Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
| ||
Relator: | GONÇALO OLIVEIRA MAGALHÃES | ||
Descritores: | AUDIÊNCIA PRÉVIA CONVOCATÓRIA CONHECIMENTO DO MÉRITO DA CAUSA DIREITOS DOS SÓCIOS DIREITO AO LUCRO NULIDADE DAS DELIBERAÇÕES SOCIAIS ABUSO DO DIREITO DEVER DE LEALDADE | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 02/20/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO CÍVEL | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | (i) No despacho de convocação da audiência prévia, o juiz deve indicar o objeto e a finalidade da diligência com o rigor necessário, atentas as concretas particularidades da ação, para que as partes possam preparar a respetiva intervenção. (ii) O conceito de decisão-surpresa, quando estejam em causa questões jurídicas, pressupõe que a solução dada pelo tribunal não fosse, de todo, previsível para as partes. Assim sucederá quando a solução do juiz se apresente como inovadora, pelo seu caráter invulgar e singular, objetivamente considerado, e, bem assim, quando toda a discussão pretérita tenha sido feita à luz de um determinado instituto jurídico, ainda que na base de equívocos, sem qualquer alerta por parte do tribunal, e, na decisão, o juiz opte por outra via, nunca antes cogitada. (iii) No final dos articulados, o juiz deve proferir despacho de convite ao aperfeiçoamento quando entenda que, na sua alegação, a parte omitiu factos essenciais que era suposto ter articulado face à estratégia processual por si assumida ou quando entenda que a alegação da parte carece de ser clarificada ou substanciada. (iv) O despacho de aperfeiçoamento dos articulados não é discricionário, estando afastada a possibilidade de o juiz optar entre proferir ou não tal despacho, posto que se trata de um despacho com caráter vinculado que tem obrigatoriamente que ser proferido desde que se verifique a hipótese normativa. (v) A não prolação desse despacho por o juiz ter concluído que não havia lugar a ele, por razões que indicou na fundamentação da sentença, configura um erro de julgamento quando se conclua que, na verdade, a alegação de facto tinha aporias ou carecia de ser clarificada ou substanciada. (vi) O lucro corresponde ao interesse que os sócios prosseguem através da atividade societária, com vista ao enriquecimento do seu património pessoal. Por outras palavras, corresponde à retribuição do capital investido. (vii) Em conformidade, nas sociedades por quotas e nas sociedades anónimas, estabelece-se um regime que visa a proteção das minorias societárias, prescrevendo-se que, salvo diferente cláusula contratual ou deliberação tomada por três quartos dos votos correspondentes ao capital social, não pode deixar de ser distribuído aos sócios metade do lucro de exercício que, nos termos da lei, seja distribuível. (viii) Apenas o interesse social pode justificar que uma sociedade de capitais não proceda à distribuição dos lucros, optando antes, através de deliberação dos seus sócios, nos termos referidos no ponto anterior, pela sua retenção, constituindo reservas livres e assim enriquecendo o seu património, em detrimento do património dos seus sócios. (ix) Se os sócios maioritários tiverem votado semelhante deliberação com o propósito de causar dano aos sócios minoritários (por exemplo, para os levar a uma situação de asfixia financeira que os faça cederem-lhes as respetivas participações sociais), ela será considerada abusiva emulativa, o que é fundamento para a sua anulabilidade a pedido daqueles. (x) Independentemente da demonstração desse propósito, é configurável a anulabilidade dessa deliberação, quando não tenha sido tomada na prossecução do interesse social e cause dano aos sócios minoritários, mas com fundamento na cláusula geral da proibição do abuso do direito ou na violação do princípio da lealdade. (xi) O propósito com que cada um dos sócios maioritários votou constitui um facto do foro interno, que pode ser apreendido através de indícios típicos que o determinem com razoável segurança. (xii) Nas situações em que ocorre dissenso quanto a parte dos factos alegados pelas partes nos respetivos articulados, o juiz apenas deve conhecer do mérito da causa no despacho saneador quando conclua pela irrelevância dos factos controvertidos à luz de todas as plausíveis soluções jurídicas da causa. (xiii) Tendo presente este critério, o juiz não está habilitado a conhecer do mérito da causa, no despacho saneador, quando, na ação em que é pedido a anulação da deliberação de retenção do lucro do exercício de uma sociedade anónima, tomada por sócios que representam 95% do capital social, está controvertida a intenção com que cada um deles exerceu o seu direito de voto, designadamente se o fez com o propósito de prejudicar a sócia titular dos restantes 5%, que votou contra, privando-a do seu quinhão, quando eles próprios já beneficiam desses lucros sob a forma de gratificações e benesses que a sociedade lhes atribui a pretexto de fazerem também parte do respetivo órgão de administração. | ||
![]() | ![]() | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | I. 1). AA intentou ação declarativa, sob a forma comum, contra A EMP01..., SA, pedindo que, na procedência, seja: (i) “declarada a nulidade e/ou anulação da deliberação produzida na Assembleia Geral de 08/03/2024, conforme extratado está na ata, (…) e em consequência ordenar-se a sua reformulação, pelo decretamento de deliberação positiva, no sentido de ser ordenada a atribuição à A. da sua quota parte do lucro, e a inerente e imediata condenação da sociedade a satisfazer o crédito da A., consubstanciado no montante de € 155 348,25”; (ii) subsidiariamente[,] “nos termos do prescrito no artigo 294, n.º 1, do Código das Sociedades Comercias, e por manifesta violação deste comando normativo, (…) determinado o decretamento de deliberação positiva, que ordene a imediata distribuição de metade dos lucros distribuíveis referentes ao exercício de 2022, no montante de € 77 674,12.” Alegou, em síntese, que: é titular de 30 000 ações, no valor global de € 150 000,00, no capital social da Ré; o restante capital social da Ré está repartido entre BB, CC, DD, EE, FF e AA, o primeiro titular de 450 000 ações, que correspondem a 75% do capital social da Ré, e cada um dos restantes titular, como ela própria, de 30 000 ações; no dia 8 de março de 2024, realizou-se a assembleia geral da Ré tendo em vista a votação e aprovação das contas referentes ao exercício económico de 2022 e à discussão e votação da proposta de aplicação dos resultados líquidos do exercício de 2022, no montante de € 3 106 965,00, a reservas livres; votou contra essas propostas, as quais, porém, foram aprovadas pelos restantes acionistas, que assim formaram uma maioria representativa de 95% do capital social; a segunda deliberação afronta o disposto no art. 294/1 do Código das Sociedades Comerciais, que obriga à distribuição de, pelo menos, 50% do lucro distribuível; essa deliberação é também abusiva, por contrária aos limites da boa fé e “ao fim económico ou social do direito”, uma vez que foi tomada pelos sócios detentores da maioria do capital social que, enquanto administradores da Ré, beneficiam já dos lucros através de um “leque de facilidades e regalias, que correspondem a uma encapotada distribuição de lucros”, como sejam o uso de automóveis e cartão de crédito e o pagamento de prémios de seguro e de férias, não necessitando da sua distribuição propriamente dita, ao contrário do que sucede com ela; para além disso, os sócios CC, DD, EE, FF e AA sabem que se contrariarem a vontade do sócio BB serão “classificados, como persona non grata, egoísta e insensível, integrando a lista dos Proscritos e afastados do clã familiar, família BB, como, in casu, a Autora”; “ousam intencional e deliberadamente violar o preceituado no art. 21/1, a), do CSC, segundo o qual todos os sócios têm direito a quinhoar nos lucros, e conseguem alcançar quatro objetivos, a saber, “não pagam impostos, a empresa também não paga, ao beneficiar das despesas que indevidamente são consideradas para efeito de apuro de matéria coletável diminuída, e deixam outros acionistas, in casu, a Autora, despojada de qualquer valor, prejudicada em relação aos mesmos, seja a ver navios.” (sic) Citada, a Ré contestou dizendo, também em síntese, que: a norma do art. 294/1 do Código das Sociedades Comerciais tem natureza supletiva, podendo ser afastada por deliberação dos sócios em sentido contrário, como sucedeu no caso; tal deliberação foi tomada por a Ré ter planeado um investimento de € 6 000 000,00, sem recurso a fontes externas de financiamento, na construção de um pavilhão industrial para o aumento da sua capacidade produtiva. Concluiu que a ação deve ser julgada improcedente, “já no saneador, para, dessa forma, se evitar[em] subsequentes atos processuais inúteis.” Notificada, a Autora, sponte sua¸ veio exercer o contraditório, “[a]pesar de a Ré não ter-se defendido por exceção”, o que fez impugnado “todos os factos alegados por aquela em tal articulado [contestação], que estejam em contradição com o alegado por esta na petição inicial” e “impugnando os documentos juntos pela Ré na sua contestação, no sentido, efeito probatório e alcance que deles pretende retirar.” (sic) No dia 20 de setembro de 2024, foi agendada a audiência prévia, “com os fins a que alude o art. 591 do CPC” (sic), para o dia 23 de outubro seguinte, pelas 10 horas. Na data designada, aberta a audiência prévia, realizou-se a tentativa de conciliação e, não tendo a mesma surtido efeito, os ilustres mandatários de Autora e Ré declararam que “mantêm tudo o que referem nos articulados.” Na sequência, a Exma. Sra. Juíza de Direito “relembrou a razão pela qual agendou a (…) audiência prévia e facultou às partes a discussão de facto e de direito por considerar que os autos apresentam já os elementos suficientes para decisão de mérito e, de seguida, após os Ilustres Mandatários usarem da palavra”, verificou, em termos tabulares, os pressupostos processuais, fixou o valor da causa em € 30 000,01, e proferiu sentença a julgar a ação improcedente e a absolver a Ré dos pedidos formulados, tudo conforme consta da ata da audiência prévia, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido. *** 2). Inconformada, a Autora (daqui em diante, Recorrente) interpôs o presente recurso, através de requerimento composto por alegações e conclusões, estas do seguinte teor (transcrição):“1. A Sentença proferida pelo Tribunal a quo é juridicamente censurável e deve, por conseguinte, revogar-se da ordem jurídica. 2. Na verdade, e como resultará do vertido ao longo das presentes alegações de recurso, a decisão proferida pelo Tribunal “a quo” é juridicamente censurável e deve, porque em violação da Lei, revogar-se da ordem jurídica e ser alterada por outra que ordene o prosseguimento dos autos para apuramento da matéria factual carreada para os autos/descoberta da verdade material e, assim, permita a prolação de decisão justa, equitativa e conforme a Lei. 3. A decisão recorrida revela uma violação grave de princípios processuais fundamentais, configurando nulidade nos termos do artigo 195.º do Código de Processo Civil (CPC), pois se ação não houver de prosseguir, nomeadamente por se ir conhecer na audiência prévia do mérito da ação, a audiência deve ser convocada expressamente nos termos e para os fins do artigo 591º, nº 1, al. b) do CPC. 4. No caso, o despacho proferido pelo Tribunal “a quo “limita-se “a dizer”: “Para a realização da audiência prévia, com os fins a que alude o artigo 591.º do CPC, designo o dia 23 de outubro, pelas 10 horas”. Ora, sendo intenção do Tribunal decidir o mérito da causa na audiência prévia deve expressamente o dizer e convocar as partes para o efeito, desde logo para que possam ir preparadas para uma discussão adequada, preparando-se, naturalmente, para produzirem alegações completas sobre a vertente jurídica da questão. 5. A convocação da audiência prévia para o fim previsto no art. 591º, nº 1, al. b) visa assegurar o respeito pelo princípio do contraditório, e, assim, evitar decisões surpresa (art. 3º, nº 3.do CPC). 6. Não o fazendo, - como não o fez – o Tribunal “a quo” incorreu na prática de irregularidade que influindo no exame ou na decisão da causa - artº. 195º, do CPC -, se transmuta ou converte em nulidade processual, sendo que tal nulidade processual cometida implica a anulação da decisão que ditou a improcedência da ação. 7. A decisão recorrida é uma decisão-surpresa, apta a consubstanciar uma nulidade, que se projeta na decisão recorrida, sendo passível de arguição por via de recurso. 8. O Tribunal “a quo” de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer apontamento fatual ou jurídico, envereda por uma decisão-surpresa. A decisão é inoportuna, inexplicável, contrária a toda a tramitação anterior, à boa tramitação judicial, à finalidade do processo e à realização da justiça material. 9. A decisão-surpresa (cf. artigo 3.º nº 1 e 3 do CPC) não é, com a devida vénia, a fórmula adequada de se fazer justiça, pelo que ao decidir, como decidiu, o Tribunal “a quo” fez errada aplicação do direito, violando, entre outros, o disposto no artigo 3.º, nº 1 e 3 do CPC. 10. Prescreve o art. 590º do CPC, no seu nº 4 e cuja epígrafe é “Gestão inicial do processo” que: Incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido. 11. A omissão do convite ao aperfeiçoamento dos articulados constitui uma nulidade processual (decorrente, naturalmente, de uma omissão do tribunal). 12. O juiz tem no dever de “convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada”, quando se lhe afigurar que ocorrem tais “insuficiências ou imprecisões”; neste cenário está obrigado a assim agir. 13. O que o tribunal não pode é deixar de dirigir o convite ao aperfeiçoamento do articulado e, mais tarde (na decisão final), considerar o pedido da parte improcedente precisamente pela falta do facto que a parte poderia ter alegado se tivesse sido convidada a aperfeiçoar o seu articulado. 14. No caso sub judice, o Tribunal “a quo” refere na douta decisão: “Ademais, é a própria Autora quem alega que a sociedade teve em 2022 um acréscimo de autonomia em 0,6 e que passou de um resultado líquido de €1805767,00 no ano de 2021 para um resultado líquido de €3106965,00 no exercício de 2022. Resta saber se a alegação supra é suficiente para se apurar que a deliberação visou tão-só prejudicar a sócia Autora, satisfazendo interesses egoístas dos outros sócios. E, neste particular, a alegação da Autora afigura-se-nos vaga e genérica.” (sublinhado nosso) 15. Ora, não tendo existido convite ao aperfeiçoamento não pode o Tribunal decidir pela improcedência da ação consubstanciada em alegações factuais vagas e genéricas. Resta concluir que, se o Tribunal não convidar a parte a aperfeiçoar o seu articulado e, na decisão da causa, considerar improcedente o pedido da parte pela falta do facto que a parte poderia ter invocado se lhe tivesse sido dirigido um convite ao aperfeiçoamento, se verifica uma nulidade da decisão. 16. O juiz tem de atender a todos os factos relevantes, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, e não apenas os factos que suportam a solução da questão de direito que considera aplicável, de modo que seja viável encontrar a solução de direito que decida com justiça. 17. O Tribunal “a quo” omite, pois, factos relevantes para a boa decisão da causa e a realização da justiça, e tendo presente que o juiz tem de atender a todos os factos relevantes, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, e não apenas os factos que suportam a solução da questão de direito que considera aplicável, merece a decisão em crise reparo. 18. Não foi garantida a produção de prova relevante e necessária para a descoberta da verdade material, em especial no que concerne à alegação de pagamentos em dinheiro sem serem espelhados na contabilidade da empresa – configurando uma pratica ilícita criminal e fiscalmente – ; dos benefícios que os outros acionistas – com exclusão propositada da A./recorrente por estes – retiravam da sociedade Ré e que estivera na base de não pretenderem distribuir lucros, apenas e tão-só, para prejudicar a recorrente; das gratificações de balaço dadas aos acionistas que cumulavam essa qualidade na sociedade com o facto de serem administradores da mesma, entre outros. 19. São vários os factos que resultam provados por confissão direta da Ré! E dessa confissão da Ré resultou demonstrado que a intenção dos acionistas, que deliberaram a não distribuição de lucros, era unicamente prejudicar a Autora/Recorrente; isto é, as imensas regalias que beneficiavam os acionistas que votaram a favor da deliberação que se impugna pela presente ação, foram atribuídas por eles próprios, disfarçando um vencimento muito inferior ao que, na realidade auferiram, pois, todos os custos pessoais eram imputados, ilegítima e ilegalmente na sociedade Ré! Com estas imputações de despesas pessoais à sociedade, quando as mesmas não se destinavam à prossecução do interesse societário – desde logo, apelidados pagamentos “por fora” aos administradores que consubstanciam em indícios da pratica de fraudes fiscais, entre outros, aquisição de veículos topos de gama para os administradores os usarem a titulo pessoal, entre outros factos alegados pela Autora e confessados pela Ré, mas não inseridos na matéria probatória na sentença recorrida – mas sim aos incessantes caprichos individuais e pessoais dos acionistas em causa. 20. Tal factualidade, deveria ter sido levada aos temas de prova e incluída na matéria dada como provada nos autos, sendo que o Tribunal a quo nem, sequer, a apreciou! 21. Do cotejo das peças processuais constantes dos autos, resulta com singular evidência que a recorrida no seu douto articulado contestação, confessa, admitindo, expressa os seguintes factos que decorrem do que extratado está nos seguintes itens daquela.;«83- Já que, os administradores da R. auferiam, no ano de 2023, o salário ilíquido de 5.195,64 €, subsídio de alimentação de 4,05 €/dia, e gratificações de balanço, dentro dos limites fiscalmente aceites.84- É falsa a factualidade constante do artigo 25º da petição inicial - «25) Para além do valor declarado para efeitos fiscais, nomeadamente para efeito de pagamento também à segurança social, em sede de taxa social única, os administradores auferem ainda, todos e cada um, uma quantia mensal de 3.125,00€, que lhe é disponibilizada em notas do Banco Central Europeu, também pago 14 vezes no ano» e, como tal, deve ter-se por impugnada. 85- Incorreta é a factualidade exarada sob o artigo 26º da petição inicial, - «26) Em acrescento, os acionistas administradores, beneficiam de viatura topo de gama, com valores superiores a 90.000,00€, mormente o administrador EE, conduz um ... (Modelo ...), no valor de 96.000,00€, enquanto a esposa GG, conduz um ..., modelo ...40, este último integrado na frota automóvel da EMP02..., Lda., e sendo esta a suportar todos os custos.» 87- Incorreta a factualidade constante do artigo 27º da petição inicial, - «27) O acionista CC, utilizada a viatura ... S, com valor superior a 100.000,00€»; pois o veículo em causa, estando atribuído ao administrador CC, foi adquirido no estado de usado e pelo valor de 75.000 €.88- É falsa a factualidade vertida sob o artigo 28º da petição inicial - «28) O acionista DD, possuir uma excelente e vistosa frota automóvel, e faz-se deslocar num ..., Modelo ... a gasolina, que tem consumo superior a 20 lt/Km, com valor de mercado superior a 90.000,00€.». O veículo atribuído ao administrador DD é em ..., com a matrícula ..-DJ-.., do ano de 2007, adquirido no estado de usado.90- Da factualidade alegada sob o artigo 31º da petição inicial «31) Refira-se que todos os acionistas, administradores, beneficiam do pagamento integral de todos os custos inerentes ao veículo que usufruem, como combustível, manutenção, seguro automóvel, revisões, tributações autónomas, portagens, etc., cujo valor mensal ultrapassa o montante de 3.000,00€.», é verdade apenas que todas as despesas das viaturas da R. são por si suportadas, quer as utilizadas pelos seus administradores quer as usadas pelos seus comerciais.91- É falsa a factualidade alegada sob o artigo 32º da petição inicial «32) Para além disso beneficiam também da existência de um cartão de crédito, que utilizam 24h x 24h, 365 dias por ano, para pagamento de despesas de alimentação, e outras, que a empresa assume e líquida, que representará uma disponibilidade económica superior a 3.000,00€ mensais.». Os cartões de crédito que a R. detinha até finais de 2023, apenas eram utilizados pelo Presidente do Conselho de Administração, Sr. BB, e pelo administrador Dr. HH, cônjuge da A.94- Quanto ao vertido sob o artigo 35º da petição inicial «35) Além disso os mesmos acionistas, administradores beneficiam de um leque vasto de seguros que cobrem diferentes riscos pessoais e dos seus agregados familiares, tais quais, a título meramente indicativo: seguro de saúde na Companhia de Seguros EMP03...; seguro de vida, na Companhia de Seguros EMP04...; seguro de viagens na Companhia de Seguros EMP05...; seguro de acidentes e doenças, na Companhia de Seguros EMP05..., seguros que abrangem ainda os seus agregados familiares, cujo custo mensal, não será inferior a 3.000,00€, para cada um.», é verdade apenas que os administradores em funções e respetivos agregados familiares beneficiam dos seguintes seguros: EMP03..., cujo valor médio mensal por pessoa segura ascende a 60,30 €; EMP04... – Seguro de Vida – que abrange os quatro administradores em funções e cujo valor médio mensal por pessoa ascende a 733,80 €; EMP05... – Seguro de Viagens, que abrange apenas o ex administrador e cônjuge da A., Dr. HH, cujo valor mensal ascende a 68,75 €; EMP05... – Seguro de Doença e Acidentes Pessoais – abrangendo todos os administradores, cujo valor médio mensal por pessoa segura ascende a 237,67 €.» 