade que solicitou a emissão do cheque bancário, a sociedade «EMP01...» não conhece, mas antes um EE que queria adquirir as bobines de níquel e lhe entregou o mesmo. Sucede que o arguido desconhece onde pára o mesmo, quem é, quem representa, juntando aos autos, com a sua contestação, documentos alegadamente assinados pelo mesmo e juntando cópia do passaporte. Ou seja num negócio de 120 milhões de euros, segundo o arguido, de 119 milhões porque fez um desconto, o arguido não sabe nada acerca do mesmo.
Diga-se, desde já, que os documentos juntos pelo arguido, face às contradições e total falta de credibilidade, não foram atendidos, colocando-se em dúvida a sua genuinidade, pelo que se vem de expor, não sendo valorados.
Sexto, o arguido referiu que se não aparecesse o CC não fazia o negócio com o EE, não vendendo as bobines, por não conseguir obter o pagamento do cheque bancário, o que denota que o arguido aproveitou-se da frágil situação do primeiro para ser a “cobaia” da experimentação de cobrança de um cheque bancário de um banco inglês em Portugal.
Sétimo, o arguido alegou que o cheque bancário apenas poderia ser cobrado em ... e noutros países da Europa e não em Portugal, a não ser no Banco 1..., porque lhe havia sido dito pelo CC que era possível, É rotundamente falso que um cheque bancário do tipo do que está em causa não possa lograr pagamento em qualquer instituição bancária portuguesa. Basta fazer uma pesquisa na internet, nos sites das mesmas, para se verificar ser possível, sendo um reconhecido instrumento financeiro na prática bancária, até porque o seu pagamento apenas é possível, naturalmente, depois da sua confirmação pela entidade bancária estrangeira emitente, diligências que foram realizadas nos presentes autos pelo Banco 1... e que desembocaram na informação de que o cheque era falso, sendo devolvido pela instituição bancária «Banco 2...».
Isto mesmo foi confirmado pela testemunha BB, bancària no Banco 1..., que também afirmou que tal cheque pode ser aceite por qualquer banco.
Questionou-se o arguido sobre a razão pela qual, face às dificuldades alegadas pelo arguido de obter o pagamento deste tipo de cheque bancário, o tal EE não lhe entregou um cheque bancário normal para poder ser depositada tal quantia em conta do arguido em ..., o mesmo não conseguiu dar explicação, nem podia, pois que seria evidente, segundo as regras da experiência comum e do normal suceder das coisas, que tal sucedesse, até para defesa dele próprio, num alegado negócio com uma pessoa que nem conhecia bem, nem sabe o seu paradeiro, nem se interessou pelo mesmo.
Oitavo, se como afirmou o arguido, o EE apenas pudesse levantar as bobines em níquel após a boa cobrança do cheque bancário que interesse teria o mesmo de entregar um documento falso ao arguido que nunca obteria pagamento e por, conseguinte, nunca teria acesso às famigeradas bobines?
É claro que foi o arguido a congeminar todo este plano ardiloso, falsificando ou mandando alguém a seu mando falsificar o cheque bancário para obter para si uma quantia que sabia não ter direito. Pensou o arguido que, por algum lapso da entidade bancária, poderia ser pago o referido cheque, caso não se apercebessem de tal falsidade, e mesmo perdendo 50 milhões de euros que poderiam ir para às mãos de CC, sempre ficaria com 69 milhões de euros.
Alguém acredita que o arguido, na situação em que se encontrava, apostaria 50 milhões de euros (ou 200) num projecto baseado numa fotografia de terrenos de ..., havendo grande probabilidade de perder uma quantia elevadíssima? Não conhecia o CC para poder dizer que teve confiança no mesmo, não analisou o projecto, não o viu, não havia nada de palpável no mesmo, pelo que atenta contras as regras da lógica que assim procedesse, como está bom de ver.
Por outro lado, para prova de que foi o arguido a engendrar este esquema e a fabricar por si ou a seu mando o cheque bancário, importantíssimo se revelam os factos 12) e 13).
A testemunha CC afirmou, em audiência de julgamento, que estava já em contacto com a Polícia Judiciária que lhe indicou os procedimentos a tomar e, assim, perante a pressão que exerceu perante o arguido, driigiram-se à sucursal do Banco 1..., S.A., do ..., no ..., onde este lhe pediu que solicitasse a devolução do cheque, o que este fez, e entregou uma declaração datada de 09-08-2018, emitida pela «EMP01...» onde é referido que o cheque bancário mencionado foi tratado pelo Banco 1..., S.A. como um cheque regular, não sendo respeitados os procedimentos desta transação e solicitando a devolução do cheque informando que a transação seria cancelada. No entanto a «EMP01...» está liquidada desde 2017.
Consta dos autos a fls. 184 a resposta do legal representante de tal sociedade, dizendo ser absolutamente falso esse mesmo documento.
O depoimento de DD foi totalmente confuso e parcial, querendo favorecer o arguido seu amigo.