22. Mal andou o Tribunal “a quo” em não consignar como provado a matéria aceite, reconhecida, confessada pela recorrida, na exata dimensão e conteúdo em que o fez o que tanto bastaria para, e contrariando na plenitude as assunções que o Tribunal entendeu, destacar, recalcar da petição inicial, apresentando tais excertos supra como exemplos de muito mais alegado pela Recorrente na sua petição inicial. 23. Reduzir, ignorar, e limitar o petitório da Autora/ Recorrente a umas meras invocações linguísticas conclusivas é olvidar, silenciar, ignorar tudo o mais que alegado foi. É encontrar elementos laterais para fundamentar uma pretensão conclusiva, que se respeita, mas que não se aceita. 24. A Autora alega – muitos – factos na sua petição inicial, também depois do item 62 – a partir deste não são feitas só considerações de direito, mas alegações concretas de factos – mas, acima de tudo, entre os itens 1 a 61 da petição inicial, aos quais a Primeira Instancia fez tábua rasa. Bastaria o Tribunal, a quo ter atentado, não no que extratado está nos artigos 62 e seguintes da p.i., mas em todos os anteriores, para retirar ilações conclusivas, bem diferente daquela que reproduz no texto decisório. 25. Não se perceciona como possível que um acionista/administrador, in casu, o Sr. EE, com a mesma participação social que a recorrente, seja beneficiado com a atribuição de dois veículos de luxo, gama alta, seja um ..., Modelo ..., e um ..., modelo ...40, e a recorrida custearia todos os custos inerentes ao uso, circulação, seguros, reparações, etc. E que tal constatação não configure, um patente e notório facto prejudicial à recorrente, na medida em que aumenta os custos da empresa, diminuindo nessa medida os lucros, num silogismo simplista. 26. Para além de constituir na esfera privada de acionista um benefício da mesma, correspondente ao necessário prejuízo sofrido pela recorrente; E, os demais acionistas que beneficiam do mesmo tratamento assumido pela R., confessado. E a distribuição “encapotada”, “pintada” de lucros que a R., assume exercitar através da figura da GRATIFICAÇÃO DE BALANÇO, não é uma forma de prejudicar a Autora com a proibição de acesso ao lucro obtido pela Ré? E, os diferentes benefícios que usufruem os restantes acionistas e seus familiares em sede de diferente panóplia de Seguros? 27. Constitui tal praxis, assumida confessoriamente pela recorrida, um ato inócuo e indiferente aos legítimos interesses da restante acionista? Mas mais constrangedor para a recorrente, residiu na indiferença factual, atribuída à alegação pela mesma trazida aos autos, quanto às viagens de lazer, proporcionadas a outros acionistas, que em sede probatória seria demonstrável. 28. A Recorrente alegou factos de extrema relevância para a análise da causa, nomeadamente, os supra referidos, uma prática que, a verificarem-se, não apenas evidenciaria uma clara violação dos princípios de transparência e boa-fé nas deliberações sociais, mas também configuraria indícios de ilícitos criminais e fiscais e intuito de prejudicar a Autora em relação aos demais acionistas. 29. Ao ignorar essas alegações e não promover a devida instrução processual, a Juíza a quo impediu que fosse apurado o contexto fático necessário para a correta aplicação do direito. Tal omissão violou o princípio da descoberta da verdade material, que rege o processo civil, especialmente em situações em que os factos, se comprovados, poderiam alterar substancialmente o desfecho da decisão. 30. O Tribunal não cuidou de apurar questões que seriam cruciais para a análise da causa, tais como a existência de práticas reiteradas de retenção de lucros injustificada; a real dimensão dos pagamentos em dinheiro ou outros benefícios concedidos aos sócios maioritários; e efetiva demonstração de prejuízo para a Recorrente, enquanto acionista minoritária. 31. A ausência de produção de prova resultou em uma apreciação incompleta e enviesada dos factos, prejudicando o direito da Recorrente ao contraditório e à efetiva tutela jurisdicional, garantidos pelos artigos 3.º, 4.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa. 32. Se tivesse sido promovida a produção de prova adequada, ou mesmo um simples aperfeiçoamento da peça inicial, seria possível evidenciar que o pagamento em dinheiro e outras práticas irregulares configuraram uma estratégia deliberada para beneficiar os sócios maioritários, em detrimento da acionista minoritária. E ainda que essas práticas não apenas lesaram os direitos da Recorrente, mas também colocaram em causa o cumprimento das obrigações legais da sociedade, com possíveis implicações fiscais e penais. 33. Tais elementos seriam ainda suficientes para demonstrar a existência de abuso de direito, conforme previsto no artigo 58.º, n.º 1, alínea b), do Código das Sociedades Comerciais (CSC), bem como justificar a anulabilidade da deliberação impugnada. 34. Por isso, é crucial que o processo seja remetido para novo julgamento, garantindo que estas questões sejam devidamente analisadas e que os direitos da Recorrente sejam efetivamente protegidos. Além disso, a extração de certidão para fins criminais e fiscais é indispensável para assegurar o cumprimento das obrigações legais e a transparência na gestão societária. 35. A decisão recorrida afastou a nulidade e anulabilidade da deliberação tomada na assembleia geral de 8 de março de 2024, tendo considerado que a alegação da Recorrente não era suficiente para demonstrar a prática de um abuso de direito que pudesse gerar a anulabilidade da referida deliberação, nos termos do artigo 58.º, n.º 1, alínea b), do Código das Sociedades Comerciais (CSC). 36. O Tribunal a quo afastou, de forma incorreta, a possibilidade de considerar anulável a deliberação tomada na assembleia geral de 8 de março de 2024, ignorando os indícios de abuso de direito e de voto abusivo previstos no artigo 58.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC). Ao fazê-lo, não foram devidamente analisados os elementos que caracterizam o abuso de direito no contexto deste caso em concreto, nomeadamente a intenção dos acionistas maioritários de obterem uma vantagem especial, causando prejuízo direto à Recorrente. 37. A jurisprudência (cf. Acórdãos) é clara na definição e identificação do abuso de direito, e, neste caso, está evidente que a deliberação em causa – que resultou na retenção sistemática de lucros sem qualquer justificação social ou empresarial plausível – teve como objetivo beneficiar os sócios maioritários, em manifesto prejuízo para a Recorrente, sócia minoritária. 38. A decisão de não distribuir dividendos, sem qualquer fundamento que a justifique, configura uma prática que se enquadra claramente no conceito de “abuso de direito”, causando um prejuízo evidente e injustificado aos direitos da Recorrente. Para caracterizar o abuso de direito na retenção sistemática de lucros, é essencial demonstrar que essa prática teve como objetivo privar os sócios minoritários da sua legítima participação nos resultados da sociedade, favorecendo os maioritários através de outros benefícios, como o pagamento de gratificações de gerência. 39. A jurisprudência tem reiterado que a retenção excessiva e injustificada de lucros pode configurar abuso de direito. Exemplos disso podem ser encontrados no Acórdão da Relação de Coimbra de 02/07/1991 e no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/01/1993, ambos mencionados na decisão em recurso. 40. No caso em análise, em que se questiona a validade da deliberação social que decidiu pela não distribuição dos lucros, importa recordar que qualquer sociedade comercial está sujeita ao princípio da lealdade. Este princípio exige que todos os sócios atuem de forma alinhada com o interesse social, respeitando o direito de cada um à sua justa participação nos resultados. O comportamento dos sócios maioritários deve, por isso, pautar-se pela defesa do objetivo comum da sociedade, sem prejudicar os sócios minoritários ou obter vantagens desproporcionais e indevidas 41. Em oposição ao entendimento manifestado na decisão recorrida, a Recorrente sustenta que os lucros retidos ultrapassam claramente as necessidades justificáveis da Ré. Apesar de esta ter registado um lucro líquido significativo de 3.106.965,00 €, optou por não distribuir qualquer parcela desses lucros. A Recorrente argumenta ainda que os sócios maioritários têm sido amplamente beneficiados através de remunerações de gerência e gratificações, enquanto os sócios minoritários são privados de qualquer retorno sobre o seu investimento. Conforme detalhado na petição inicial, os administradores maioritários auferem salários elevados (5.300,00 € mensais, acrescidos de 3.125,00 € em pagamentos extras), além de usufruírem de benefícios como viaturas de luxo, seguros de aúde, viagens e outros privilégios, somando mais de 10.000,00 € mensais. 42. Esses benefícios, na prática, configuram uma distribuição disfarçada de lucros, pelo que estes acionistas já não têm interesse na sua distribuição, pois assim, a Recorrente tiraria um beneficio da Ré que aqueles não querem que esta retire, apenas com o intuito de a prejudicar. 43. A Recorrente sublinha que, enquanto os acionistas minoritários não recebem qualquer retorno financeiro através da distribuição oficial de lucros, os maioritários têm acesso a benefícios substanciais que não são sujeitos à tributação, como "descontos" em aquisições imobiliárias. Esta situação agrava ainda mais a disparidade na distribuição dos resultados da sociedade, favorecendo exclusivamente os sócios maioritários. Deste modo, a deliberação impugnada só pode ser considerada um abuso de direito. 44. Os sócios maioritários têm, sistematicamente, recusado a distribuição de dividendos, retendo os lucros sob o argumento de reforço patrimonial. Esta postura está em linha com o que foi descrito no Acórdão da Relação de Coimbra de 02/07/1991, que considera que a retenção desproporcional e injustificada de lucros, sem qualquer fundamento económico plausível, restringe os direitos dos minoritários e configura, inequivocamente, abuso de direito. 45. A Recorrente, enquanto acionista da Ré com uma participação de 5% no capital social, manifestou o seu voto contra as contas e a proposta de aplicação dos resultados do exercício de 2022, agindo em conformidade com o disposto no artigo 294.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais (CSC).Este artigo estabelece que a distribuição dos lucros deve respeitar o interesse dos acionistas e determina que, salvo justificativa válida, pelo menos 50% do lucro distribuível deve ser atribuído aos mesmos. 46. Acreditando ser a primeira vez que uma acionista votava contra uma proposta da administração, a Recorrente esperava que a empresa ajustasse a sua conduta em cumprimento do referido artigo. Tal expectativa era reforçada pelo fato de o Presidente da Assembleia Geral, jurista experiente, estar plenamente ciente deste enquadramento legal. 47. A Assembleia Geral da Ré violou o disposto no artigo 294.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais, que impõe a distribuição de, pelo menos, 50% dos lucros distribuíveis, salvo motivo justificado. A interpretação de que os lucros do exercício de 2022, no montante de 3.106.965,00 €, não seriam considerados "lucros distribuíveis" e, por conseguinte, não deveriam ser entregues aos acionistas, é não apenas errada, mas também ilegal. 48. Ao votar contra a proposta de aplicação dos resultados, a Recorrente exigiu o cumprimento da norma que obriga à distribuição de uma parte significativa dos lucros, em respeito pelos direitos dos acionistas. Não tendo sido apresentado qualquer fundamento válido pelo Conselho de Administração para justificar a retenção integral dos lucros, torna-se evidente que a decisão tomada contraria o que a lei expressamente determina. 49. A ausência de uma justificação clara e fundamentada por parte do Conselho de Administração relativamente à não distribuição dos lucros constitui uma violação das normas de transparência que devem pautar as deliberações da Assembleia Geral. O artigo 294.º do Código das Sociedades Comerciais não só impõe a obrigação de distribuição de lucros, como também exige que decisões contrárias a essa regra sejam devidamente justificadas. 50. Além disso, ficou evidente que a deliberação da Assembleia Geral violou diretamente o disposto no artigo 294.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais, ao não proceder à distribuição dos lucros de forma justa e proporcional. A falta de uma fundamentação legalmente exigida para a retenção dos lucros, aliada à clara disparidade nos benefícios atribuídos aos acionistas maioritários, compromete os princípios de transparência e boa-fé que devem reger as deliberações sociais, justificando plenamente a anulação da deliberação impugnada. 51. A prática recorrente de reter lucros, sem proceder à sua distribuição entre os sócios, desequilibra o direito de participação nos lucros da sociedade, favorecendo claramente os sócios maioritários 52. Enquanto sócia minoritária, a Recorrente não obteve qualquer benefício decorrente da gestão dos lucros da sociedade. Na prática, viu o seu direito de usufruir dos resultados da empresa ser ignorado, em contraste com os benefícios líquidos atribuídos aos administradores, que são também sócios maioritários 53. O Tribunal a quo não teve em conta que a prolongada e injustificada dos lucros viola os princípios da boa-fé e compromete o objetivo económico e social do direito das sociedades. Esta conduta acaba por prejudicar gravemente os interesses dos sócios minoritários. Além disso, a análise das regalias concedidas aos acionistas que também são administradores da R. demonstra uma clara concentração de benefícios, que são inacessíveis à Recorrente, gerando uma disparidade evidente entre os acionistas. 54. A Recorrente, por sua vez, não usufrui de tais privilégios, apesar de também ser acionista. Esta prática, na verdade, constitui uma forma disfarçada de distribuir lucros entre os acionistas maioritários, prejudicando a Recorrente e outros acionistas minoritários. Tal conclusão é evidente quando analisados os pagamentos extraoficiais, que não são sujeitos a tributação, e a evidente falta de transparência e equidade na gestão e distribuição dos lucros. 55. Este cenário agrava-se quando se observa que os acionistas maioritários – em particular o Sr. BB – têm acesso a uma distribuição de lucros e benefícios de forma oculta e sem a devida tributação. Essa situação coloca a Recorrente numa posição de clara desvantagem. 56. A ausência de qualquer compensação ou benefício equivalente para a Recorrente, somada à apropriação dos lucros pelos acionistas maioritários sem transparência ou respeito pela obrigação legal de distribuição justa, representa uma evidente injustiça e resulta numa concentração de poder e riqueza em prejuízo dos acionistas minoritários. 57. Essa prática resulta numa distribuição desigual dos lucros da empresa, agravando ainda mais a disparidade entre os acionistas. Essa situação prejudica a Recorrente, que, enquanto acionista, não recebe qualquer compensação ou benefício semelhante. 58. Essa disparidade revela-se como uma tentativa de concentrar os lucros nas mãos de alguns acionistas, em detrimento dos outros, contrariando os princípios de boa-fé e equidade consagrados na lei. 59. A Recorrente entende que as normas aplicáveis à presente situação, nomeadamente o artigo 334.º do Código Civil e o artigo 294.º do Código das Sociedades Comerciais, devem ser interpretadas de forma a assegurar a proteção dos direitos dos acionistas minoritários, especialmente no que diz respeito à distribuição de lucros. 60. A retenção sistemática de lucros, sem justificativa válida, e a prática de benefícios não tributados e desproporcionais aos acionistas maioritários, configuram uma clara violação dos princípios de boa-fé, igualdade entre os sócios e da lealdade nas deliberações sociais. 61. As provas apresentadas demonstram que a deliberação impugnada foi tomada com o intuito de prejudicar a posição da Recorrente, em detrimento da sua participação legítima nos lucros da sociedade, o que exige uma intervenção judicial para assegurar o cumprimento das normas legais e a justiça no seio da sociedade. Assim, a Recorrente apela à revisão da decisão, de modo a garantir que os seus direitos sejam devidamente respeitados e protegidos, conforme a legislação aplicável e os princípios que norteiam o regime jurídico das sociedades comerciais. 62. A Recorrente considera que as normas aplicáveis à presente situação, em particular o artigo 334.º do Código Civil e o artigo 294.º do Código das Sociedades Comerciais, devem ser interpretadas de forma a garantir a proteção dos direitos dos acionistas minoritários, sobretudo no que respeita à distribuição de lucros.” Pediu a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por decisão “que ordene o prosseguimento dos autos convidando, se ajustado, ao aperfeiçoamento da petição inicial, e prosseguindo os mesmos para julgamento.” *** 3). A Ré (daqui em diante, Recorrida) respondeu, pugnando pela improcedência do recurso e confirmação da sentença recorrida.*** 4). O recurso foi admitido como apelação, com subida nos autos e efeito meramente devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal ad quem.Concomitantemente com o despacho de admissão do recurso, a Exma. Sra. Juíza de Direito exarou, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 617/1 do CPC, que, “[q]uanto às nulidades invocadas”, despacho do seguinte teor: “A audiência prévia foi convocada para os fins a que alude o artigo 591.º do CPC – onde se incluiu a alínea b) do n.º 1 do citado preceito legal –, e, [em] sede da referida diligência, o Tribunal advertiu expressamente as partes que considerava estarem reunidos as condições para proferir decisão de mérito, concedendo-lhes a possibilidade de exercerem o contraditório – pelo que tal princípio do Direito ao contraditório não foi violado, nem, tão-pouco, foi proferida decisão-surpresa. Por fim, como se escreveu, não foi proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento porquanto a inexistência de nulidade da deliberação decorreu, sem mais, da inexistência de violação de qualquer uma das alíneas do n.º 1 do artigo 56.º do CSC e a inexistência de deliberação anulável decorreu da circunstância de nada ter sido alegado, de todo, que pudesse ser aproveitado. Como se escreveu, “restando uma alegação de intenções vagas, nada mais” restava “do que julgar, desde já, improcedente a presente ação, por se tratar, não de uma alegação deficiente, mas de uma total ausência de alegação de factos que pudessem levar a suportar os efeitos jurídicos pretendidos”. *** 5). Realizou-se a conferência, previamente à qual foram colhidos os vistos dos Exmos. Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.*** II.As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, do CPC). Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação. Ressalvam-se, em qualquer caso, as questões do conhecimento oficioso, que devem ser apreciadas, ainda que sobre as mesmas não tenha recaído anterior pronúncia ou não tenham sido suscitadas pelo Recorrente ou pelo Recorrido, quando o processo contenha os elementos necessários para esse efeito e desde que tenha sido previamente observado o contraditório, para que sejam evitadas decisões-surpresa (art. 3.º/3 do CPC). Tendo isto presente, as questões que se colocam no presente recurso podem ser sintetizadas nos seguintes termos, seguindo a ordem lógica do seu conhecimento: 1.ª Nulidade da decisão recorrida por ter sido proferida em sede de audiência prévia sem que se tivesse mencionado na respetiva convocatória, de forma especificada, que a diligência teria como finalidade a decisão do mérito da causa; 2.ª Nulidade da decisão recorrida por ser uma “decisão-surpresa”; 3.ª Nulidade de decisão recorrida por ter sido proferida sem que previamente a Recorrente tivesse sido convidada a suprir as insuficiências e imprecisões na exposição da matéria de facto que foram determinantes da decisão de improcedência da ação; 4.ª Error in iudicando por (i) a decisão recorrida ter antecipado, para o despacho saneador, o conhecimento do mérito da causa, quando o estado do processo ainda não continha (rectius, contém) os elementos de facto necessários para o efeito, à luz do disposto no art. 334 do Código Civil e nos arts. 58/1, b), e 294/1 do Código das Sociedades Comerciais, estando a aquisição deles dependente de prova a produzir, e (ii) por ter desconsiderado factos relevantes para a decisão a proferir. *** III.1). Antes de avançarmos com a resposta às questões enunciadas, começamos por respigar a fundamentação da sentença recorrida. Assim, depois de ter escrito que “[o] objeto do litígio centra-se na verificação dos pressupostos legais que permitiriam a declaração de nulidade ou de anulabilidade da deliberação social tomada na assembleia geral de 8/3/2024[,] relativa à aplicação dos resultados do exercício do ano de 2022”, o Tribunal de 1.ª instância considerou como provados, “de acordo com a prova documental junta ao processo”, os seguintes factos (transcrição): “1) A A., é acionista da R., sendo titular de 30.000 ações, no valor global de 150.000,000€ (cento e cinquenta mil euros), correspondente a 5%docapital social da R. 2) A R. é uma sociedade anónima que tem por objeto social a indústria e comércio de artigos de cimento e materiais para a construção civil 3) O seu capital social encontra-se atualmente distribuído da seguinte forma; a. BB, é detentor de 450.000 ações, correspondente ao valor global de 2.250.000,00€ (dois milhões duzentos e cinquenta mil euros), correspondente a 75% do capital social da R.; b. CC, é detentor de 30.000, correspondente ao valor global de 150.000,000€ (cento e cinquenta mil euros), correspondente a 5% do capital social da R. c. DD, é detentor de 30.000, correspondente ao valor global de 150.000,000€ (cento e cinquenta mil euros), correspondente a 5% do capital social da R. d. EE, é detentor de 30.000, correspondente ao valor global de 150.000,000€ (cento e cinquenta mil euros), correspondente a 5% do capital social da R. e. FF, é detentor de 30.000, correspondente ao valor global de 150.000,000€ (cento e cinquenta mil euros), correspondentea5%docapital social da R. f. AA, aqui A., é detentora de 30.000, correspondente ao de 150.000,000€ (cento e cinquenta mil euros), correspondente a 5% do capital social da R. 4) Foi convocada assembleia geral da Ré para o dia 8/3/2024 com a seguinte ordem de trabalhos: “Ponto um: Deliberar sobre aprovação do balanço, relatório de gestão e contas reportadas ao exercício do ano de 2022; Ponto dois: Deliberar sobre a aplicação dos resultados do exercício do ano de 2022.” 5) A Assembleia geral teve lugar na sua sede social, com a presença dos acionistas representativos da totalidade do capital social, tendo em vista a votação da aprovação das contas referentes ao exercício económico do ano de 2022, seguida de discussão e votação da proposta de aplicação de resultados líquidos do exercício de 2022, que atingiu o montante de 3.106.965,00€. 6) Colocado à votação o Ponto Um da ordem de trabalhos, foram as contas referentes ao exercício de 2022 foram aprovadas por votos representativos de 95% do capital social, com o único voto contra da A. 7) Colocada à votação a proposta de aplicação do resultado líquido positivo apurado, no montante de €3106964,96 a reservas livres, a proposta de aplicação de resultados de exercício de 2022 foi aprovada por votos representativos de 95% do capital social, com o único voto contra da A. 8) Consta do relatório de gestão, datado de 2/1/2024: “10 – Evolução previsível da sociedade: A posição da empresa no mercado – consolidada ao longo dos vários anos da sua existência, a evolução positiva dos negócios no decorrer de 2023 até à presente dada, e as encomendas em carteira, levam-nos a admitir que no próximo futuro a continuidade da empresa não está posta em causa apesar de alguns constrangimentos que ainda se possam sentir provocados pelo conflito na Ucrânia, pela instabilidade dos mercados financeiros com a subida acentuadas das taxas de juro e as variações constantes do preço dos combustíveis. / A política da Administração continua focada no objetivo de crescimento e aumento da sua competitividade, na oferta de novos produtos tanto a nível do mercado nacional como do mercado externo, apesar das dificuldades relatadas. / A empresa tem como plano de investimento para os próximos dois anos um valor de 6 000 000 €, este plano visa a construção de um pavilhão industrial, para o aumento e diversificação da produção. A administração pretende entende que a melhor forma para o investimento será o autofinanciamento. / A Administração propõe assim que o resultado positivo apurado, no montante de € 3 106 946,96, que já se encontra deduzido do montante de € 200 000,00 relativo a gratificações a atribuir aos administradores e colaboradores da empresa se destine a reservar livres. / 11 – Propostos de distribuição de resultados: para reservas livres: € 3 106 964,96. *** 2). De seguida, sob a epígrafe “Motivação Jurídica e Subsunção”, o Tribunal de 1.ª instância fundamentou a decisão de julgar a ação improcedente, do seguinte modo (transcrição):“Relembremos que é o 56.º, n.º 1, do CSC que indica quais as deliberações dos sócios que podem ser havidas como nulas. Por outro lado, é já no artigo 58.º do CSC, sob a epígrafe de Deliberações Anuláveis, que se consegue identificar qual o regime das deliberações anuláveis. Prescreve aquele preceito legal: “1 - São anuláveis as deliberações que: a) Violem disposições quer da lei, quando ao caso não caiba a nulidade, nos termos do artigo 56.º, quer do contrato de sociedade; b) Sejam apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir, através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente de prejudicar aquela ou estes, a menos que se prove que as deliberações teriam sido tomadas mesmo sem os votos abusivos” Por seu turno, prescreve o artigo 59.º do CSC, sob a epígrafe de ação de anulação: 1 - A anulabilidade pode ser arguida pelo órgão de fiscalização ou por qualquer sócio que não tenha votado no sentido que fez vencimento nem posteriormente tenha aprovado a deliberação, expressa ou tacitamente. 2 - O prazo para a proposição da ação de anulação é de 30 dias contados a partir: a) Da data em que foi encerrada a assembleia-geral; b) Do 3.º dia subsequente à data do envio da ata da deliberação por voto escrito; c) Da data em que o sócio teve conhecimento da deliberação, se esta incidir sobre assunto que não constava da convocatória (…). Da validade formal da deliberação: Estatui o artigo 246.º do CSC que dependem de deliberação dos sócios, a “aprovação do relatório de gestão e das contas do exercício, a atribuição de lucros e o tratamento de prejuízos (alínea e)”. Estatui o artigo 250.º, n.º 3 do CSC que, salvo disposição diversa da lei ou do contrato, as deliberações consideram-se tomadas se obtiverem a maioria dos votos emitidos, não se considerando como tal as abstenções. Por outro lado, estatui o artigo 217.º, n.º 1 do mesmo diploma legal que, “salvo diferente cláusula contratual ou deliberação tomada por maioria de três quartos dos votos correspondentes ao capital social em assembleia geral para o efeito convocada, não pode deixar de ser distribuído aos sócios metade do lucro do exercício que, nos termos desta lei, seja distribuível”. O lucro de exercício com que lida em geral o direito societário é um valor monetário revelado pelo balanço e, em mais pormenor, pelas demonstrações de resultados, apurando-se de acordo com os critérios, normas e princípios do SNC ou das NIC/NIRFs. Ademais, a operação de distribuição de lucros compõe-se de um ato atributivo de valor (deliberação de distribuição) e da sua execução (pagamento). O artigo 217.º do CSC trata-se, como bem se entende, de um preceito dispositivo. Vista a deliberação tomada na assembleia de 8/3/2024, resulta da mesma que a deliberação de não distribuir os lucros e de constituir reservas foi tomada pela maioria necessária, ou seja, pela maioria superior a ¾ do capital social – no caso, por 95% do capital social. Concluiu-se, assim, que a deliberação é, pelo menos, formalmente válida, não estando ferida de qualquer nulidade, por não se vislumbrar nenhuma norma que tenha sido violada e que pudesse caber em qualquer uma das alíneas do n.º 1 do artigo 56.º do CSC. Da anulabilidade da deliberação/Do voto abusivo /do abuso de direito: Afastada a possibilidade de a deliberação estar ferida de nulidade, importa, agora, que nos debrucemos sobre a possibilidade de fazer incluir a deliberação tomada em qualquer uma das alíneas do artigo 58.º do CSC. Será fácil concluir que apenas a alegação da Autora apenas poderia ser subsumível à previsão da alínea b). Relembremos: Prevê-se ali que são anuláveis as deliberações que sejam apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir, através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente de prejudicar aquela ou estes, a menos que se prove que as deliberações teriam sido tomadas mesmo sem os votos abusivos. Por outras palavras: “Visa-se sancionar, não uma discrepância entre a deliberação e uma determinada disposição legal ou estatutária, mas sim situações, que pese embora estejam formalmente conformes com tais normativos legais e estatutários, desrespeitam a intencionalidade material que a elas esteja subjacente, contrariando o necessário equilíbrio entre o respetivo exercício dos poderes legalmente conferidos e os princípios nos quais devem assentar” – cf. o Ac. do TRL de 26/5/2009, in www.dgsi.pt. Relembremos, como o faz aquele Venerando Tribunal, que o intuito de obter vantagens especiais deve ter uma dimensão de excesso manifesto. E quando o vício tem origem não num, mas em vários sócios, apontando para o abuso da maioria, em prejuízo da minoria, haverá que apurar factos que materializem o propósito de obtenção de vantagens especiais, sem, contudo, haver uma exigência de prova de um dolo específico (Jorge Henrique Pinto Furtado, Curso de Direito das Sociedades, 5.º Edição, pág. 462, apud o aresto supra referido). Por outro lado, na normal aproximação ao conceito do abuso de direito, previsto no artigo 334.º do CC, há que recordar que o tratamento igual entre os sócios é um princípio basilar do direito societário, ficando subjacente ao mesmo a ideia de que, no desenvolvimento da atividade societária, a sociedade não deverá proceder a opções arbitrárias que beneficiem uns em prejuízo de outros. Aqui chegadas, diremos que teríamos como abusiva ou excessiva ou deliberação de retenção sistemática de lucros (não imposta pelo interesse social), com oposição de uma minoria, recebendo os sócios maioritários vantagens da sociedade não acessíveis a esta – cf., com interesse, o Ac. do TRC de 6/3/1990. Bem sabemos que os sócios minoritários podem ficar prisioneiros na sociedade de um investimento que nem é remunerado, por não haver distribuição de lucros. E somos conhecedoras do princípio ou dever de lealdade ou fidelidade ao fim comum. No entanto, para se considerar existir um abuso de direito por parte de sócios maioritários, importaria que se alegasse e provasse que a deliberação de não distribuição de dividendos configura um processo de retenção sistemática de lucros, coartando o direito da minoria a participar nos resultados da empresa, enquanto eles recebem, eventualmente, remunerações e gratificações de gerência – cf., neste sentido, o Ac. da Rc de 2/7/1991: RDES ano XXXVIII, n.ºs ¼, 1996). Situações existem que – por exemplo, em casos de retenção de lucros por um quarto de século sem distribuição aos sócios – podem mesmo ser consideradas nulas deliberações por assim envolverem “uma rutura do sistema de equilíbrio que deve existir entre o interesse social no reforço e valorização do ativo e o dos sócios uti singuli na distribuição periódica dos lucros, e isso, num quadro de tal gravidade, que o grupo social representativo da ética dominante não poderia deixar de se sentir revoltado” – cf. o Ac. do STS de 07/1/1993 (BMJ 423, pág. 539, apud Olindo dos Santos Geraldes, in Deliberações Sociais Abusivas e Responsabilidade Civil, 2008). Assim, e sistematizando, a invalidade da deliberação social, decorrente do abuso de direito, gera a nulidade daquela, mas a invalidade, resultante do voto abusivo, acarreta a anulabilidade da deliberação social. Quais são, então, os pressupostos da deliberação social abusiva? No texto do artigo 58.º, n.º 1, al. b) do CSC vislumbram-se duas situações distintas: a obtenção de vantagens especiais em detrimento da sociedade ou de outros sócios – respeitante às desfuncionalização do voto, conjugada com a obtenção de vantagem especial – e o simples prejuízo sem as correspondentes vantagens especiais – respeitante à deliberação social puramente emulativa, que serve em exclusivo para causar danos gratuitos à sociedade ou aos restantes sócios. A invalidade da deliberação está dependente, no entanto, de um pressuposto subjetivo – a intenção ou vontade de obter vantagens especiais, que podem ser materiais ou de outra natureza, ou de causar prejuízos à sociedade ou aos sócios maioritários – e de um pressuposto objetivo – a adequação ou aptidão dessa deliberação social para alcançar o propósito pretendido (cf. o Ac. do TRp de 17/6/1999), in www.dgsi.pt e Olindo dos Santos Geraldes, op. cit.). Aqui chegadas, reiteramos que uma deliberação só será anulável, por abusiva, quando o seu contexto envolva as proporções de um excesso manifesto de flagrante e marcada iniquidade (cf. Ac. do TRP de 17/6/1997, CJ III, pág. 220 e Ac. da RC de 29/1/2002, in www.dsgi.pt). Feitas estas considerações genéricas – já longas -, foquemos a nossa objetiva sobre o caso vertente: Afastada qualquer invalidade formal da deliberação tomada na assembleia geral de 8/3/2024, importa apurar se a mesma poderia ser considerada anulável. Para isso, há que olhar para a causa de pedir e para a alegação da Autora. Vejamos excertos da alegação: “beneficiando” os “acionistas” de um “leque de facilidades de regalias, a que correspondem uma encapotada distribuição de lucros”, “não têm, nem sentem necessidade alguma de proceder à distribuição de lucros, ou sequer de os impetrar” “seriam classificados como persona non grata, egoísta e insensível” “a sociedade encontra-se monopolizada e asfixiada pelos restantes acionistas maioritários, nomeadamente, a decisão de não distribuir lucros” Existe “abuso de direito”, “é contrária aos limites da boa fé” e “do fim económico ou social do direito” e “vai contra um direito da acionista minoritária” Ora, da alegação assim feita não se vislumbra que a deliberação possa ter, por qualquer forma, prejudicado a sociedade Ré, dado que, por um lado, nem isso é alegado, por outro, nem a deliberação de constituição de reservas poderia, à partida, prejudicar a sociedade (mas sim beneficiá-la). Ademais, é a própria Autora quem alega que a sociedade teve em 2022 um acréscimo de autonomia em 0,6 e que passou de um resultado líquido de €1805767,00 no ano de 2021 para um resultado líquido de €3106965,00 no exercício de 2022. Resta saber se a alegação supra é suficiente para se apurar que a deliberação visou tão-só prejudicar a sócia Autora, satisfazendo interesses egoístas dos outros sócios. E, neste particular, a alegação da Autora afigura-se-nos vaga e genérica. Na verdade, apesar da alegação de intenções que perpassa a petição inicial, não foi alegado que os demais sócios tenham, através de deliberações sucessivas de não distribuição de lucros ou dividendos, querido prejudicar a Autora. O que a Autora se limita a alegar é que os outros acionistas, por serem administradores, beneficiam de remuneração e outros benefícios, não fazendo questão em ver distribuídos os lucros da sociedade e não querendo também contrariar o patriarca fundador, ao contrário de si que precisa desse valor. E diz mesmo que esta é a primeira vez que votou contra as propostas da administração. Ou seja: este foi a primeira aplicação de resultados que considerou questionável. Não vemos, pois, que tenha sido alegada qualquer prática reiterada no tempo e excessiva (por não terem sido alegados factos relativos à existência de lucros não distribuídos nos exercícios anteriores e aos valores imputados em reservas) que visasse prejudicá-la. Parece-nos que o que a Autora alega é que os demais acionistas estão confortáveis na sua posição e não que a querem prejudicar. Por outro lado, a Autora não alega factos que pudessem necessitar de prova, limitando-se a, a partir do artigo 62.º da sua petição, a remeter para arestos que dizem respeito ao exercício do direito das minorias, sem concretizar em factos como é que a sua posição de acionista minoritária foi beliscada de forma abusiva. Neste particular, permitimo-nos recordar, com interesse, o Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no Processo n.º 5397/15.... que correu termos neste Juiz ... do Tribunal do Comércio de Vila Nova de Famalicão, onde se discutiu uma situação semelhante e onde se concluiu que “o exercício do poder-dever do Juiz de convidar as partes ao aperfeiçoamento dos articulados (…) tem limitações (…) e (…) visa simplesmente o suprimento de eventuais irregularidades (que os articulados evidenciem), formais ou outras, nomeadamente as relativas a insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada”. Não cabe ao juiz “convidar a parte a apresentar um relato de onde resulte a procedência da ação, como que sugerindo a apresentação de uma história melhor”. O Juiz está, sim, na posição do leitor – jurista, é certo – que, perante a descrição de um acontecimento, deteta uma lacuna, um saldo na crónica”. Não pode o juiz perder o necessário distanciamento em relação às estratégias das partes e ao funcionamento do princípio da autorresponsabilidade. Assim sendo, e restando uma alegação de intenções vagas, nada mais resta do que julgar, desde já, improcedente a presente ação, por se tratar, não de uma alegação deficiente, mas de uma total ausência de alegação de factos que pudessem levar a suportar os efeitos jurídicos pretendidos.” *** IV.1).1. Isto dito, vejamos a resposta a dar à 1.ª questão. Para tanto, começamos por lembrar que, na sua configuração legal, a audiência prévia pode destinar-se a múltiplas finalidades, conforme decorre do disposto no n.º 1 do art. 591 do CPC, a saber: a) Realizar tentativa de conciliação, nos termos do artigo 594.º; b) Facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa; c) Discutir as posições das partes, com vista à delimitação dos termos do litígio, e suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto que ainda subsistam ou se tornem patentes na sequência do debate; d) Proferir despacho saneador, nos termos do n.º 1 do artigo 595.º; e) Determinar, após debate, a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 547.º; f) Proferir, após debate, o despacho previsto no n.º 1 do artigo 596.º e decidir as reclamações deduzidas pelas partes; g) Programar, após audição dos mandatários, os atos a realizar na audiência final, estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e designar as respetivas datas. A realização deste ato constitui, no processo comum, o regime regra, conforme decorre do disposto nos arts. 592 e 593 do CPC. O primeiro destes preceitos (“Não realização da audiência prévia”) diz em que casos não há lugar à audiência prévia, a saber: nas ações não contestadas que tenham prosseguido em obediência ao disposto nas alíneas b) a d) do art. 568; quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados. O segundo, sob a epígrafe “Dispensa da audiência prévia”, permite que o juiz dispense a audiência prévia “[n]as ações que hajam de prosseguir”, “quando esta se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo.” Em qualquer uma das hipóteses, não havendo lugar à realização da audiência prévia, o juiz profere despacho saneador (art. 595/1), despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova (art. 596/1) e despacho destinado a programar os atos a realizar na audiência final, a estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e a designar as respetivas datas (arts. 592/2 e 593/2). A dispensa da audiência prévia pelo juiz não tem carácter definitivo, dependendo sempre da atitude das partes, na medida em que qualquer uma delas pode impor a realização de tal audiência, nos termos previstos no n.º 3 do art. 593. A importância que o legislador atribui à audiência prévia, como um dos instrumentos de promoção de uma nova cultura judiciária, envolvendo todos os participantes no processo, resulta bem patente da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII (PL 521/2012, de 2012-11-22) que esteve na génese da Lei n.º 41/2013, de 26.06, que aprovou o CPC em vigor, designadamente das seguintes passagens: “O novo figurino da audiência prévia, designação ora dada à audiência a realizar após a fase dos articulados, assente decisivamente num princípio de oralidade e concentração dos debates, pressupondo a intervenção ativa de todos os intervenientes na lide, com vista a obter uma delimitação daquilo que é verdadeiramente essencial para a sua plena compreensão e justa resolução, conjugado com a regra da inadiabilidade e com a programação da audiência final, é suscetível de potenciar esse resultado desejável. (…) No que respeita à tramitação da ação declarativa, as alterações introduzidas visam assegurar a concentração processual, em termos de a lide, cumprida a fase dos articulados, se desenvolver em torno de duas audiências: a audiência prévia e a audiência final. Há um manifesto investimento na audiência prévia, entendida como meio essencial para operar o princípio da cooperação, do contraditório e da oralidade. Tem-se presente que a audiência preliminar, instituída em 1995/1996, ficou aquém do que era esperado, mas há também a convicção de que, além da inusitada resistência de muitos profissionais forenses, certos aspetos da regulamentação processual acabaram, eles próprios, por dificultar a efetiva implantação desta audiência no quotidiano forense. (…) A audiência prévia é, por princípio, obrigatória, porquanto só não se realizará nas ações não contestadas que tenham prosseguido em regime de revelia inoperante e nas ações que devam findar no despacho saneador pela procedência de uma exceção dilatória, desde que esta tenha sido debatida nos articulados.” *** 1).2. Podendo a audiência prévia cumprir múltiplas finalidades, alguma delas prejudiciais em relação a outras, exige-se que o juiz, no despacho através do qual procede ao seu agendamento, indique o respetivo objeto e finalidade (art. 591/2, 1.ª parte, do CPC) de uma forma rigorosa, em atenção às especificidades do caso concreto, pois, conforme explica Paulo Pimenta (Processo Civil Declarativo, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, pp. 271-272), o diálogo entre os intervenientes no processo, que se pretende implementar através da audiência prévia, “só será proveitoso se todos forem preparados para o mesmo. Ora, essa preparação supõe que as partes e seus mandatários saibam o que vai acontecer, o que vai discutir-se, o que vai tratar-se na audiência prévia. Disso devem ser informados pelo despacho que marca a audiência.”Concretizando esta formalidade do ato de convocação da audiência prévia, o autor citado escreve que[,] “se pretender procurar a conciliação das partes, o juiz deve referir isso no despacho. Se pretender ouvir as partes acerca de uma exceção dilatória, deve identificar a exceção. Se a audiência tiver por fim esclarecer este ou aquele ponto de facto alegado nos articulados, deve ser dada nota disso. Se o juiz projetar conhecer do mérito da causa, e houver vários pedidos formulados (originais ou reconvencionais) ou houver exceções perentórias, é indispensável indicar de qual aspeto do mérito da causa pretende conhecer-se, para que as partes preparem a sua intervenção sobre esse tema.” E conclui que “[n]ão é adequado, nem cumpre a lei, o despacho que contenha singelas referências genéricas ou que se limite a remeter para as alíneas do n.