Sobre as bobines de níquel, referiu que as viu, mas não conseguiu especificar a que título, nem confirmar de quem seriam, designadamente se pertenciam ao arguido, tomando apenas como certa a versão deste, a qual, como vimos, passou de ser ele o proprietário a depois ser comissionista por pertencerem a um russo que não conseguiu identificar.
Do mesmo modo, esta testemunha disse ter estado num almoço com o arguido e o EE em Portugal, pessoa que, como já referimos, não se comprovou ter qualquer intervenção neste episódio, não sendo identificado pelo arguido, pelo que o depoimento desta testemunha foi totalmente descredibilizado, não tendo a virtualidade de servir como meio de prova nos autos.
Mais não fez do que vir trazer a versão do arguido, a qual como vimos é absolutamente desprovida de lógica, sem respaldo nas regras da experiência comum.
Acresce ainda o demais do depoimento da testemunha CC.
O mesmo afirmou que a testemunha DD lhe apresentou o arguido como dono de umas bobines de níquel que teria depositadas num Banco e através da penhora das mesmas conseguia emprestar os tais 50 milhões de euros.
Mais disse que o arguido, durante todos os factos, nunca lhe falou no EE e que lhe disse que o cheque em causa era um cheque normal “semelhante ao do Banco 6...” e que, depois da primeira informação da gerente do Banco 1... de ... de que o mesmo era falso, o arguido lhe disse que o cheque podia ser depositado na sua conta, mas que demoraria uns dias, nunca lhe tendo dito o arguido que demoraria 1 ano e 1 dia, ao contrário do que este afirmou em audiência de julgamento.
Explicou que também é falso que o arguido – ao contrário do que este afirmou em audiência de julgamento – lhe dissera que o cheque em causa não seria aceite em todos os bancos em Portugal.
Questionado sobre o porquê de o contrato que celebrou com o arguido fazer menção a um empréstimo de 200 milhões, explicou que o arguido lhe disse que o negócio que estava a fazer com as bobines de níquel era desse valor e o cheque também seria nesta quantia, mas depois disse que só conseguiria emprestar 119 milhões de euros.
Mais adiantou que, afinal,  o projecto não chegou a ir para a frente, sendo que alguém em ... analisou o mesmo, mas não tinha nenhum estudo, sendo que era tudo por palavra, por causa de um planta medicinal: moringa.
Referiu que não apresentou documentação, apenas uma fotografia dos terrenos, pois que o projecto em si não havia, era apenas uma ideia.
Assim, o arguido por forma a obter a devolução do cheque entregou uma declaração falsa, a qual sabia perfeitamente ser falsa pois que o Banco 1... não tratou o cheque bancário como um cheque regular, muito menos sendo verdade que não foram respeitados os procedimentos da transacção.
É claro que o arguido, questionado sobre isto, escudou-se na mesma desculpa, tal declaração foi-lhe entregue pelo EE. Sucede que a referida declaração está dirigida a si e dela não consta o nome dessa pessoa.
Nunca nos autos foi referido o nome desse tal EE. Não consta dos autos qualquer referência ao mesmo, nem no processo onde se verificam tentativas de transacções sendo interveniente a EMP01... já depois de liquidada (processo n.º 602/18.... relativo a bloqueio de contas bancárias), sendo uma pessoa introduzida pelo arguido em sede de contestação, não fornecendo ao Tribunal qualquer dado sobre a sua localização.
Assim, o Tribunal não ficou com quaisquer dúvidas, face às contradições evidentes do arguido, anteriormente expostas, que foi o mesmo o autor das falsificações ou alguém a seu mando, por só ele ter interesse nas mesmas, e que mais não quis do que obter pagamento do cheque em causa nos autos, através da testemunha CC.
E por tudo quanto se expôs, deram-se como não provados os factos de a) a e).
Por força dos mesmos meios de prova e da forma como actuou o arguido, nenhuma dúvida ressumou de que quis praticar tais factos, nos termos dados enunciados, bem sabendo que se tratava de algo proibido. Na ausência de confissão integral, tal prova foi feita por ilações, retiradas dos indícios, e também de uma leitura de um comportamento exterior e visível do agente, nos termos que demonstrámos. 
Os actos interiores ou factos internos, respeitantes à vida psíquica, raramente se provam directamente, porque não são externamente observáveis, pelo que a demonstração da existência do dolo é frequentemente feita por inferência ou dedução lógica, partindo dos factos conhecidos que são os modos de execução dos tipos de crime, associados à capacidade de discernimento e à liberdade de vontade do autor desses factos e demais circunstâncias que contextualizam a prática do crime.
O dolo é um fenómeno psicológico que, situando na vida interior de cada um, só é observável diretamente por quem o experiencia. Da sua natureza subjetiva, nasce a sua insusceptibilidade de apreensão directa por terceiros, com base em prova indirecta, tão válida quanto seria, caso o arguido tivesse confessado integralmente e sem reservas os factos.