º 1 do art. 591 ou a reproduzi-las.” No mesmo sentido, aponta a lição de outros autores. Assim, Jorge Augusto Pais de Amaral (Direito Processual Civil, 13.ª ed., Coimbra: Almedina, 2017, p. 277), escreve que “[c]om a indicação do objeto e finalidade da audiência prévia pretende-se evitar que as partes sejam surpreendidas com a discussão de finalidades não previamente fixadas.” Gabriela Cunha Rodrigues (“A ação declarativa comum”, Lusíada. Direito, Lisboa, n.º 11, 2013, pp. 43-66) escreve que “o juiz deve ser transparente quando designa a data para a audiência prévia, indicando o seu objeto e as suas finalidades.” Ainda na vigência do CPC de 1961, na redação dada pelo DL n.º 329-A/95, de 12.12, tendo em vista a então denominada audiência preliminar (art. 508-A/3), António Abrantes Geraldes (Temas da Reforma do Processo Civil, II, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2000, p. 106) escrevia que “[d]eve o juiz indicar o objeto e finalidade da audiência preliminar no despacho que determine a sua realização para que as partes possam preparar a sua defesa e cooperar com vista à resolução das questões e remoção dos obstáculos de natureza processual ou de ordem substantiva que se suscitem.” J. P. Remédio Marques (A Ação Declarativa à Luz do Código Revisto, 3.ª ed., pp. 537-538, depois de frisar que “o juiz, no despacho onde marque esta audiência, deverá indicar o seu objeto e finalidade”, apresentava, em rodapé, o exemplo de um despacho que entendia ser adequado). Neste enquadramento, entendeu-se, em RE 22.02.2018 (1048/14.3TBPLB.E1), Mata Ribeiro, que não é de todo adequado, nem cumpre a lei, o despacho de agendamento de audiência prévia que contém apenas singelas referências genéricas ou que se limita a remeter para as alíneas do n.º 1 do art. 591. do CPC ou a reproduzi-las, acrescentando-se que, na concreta situação em apreço, “[o] juiz ao ter previsto poder conhecer da exceção perentória da prescrição, no âmbito do saneador” devia ter indicado essa finalidade no despacho que designou a audiência prévia, para assim “alertar designadamente o autor de modo a que este tivesse a possibilidade de poder exercer, nela, efetivamente, o contraditório sobre a problemática da prescrição, uma vez que tal faculdade não lhe tinha sido, ainda permitida, devido ao facto da ação não ser de simples apreciação negativa e não ter sido deduzida reconvenção.” A nosso ver, o grau mínimo de rigor a observar no agendamento da audiência prévia deve ser aferido casuisticamente, tendo em conta as particularidades da concreta ação. Será menor numa ação em que apenas intervêm um autor e um réu, em que a causa de pedir, embora composta por um complexo fáctico, se apresenta de simples apreensão e redunda num único pedido, e em que não foi deduzida defesa por exceção. Já será maior numa ação em que intervêm múltiplas partes, em litisconsórcio e/ou coligação, em que foram invocadas múltiplas causas de pedir, condensadas em pedidos cumulados, e em que os réus, ou outros intervenientes, apresentaram defesa por exceção, dilatória e/ou perentória, ou formularam mesmo pedidos reconvencionais. *** 1).3. A convocação da audiência prévia sem que o juiz especifique, nos termos sobreditos, o seu objeto e a sua finalidade redunda, como vimos, na omissão de uma formalidade prescrita pela lei. A questão que se coloca é a de saber se isso inquina – e em que termos – os atos que, subsequentemente, venham a ser praticados na audiência prévia, mais concretamente o despacho saneador em que o juiz antecipe o (não anunciado) conhecimento da causa. Não estando prevista na lei uma específica consequência, dir-se-á, numa primeira abordagem, que a situação deve ser enquadrada no disposto no art. 195 do CPC, onde se diz que “[f]ora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.” Mas dizer isto, assim dando a entender que a via adequada à impugnação é a incidental, através de reclamação para o juiz (art. 196, parte final), não é suficiente. Como é bom de ver, em tais casos, a irregularidade apenas fica consumada, na verdade, quando, na audiência prévia, o juiz conhece do mérito da causa. Se assim é, então podemos dizer que a omissão da formalidade – a não especificação no despacho de convocação da audição prévia do objeto e da finalidade da diligência – se projeta num ato ulterior – aquele em que o juiz, na audiência prévia, entende (erradamente) estarem reunidos os pressupostos que lhe permitem decidir do mérito da causa. Este é, por definição, um ato jurisdicional, que Paulo Ramos de Faria / Nuno de Lemos Jorge (“As outras nulidades da sentença cível”, Julgar Online, setembro de 2024, p. 14) sugestivamente denominam de “decisão de decidir.” Nesta perspetiva, estando em causa um erro cometido nessa decisão pressuponente da decisão da causa propriamente dita, resultado de uma errada avaliação da realidade processual – seja por o tribunal não se ter apercebido que a formalidade não havia sido observada no iter, seja por entender que isso não constituía obstáculo à decisão do mérito –, a via adequada à sua arguição é a recursiva. A explicação é dada em RG 18.01.2024 (1731/23.2T8GMR-J.G1[1]), do presente Relator, onde se escreve que há, na verdade, que considerar duas situações completamente distintas: (i) aquela em que o tribunal simplesmente pratica um ato não admitido ou omite um ato devido; (ii) aquela em que o tribunal decide que um ato deve ou não deve ser praticado. Só no primeiro caso é cometida uma nulidade processual. É o que sucede, por exemplo, com a falta de citação do réu (art. 187, a), e 188 CPC)) ou a nulidade desta citação pela falta da junção da petição inicial (art. 191/1 CPC). No segundo, o que há é uma decisão ilegal. No caso em que o tribunal decide incorretamente que o ato deve ser omitido ou praticado, ainda podem ser consideradas duas situações: (i) a decisão incide apenas sobre a omissão do ato legalmente devido; (ii) a decisão incide sobre a omissão do ato legalmente devido e sobre outras questões (como, por exemplo, o conhecimento do mérito da ação). A resposta é a mesma para ambas as situações: em qualquer delas há uma decisão ilegal sobre a omissão do ato devido e em nenhuma delas tem sentido falar de nulidade processual. O tribunal comete uma nulidade processual quando omite um ato devido ou pratica um ato indevido, não quando entende incorretamente que o ato deve ser omitido ou praticado. A este propósito convém recordar uma das mais conhecidas passagens de Alberto dos Reis (Comentário ao Código de Processo Civil, II, Coimbra: Coimbra Editora, 1945, p. 507): "A arguição da nulidade só é admissível quando a infração processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do ato ou da formalidade, o meio processual para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou a reclamação por nulidade, é a impugnação do respetivo despacho pela interposição do recurso competente. Eis o que a jurisprudência consagrou nos postulados; dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se." Repare-se que Alberto dos Reis fala de “reagir contra a ilegalidade” (não contra a nulidade) quando “há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do ato ou da formalidade” e nunca relaciona a nulidade processual com uma decisão. Miguel Teixeira de Sousa (“Dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se", disponível no Blog do IPCC), ilustra a distinção da seguinte forma: “basta verificar que não se pode dizer que, se o tribunal decidir dispensar o juramento da testemunha, isso é a mesma coisa que o tribunal, pura e simplesmente, omitir esse juramento. A decisão errada sobre a dispensa do juramento e a omissão pura e simples desse juramento são coisas distintas: no primeiro caso, há uma decisão ilegal; no segundo, há um nullum e, por isso, uma nulidade processual. Generalizando: a decisão ilegal sobre a omissão de um ato não pode ser confundida com a omissão ilegal do ato.” Assim, como sintetiza Alberto dos Reis, "[d]esde que um despacho tenha mandado praticar determinado ato, por exemplo, se porventura a lei não admite a prática desse ato[,] é fora de dúvida que a infração cometida foi efeito do despacho; por outras palavras, estamos em presença dum despacho ilegal, dum despacho que ofendeu a lei de processo. Portanto, a reação contra a ilegalidade traduz-se num ataque ao despacho que a autorizou ou ordenou; ora o meio idóneo para atacar ou impugnar despachos ilegais é a interposição do respetivo recurso.” Ao mesmo resultado prático – a impugnação por via de recurso – chegamos se, adaptando a tese preconizada por Miguel Teixeira de Sousa (“Por que se teima em qualificar a decisão-surpresa como uma nulidade processual?”, disponível no Blog do IPPC ) para as situações em que o juiz conheceu indevidamente de uma determinada questão por falta de audição prévia das partes – assim proferindo uma decisão-surpresa –, considerarmos que, ao conhecer do mérito da causa numa audiência prévia que não havia sido convocada especificadamente para essa finalidade, o juiz conheceu de questão de que não podia conhecer, com a consequente nulidade da decisão proferida por excesso de pronúncia, ut art. 615/1, d). Com efeito, a nulidade da sentença tem um regime próprio de arguição, previsto no n.º 4 do art. 615. Assim, (a) se a sentença admitir recurso ordinário, a nulidade deve ser arguida como fundamento autónomo deste, perante o tribunal ad quem; (b) se a sentença não admitir recurso ordinário, a nulidade deve ser arguida perante o tribunal que proferiu a sentença, através de reclamação. Conforme se explica em RG 15.02.2024 (548/22.6T8VNF.G1), do presente Relator, na primeira hipótese, interposto o recurso em que é arguida a nulidade, compete ao juiz apreciá-la no próprio despacho em que se pronuncia sobre a admissibilidade do recurso (art. 617/1, 1.ª parte). Nesta sequência, se o juiz indeferir a arguição não cabe recurso dessa decisão, prosseguindo o recurso para apreciação da questão (art. 617/1, 2.ª parte). Já se o juiz suprir a nulidade, considera-se o despacho proferido como complemento ou parte integrante da sentença, ficando o recurso interposto a ter como objeto a nova decisão (art. 617/2). Neste caso, o recorrente pode, em dez dias, desistir do recurso, alargar ou restringir o respetivo âmbito, em conformidade com a alteração introduzida, permitindo-se que o recorrido responda a tal alteração, em igual prazo (art. 617/3). Se o recorrente, por ter obtido o suprimento pretendido, desistir do recurso, pode o recorrido, no mesmo prazo, requerer a subida dos autos para decidir da admissibilidade pretendida (art. 617/4). Como referem Lebre de Freitas / Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2019, p. 746), o termo admissibilidade é incorreto: “o tribunal superior pronunciar-se-á, sim, sobre o conteúdo da alteração, isto é, sobre o novo conteúdo da sentença (que a alteração integra) e não sobre se era admissível alterar a sentença.” Na segunda hipótese, arguida a nulidade perante o juiz que proferiu a sentença, por dela não caber recurso ordinário, o juiz profere decisão definitiva sobre a questão suscitada; no entanto, se a alterar, a parte prejudicada com a alteração pode recorrer, mesmo que a causa esteja compreendida na alçada do tribunal, não suspendendo o recurso a exequibilidade da sentença (art. 617/6, 1.ª parte). Não procedendo a parte prejudicada de qualquer um desses modos, permite que a nulidade em questão fique sanada. Diga-se, aliás, que não se trata, em rigor, de uma nulidade, mas de uma anulabilidade, uma vez que o Tribunal não pode conhecer dela ex officio. Este entendimento – do não conhecimento oficioso das referidas nulidades previstas nas alíneas b) a e) do n.º 1 do art. 615 do CPC – estriba-se na circunstância de várias disposições legais (arts. 614/1, 615/2 e 4 e 617/1 e 6, todos do CPC) preverem, em determinadas circunstâncias, a possibilidade do seu suprimento oficioso, assim indicando que o conhecimento do vício constituirá a exceção e não a regra e que, em contrapartida, há necessidade de alegação. Neste sentido, na jurisprudência, STJ 30.11.2021, (1854/13.6TVLSB.L1.S1), Maria da Graça Trigo, RG 1.02.2018 (1806/17.7T8GMR-C.G1), José Amaral, RG 17.05.2018 (2056/14.0TBGMR-A.G1), Maria João Pinto de Matos, RG 7.02.2019 (5569/17.8T8BRG.G1), José Alberto Moreira Dias, e RG 19.01.2023 (487/22.0T8VCT-A.G1), José Carlos Pereira Duarte; na doutrina, Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado cit., pp. 735-736, e Rui Pinto, “Os meios reclamatórios comuns da decisão civil (arts. 613.º a 617.º do CPC)”, Julgar Online, maio de 2020, p. 10. *** 1).4. Transpondo estas considerações genéricas para o caso que nos ocupa, temos de reconhecer que o despacho de agendamento da audiência prévia, proferido no dia 20 de setembro de 2024, não foi elaborado com o rigor que seria desejável. Na verdade, nesse despacho fez-se uma mera remissão, em bloco, para o art. 591/1 do CPC, onde se enunciam as várias finalidades que, em abstrato, podem ser realizadas na audiência prévia, não se especificando qualquer uma delas, mais concretamente aquelas que, depois, foram cumpridas pelo Tribunal: primeiro, a (frustrada) tentativa de conciliação e, depois, a discussão de facto e de direito, com vista ao conhecimento, in totum, do mérito da causa, do que resultou terem ficado prejudicadas as demais finalidades.Cremos, no entanto, que ainda assim, as concretas circunstâncias da causa não obstavam – nem obstaram – a que o objetivo prosseguido pelo legislador fosse alcançado com o teor do dito despacho, o que vale por dizer que este se apresenta, não obstante, como suficiente. É que, por um lado, da remissão feita para o art. 591/1 do CPC, sem exclusão de qualquer uma das suas alíneas, resultava que o Tribunal pretendia desenvolver esforços no sentido da conciliação das partes e que, não produzindo tais esforços resultado positivo, considerava ser possível conhecer antecipadamente, em sede de despacho saneador, do mérito da causa. Por outro lado, esta antecipação do conhecimento apenas podia recair sobre as duas únicas questões jurídicas colocadas pela Recorrente como causa de pedir da ação – grosso modo, a nulidade da deliberação social impugnada, com fundamento na sua ilegalidade, por afronta ao disposto no art. 294 do CSC, e, subsidiariamente, a anulabilidade da mesma deliberação, com fundamento na sua natureza abusiva –, as quais já haviam sido debatidas nos articulados das partes. Acresce que o debate que as partes travaram nos respetivos articulados sobre essas questões já havia incluído a discussão sobre a possibilidade de antecipação do conhecimento, colocada pela Recorrida na contestação, articulado que mereceu resposta por parte da Recorrente, não obstante não haver, no caso, lugar a um terceiro articulado (cf. 584 do CPC), nem sequer ao exercício do contraditório quanto a exceções, ut art. 3.º/4 do CPC, pela simples razão de que não foi aduzida – pelo menos de forma especificada (cf. art. 572, c), do CPC) – matéria enquadrável neste conceito. Vale isto por dizer que, atentas as concretas circunstâncias do caso, as partes – rectius, os seus ilustres mandatários –, quando foram notificadas do despacho de agendamento da audiência prévia, tiveram todas as condições para compreenderem, a um tempo, que a audiência prévia podia ter como finalidade a discussão dos aspetos de facto e de direito com vista ao conhecimento antecipado do mérito da causa e que este passaria, necessariamente, pelas referidas questões, na verdade as únicas que foram colocadas à apreciação do julgador. Isto não obstante o conteúdo menos rigoroso – mas ainda assim suficiente – do despacho de agendamento. Sintomático disto mesmo é que a Recorrente e a Recorrida, notificadas do dito despacho, não expressaram qualquer dúvida em relação a ele. Na sequência, realizou-se a audiência prévia, diligência em que estiveram presentes a Recorrente e os ilustres mandatários constituídos pelas partes. Aberta a diligência, realizou-se a tentativa de conciliação e, frustrada esta, o Tribunal comunicou a sua intenção de antecipar o conhecimento do mérito da causa, após o que facultou aos ilustres advogados a possibilidade de debaterem os aspetos fácticos e jurídicos, possibilidade essa que os mesmos não enjeitaram, usando da palavra sem que qualquer um deles tivesse dito não estar preparado para esse efeito. Sintomático é, também, o facto de a Recorrente apenas ter arguido a irregularidade através do presente recurso e, ainda assim, sem indicar em que termos ela prejudicou a sua participação na audiência prévia e, por essa via, influenciou o exame ou a decisão da causa. Para melhor se compreender a inocuidade da irregularidade cometida, basta que se compare a situação dos autos com aquela outra que foi apreciada no citado RE 22.02.2018. Assim, na situação dos autos está em causa o conhecimento antecipado do mérito da causa numa audiência prévia em que essa possibilidade foi anunciada de forma genérica, mas em que, não obstante, as partes participaram da discussão de facto e de direito, assim se cumprindo o desígnio do legislador com a imposição da formalidade omitida. Já na situação apreciada pela RE estava em causa o conhecimento, não anunciado de forma especificada no despacho de convocação da audiência prévia, de uma exceção perentória que havia sido invocada pelo réu na contestação, sem que ao autor tivesse sido facultado, em momento algum, o exercício do contraditório, ou sequer a possibilidade de discutir os respetivos aspetos fácticos e jurídicos, assim participando no processo de tomada da decisão. Deste modo, temos de concluir que, independentemente do enquadramento dogmático da questão, o Tribunal de 1.ª instância, ao “decidir decidir” o mérito da causa, naquela concreta audiência prévia, não incorreu em qualquer erro de julgamento ou nulidade por excesso de pronúncia. A resposta à 1.ª questão é, portanto, negativa. *** 2).1. Passamos para a segunda questão.Como vimos, a Recorrente entende que a decisão recorrida deve ser qualificada como uma decisão-surpresa, o que, salvo o devido respeito, justifica com o recurso a chavões sem cuidar de os relacionar com a situação concreta em termos que permitam autonomizar a arguição desta nulidade da arguição da nulidade que conhecemos no ponto anterior. De qualquer modo, diremos que o princípio da proibição das decisões-surpresa constitui uma manifestação do princípio do contraditório. Este, por sua vez, é uma emanação do princípio da equidade previsto no art. 20 da Constituição da República, próprio do carácter democrático do processo. O CPC de 1961, na sua versão anterior à reforma de 95/96, levada a cabo pelo DL n.º 329-A/95, de 12.12, e pelo DL n.º 180/96, de 25.09, apenas previa o sentido clássico do princípio do contraditório, situando-o num plano estritamente horizontal, assim explicado por Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 379): “[o] processo reveste a forma de um debate ou discussão entre as partes (audiatur et altera pars), muito embora se admita que as deficiências e os transvios ou abusos da atividade dos pleiteantes sejam supridos ou corrigidos pela iniciativa e autoridade do juiz. Cada uma das partes é chamada a deduzir as suas razões (de facto e de direito), a oferecer as suas provas, a controlar as provas do adversário e a discretear sobre o valor e resultados de umas e outras.” É com este sentido – o de defesa, oposição, resistência aos factos, às provas e aos fundamentos jurídicos do processo invocados pela contraparte e a respetiva exceção – que o princípio do contraditório está enunciado nos números 1 e 2 do art. 3.º do atual CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26.06, redundando assim numa proibição de indefesa (Carlos Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, I, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2004, p. 16). Com a referida Reforma, a previsão do princípio do contraditório na lei ordinária foi ampliada a uma dimensão vertical, através da introdução da seguinte fórmula legal: “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.” Esta redação foi mantida, ipsis verbis, no art. 3.º/3 do atual CPC. Impõe-se, assim, ao juiz a audição das partes quando pretenda tomar uma decisão inesperada sobre qualquer questão de direito ou de facto. Dito de outra forma, o juiz não pode tomar uma decisão que não seja previsível pelas partes sem antes lhes dar oportunidade de se pronunciarem, com isso participando no processo decisório.[2] Nas palavras de Lebre de Freitas (Introdução ao Processo Civil: Conceito e Princípios Gerais à luz do Novo Código, 4.ª ed., Coimbra: Gestlegal, 2021, pp. 126-127), “[s]ubstitui-se hoje uma noção mais lata de contraditoriedade, com origem na garantia constitucional do rechtliches Gehor germânico, entendida como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.” Daqui decorre que, nesta dimensão, o contraditório é, também, influência na decisão, como se reconhece em RG 5.12.2019 (858/15.9T8VNF-A.G1) e 22.06.2023 (3731/21.8T8BRG-A.G1), ambos relatados por José Alberto Moreira Dias. A consagração legal do princípio impõe a sua observância, tanto no que concerne à matéria de facto, como à matéria de direito. No que tange à primeira, implica que, nas situações em que é lícito ao juiz introduzir oficiosamente factos no processo (art. 5.º/2 do CPC[3]), deve ser permitido que ambas as partes se pronunciem sobre os seus pressupostos e a sua existência. Pressupõe também que as partes possam pronunciar-se, designadamente nos debates orais, sobre os termos em que a prova deve ser apreciada (art. 604/3, e), e 5 do CPC). No que tange à segunda, implica que, “antes da sentença, às partes seja facultada a discussão efetiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie” (Lebre de Freitas, Introdução cit., p. 126), de tal modo que se o juiz encontrar uma solução jurídica do litígio que não tenha sido vislumbrada pelas partes ao longo do processo – isto é, uma decisão para a qual as “exposições, factuais e jurídicas, não foram tomadas em consideração” (RC 13.11.2012, 572/11.4TBCND.C1, José Avelino Gonçalves) – deve, antes de proferir a sentença, informá-las e permitir-lhes a emissão de pronúncia. *** 2).2. O que antecede serve de mote para definirmos o que deve entender-se por decisão-surpresa.Sobre isto, seguindo a sistematização de Luís Correia de Mendonça (“O contraditório e a proibição das decisões-surpresa, ROA, ano 82, V. 1-2, pp. 185-239), encontramos essencialmente duas correntes: a anti-formalista e a garantista. Para a primeira, defendida por Pereira Baptista (Reforma do Processo Civil, Princípios Fundamentais, Lisboa: Lex, 1997, pp. 37-38), Carlos Lopes do Rego (Comentário cit., p. 33) e Paulo Ramos de Faria / Ana Luísa Loureiro (Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2014, p. 32), a decisão-surpresa não se confunde com a suposição ou expectativa que as partes possam ter feito ou acalentado quanto à decisão. Assim, não se pode falar de decisão-surpresa quando as decisões, de facto ou de direito, devam ser conhecidas pelas partes como viáveis, como possíveis. Dito de outra forma, só há decisão-surpresa quando se trate de apreciar argumentos jurídicos suscetíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não for exigível que a parte interessada os tivesse perspetivado durante o processo, tomando oportunamente posição sobre eles. Para a segunda, defendida por Lebre de Freitas (Introdução cit., pp. 126-127), a contrariedade, no processo civil, deve ser perspetivada como “garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”. Caso exista algum argumento, não debatido pelas partes, em que o juiz entenda dever basear nela a sua decisão, deve previamente convidar ambas as partes a sobre ele tomarem posição, só estando dispensado de o fazer em casos de manifesta desnecessidade (art. 3.º/3), circunscrita às situações simples e em que não exista controvérsia. O autor faz, porém, uma ressalva relativa aos arts. 552/1, d), e 572, b), que impõem que o autor, na petição inicial, exponha os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à sua ação e que o réu, na contestação, exponha as razões de facto e de direito por que se opõe à pretensão do autor, respetivamente. Estes dois preceitos consagram ónus cuja inobservância “pode ter como consequência a inaplicabilidade da vertente do princípio do contraditório ora considerada”, o que só acontecerá com a total omissão de tal indicação, sendo sancionada, em paralelismo com a situação de falta absoluta de causa de pedir. Na jurisprudência tem prevalecido a primeira corrente, conforme se pode constatar através dos arestos do STJ enumerados por Luís Correia de Mendonça (loc. cit., pp. 21-29). Acrescenta-se, ao nível das Relações, RP 4.05.2022 (475/21.4T8STS-B.P1), Manuel Domingos Fernandes, no qual se definiu decisão-surpresa como a “solução dada a uma questão que, embora pudesse ser previsível, não tinha sido configurada pela parte, sem que esta tivesse obrigação de prever que fosse proferida.” Parte-se aqui do pressuposto de que as partes têm o ónus de prever algumas questões. Nesta medida, escreve-se que “não quis, pois, a lei excluir da decisão as subsunções que juridicamente são possíveis embora não tenham sido pedidas, antes estabeleceu que a concreta decisão a tomar tem de, previamente, ser prevista pelas partes, tendo por isso, de lhes ser dada a priori possibilidade de se pronunciarem sobre o novo e possível enquadramento jurídico”, o que faz todo o sentido, na medida em que, tal como o acórdão refere, o juiz não se encontra vinculado ao enquadramento jurídico feito pelas partes; tem ele mesmo o poder funcional de enquadrar juridicamente os factos. Evidentemente que, se no caso concreto, a figura a que o juiz chegou for previsível, pode considerar-se manifestamente desnecessário chamar as partes para se pronunciarem, pois as partes não foram diligentes, adotaram uma atitude negligente. Se esse novo enquadramento for marcadamente inesperado, já deve ser considerado que não é manifestamente desnecessário ouvir as partes. Acrescenta-se também o já citado RC 13.11.2012 (572/11.4TBCND.C1), no qual, depois de se ter considerado que o cumprimento do princípio do contraditório não se reporta, pelo menos essencial ou determinantemente, às normas que o juiz entende aplicar, nem à interpretação que delas venha a fazer, mas antes aos factos invocados e às posições assumidas pelas partes, se concluiu que “a decisão-surpresa a que se reporta o artigo 3º, nº 3 do CPC, não se confunde com a suposição que as partes possam ter feito nem com a expectativa que elas possam ter acalentado quanto à decisão quer de facto quer de direito.” Acrescenta-se, finalmente, no mesmo sentido, na jurisprudência desta Relação, os Acórdãos de 19.11.2029 (899/18.4T8VCT.G1), José Alberto Moreira Dias, 21.01.2021 (1202/18.9T8BGC-A.G1), Rosália Cunha, 30.06.2022 (199/21.2T8EPS.G1), Alcides Rodrigues, 7.06.2023 (2155/22.4T8BRG.G1), Sandra Melo, e 21.09.2023 (2445/22.6T8GMR.G1), Paulo Reis. A nosso ver, a tese garantista desvaloriza o princípio da autorresponsabilidade das partes, sobretudo nos casos em que estas estão representadas por advogado, sendo, assim, de exigir que nos momentos processuais próprios, designadamente nos articulados, se pronunciem sobre os cenários possíveis, dando-lhes o adequado enquadramento jurídico. Nesta medida, às partes apenas será legítimo invocar a surpresa quando, atentas as circunstâncias do caso, a decisão não fosse, de todo, previsível para elas. Assim sucederá quando a solução do juiz se apresente como inovadora ou, nas palavras de Paulo Ramos de Faria / Ana Luísa Loureiro (Primeiras Notas cit., p. 32), quando corporize “uma subsunção notada pela sua originalidade, pelo seu caráter invulgar e singular, objetivamente considerado”, e, bem assim, quando toda a discussão pretérita tenha sido feita à luz de um determinado instituto jurídico, ainda que na base de equívocos, sem qualquer alerta por parte do tribunal, e, na decisão, o juiz opte por uma outra via, nunca antes cogitada. *** 2).3. Isto dito, diremos que, no caso, a problemática pode ser analisada em duas dimensões: na da decisão pressuponente – a referida decisão de decidir naquela concreta audiência prévia; e na da decisão do mérito da causa propriamente dita.Na primeira dimensão vale o que já foi dito: apesar de tudo, o conteúdo do despacho de convocação da audiência prévia foi suficiente para anunciar a intenção de antecipar, para a audiência prévia, a decisão da causa; a concretização dessa intenção foi precedida de debate entre as partes, espaço privilegiado para o exercício do contraditório, sem que qualquer delas tivesse dito não estar preparada para esse efeito. Assim, não é correto dizer-se que a “decisão de decidir” do Tribunal a quo não foi precedida de discussão com as partes. Na segunda dimensão, pura e simplesmente não se vislumbra – e nem sequer é afirmado – que o Tribunal a quo, na fundamentação da decisão recorrida, tenha adotado uma via na resolução do litígio que constitui o objeto da ação diferente daquelas que foram preconizadas pelas partes nos respetivos articulados e, bem assim, no debate a que houve lugar em sede de audiência prévia. Isto é quanto basta para se afastar, nas duas apontadas dimensões, a qualificação da decisão recorrida como uma decisão-surpresa. Deste modo, sem necessidade de outras considerações, a resposta à 2.ª questão é também negativa. *** 3).1. Passamos para a terceira questão.Aqui entende a Recorrente que o Tribunal a quo não podia ter julgado a ação improcedente com fundamento em insuficiências na alegação da matéria de facto constitutiva da causa de pedir sem que previamente a tivesse convidado as suprir tais insuficiências. Diz o n.º 4 do art. 590 do CPC, conjugado com o precedente n.º 2, que, findos os articulados, incumbe ao juiz “convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.” Estão em causa, de acordo com a terminologia de Paulo Pimenta (Processo Civil Declarativo cit., pp. 253-255), os articulados imperfeitos por uma de duas razões: por serem faticamente insuficientes ou por serem faticamente imprecisos. Os primeiros são aqueles “em que a exposição fáctica, permitindo embora determinar ou descortinar a causa de pedir ou a exceção invocada, não se revela suficiente ou bastante para o preenchimento da figura em causa, isto é, não contém todos os factos necessários para que possa operar-se a subsunção na previsão da norma jurídica (ou normas jurídicas) de que a parte quer prevalecer-se.” Os segundos são aqueles em que “a narração dos pontos de facto aí vertidos suscita dúvidas, seja porque não é clara ou não é precisa, seja porque é vaga ou obscura, seja porque é ambígua ou incoerente”, seja ainda porque assenta em formulações de teor conclusivo ou que são mera reprodução do texto legal (Paulo Pimenta, idem). Em qualquer uma dessas situações, o juiz deve proferir despacho de convite ao aperfeiçoamento. Na primeira, “por entender que, na sua alegação, a parte omitiu factos (factos essenciais, note-se) que era suposto ter articulado, face à estratégia processual por si assumida” (Paulo Pimenta, idem); na segunda, por entender que a alegação da parte carece de ser clarificada ou substanciada. Como se salienta em RG 9.01.2025 (6315/22.0T8VNF-E.G1), Rosália Cunha, em que o ora Relator interveio como adjunto, “o despacho de aperfeiçoamento dos articulados não é discricionário, estando afastada a possibilidade de o juiz optar entre proferir ou não tal despacho, posto que se trata de um despacho com caráter vinculado que tem obrigatoriamente que ser proferido desde que se verifique a hipótese normativa.” Em qualquer uma das apontadas situações, o convite ao aperfeiçoamento dos articulados tem como pressuposto que existe “um limite fáctico mínimo” (Paulo Pimenta, idem), composto pelos factos que permitem fundamentar o pedido à luz do enquadramento jurídico feito pelo autor – “as razões de direito que servem de fundamento à ação”, no dizer do art. 552/1, d), do CPC – e, assim, individualizar a ação. Sem esse limite fáctico mínimo a petição inicial será inepta, por falta de causa de pedir (art. 186/2, a), do CPC). A propósito, RG 19.12.2023 (7057/18.6T8BRG-A.G1), do presente Relator. Compreende-se que assim seja: como explica Paulo Pimenta (Processo Civil Declarativo cit., p. 254), o “convite ao aperfeiçoamento procura completar o que é insuficiente ou corrigir o que é impreciso, na certeza de que a causa de pedir está lá (na petição) e é percetível (inteligível). Apenas sucede que não foram alegados todos os elementos fácticos que a integram, ou foram-no em termos pouco precisos. Daí o convite ao aperfeiçoamento, destinado a completar ou a corrigir um quadro fáctico já traçado nos autos. Coisa diversa, e afastada do âmbito do n.º 4 do art. 590, seria permitir à parte, na sequência desse despacho, apresentar ex novo um quadro fáctico até então inexistente ou de todo impercetível (o que, aqui, equivale ao mesmo).” *** 3).2. À semelhança do defendido a propósito da 1.ª questão, diremos que uma decisão de improcedência da ação – ou, por identidade de razões, de uma exceção invocada pelo réu – baseada na insuficiência ou na imprecisão da matéria de facto, sem que o juiz tivesse observado previamente o dever que lhe é imposto pelo n.º 4 do art. 590 do CPC, é necessariamente antecedida de “um julgamento pressuponente no sentido de não existir nenhuma deficiência na alegação ou no sentido de tal deficiência não impedir o julgamento da causa”, conforme escrevem Paulo Ramos de Faria / Nuno de Lemos Jorge (loc. cit., pp. 61-62) que, em, coerência, concluem que, “[n]o primeiro caso e, por regra, no segundo caso, este julgamento traduz um error in judicando sobre uma questão adjetiva: perante a concreta (deficiente) alegação produzida, o tribunal identifica mal a solução legal, decidindo logo a causa, em vez de promover a superação do vício da articulação. A errada escolha da solução preconizada pela lei processual é, pois, inerente ao julgamento efetuado, assim ficando abertas as portas à sua impugnação por via da apelação, sem necessidade da afirmação de qualquer tipo de nulidade do ato decisório.” De modo diferente, João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, II, Lisboa: AAFDL, 2022, p. 84), entendem que “[o] juiz que não convida ao aperfeiçoamento e decide desfavoravelmente à parte com base numa deficiência que podia ter sido corrigida deixa de praticar um ato que não devia ter omitido (art. 195/1). No entanto, a omissão só se torna patente no momento do proferimento da decisão em que o tribunal decide contra a parte com base na deficiência – ou seja, no momento em que o tribunal decide utilizando matéria que, atendendo à falta de convite ao aperfeiçoamento, não podia ter conhecido –, pelo que a decisão é nula por excesso de pronúncia (art. 615/1, d)).” No caso, a existência de um ato de julgamento é bem evidente posto que o Tribunal de 1.ª instância teve o cuidado de frisar, na fundamentação da decisão recorrida, que, no seu entendimento, não estamos perante uma situação em que a petição inicial se apresente como insuficiente ou imprecisa, mas perante um caso em que a causa de pedir, adrede gizada de forma esgotante nos seus contornos fácticos, se apresenta como inconcludente no sentido de que não integra a previsão das normas jurídicas em que a Recorrente baseia a sua concreta pretensão de tutela jurisdicional. Deste modo, não estamos perante uma qualquer nulidade da sentença e tudo redunda, afinal, em saber se a dita causa de pedir é ou não inconcludente, o que corresponde à 4.ª questão elencada. Caso se conclua pela negativa, com a consequente revogação da decisão recorrida e o prosseguimento da ação, será então de ponderar a necessidade de, previamente à delimitação do objeto do litígio, providenciar pela correção de insuficiências ou imprecisões. A resposta à 3.ª questão é, deste modo, também negativa. *** 4).1.1. Está dado o mote para o conhecimento da 4.ª questão, na qual está em causa a decisão do Tribunal de 1.ª instância de antecipar, para o despacho saneador, proferido em sede de audiência prévia, o conhecimento do mérito da causa.Como se sabe, no despacho saneador, depois de ter concluído pela inexistência de exceções dilatórias (art. 595/1, a), do CPC), o juiz vê-se confrontado com a hipótese de conhecimento imediato do mérito da causa[4], o que sucederá, na expressão da lei (art. 595/1, b), do CPC), “sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.” Quando assim não suceda – isto é, quando, atingida a fase do saneamento, os aspetos fácticos relevantes, debatidos pelas partes nos respetivos articulados, se mostrem controvertidos –, o processo terá de avançar para as fases ulteriores, com vista à instrução e julgamento, o que pressupõe a identificação do objeto do litígio e a enunciação dos temas da prova (art. 596 do CPC). A questão que se coloca ao juiz é, portanto, saber se a causa reúne as condições necessárias para que a decisão final possa ser proferida, sem necessidade de mais provas, no despacho saneador. Assim sucederá, desde logo, nas ações em que a matéria de facto já se encontra adquirida no termo da fase dos articulados, em virtude de confissão, admissão, ou de documento junto aos autos, restando apenas ao juiz providenciar pelo seu enquadramento jurídico, seja no sentido da procedência, seja no da improcedência da ação, conforme os factos preencham ou não a previsão normativa correspondente à causa de pedir ou à exceção perentória. Nada haverá, então, a discutir em termos factuais, pelo que toda a atividade processual subsequente carecerá de objeto, impondo-se a antecipação da decisão “primeiro, por uma questão de economia processual, depois, por uma questão de razoabilidade jurídica” (Paulo Pimenta, A Fase do Saneamento do Processo Antes e Após a Vigência do Novo Código de Processo Civil, Coimbra: Almedina, 2003, p. 279). E isto quer a decisão deva ser favorável a uma ou a outra das partes. Assim sucederá, também, quando seja indiferente, para qualquer das soluções plausíveis da causa, a prova dos factos que permanecem controvertidos. Neste sentido, ensina António Abrantes Geraldes (Temas da Reforma do Processo Civil, II, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2000, pp. 136-137), que “[s]e, de acordo com as plausíveis soluções da questão de direito, a decisão final de modo algum puder ser afetada com a prova dos factos controvertidos, não existe qualquer interesse na elaboração da base instrutória e, por isso, nada impede que o juiz profira logo decisão de mérito.” É indiferente que a decisão deva ser favorável ao autor ou ao réu. Como escreve o mesmo autor (idem), “[s]e o conjunto dos factos alegados pelo autor (factos constitutivos) não preenche de modo algum as condições de procedência da ação, torna-se indiferente a sua prova e, por conseguinte, inútil toda a tarefa de seleção da matéria de facto, instrução e julgamento da mesma. Mutatis mutandis, quando se trate de apreciar de que forma os factos alegados pelo réu poderão interferir na decisão final. Se tais factos, enquadrados na defesa por exceção ou por impugnação, ainda que provados, se revelarem insuficientes ou inócuos para evitar a procedência da ação, não existe qualquer razão justificativa do adiamento da decisão.” Assim sucederá, ainda, quando todos os factos controvertidos careçam de prova documental. Em tal situação não fará sentido fazer prosseguir a ação uma vez que tais factos estão subtraídos à livre apreciação do julgador (art. 607/5, 2.ª parte do CPC), podendo ser adquiridos logo na fase do saneamento mediante a apresentação dos documentos destinados à sua prova, em resposta a convite estribado no disposto no art. 590/2, c) do CPC. Assim sucederá, finalmente, quando, não obstante persistir o dissenso quanto a parte dos factos alegados pelas partes, o juiz conclua que estes não assumem relevo para a decisão, justificando-se o julgamento antecipado. Ainda seguindo António Abrantes Geraldes (Temas cit., p. 138), o juiz deve aqui guiar-se por um critério objetivo e não subjetivo. Apesar de “se considerar intimamente habilitado a solucionar o diferendo, partindo apenas do núcleo de factos incontroversos, pode isso não ser suficiente se, porventura, outras soluções jurídicas, carecidas de melhor maturação e de apuramento de factos controvertidos puderem ser legitimamente defendidas.” Neste sentido aponta o art. 662/2, c), do CPC vigente, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26.06, que, à semelhança do art. 712/4 do anterior diploma, aprovado pelo DL n.º 44 129, de 28 de dezembro de 1961, na redação do DL n.º 303/2007, de 24.08, consagra a possibilidade de a Relação, mesmo oficiosamente, anular a decisão da 1.ª instância e ordenar a realização de julgamento para apuramento de matéria de facto controvertida “quando considere indispensável a ampliação” do quadro factual a considerar na decisão. Com efeito, “se assim é, não parece que haja vantagens em avançar imediatamente para a decisão de mérito sem primeiro averiguar, em concreto, de entre os factos controvertidos, quais os que, interessando potencialmente a qualquer das saídas permitidas pelo sistema legal, se devem considerar provados” (António Abrantes Geraldes, Temas cit., p. 139).” A esta luz, a antecipação do conhecimento do mérito para a fase do saneador “deve supor o apuramento de todos os factos que permitam uma solução final segura” (ibidem), que não seja afetada pela evolução ulterior do processo em sede de recurso. No mesmo sentido, Paulo Pimenta (A Fase do Saneamento cit., pp. 281-282), Lebre de Freitas / Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2019, p. 659) e António Santos Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, I, Coimbra: Almedina, 2018, p. 697). Na jurisprudência, RG 16.02.2017 (4716/15.9T8VCT-A.G1), Pedro Damião e Cunha, RP 10.05.2021 (4348/19.2T8AVR.P1), Miguel Baldaia de Morais, RP 24.05.2021 (5900/20.9T8PRT-A.P1), Eugénia Cunha, e RC 5.04.2022 (449/20.2T8LRA.C1), José Avelino Gonçalves. *** 4).1.2. Isto dito, como vimos, o Tribunal a quo entendeu, a um tempo, que os factos descritos pela Recorrente não integram a causa de nulidade da deliberação prevista na alínea c) do n.º 1 do art. 56 do CSC[5] e, a outro, que a alegação de facto na petição inicial, “é insuficiente para se apurar que a deliberação visou tão-só prejudicar a sócia Autora, satisfazendo interesses egoístas dos outros sócios”, pelo que a deliberação nunca poderá ser considerada como abusiva nos termos pressupostos pela alínea b) do n.º 1 do art. 58.É a (in)correção deste juízo que vamos apreciar, começando por lembrar que estamos perante uma ação em que é pedida a declaração de nulidade ou a anulabilidade da deliberação tomada, através dos votos expressos pelos sócios detentores de 95% do capital social, na assembleia geral da Ré do dia 8 de março de 2024, sobre a aplicação dos resultados líquidos do exercício de 2022. *** 4).2.1. Como é sabido, a personalidade jurídica que às sociedades comerciais é reconhecida a partir do registo definitivo do contrato pelo qual são constituídas (cf. art. 5.