Ora, perante este exuberante e convincente alinhamento de razões, baseadas em diversos indícios graves, precisos e concordantes, que justificam plenamente as inferências efetuadas, o recorrente esgrime de modo puramente proclamatório um simplicíssimo niilismo probatório, estribando-se, além disso, essencialmente, nas suas declarações e em documentos cuja desconsideração pelo tribunal recorrido se encontra mais que justificada na exposição ora transcrita - aliás, diga-se que incompreensível seria que o tribunal tivesse a mínima hesitação em decidir como decidiu, uma vez que a versão dos factos apresentada pelo arguido é, também para nós, e pelos apontados motivos, intrinsecamente inverosímil, totalmente inacreditável mesmo, raiando até o absurdo, pelo que deve ser, como foi, votada à mais veemente incredulidade.
Admitimos, humildemente, que, em geral, tal como nos ensina o enorme poeta romano Lucrécio, “ (…) Na verdade, nada é mais difícil do que destrinçar as coisas certas das duvidosas (…)” – Da Natureza das Coisas (De Rerum Natura), Tradução do Latim de Luís Manuel Gaspar Cerqueira, Relógio de D’Água, pag. 223 -, mas, neste caso, como noutros, há que reconhecê-lo, é tamanho o psicadelismo imaginativo da história relatada pelo arguido, é tão desconcertante a estridência idiossincrática da sua versão, que a única decisão razoável é desconsidera-la.