º do CSC) é uma fictio iuris. As mesmas não possuem um organismo físico-psíquico, pelo que só podem proceder por intermédio de certas pessoas físicas. Os atos praticados por estas, no âmbito dos poderes que lhes estão atribuídos e no nome e interesse da sociedade, vão produzir efeitos na esfera jurídica desta (Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, I, reimpressão, Coimbra: Almedina, 1997, pp. 114-115). Por outras palavras, a vontade das sociedades é formada e manifestada através de pessoas físicas, vinculadas à sociedade por um nexo de verdadeira organicidade. Os órgãos sociais que tais pessoas integram são parte componente das sociedades, os atos e a vontade daqueles são os atos e a vontades destas, a estas são os mesmos referidos ou imputados. Esta perspetiva é confirmada pela responsabilidade civil das sociedades pelos atos ou omissões dos titulares dos seus órgãos (art. 6.º/5 do Código das Sociedades Comerciais).Mais concretamente, a vontade das sociedades comerciais é formada, no plano interno, pelo conjunto ou coletividade dos sócios, não necessariamente em assembleia ou reunião. Basta que se pense nas sociedades unipessoais, em que é impróprio falar-se em assembleia geral ou reunião dos sócios, ou se considere a possibilidade de os sócios deliberarem fora da assembleia (cf. arts. 54/1, 189/1, 247, 373 e 472/1). Por outro lado, é indiferente que a vontade, condensada na deliberação, seja formada através da unanimidade dos votos ou apenas pela maioria deles. A deliberação tanto pode resultar de uma decisão alcançada por vontade unânime dos sócios, como por vontade de uma maioria deles, maioria que pode ser simples (art. 386/1) ou qualificada (arts. 265/1, 294/1 e 386/3) e pode ser achada por referência aos votos emitidos (art. 386/1) ou à totalidade dos votos correspondentes ao capital social (arts. 265 e 294/1), consoante o que for determinado pela lei ou pelo contrato. Daí que se afirme (Pedro Maia, “Deliberações dos Sócios”, AAVV, J.M. Coutinho de Abreu (Coord.), Estudos de Direito das Sociedades, 9.ª ed., Coimbra: Almedina, 2008, pp. 236-237, nota 6) que “a determinação do quórum deliberativo assenta em dois fatores distintos, a saber: por um lado, o universo dos votos que deverá ser considerado – se todos os votos correspondentes ao capital social, se os votos correspondentes aos sócios presentes na assembleia, se apenas os votos emitidos (não se considerando, então, as abstenções); por outro lado, a fração ou percentagem de votos que, nesse universo previamente determinado, se exige para que a deliberação se considere aprovada – se mais de metade de tais votos, se dois terços, se três quartos, etc.” Entre nós prevalece o entendimento de que a deliberação é, ao menos em regra, um negócio jurídico da sociedade, formado pela declaração de vontade dos sócios, expressa através do seu voto, com vista à produção de certos efeitos sancionados pela ordem jurídica. Neste sentido, António Menezes Cordeiro (Manual de Direito das Sociedades, I, Das Sociedades em Geral, Coimbra: Almedina, 2004, p. 617) e J.M. Coutinho de Abreu (“Art. 53”, AAVV, J. M. Coutinho de Abreu (Coord.), Código das Sociedades Comerciais em Comentário, I, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2017, p. 673), que explica que o uso da expressão em regra é justificado “porquanto há deliberações que não merecem essa qualificação (não constituem, modificam ou extinguem relações jurídicas ou posições jurídicas)”, como é o caso, de um voto de confiança ou de louvor. Por outro lado, trata-se de um negócio da própria sociedade e não dos seus sócios. É a ela que cabe a qualificação de negócio jurídico e já não aos votos de que ela resulta. Estes constituem declarações de vontade dos sócios (assim, Pedro Maia, loc. cit., p. 238), sendo, porém, duvidoso que constituam a se um negócio jurídico, visto que não são destinados à constituição, modificação ou extinção de relações jurídicas. *** 4).2.2. Sendo negócios jurídicos, as deliberações estão sujeitas às regras do direito comum aplicáveis àqueles, com as especialidades que resultam das normas do direito societário, designadamente as constantes dos arts. 55 a 62 do CSC.Mais concretamente, as deliberações podem sofrer das patologias próprias dos negócios jurídicos. Diz-se então que ocorre uma situação de ineficácia em sentido amplo, o que sucede quando o negócio jurídico não produz, “por impedimento decorrente do ordenamento jurídico, no todo ou em parte, os efeitos que tenderia a produzir, segundo o teor das declarações respetivas” (Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª ed., por António Pinto Monteiro / Paulo Mota Pinto, Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 615). Este género – ineficácia em sentido amplo – subdivide-se depois em invalidade, onde se enquadram as figuras da nulidade e da anulabilidade, e em ineficácia em sentido estrito. Todas estas categorias estão previstas no CSC: a ineficácia em sentido estrito no art. 55, a nulidade no art. 56 e a anulabilidade no art. 58. Dentro das duas últimas categorias, o CSC distingue ainda entre vícios ocorridos no procedimento deliberativo (vícios de procedimento) – art. 56/1, a) e b), 2 e 3 e art. 58/1, a) e c), e 4 – e vícios no conteúdo da deliberação (vícios de conteúdo) – art. 56/1, c) e d), e art. 58/1, a), 1.ª parte). Na categoria da anulabilidade, o CSC inclui ainda as deliberações anti-estatutárias (art. 58/1, a), 2.ª parte, e 2) e as deliberações abusivas (art. 58/1, b). Como se constata, a nulidade é cominada para as situações mais graves, o que se conjuga com a natureza taxativa da enumeração. Compreende-se que assim seja: o vício pode ser invocado a todo o tempo; é do conhecimento oficioso do tribunal; o negócio jurídico por ele afetado é insuscetível de confirmação (arts. 286 e 288 do Código Civil). Considerando os fundamentos invocados pela Recorrente na petição inicial, interessam-nos sobretudo as espécies previstas na alínea d) do n.º 1 do art. 56 e na alínea b) do n.º 1 do art. 58, mas também, como veremos, a da 1.ª parte da alínea a) do n.º 1 do art. 58. *** 4).2.2.1.1. Diz o art. 56/1, d), que são nulas as deliberações dos sócios “[c]ujo conteúdo, diretamente ou por atos de outros órgãos que determine ou permita, seja ofensivo dos bons costumes ou de preceitos legais que não possam ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios.” O mesmo resultado seria alcançado, na falta desta previsão, por aplicação do disposto no art. 280/2 do Código Civil.Na 1.ª parte estão em causa as deliberações cujo conteúdo atente contra os bons costumes. Apesar de a Recorrente não sustentar, designadamente no presente recurso, ser esse o caso da deliberação impugnada, convém precisar este conceito que nos será útil quando abordarmos o de deliberações abusivas. Assim, diremos que o conceito de bons costumes é indeterminado, carecendo, por isso, de ser densificado casuisticamente, no que, como adverte Pinto Furtado (Curso de Direito das Sociedades, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2011, p. 451), devem ser evitados “subjetivismos perniciosos”; antes se impõe, de acordo com a lição de António Menezes Cordeiro (“Art. 280.º”, AAVV, António Menezes Cordeiro (coord.), Código Civil Comentado, I, Parte Geral, Coimbra: Almedina, 2020, p. 820), “um particular esforço de cautela e precisão, por parte do intérprete-aplicador, com recurso à História e ao Direito comparado.” Daí que se possa dizer, em termos gerais, que os bons costumes são o conjunto de regras de comportamento sexual, familiar e deontológico, acolhidas pelo Direito, em cada momento histórico, que, não estando codificadas, provocam consenso em concreto, pelo menos nos casos limite, encontrando-se na sua concretização um grupo que se prende com princípios cogentes da ordem jurídica e outro que se liga à moral social (cf. António Menezes Cordeiro, loc. cit., p. 822). Dito de outra forma (Pires de Lima / Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1987, p. 299), os limites impostos pelos bons costumes são os que resultam das conceções ético-jurídicas dominantes na coletividade. Como tal, acrescentamos, variam de acordo com o espaço e o tempo. Não basta, por isso, a ilicitude de um comportamento para que se possa afirmar que ele é atentatório dos bons costumes. Apenas o será se atentar também “contra os fundamentos mais profundos da moral – e não, unicamente, a moral sexual, mas toda a que poderá afetar o humano comportamento; não a moral deste ou daquele, mas a moral pública, isto é, a que pode dizer-se comum à sociedade em que se insere”, conforme escreve Pinto Furtado (ob. cit., p. 451), autor que, depois, valendo-se da fórmula adotada pelo Supremo Tribunal alemão, segundo a qual os bons costumes não são mais que “o sentido do decoro ou da dignidade de todas as pessoas que pensam com equidade e justiça", acrescenta que devem “ser consideradas como contrárias aos bons costumes aquelas deliberações cujo conteúdo envolva as matérias seguintes: a) tráfico de bens cuja comercialidade é reprovada pela moral pública (tráfico sexual, esponsais, tráfico de influência...); b) exploração económica eticamente censurável pelo aproveitamento das circunstâncias para se extorquir uma prestação patrimonial indevida ou para se comerciarem bens incomerciáveis (recebimento de luvas; quota litis; remuneração para não se cometer um delito...); c) sujeição do semelhante a formas de servidão (obrigação de prestação de serviço por toda a vida, de abraçar ou abjurar determinada religião, de não escrever desfavoravelmente a determinado assunto ou certa pessoa, de votar ou não votar sempre em certo sentido...).” No domínio da “deontologia comercial” foram consideradas, pela jurisprudência, como atentatórias dos bons costumes: a flagrante iniquidade da destituição de um administrador (RP 17.06.1997, Afonso Correia, CJ, XXII, t. 3, p. 220); a venda, por preço insignificante, de um prédio ao sócio maioritário (RP 13.04.1999, Afonso Correia, CJ, XXIV, t. 2, p. 196); a venda ao sócio maioritário, pelo preço de 210 000 contos, de um estabelecimento que valia 518 000 c., valor este que o sócio minoritário estava disposto a pagar (STJ 3.02.2000, Miranda Gusmão, CJSTJ, VIII, t. 1, p. 59); a deliberação de venda de um prédio por menos de metade do seu valor real (STJ 15.12.2005, 05B3320, Oliveira Barros); e a instigação à prostituição ou ao pagamento de luvas (RC 14.03.2017, 1327/12.4TBLRA.C1, Fonte Ramos). Não foi considerada atentatória dos bons costumes a deliberação que aprovou o pagamento aos acionistas e/ou administradores que prestem avales a favor da sociedade, de um valor correspondente a 1% do montante de cada aval que estes tenham prestado a favor da sociedade no ano anterior, para operações financeiras com prazo até seis meses e de 2% para operações financeiras com prazo superior a seis meses, sendo a contrapartida devida independentemente dos resultados líquidos do exercício (RG 12.03.2020, 6604/18.8T8VNF.G1, Ana Cristina Duarte). Segundo nos parece, até pela letra da lei (art. 56/1, d)) e pela sua comparação com o art. 280 do Código Civil, o que releva para a nulidade é o conteúdo e não o fim da deliberação. Dito de outra forma, não basta que os motivos ou os fins da deliberação sejam contrários aos bons costumes (J. M. Coutinho de Abreu, “Art. 56”, AAVV, J. M. Coutinho de Abreu (Coord.), Código das Sociedades Comerciais em Comentário cit., p. 697, e Curso de Direito Comercial, II, Das Sociedades, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2013, p. 524). É este o aspeto do regime que, segundo a orientação preconizada por Vasco da Gama Lobo Xavier (“Invalidade e ineficácia das deliberações sociais no Projeto de Código das Sociedades”, separata da RLJ, ano 118.º, 1985, pp. 18-19), permite traçar a linha delimitadora do campo de aplicação da sanção da nulidade das deliberações por ofensa aos bons costumes do da sanção – menos grave – da anulabilidade das deliberações que, apesar de terem um conteúdo inócuo, sob este ponto de vista, são tomadas com um fim que contrário aos bons costumes. *** 4).2.2.1.2. Passando agora às deliberações ofensivas de preceitos legais que não possam ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios, diremos que estão em causa as normas de conteúdo imperativo que constem de atos legislativos (leis, decretos-leis e decretos legislativos regionais: art. 112/1 da CRP), independentemente de terem, ou não, natureza societária (J. M. Coutinho de Abreu, “Art. 56” cit., p. 698).Impõe-se aqui uma tarefa de natureza interpretativa, as mais das vezes facilitada, como salienta o autor acabado de citar, “(1) pelo próprio texto normativo, com signos linguísticos denotando estar absolutamente vedada a derrogação da disciplina respetiva. Perscrutando os interesses protegidos pelas normas com aqueles sinais textuais, verifica-se serem, fundamentalmente, (2) interesses de terceiros umas vezes, (3) interesses indisponíveis dos sócios outras vezes, (4) ou a garantia de certo esquema organizativo-funcional. A consideração destes interesses relevará especialmente quando faltem signos textuais concludentes.” Mais concretamente, em vários preceitos do CSC, a lei marca claramente o carácter dispositivo da norma, permitindo o seu afastamento, ora pelos estatutos da sociedade, ora por deliberação dos sócios (cf. art. 9.º/3). São frequentes os enunciados normativos que incluem segmentos como “salvo diferente cláusula contratual” ou expressão equivalente. Como exemplos de deliberações nulas, J. M. Coutinho de Abreu (idem) apresenta as que aprovem a distribuição aos sócios de lucros fictícios (bens sociais que não sejam lucros de balanço (art. 32/1), as que introduzam nos estatutos cláusula permitindo prestações suplementares, mas sem fixar o montante global das mesmas (art. 210/3, a), e 4), as que introduzam nos estatutos cláusula segundo a qual a convocação das assembleias gerais será feita por carta registada expedida com antecedência mínima de oito dias (art. 248/3); designem administradores por um período de cinco anos (art. 391/3), as que destituam membros de órgão de fiscalização sem justa causa (art. 419/1) e as que limitem ou suprimam o direito de preferência de sócios em aumento do capital sem que o interesse social o justifique (art. 460). *** 4).2.2.2. Versando agora sobre as deliberações anuláveis, com especial enfoque nas denominadas deliberações abusivas, diz o art. 58/1, b), que são “anuláveis as deliberações que “[s]ejam apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir, através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente de prejudicar aquela ou estes, a menos que se prove que as deliberações teriam sido tomadas mesmo sem os votos abusivos.”Como constatamos, as deliberações abusivas podem ser de duas espécies: as apropriadas para satisfazer o propósito de alcançar vantagens especiais em prejuízo da sociedade ou de sócios; e as apropriadas para satisfazer o propósito tão-só de prejudicar a sociedade ou sócios. Às primeiras podemos chamar de deliberações abusivas propriamente ditas e às segundas deliberações abusivas emulativas. Conforme explica J. M. Coutinho de Abreu (“art. 58”, AAVV, J. M. Coutinho de Abreu (Coord.), Código das Sociedades Comerciais em Comentário cit., p. 713), “as deliberações de uma e outra espécie têm pontos em comum, tanto ao nível dos pressupostos subjetivos (o propósito de um ou mais votantes), como dos pressupostos objetivos (a deliberação há de ser objetivamente apropriada ou apta para satisfazer o propósito). Distinguem-se na medida em que nas deliberações da primeira espécie o propósito relevante é o de alcançar vantagens especiais; nas da segunda (as ditas abusivas emulativas), o propósito relevante é o de causar prejuízos. É certo que as primeiras não dispensam o prejuízo, conforme resulta do segmento “em prejuízo da sociedade ou de outros sócios”. Trata-se, porém, como adverte o autor, “de dano resultante da consecução de vantagens especiais; entre aquele e esta existe imediata ou mediata conexão causal.” Já o prejuízo visado nas deliberações abusivas emulativas é indiferente às eventuais não desvantagens, vantagens ou desvantagens dos votantes com propósito emulativo ou de terceiros. Isto permite concluir que “o propósito exigido nas deliberações da primeira espécie limita-se à consecução de vantagens especiais – não sendo necessário que abarque o prejuízo; e o propósito exigido nas deliberações abusivas emulativas limita-se à inflição de prejuízo.” Em qualquer das duas modalidades, o dito propósito mais não é que uma forma de expressar o dolo de um ou mais votantes. Vale por dizer se exige a verificação deste elemento subjetivo e atual (não virtual), que deve ser provado por quem se apresente a impugnar a deliberação. Assim, J. M. Coutinho de Abreu (loc. cit., pp. 714-715). Não tem, porém, de ser um dolo direto. Basta um dolo necessário ou mesmo um dolo eventual. Por outro lado, as vantagens especiais referidas a propósito da primeira espécie são, na lição de J. M. Coutinho de Abreu (loc. cit., p. 713) “(i) proveitos patrimoniais (ao menos indiretamente) por deliberação concedidos, possibilitados ou admitidos a sócios e/ou não sócios, mas não a todos os que se encontram perante a sociedade em situação semelhante à dos beneficiados, (ii) bem como os proveitos que, quando não haja sujeitos em situação semelhante à daqueles, não seriam (ou não deviam ser) concedidos, possibilitados ou admitidos a quem hipoteticamente ocupasse posição equiparável.” Na sequência, apresenta os seguintes exemplos de deliberações enquadráveis no primeiro grupo de casos: “delibera-se por maioria dissolver a sociedade, a fim de os sócios maioritários continuarem – em nova sociedade, sem os minoritários – a exploração da sólida empresa da sociedade dissolvida; delibera-se trespassar estabelecimento da sociedade a A por 100 000, quando B (sócio) oferecia 110 000.” E apresenta os seguintes exemplos de deliberações enquadráveis no segundo grupo de casos: “fixa-se a remuneração de sócio único-gerente em 50 000, quando, atendendo à natureza das funções, à situação da sociedade e à prática em sociedades similares, o valor razoável não superaria 10 000; delibera-se autorizar a compra de terreno (único) confinante com o da sede social, pertencente a um sócio, por 150 000, mas que não vale mais do que 100 000. O prejuízo ou dano relevante (consequência da vantagem especial assegurada pela deliberação, ou da medida estabelecida pela deliberação emulativa) é sofrido pela sociedade ou outros sócios – sócios outros que não os votantes com os assinalados propósitos.” Na jurisprudência, escreve-se: Em STJ 19.05.2015 (477/03.2TBVNO.C3.S1, Fonseca Ramos) que a “deliberação social abusiva exprime um ato disfuncional, porquanto não visa acautelar os direitos da sociedade mas, ao invés, é estranha a essa finalidade, do ponto em que apenas almeja satisfazer o propósito do sócio ou sócios que assim, através do voto, colhem para si, ou para terceiros, vantagens que prejudicam a sociedade ou outros sócios”, formulação que é repetida em RG 29.06.2017 (4863/16.0T8VNF.G1, Conceição Bucho); e Em RL 08.03.2023 (17579/20.3T8LSB.L1-1, Amélia Sofia Rebelo) que “a vantagem especial prevista pela al. b) do nº 1 do art. 58º do CSC (…) haverá de traduzir-se num qualquer proveito ou benefício anómalo, estranho ou tido por irrazoável aos interesses da sociedade, e que só existe por efeito da utilização do direito de voto inerente à qualidade de sócio para obter a satisfação de interesses extra sociais dos sócios maioritários ou de terceiros por estes pretendido beneficiar.” Finalmente, a parte final da norma consagra aquilo que a doutrina denomina de prova da resistência (J. M. Coutinho de Abreu, loc. cit., p. 715). A deliberação maculada por um comportamento abusivo não será anulada se a sociedade provar que, sem os votos daquele sócio, a deliberação teria sido igualmente adotada. Trata-se, portanto, de matéria de exceção perentória, assente num juízo do tipo “Sim, Mas.” Isto evidencia que a causa da deliberação abusiva é a vontade individual do sócio, expressa através do respetivo voto, com o propósito de conseguir “vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente de prejudicar aquela ou estes” – portanto, sempre na prossecução de um propósito egoístico, extra-societário – ou até mesmo contra-societário –, pelo que, para além do mais, poderá haver uma violação do dever de lealdade. Este dever de lealdade, apesar de não estar expressamente consagrado em qualquer norma legal, resulta de um “conjunto dos valores básicos do sistema que, em cada situação concreta, devam ser respeitados pelos diversos intervenientes”, acabando por corresponder, de alguma forma, à ideia da boa fé que está patente no direito cível. Assim, STJ 1.04.2014 (8717/06.0TBVFR.P1.S1, Fonseca Ramos). Com mais desenvolvimento, STJ 18.04.2023 (9333/21.1T8SNT.L1.S1, António Barateiro Martins), onde se escreve que “[r]econhece-se hoje que os poderes dos sócios na sociedade se encontram vinculados a deveres de lealdade, deveres estes que impõem que os sócios não atuem de modo incompatível com o interesse social ou com interesses de outros sócios relacionados com a sociedade. Deveres de lealdade que têm um conteúdo negativo nuclear (a proibição de causar danos, intensificada face ao princípio geral do neminem laedere), mas que em certas situações também podem adquirir uma dimensão positiva, traduzida numa obrigação de prosseguir o fim social. Deveres de lealdade que acabam assim por comprimir o princípio da liberdade de voto, obrigando o sócio a não apresentar determinada proposta ou a votar favoravelmente determinada medida; e que levam também a que se fale mesmo numa exigência de “justificação material” para certas deliberações sociais que intervenham nos direitos das minorias.” E acrescenta-se, citando Ana Perestrelo de Oliveira, que “(…) é possível formular um princípio geral de sujeição das deliberações sociais a um controlo material de conformidade com os deveres de lealdade da maioria (e, eventualmente, das minorias, máxime nos casos em que estas surjam como minorias de bloqueio). A necessidade de uma justificação material tendo a lealdade como referência será, em especial e por natureza, reclamada perante conflitos de interesses entre maioria e minoria e, com particular frequência, quando a medida em discussão possa provocar uma intervenção na posição dos sócios minoritários e, em geral, sempre que a distribuição de poder na sociedade seja alterada. Nestas hipóteses, exige-se que o sacrifício dos interesses das minorias seja objetivamente justificado e necessário: do princípio da lealdade resultará, pois, um princípio de proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade, stricto sensu) que evitará o prejuízo arbitrário dos sócios. (…)” Uma deliberação social tomada com a violação deste dever também pode ser inválida (anulável) nos termos da norma geral contida na alínea a) do n.º 1 do art. 58, não tendo, assim, de passar pelo crivo da alínea b). Neste sentido, Evaristo Mendes (“Deliberações sociais anuláveis. Dever de lealdade dos sócios – Anotação ao acórdão do STJ de 18.04.2023”, Católica Law Review, VIII, n.º 2, maio 2024, pp. 155-204. *** 4).3.1. Regressando agora ao caso dos autos, discute-se a invalidade de uma deliberação relativa ao destino a dar aos lucros obtidos pela sociedade recorrida (Ré na ação) no exercício de 2022. Mais concretamente, entende a Recorrente (Autora na ação) que tal deliberação, que consistiu na canalização daqueles lucros para a constituição de reservas livres, em lugar de os distribuir pelos sócios, é nula, nos termos da alínea d) do n.º 1 do art. 56 ou, pelo menos, anulável, nos termos da alínea b) do n.º 1 do art. 58.Para melhor compreendermos a resposta que, à luz das precedentes considerações, vamos dar à terceira questão adrede enunciada, convém abrir um parêntesis para compreender o conteúdo desta deliberação. Como é sabido, a posição jurídica do sócio da sociedade comercial, além de situações jurídicas passivas, contém também situações jurídicas ativas, usualmente designadas como direitos. Com mais rigor, Pedro Pais de Vasconcelos (A Participação Social nas Sociedades Comerciais, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2006, p. 69) chama-lhes poderes. Correspondem à disponibilidade de meios jurídicos para a prossecução do fim próprio do direito subjetivo global do sócio. Um desses poderes é o de participar no lucro da sociedade. O escopo lucrativo é um dos elementos essenciais do conceito de sociedade; o fim da sociedade há de ser necessariamente a obtenção de lucro para distribuir pelos sócios (cf. art. 980 do Código Civil). Ou seja, no que às sociedades diz respeito, há que ter em consideração que o lucro reveste duas vertentes distintas: o lucro objetivo (que consiste no incremento patrimonial, no enriquecimento do património da sociedade) e o lucro subjetivo (que se traduz no facto de aquele incremento patrimonial da sociedade ser ou poder ser distribuído pelos sócios). A noção de lucro não é unívoca. Para a compreensão do respetivo regime no âmbito societário há que ter em consideração diferentes noções operatórias (a propósito, vide Paulo de Tarso Domingues, “Capital e património sociais, lucros e reservas”, Estudos de Direito das Sociedades, 9.ª ed., Coimbra: Almedina, 2008, pp. 218 - 219). Desde logo, o lucro final ou de liquidação – isto é, o lucro que se apura no termo da sociedade, quando esta se liquida, e que consiste no excedente do património social líquido sobre a cifra do capital social. A relevância prática desta noção é reduzida: embora a sociedade possa ser constituída por um prazo curto, não é costume estipular-se um termo para ela. Daí que a lei permita a distribuição de lucro no termo de cada exercício. O lucro do exercício é apurado pela contabilidade da sociedade, nas contas anuais que são primeiramente aprovadas pela gestão. O relatório de gestão, segundo a alínea f) do n.º 5 do artigo 66, deve conter uma proposta de aplicação de resultados devidamente fundamentada. Se houver lucro, esta proposta deve submeter aos sócios o destino que lhe deve ser dado. Pode ser retido como reserva, pode ser distribuído, e pode ser parcialmente retido e parcialmente distribuído. Nesta matéria os sócios têm um elevado grau de discricionariedade na deliberação, dentro dos limites estabelecidos na lei, a que faremos referência. Desde logo, não podem ser distribuídos bens aos sócios quando a situação líquida da sociedade seja ou se torne inferior à soma do capital e reservas indisponíveis; por outro lado, não podem os sócios proceder à distribuição do lucro do exercício quando ele seja necessário para cobrir prejuízos transitados e para formar ou constituir reservas obrigatórias. Na sua disponibilidade está apenas a distribuição do lucro de balanço, ou seja, do valor do património líquido que exceda o montante do capital acrescido das reservas indisponíveis (cf. arts. 32 e 33/1). Por outro lado, o CSC veio, nesta matéria, de forma inovadora, estabelecer uma derrogação ao regime geral da suficiência da deliberação maioritária. Com efeito, como melhor veremos, estabelece-se, no artigo 217, para as sociedades por quotas, e no artigo 294, para as sociedades anónimas, um regime que visa a proteção das minorias societárias, prescrevendo-se que “salvo diferente cláusula contratual ou deliberação tomada por três quartos dos votos correspondentes ao capital social (…) não pode deixar de ser distribuído aos sócios metade do lucro de exercício que, nos termos desta lei, seja distribuível”. Deste modo, se nada se tiver estabelecido no pacto a este propósito, tem necessariamente que ser distribuído aos sócios metade do lucro do exercício distribuível, a menos que estes deliberem, pela maioria qualificada referida, outro destino para aquele lucro. Em causa, nestes normativos, está metade do lucro do exercício distribuível. Por isso, do lucro de exercício, haverá que retirar, se for caso disso, os montantes necessários para cobrir prejuízos transitados ou para formar ou reconstituir reservas obrigatórias, uma vez que tais montantes não são distribuíveis (cf. art. 33/1). Por outro lado, porque o que está aqui em causa é o lucro de exercício (ou seja, a riqueza gerada naquele exercício), não haverá, para este efeito, que considerar os resultados transitados, isto é, a riqueza gerada em anos anteriores, sobre a qual os sócios já tiveram, aquando da aprovação dos balanços respetivos, oportunidade para se pronunciar e deliberar sobre o destino a dar à mesma. Tem-se mesmo entendido que, sob pena de se retirar conteúdo útil à tutela conferida pelos artigos 217 e 294, qualquer sócio poderá exigir judicialmente a entrega da parte que lhe caiba na metade do lucro distribuível nos termos dos referidos normativos se, uma vez aprovada as contas do exercício, não houver uma deliberação válida e atempada sobre o destino a dar aos lucros. Constituindo o lucro (entendido aqui em sentido subjetivo) um elemento essencial à noção de sociedade, estabelece consequentemente a lei, em termos gerais para qualquer sociedade, a proibição do chamado pacto leonino, isto é, excluir um sócio de participar nos lucros ou nas perdas da sociedade (cf. art. 994 do Código Civil). Trata-se de uma regra que está igualmente consagrada no Código das Sociedades Comerciais, onde expressamente se estabelece que todo o sócio tem o direito a quinhoar nos lucros (art. 21/1, a)), sendo nula qualquer cláusula em contrário (art. 22/3). Trata-se de um direito do sócio perante a sociedade. De acordo com o art. 22/1, os sócios participam nos lucros e nas perdas da sociedade segundo a proporção dos valores nominais das respetivas participações no capital. Este princípio não é, porém, um princípio de ordem pública, podendo ser livremente derrogado pelos sócios (por unanimidade, uma vez que a alteração da regra se traduzirá, em princípio, na atribuição de um direito especial a um sócio). Por aqui se percebe a relevância de deliberações do tipo da que está em causa na ação. É através delas que o direito abstrato ao lucro, que é inerente ao estatuto de sócio, se converte num direito concreto ao lucro do exercício. A propósito, Diogo Costa Gonçalves (“Adiantamentos sobre o lucro do exercício – Breves reflexões”, Revista de Direito das Sociedades, II (2010), 3/4, pp. 575-627). Este – o lucro do exercício – corresponde, afinal, ao interesse que os sócios prosseguem através da atividade societária com vista ao enriquecimento do seu património pessoal. Daí que, em tese, se possa dizer que apenas o interesse social pode justificar que uma sociedade – e referimo-nos às sociedades de capitais – não proceda à distribuição dos lucros, optando antes – através de deliberação dos seus sócios – pela sua retenção, através da constituição de reservas livres. Como explica Pedro Pais de Vasconcelos (A Participação Social cit., p. 95), “[a] retenção de lucros, através da constituição de reservas, tem vantagens e inconvenientes para a sociedade e para os sócios. Para a sociedade tem a vantagem de reforçar a sua robustez financeira, acautelar antecipadamente perdas futuras e reduzir a dependência de capitais alheios cujo custo pode ser elevado e cuja obtenção pode ser problemática; tem o inconveniente de reduzir os dividendos, criando tensões entre os sócios e fazendo baixar a cotação das ações, tornando mais difícil o financiamento no mercado primário. Para os sócios, a retenção de lucros na sociedade tem vantagens para quem investir a longo prazo, tornando economicamente mais sólida a participação social e mais valiosa a médio e longo prazo, e dispensa ou reduz a exigência bancária de prestação de caução pelos sócios; tem o inconveniente de reduzir, pelo menos naquele exercício, o dividendo.” *** 4).3.2.1. Encerrado o parêntesis e seguindo a ordem por que enunciámos as patologias e, jogo na ação, começamos por dizer que é axiomático que o conteúdo da deliberação impugnada em nada afronta os bons costumes, tal como densificamos este conceito. Trata-se, na verdade, de uma deliberação de um tipo – a não distribuição dos lucros do exercício – que, conforme veremos, é abstratamente admitido pela lei, o que demonstra bem que o seu conteúdo é aceite pelas normas sociais atualmente vigentes entre nós, de que a lei se presume refratária. Neste sentido, na jurisprudência, perante uma deliberação do mesmo tipo, RG 29.05.2024 (5245/22.0T8NVF.G2), Maria João Pinto de Matos. A eventual contrariedade do fim da deliberação aos bons costumes – que, de acordo com a alegação da Recorrente, decorre de ter sido tomada com a intenção de a privar do seu quinhão nos lucros – poderá ter como consequência a sua qualificação como abusiva –, com a sua consequente anulabilidade, no interesse da impugnante, alegadamente a sócia minoritária prejudicada. É esta a lição de J. M. Coutinho de Abreu (Curso de Direito Comercial, II, Das Sociedades, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2013, cit., p. 527) que escreve: “[u]ma deliberação que destina os lucros a reservas, sem distribuição pelos sócios, não tem conteúdo ofensivo dos bons costumes; a regulação por ela estabelecida é indiferente aos bons ou aos maus costumes. Ainda que se admitisse haver no caso violação dos bons costumes pelo fim da deliberação e ser esta então qualificável de abusiva, a anulabilidade, não a nulidade, seria a consequência.” *** 4).3.2. Vejamos agora se, como sustenta a Recorrente, a deliberação é nula por infringir o disposto no art. 294/1, onde se diz que “[s]alvo diferente cláusula contratual ou deliberação tomada por maioria de três quartos dos votos correspondentes ao capital social em assembleia geral para o efeito convocada, não pode deixar de ser distribuído aos acionistas metade do lucro do exercício que, nos termos desta lei, seja distribuível.”A interpretação desta norma foi objeto de exaustivo tratamento no citado RG 29.05.2024, onde se conclui pela sua “natureza supletiva (e não imperativa)”, citando-se, em arrimo, a seguinte doutrina: “i) João Labareda, Das Ações das Sociedades Anónimas, AAFDL, 1988, págs. 146 e 147 - onde, pronunciando-se sobre a possibilidade de uma sociedade anónima passar sem distribuir lucros respeitantes a algum ou alguns exercícios, face ao disposto no 294.º, n.º 1, do CSC, se lê que «há, portanto, uma regra supletiva segundo a qual o sócio tem direito à partilha anual dos lucros, fixando-se em metade do total distribuível aqueles que obrigatoriamente são divididos». «Mas prevêem-se duas situações alternativas que afastam a regra geral, a primeira é a existência de uma cláusula contratual em contrário, nada obstando à previsão de possibilidade de não haver qualquer distribuição no final do exercício. Neste caso competirá à assembleia geral deliberar, nos termos gerais, sobre o destino dos lucros, salvo se estiver prevista a constituição de certo tipo de reservas e os lucros obtidos não forem de molde a proporcionarem remanescente. A outra alternativa é a de, na omissão do pacto, a própria assembleia, então por maioria de três quatros dos votos correspondentes ao capital social, deliberar não distribuir lucros ou distribuir menos de metade dos lucros obtidos». ii) Raúl Ventura, Sociedade por Quotas, Volume I, 2.ª edição, Almedina, 1989, pág. 336 - onde, depois de referir que a norma do art.º 294.º é em tudo semelhante à do art.º 217.º e ao comentar a expressão «salvo diferente cláusula contratual», acaba por reconhecer que, no plano formal, esta cláusula é diferente da regra supletiva, mas substancialmente respeita a intenção da lei, na justa medida em que assegura aos sócios a distribuição de metade dos lucros, mas não contra a vontade deles. Nesta medida, «se no contrato de sociedade todos permitem a derrogação dessa regra, tanto faz que o façam por estabelecimento de percentagens diferentes, como deixando à assembleia o referido poder». iii) Evaristo Ferreira Mendes, «Direito ao Lucro de Exercício no CSC», Estudos dedicados ao Prof. Doutor Mário Júlio de Almeida Costa, Lisboa (UCE) 2002, pág. 497 (como antes em «Lucros de Exercício», Revista de Direito e Estudos Sociais, Ano XXXVIII, 1996, págs. 257 e segs., mormente 359 a 364) - onde se lê, defendendo a natureza supletiva da norma em causa e criticando o entendimento que defende a nulidade das cláusulas que afastam o regime geral consagrado nos art.ºs 217.º, n.º 1 e 294.º, n.º 1, do CSC, por ser «dificilmente aceitável num ordenamento jurídico que, justamente, consagra como regra geral do direito societário - em relação à qual a dos preceitos do CSC é especial - uma norma desse tipo (art. 991 CC)», para além de que isso «significaria invalidar uma prática estatutária com larga tradição». iv) Filipe Cassiano dos Santos, «O Direito aos Lucros no Código das Sociedades Comerciais», Problemas do Direito das Sociedades, Almedina, 2008, págs. 189 e 190 - onde conclui, depois de se referir ao disposto nos art.ºs 217.º, n.º 1 e 294.º, do CSC, que «este resultado pode ser paralisado: duradouramente, por cláusula contratual em contrário; pontualmente (para um exercício), por deliberação de aplicação de resultados sujeita a requisitos especiais (e que são a convocação para o efeito de não distribuir metade do lucro e a aprovação de uma maioria qualificada correspondente a ¾ do capital social». v) António Menezes Cordeiro, Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2.ª edição - 2014, Almedina, fevereiro de 2014, págs. 638, 639 e 840 (como já antes em Direito das Sociedades, Volume II (Das Sociedades em Especial), Almedina, 2014, pág. 582 33) lendo-se na última, a propósito do art.º 294.º, n.º 1, do CSC, onde se lê ser a norma supletiva, podendo a «regra base (…) ser afastada por cláusula estatutária em contrário. Tal cláusula pode elevar, baixar ou suprimir a exigência da maioria de ¾ ou pode alterar a cifra de metade do lucro distribuível». Pode ainda a mesma regra base ser afastada por deliberação em contrário «por maioria de ¾», sendo que a «formação de tal maioria não é, por si, abuso: este terá de resultar seja da presença de votos abusivos - 58.º/1, b) - seja da violação do 334.º do CC». vi) Paulo de Tarso Domingues, Código das Sociedades Comerciais em Comentário (coordenação de Jorge M. Coutinho de Abreu), Volume III, Almedina, pág. 339 - onde se lê que o «direito dos quotistas à distribuição de pelo menos metade do lucro de exercício distribuível não é um direito absoluto»; e, por isso, «pode ser afastado pelos sócios», ou «através de uma cláusula do pacto, que estabeleça regime diverso do previsto no art. 217°», ou, «na ausência de cláusula contratual que disponha de modo diverso, através de uma deliberação aprovada por uma maioria qualificada de 3/4 dos votos correspondentes ao capital social. Com este regime, pretendeu a lei alcançar uma solução de compromisso entre, por um lado, a vontade do(s) sócios(s) maioritários que, as mais das vezes, desde logo por estarem associados à gestão da empresa societária, pretenderão não distribuir lucros, e, por outro lado, o interesse do(s) sócios) minoritário(s) que, por via de regra, desejarão a maior distribuição possível do lucro. O equilíbrio destes dois interesses foi na nossa lei estabelecido através da exigência de um consenso mais alargado, obrigando a uma maioria qualificada (de 3/4 dos votos correspondentes ao capital social) para que possa deixar de ser distribuída aquela parcela correspondente a 50% do lucro de exercício distribuível. Com efeito, a cláusula contratual que estabeleça um regime diferente do regime legal supletivo poderá constar do pacto originário - e, nesse caso, terá resultado do consenso unânime dos sócios -, ou proceder de uma alteração superveniente, hipótese em que deverá ser aprovada pelo menos por 3/4 dos votos correspondentes ao capital social (cf. art. 265°)»; e, por «outro lado, é também esta a maioria que se exige para a aprovação válida de uma deliberação que vise não distribuir aquela parcela de 50% do lucro». No mesmo sentido, que nos parece ser inquestionável, podem ver-se os seguintes arestos: STJ 12.10.2010 (191/07.OTBVRM.G1.S1), Urbano Dias; STJ 16.12.2010 (1851/07.0TVVNF.P1.S1), Garcia Calejo; RG 09.03.2010 (191/07.0TBVRM.G1), Rosa Tching; RG 19.04.2010 (122/09.2TBVRM.G1), Espinheira Baltar; RC 21.12.2010 (210/09.5TBTCS.C1), Carlos Gil; RC 19.02.2013 (89/10.4TBTCS.C1), Henrique Antunes; RG 10.05.2018 (5396/15.7T8VNF.G2), Maria Cristina Cerdeira; RL 22.11.2022 (1163/21.7T8BRR.L1-1), Nuno Teixeira; RP 28.03.2023 (5197/20.0T8VNG.P1), Maria da Luz Seabra; e RL 14.12.2023 (12060/22.9T8SNT.L1-1), Amélia Sofia Rebelo. Neste conspecto, certo como é que a deliberação impugnada foi aprovada, em assembleia geral, por votos que correspondem a 95% do capital social da sociedade recorrida, temos de concluir que, nesta parte, a causa de pedir gizada pela Recorrente é inconcludente, pelo que a decisão recorrida, ao antecipar o juízo sob a improcedência do pedido de declaração de nulidade, não incorreu no error in iudicando que lhe foi imputado nas conclusões. *** 4).3.3. Cientes de que, como se afirma no citado RG 29.05.2024, “a norma [do art. 294/1] não prescinde (…) que o seu afastamento seja justificado pelo interesse social”, sob pena de inaceitável violação do direito dos sócios minoritários e do comprometimento dos interesses que fundaram a própria sociedade, vejamos agora se a deliberação pode ser considerada como abusiva em alguma das duas espécies enunciadas na alínea d) do n.