Entendemos, portanto, que as inferências e ilações efetuadas pelo tribunal recorrido são perfeitamente aceitáveis e compreensíveis, formuladas com base seguríssima, não afrontando qualquer regra da experiência ou da lógica, denotando, bem ao contrário do que injustamente lhe aponta o recorrente, conhecimento da vida real, da experiência comum, e revelando maturidade e segurança bastantes.

O recurso tem, portanto, de improceder também nesta parte.

C
A tentativa julgada nos autos deve ser qualificada como impossível, nos termos do artigo 23.º, n.º 3, do Código Penal, e, portanto, como não punível?

Resta dilucidar a última questão colocada no recurso para apreciação: a manifesta inaptidão do meio empregado pelo arguido para alcançar o desiderato tipicamente previsto, ou seja, a consumação do crime.

Estatui aquela norma legal que a tentativa não é punível quando for manifesta a inaptidão do meio empregado ou a inexistência do objeto essencial à consumação do crime.
“Para além de afirmar que em princípio (…) a tentativa é punível, ou, por outras palavras, que a punibilidade começa com a tentativa, há uma questão em relação à própria punibilidade de casos tratados como de tentativa ou de crime impossível.
Há situações em que uma pessoa quer praticar um crime e o resultado se não verifica, por circunstâncias independentes da sua vontade, mas aquilo que a pessoa estava a fazer era adequado a causar um certo resultado. Por exemplo, a pessoa pega numa arma, aponta a uma pessoa e há outra que lhe tira a arma. Aquilo que a pessoa estava a fazer em princípio era adequado a conseguir a morte, que era aquilo que ela queria. Mas suponhamos que a arma que ela apontou estava descarregada. E ela não sabia. Era impossível, disparando, matar alguém com aquela arma.
Ou suponhamos que um individuo resolve matar outro e dá-lhe vários tiros, só que ele já estava morto há várias horas no momento em que ele o quis matar, sem ele o saber.
Ou que uma pessoa está convencida de que o seu cônjuge ainda é vivo, só que já morreu, e contrai novo matrimónio pensando que está a acometer crime de bigamia. Sendo, afinal, viúvo e não casado, é impossível cometer nestas circunstâncias crime de bigamia.
Todas estas situações, e outras idênticas, são situações de crime impossível. Porque, por razões de vária ordem, esta atuação não pode corresponder a uma certa atividade descrita na lei ou não pode gerar um certo resultado proibido por lei.
Normalmente, fala-se em tentativa impossível pela simples razão de que, por ser impossível a consumação, nunca se dá a consumação.
É vulgar dizer-se que a tentativa pode ser impossível, pela própria impossibilidade do agente (será o caso da pessoa que é viúva, e julga que está a cometer o crime de bigamia); poderá ser uma questão de inidoneidade dos meios (será o caso da pessoa que pensa utilizar uma arma que está descarregada e ela pensa que tem balas. Será o exemplo, também o da pessoa que tenta abortar bebendo chá de camomila); poderá haver situações da própria inexistência do objeto (por exemplo, uma pessoa tenta abortar convencida que está grávida, e não está, ou a pessoa que tenta matar um cadáver ou furtar uma coisa própria).
Em quaisquer destas circunstâncias, ou em relação ao agente, ou e relação ao meio utilizado, ou em relação ao objeto, há uma impossibilidade, ou uma inidoneidade, no sentido de que esse meio não é apto a causar um certo resultado, ou esse objeto, pura e simplesmente não existe, ou esse agente não tem uma qualidade essencial para poder preencher esse tipo de crime” – cfr. Teresa Pizarro Beleza, Direito Penal, AAFDL, 2.º Vol., pag. 362/363, sendo o texto coevo do Código Penal anterior.

O atual Código estatui que a tentativa impossível só não é punida se for manifesta a inaptidão do meio empregado ou a inexistência do objeto essencial à consumação do crime. Assim, caso tal inaptidão ou inexistência não sejam ostensivos, a punibilidade mantém-se, apesar da incolumidade do bem jurídico protegido.