º 1 do art. 58.Há pouco fizemos referência às vantagens e desvantagens da opção entre reter o lucro do exercício, constituindo reservas livres, ou proceder à sua distribuição entre os sócios, tanto na perspetiva da sociedade, como na dos sócios. Isto evidencia-nos que estamos perante matéria propícia a conflitos entre os diversos interesses individuais dos sócios e, bem assim, entre cada um deles e o interesse da sociedade. Como a experiência nos indica, não é raro que a opção pela retenção do lucro do exercício – necessariamente tomada por uma maioria representativa de 2/3 do capital social – prevaleça em detrimento do interesse dos sócios (minoritários) na sua distribuição. É perfeitamente configurável a hipótese de os sócios que compõem aquela maioria, através do voto por cada um deles expresso, não visarem o interesse social, mas um interesse egoístico, e inclusive um interesse que seja não apenas contrário ao prosseguido pelos demais sócios, mas também prejudicial para estes. É neste enquadramento – e tendo em vista as denominadas sociedades fechadas – i. é, aquelas que são compostas por um reduzido número de sócios, muitas vezes unidos por laços de confiança ou familiares, e que, consequentemente, apresentam cláusulas limitativas da transmissibilidade das ações – que Pedro Pais de Vasconcelos (A Participação Social cit., pp. 96-97) escreve que “a retenção de lucros é geralmente justificada com o argumento da necessidade de constituir reservas livres para robustecer a situação financeira da sociedade perante os perigos e incertezas de ordem económica de mercado, e até política, que sempre existem na circunstância. O argumento tem força persuasiva e normalmente corresponde à realidade; porém, não são raros os casos em que a retenção de lucros é feita com o objetivo oculto de prejudicar os acionistas minoritários, conduzindo-os à venda das suas ações aos sócios maioritários ou à própria sociedade ou a terceiros, por preços degradados correspondentes ao seu valor de rendimento.” No mesmo sentido, Evaristo Mendes (“Direito ao lucro e tutela das minorias nas sociedades por quotas e anónimas fechadas. Apontamento”, Revista de Direito Comercial, Liber Amicorum, 2020, pp. 1337-1394) escreve que, “em virtude de vicissitudes várias – incompatibilidades e desentendimentos entre sócios, incluindo de origem pessoal, que se projetam no funcionamento da sociedade, alteração da composição da coletividade de sócios e correspondente perda de homogeneidade da mesma decorrente da transmissão de participações sociais, mortis causa ou entre vivos, incluindo participações maioritárias, etc. –, muitas destas sociedades passam a funcionar com dois grupos: os maioritários, detentores do poder corporativo, conferido por uma maioria de capital, e titulares de cargos sociais remunerados (além de possíveis beneficiários de outras vantagens corporativas), e os minoritários, sujeitos a tal poder e sem acesso a tais cargos (e vantagens). Ou seja, tornam-se, quanto a estes, meras estruturas de poder censitário. Mas continuam a não distribuir lucros; ou a não o fazer de forma séria.” E, as mais das vezes, tais sócios maioritários, têm o seu interesse próprio ao lucro salvaguardado por via do exercício cumulado de cargos remunerados de gerência ou administração que, além da remuneração, lhes permitem beneficiar de outras vantagens financeiras. Daí que, como também escreve Evaristo Mendes (idem), não sintam “necessidade de – em complemento da remuneração dos cargos, não raro acrescida de importantes «gratificações» ou prémios de boa gestão – distribuir lucros e, ainda menos, adotar uma política de dividendos, no quadro do planeamento estratégico da atividade.” A deliberação de retenção do lucro do exercício, assim tomada para causar prejuízo aos sócios minoritários, será, indiscutivelmente, abusiva. Porque essa deliberação não visa a obtenção de uma vantagem especial para os sócios maioritários nem a causação de um prejuízo à sociedade – que, na verdade, até beneficia dele, pelo menos, de forma imediata, ao ver o seu património próprio aumentado –, mas apenas aos sócios minoritários, ela será enquadrável na segunda espécie – deliberações abusivas emulativas – a que fizemos referência, podendo ser anulada a pedido destes. O prejuízo imediato é por demais evidente: a lesão do direito de crédito dos sócios minoritários ao recebimento do quinhão no lucro do exercício, com o consequente esvaziamento do ativo que é a participação social, que assim não representará mais que “um investimento estéril, porque não remunerado”, como sugestivamente escreve Evaristo Mendes (“Direito ao lucro e tutela das minorias nas sociedades por quotas e anónimas fechadas cit., p. 1351), que acrescenta que “o fenómeno do sócio prisioneiro da sociedade (por falta de um direito de exoneração-desinvestimento geral e de mercado para a participação) e de um investimento que, apesar de afeto à atividade social, e sujeito ao risco inerentes a esta, e ao fim lucrativo da sociedade, é um investimento improdutivo (estéril) – constitui uma anomalia: mostra-se desprovido de racionalidade económica, contrário às razoáveis e legítimas expetativas de qualquer investidor e juridicamente injusto, podendo mesmo equivaler a uma (mal) disfarçada expropriação dos minoritários ou a um locupletamento à sua custa.” Como explica Pedro Pais de Vasconcelos (A Participação Social cit., pp. 97-98), a anulação da deliberação, com arrimo na alínea b) do n.º 1 do art. 58, constitui, em tais casos, um dos possíveis meios de tutela das minorias, não para que o tribunal sindique a conveniência para a sociedade da opção pela constituição de reservas, para o que lhe falta legitimidade, mas apenas a finalidade abusiva com que os sócios maioritários exerceram o seu direito de voto, por essa via contribuindo para a formação da deliberação impugnada. Explicando melhor esta afirmação, diremos que na aferição do caráter abusivo da deliberação de não distribuição de lucros de exercício haverá que atender às necessidades de autofinanciamento da sociedade. Estas dependem da ponderação conjugada de uma pluralidade de fatores, alguns deles cuja concretização é marcadamente aberta: haverá que considerar não só a situação financeira ao tempo da deliberação, mas também, entre outros, os projetos empresariais que a sociedade visa empreender no futuro ou os riscos que podem vir a atingir a sociedade e que podem justificar a criação ou o reforço de reservas. A concretização destes fatores insere-se no âmbito da discricionariedade empresarial, não podendo o tribunal imiscuir-se na esfera dos órgãos competentes para os definir ou, por regra, para sindicar a sua bondade, mas apenas para apurar da sua efetiva existência e seriedade. Trata-se, há que dizê-lo, de uma situação em que a prova, cujo ónus recai sobre o impugnante, não é fácil. Estão em causa, afinal, estados subjetivos dos sujeitos, que se reconduzem ao apontado dolo. Sabemos, porém, que as realidades de natureza psicológica constituem factos. Como se pode ler, a propósito, em STJ de 17.12.2019 (756/13.0TVPRT.P2.S1), Maria da Graça Trigo, “factos são não só os acontecimentos externos, mas também os estados emocionais e os eventos do foro interno, psíquico.” O que sucede, acrescentamos, citando RG 9.01.2025 (739/22.0T8GMR-H.G2), do presente Relator, é que a apreensão de tais realidades não pode ser feita de forma direta, mas através de factos probatórios que as permite inferir à luz das regras do id quod plerumque accidit. É o que explica Michele Taruffo, La Prueva de los Hechos, 2.ª ed., Madrid: Trotta, 2005, p. 166, quando escreve que “[q]uando o facto juridicamente relevante é verdadeiramente um facto psíquico (não redutível ou reconduzível a uma declaração), quase nunca é determinado diretamente. O verdadeiro objeto do conhecimento do juiz, pelo contrário, são indícios que tendem a ser recolhidos em esquemas tipificados, sob a premissa de que esses indícios típicos produzem com razoável segurança a determinação do facto psíquico em questão, ao qual a norma atribui consequências normativas. No entanto, é muito discutível a ideia de que, realmente, nestas situações, o juiz determina a verdade ou a existência de um facto psíquico interno da mesma forma que determina presuntivamente um facto material do qual não tem prova direta. Em vez disso, o que acontece é que o juiz conhece apenas indícios que se encaixam num esquema típico e, com base nesse conhecimento, considera subjacente o pressuposto de facto que se está a tentar determinar. Dizer que, neste caso, estamos perante uma determinação indireta, mas tipificada do facto psíquico é talvez uma complicação formal inútil. Daqui resulta que é provavelmente mais realista pensar que os factos psíquicos não são realmente determinados; são antes substituídos por uma constelação de indícios que são tipicamente considerados equivalentes a eles e que representam o verdadeiro objeto da determinação probatória. Em resumo, como também escreve Michele Taruffo, “o facto psíquico interno não existe como objeto de prova e a sua definição normativa é apenas uma formulação elíptica cujo significado se reduz às circunstâncias específicas do caso concreto.” Neste domínio, como também escreve Pedro Pais de Vasconcelos (A Participação Social cit., p. 98), “[n]a formação da decisão deve ser tida em conta a fundamentação da proposta de distribuição de resultados, exigida pela alínea f) do n.º 5 do art. 66.º do CSC”, a qual pode, no entanto, vir a ser desmentida pela realidade evidenciada através de qualquer outro meio de prova de que seja lícito lançar mão, inclusive da prova pericial. As dificuldades de prova explicam que alguma jurisprudência tenha chegado ao mesmo resultado recorrendo à cláusula geral da proibição do abuso do direito do art. 334 do Código Civil, em casos em que não ficou provado o propósito que é pressuposto da qualificação da deliberação como abusiva emulativa, enquadrando depois a situação na 1.ª parte da alínea a) do n.º 1 do art. 58, onde se prevê a anulabilidade das deliberações que “violem disposições quer da lei, quando ao caso não caiba a nulidade, nos termos do artigo 56.º, quer do contrato de sociedade.” A título de exemplo, vide RC de 6.03.1990 (CJ, XV, t. 2, pp. 45 e ss.) e STJ 7.01.1993 (BMJ, n.º 423, pp. 540 e ss.), com invocação de abuso do direito num caso em que, por um lado, a retenção se prolongava já por muitos anos e a sociedade não precisava dela e, por outro, deixava um sócio minoritário completamente privado da sua participação no lucro da sociedade, enquanto os sócios maioritários se atribuíam parte dos resultados a título de remunerações e gratificações de gerência. No mais recente RP 22.02.2021 (2532/16.0T8AVR.P2), Eugénia Cunha, num caso em que não ficou provado o propósito de prejudicar as sócias minoritárias, mas uma prática reiterada de não distribuição dos lucros do exercício, justificada pelo desinteresse dos sócios maioritários na sua perceção, posto que já auferiam retribuições enquanto titulares dos órgãos de gestão e de gerência da sociedade. Considerou-se que a deliberação afrontava a cláusula geral da proibição do abuso do direito e chegou-se à sua anulação por via do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 58, o que foi justificado, por remissão para a fundamentação exarada na decisão do Tribunal de 1.ª instância, do seguinte modo: “Volvendo ao caso dos autos, em que não se provou qualquer intento de prejudicar por parte dos sócios maioritários, e no qual o exercício abusivo do direito se surpreende, mais do ponto de vista objetivo, na desconsideração da sua função económica e social e dos limites impostos pela boa-fé, face ao direito das AA. de participar nos lucros, crê-se que é a aplicação do art. 58.º/1, al. a), do CSC, a justificada. Com efeito, nesta perspetiva, o conteúdo deliberação violou as disposições dos arts. 21.º/1, al. a), do CSC e 334.º do CC, não existindo, porém, elementos de facto suficientes para concluir que invadiu a fronteira, mais censurável segundo padrões de ética dominante, fornecida pelos bons costumes, nem sendo, essa averiguação, em rigor, necessária, visto que as AA. cumpriram todos os prazos e dispõem de toda a legitimidade para a ação de simples anulação. Por outro lado, também não encontramos motivos bastantes para recorrer ao art. 56.º/1, al. d), do CSC. É verdade que, nos termos do art. 22.º/3 do CSC, é nula uma cláusula que proíba algum sócio de quinhoar nos lucros, mas a maior gravidade da sanção da nulidade parece mais apropriada se dirigida ao próprio pacto social, por deste resultar uma proibição de acesso aos lucros, tendencialmente, por tempo indeterminado, i. é, para todo o tempo de existência da sociedade, e não tanto a respeito de uma deliberação cujos efeitos são restritos à exclusão de participar nos lucros de determinado exercício, neste esgotando a sua aplicação.” No mesmo sentido, RP 12.09.2011 (650/09.0TYVNG.P1), Soares de Oliveira, e RL 11.12.2019 (19495/19.2T8SNT.L1-1), Pedro Brighton. Na doutrina, António Menezes Cordeiro / Miguel Brito Bastos, “Art. 294.º, AAVV, António Menezes Cordeiro (coord.), Código das Sociedades Comerciais Anotado, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 1028. O mesmo resultado poderá ser alcançado, também, através do já referido princípio da lealdade, conforme sugerido por Evaristo Mendes (loc. cit., pp. 1374-1375, e, mais desenvolvidamente, “Lucros de exercício”, RDES, XXXVIII, 1996, pp. 257-364). *** 4).4. Assim traçado o estado da arte, impõe-se regressar à causa de pedir que foi gizada pela Recorrente na petição inicial em suporte da pretensão de anulabilidade da deliberação.Como escrevemos no relatório, a Recorrente afirma, ainda que se uma forma pouco substanciada e mesmo coloquial, pouco própria para constar da peça processual fundadora da ação, por definição destinada à exposição dos factos qua tale, sem considerações valorativas espúrias, que os demais sócios votaram a deliberação impugnada movidos designadamente, pelo objetivo de a despojarem de “qualquer valor”, assim a prejudicando no confronto com eles próprios, já beneficiados com um “leque de facilidades e regalias, que correspondem a uma encapotada distribuição de lucros.” Apesar de todas as aporias que apontamos à redação escolhida pela Recorrente, a alegação desta intenção dos ditos sócios maioritários é alcançada através da interpretação da peça processual, realizada segundo os cânones consagrados nos arts 236 e 238 do Código Civil – uma petição inicial (ou uma contestação) é, afinal, uma declaração de vontade dirigida ao tribunal e à parte contrária (cf. Paula Costa e Silva, Ato e Processo, Coimbra: Coimbra Editora, 2003, pp. 450-451; e E. Santos Júnior, “Ónus de impugnação e admissão por acordo de factos não impugnados (art. 490 do Código de Processo Civil)”, Cadernos de Direito Privado, n.º 12, Outubro / Dezembro de 2005, pp. 63-64) – sendo, assim, suficiente, do nosso ponto de vista, para considerar-se parte integrante da causa de pedir. E tanto assim deve ser entendido que a Recorrida, na contestação, a impugnou motivadamente, ao escrever, com apoio no relatório de gestão, que os votos dos sócios maioritários tiveram como propósito a prossecução de um plano de investimento de € 6 000 000,00 para os próximos dois anos, o qual passa pela construção de um pavilhão social, para o aumento e diversificação da sua produção. É neste ponto – no propósito dos sócios maioritários – que reside, grosso modo, o dissenso entre as partes. Se esse propósito tiver sido, ainda que a título meramente eventual, o de evitar que a Recorrente receba a sua parte no lucro do exercício de 2022, a que, de outra forma, teria direito, a deliberação será abusiva ut art. 58/1, b). Ainda que esse propósito não fique demonstrado, sempre poderá cogitar-se a possibilidade de o voto censitário dos sócios maioritários ter sido expresso ad nutum, por não existir, afinal, o proclamado projeto de investimento ou este não se apresentar como minimamente sério, mas ser apenas um esquema de dissimular a opção de não repartição dos lucros, do qual eles próprios estão salvaguardados, por portas travessas, através do “leque de facilidades e regalias” que lhes advém do exercício de cargos de administração. Ficará, então, aberto o caminho para que a deliberação possa ser enquadrada na alínea a), do n.º 1 do art. 58, seja por via do recurso à cláusula geral da proibição do abuso do direito, seja por via da infração ao princípio da lealdade. De acrescentar, finalmente, que é discutível que, em qualquer um destes possíveis enquadramentos jurídicos, a anulabilidade não prescinda da demonstração de que a deliberação impugnada se insere numa prática reiterada de retenção do lucro de exercício. Com efeito, está em causa um direito – o direito ao lucro do exercício – que se renova anualmente, pelo que a análise do contexto em que ocorre a sua preclusão por deliberação dos sócios maioritários deve ser feita atomisticamente, à luz das circunstâncias coevas. As opções pretéritas, podendo revelar um padrão, não serão mais que meros auxiliares nessa tarefa. *** 4).5. O que antecede, quando compaginado com o que escrevemos a propósito dos cuidados que devem ser observados pelo juiz no momento do saneamento, permite concluir que, salvo o devido respeito, a decisão da causa foi prematura no que tange ao pedido de anulabilidade da deliberação. Por um lado, existe uma realidade fáctica – o propósito, por parte dos sócios maioritários da Recorrida de, com os respetivos votos, evitarem o recebimento, pela Recorrente, da parte que lhe caberia no lucro do exercício de 2022, do qual eles próprios beneficiaram de forma indireta –, integrada no objeto do processo, que foi postergada sob o pretexto de ter sido alegada de forma vaga e genérica. A nosso ver, apesar de a alegação dessa realidade não ter sido feita com o rigor que se impunha, certo é que ela pode ainda ser alcançada através da interpretação da petição inicial. A provar-se, será possível a qualificação da deliberação como abusiva emulativa, com a sua consequente anulabilidade, ut art. 58/1, b). Por outro lado, mesmo sem aquela realidade fáctica, sempre subsiste a alegação de que os sócios maioritários da Recorrida, com os respetivos votos, não visaram a prossecução de qualquer interesse social, o que, à luz de conceções jurídicas, aceites na doutrina e na jurisprudência, poderá permitir a anulabilidade da deliberação por ser violadora da lei, seja da cláusula geral da proibição do abuso do direito, seja das normas jurídicas que consagram o denominado dever de lealdade, ut art. 58/1, a). Em qualquer uma destas hipóteses, a existência e seriedade do projeto de investimento – não a sua bondade – funcionará como o facto probatório que, à luz das regras do id quod plerumque accidit, sustentará um juízo sobre o propósito com que cada um dos sócios que contribuíram para a maioria exerceu o seu direito de voto. Tudo ponderado, o recurso merece provimento, nesta parte, havendo que revogar o despacho saneador no que tange ao conhecimento da pretensão de anulação da deliberação, para que a causa prossiga com a identificação do objeto do litígio e o enunciado dos temas da prova. *** 5). Parcialmente vencidas no presente recurso, Recorrente e Recorrida devem suportar as custas respetivas, na proporção de metade para cada: art. 527/1 e 2 do CPC.* V.Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em: (i)) Julgar o presente recurso de apelação parcialmente procedente e, em consequência, revogar o despacho saneador recorrido na parte em que conheceu do mérito da causa quanto à pretensão de anulação da deliberação tomada na assembleia geral da Recorrida de 8 de março de 2024, relativa à aplicação dos resultados líquidos do exercício de 2022, substituindo-o por decisão a determinar o prosseguimento da causa com a identificação do objeto do litígio e o enunciado dos temas da prova; (ii)) No mais, julgar o presente recurso improcedente, confirmando o despacho saneador recorrido na parte em que conheceu e julgou improcedente a pretensão de declaração de nulidade da referida deliberação. (iii)) Condenar Recorrente e Recorrida no pagamento das custas devidas pelo presente recurso, na proporção de metade para cada. Tendo em conta o alegado nos respetivos arts. 25 a 44, extraia e remeta à AT certidão da petição inicial, para os fins tidos por convenientes. Notifique. * Guimarães, 20 de fevereiro de 2025 Os Juízes Desembargadores, Relator: Gonçalo Oliveira Magalhães 1.º Adjunto: José Carlos Pereira Duarte 2.ª Adjunta: Susana Raquel Sousa Pereira [1] Disponível, como os demais indicados sem menção expressa do local de publicação, em www.dgsi.pt. [2] Para João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, I, Lisboa: AAFDL, 2022, pp. 97-98 e 102), o princípio da proibição das decisões-surpresa não surge como uma derivação do princípio do contraditório, mas como uma das vertentes do princípio da cooperação, mais concretamente enquanto dever de consulta do tribunal para com as partes. Segundo o autor, o “direito ao contraditório (…) possui um conteúdo multifacetado: ele atribui à parte não só o direito ao conhecimento de que contra ela foi proposta uma ação ou requerida uma providência e, portanto, um direito à audição antes de ser tomada qualquer decisão, mas também um direito a conhecer todas as condutas assumidas pela contraparte e a tomar posição sobre elas, ou seja, um direito de resposta.” Assim, o autor entende que o princípio do contraditório inclui o direito à audiência prévia e o direito de resposta, sendo que o tribunal apenas deve observar e fazer cumprir tal princípio (art. 3.º/3, 1.ª parte). Só muito impropriamente se pode afirmar que entre o tribunal e as partes existe um direito ao contraditório. Neste sentido, o dever de o juiz informar e consultar as partes sobre os aspetos de direito ou de facto que por elas não foram considerados, seja por enquadrar juridicamente a situação de forma diferente daquela que é a perspetiva das partes ou por conhecer oficiosamente determinada questão relevante para a decisão, não determina que tenha de ser exercido o contraditório, pois o responsável pela mutação não foi qualquer das partes, mas o tribunal e, portanto, a audiência prévia não terá como objetivo o exercício do direito de resposta de uma parte face às alegações da outra, mas a audiência das duas partes para estas tomarem posição quanto ao que o tribunal apresentou. Tendo isto presente, o autor conclui que a proibição das decisões-surpresa deve deixar de estar prevista no âmbito do contraditório, passando para a parte ode é tratado o princípio da cooperação. [3] De acordo com o princípio do dispositivo, cabe às partes “alegar factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas” (art. 5.º/1 do CPC). O encontra, porém, exceções, logo admitidas pelo n.º 2 do art. 5.º, de acordo com o qual, para além dos factos alegados pelas partes, o juiz considera ainda: a) os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) os factos complementares ou concretizadores que resultem da instrução da causa; c) os factos notórios; e, d) os factos que o juiz tenha conhecimento por virtude das suas funções. Sendo que para a matéria que ora nos ocupa aqueles que relevam são os dois últimos, os factos notórios e aqueles que o juiz tome conhecimento por virtude do exercício das suas funções, na medida em que são introduzidos no processo oficiosamente. [4] Esta afirmação deve ser burilada à luz do disposto no art. 278/3 do CPC, de acordo com o qual o conhecimento do mérito pode ganhar autonomia em relação à aferição dos pressupostos processuais no sentido de que, não obstante a falta de um destes, é possível o conhecimento do mérito da causa. Assim sucederá quando esteja em causa um pressuposto processual destinado a assegurar, em exclusivo, os interesses da parte e a decisão de mérito se apresente como favorável a essa parte. A propósito, Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2.ª ed., Lisboa: Lex, 1997, pp. 82-86, e António Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, I, Coimbra: Almedina, 1997, p. 29, nota 16. [5] Diploma ao qual pertencem as disposições legais daqui em diante citadas sem menção expressa da respetiva proveniência. |