A consagração do atual Código Penal do regime respeitante à tentativa impossível é alvo das mais severas críticas por parte de Cavaleiro Ferreira, que, depois de demonstrar a evolução legislativa do regime, desde o projeto inicial à formulação final, explica que “do Código alemão a incriminação passou para várias legislações estrangeiras. Uma incriminação que assenta meramente na comprovação da intenção criminosa, sem que se verifique a ofensa de qualquer bem jurídico, só é possível no critério do denominado direito penal da vontade que teve, por algum tempo, ressonância na doutrina alemã. Daí que, por toda a parte, incluindo a Alemanha, mas, mais decididamente, na Áustria, na Suíça e em Espanha, a doutrina, perante textos legislativos similares, esforçou-se por criar ao crime punível um objeto jurídico que parecia ausente, que consistia na manutenção da serenidade e combatendo o alarme público. Esta doutrina foi denominada teoria da impressão. A perpetração de atos inidóneos para a execução de um crime, mas que aparentemente a figuravam, seria punível em razão de alarme e apreensão suscitados no público.” – cfr. Lições de Direito Penal, Almedina, Reimpressão, Parte Geral, Vol I, pag. 436.

Ora, assim sendo, no caso presente não há, como é evidente, crime impossível nem tentativa impossível, pelo menos face aos factos dados como provados. Na verdade, em lado algum da factualidade se pode concluir que o aludido cheque nunca seria, nem poderia ser, em circunstância alguma, pago, apesar de ser falso, nem resultam dos factos quaisquer circunstâncias sobre o caráter ostensivo dessa impossibilidade de pagamento. Os serviços do banco inglês em causa detetaram a falsidade, mas nada nos factos dados como provados assegura que isso constitui uma incontornável inevitabilidade – na verdade, há golpes deste género ou similares que, por mais incrível que apreça, resultaram, tal como ensina a história; no caso, bastaria um funcionário bancário distraído, ou até conluiado com o arguido, ou uma qualquer máquina examinadora com defeito, enfim, toda uma miríade de possibilidades que poderiam levar ao pagamento do cheque, não obstante a arguta observação da funcionária bancária de ..., a quem logo lhe pareceu ser falso o dito título de crédito. O simples rememorar, anda que meramente reminiscente, dos ensinamentos atrás coligidos, facilmente nos leva a concluir que os casos ali exemplificados são diametralmente diferentes do que aqui analisamos, pois ali se sabe com certeza, que todos sabem com certeza, que a arma do “homicida” não tem munições ou que a vítima já está morta, que  o “bígamo” é viúvo, que a “abortadora” não está grávida, etc., e aqui apenas se sabe que o cheque é falso, não sendo descabido considerar que há muitos  e muitos, mas mesmo muitos, documentos ou títulos falsos que atingem o desiderato que presidiu à sua elaboração, e conseguem enganar as vítimas respetivas – não foi o caso aqui, porque a vítima estava atenta, e procedeu diligentemente, mas isso não releva para esta problemática, pois, se assim fosse, e não sem alguma dose de ironia o dizemos, reconheça-se, também seria impossível, mutatis mutandis,  a tentativa de matar alguém que tão teimosa quão habilidosamente se conseguisse desviar dos tiros ou de outros meios letais de alcançar tal resultado.
Efetivamente, como bem se observa na resposta ao recurso e no parecer formulado, e para além do que já se disse, a invocada inaptidão do meio usado não era, sequer, evidente nem manifesta para a generalidade das pessoas, nem mesmo para o banco português, que efetuou diligências relacionadas com a sua apresentação, apesar da já citada desconfiança de uma das suas funcionárias – se fosse só um papel pintado com tinta, para, muito respeitosamente, citar o inesquecível Liberdade, de Fernando Pessoa, certamente não estaríamos aqui – Biblioteca Fernando Pessoa e a Geração Orpheu, Poesia, 1934-1935, Planeta De Agostini, pag. 176, segundo a Edição Original de Assírio & Alvim.
A decisão recorrida analisou corretamente a questão, nada havendo a censurar-lhe também nesta parte.

O recurso deve, portanto, improceder na totalidade.

III DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar improcedente o recurso apresentado por AA, e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 5 UCs.
Guimarães, 03 de Dezembro de 2024,

Os Juízes Desembargadores

Bráulio Martins
Pedro Cunha Lopes
Pedro Freitas Pinto