Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
721/18.1T8BRG.G1
Relator: MARIA DA CONCEIÇÃO SAMPAIO
Descritores: CUMULAÇÃO ILEGAL DE PEDIDOS
FORMA DE PROCESSO
QUESTÕES PRÉVIAS À PARTILHA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/09/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Para a verificação de incompatibilidade substancial os pedidos terão de ser formulados em cumulação, para serem todos eles atendidos, em simultâneo, terá de tratar-se de uma cumulação pura e simples ou simultânea em que o autor pretende a procedência, por igual, de todos os pedidos.

II - Caso se considere que há um pedido principal e um secundário, então, pela natureza das coisas, está implícito o pensamento do autor de fazer valer sempre a pretensão principal, ainda que a secundária não possa vingar, devendo o processo prosseguir para conhecimento daquela.

III - Sendo todos os pedidos principais e equivalentes entre si, o tribunal se der por verificada uma incompatibilidade substancial suscetível de gerar a ineptidão da petição inicial, deverá convidar o autor a aperfeiçoar a petição inicial, mediante a escolha do pedido que pretende que seja apreciado na ação.

IV - Nada impede que, no mesmo processo, se cumule o pedido de condenação do devedor a satisfazer o crédito e o do terceiro adquirente nos efeitos da impugnação pauliana.

V - Não existe erro na forma de processo quando o interessado, mesmo antes da instauração do processo de inventário para a respetiva partilha, recorre à ação comum para ver resolvida a questão da natureza de determinado bem, existência de benfeitorias e seu valor, e crédito dai resultante a seu favor, sendo a ação comum a mais adequada à resolução de questões prejudiciais complexas.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I - RELATÓRIO

Inconformado com a decisão que julgou a petição inicial inepta por existir contradição nos pedidos formulados pelo Autor, e que, mesmo que não se considerasse existir tal contradição verificava-se erro na forma do processo, assim absolvendo os Réus da instância, veio o Autor (…), interpor recurso, finalizando com as seguintes conclusões:

1. Por decisão proferida pelo Tribunal recorrido datada de 16.01.2019 indeferiu aquele Tribunal liminarmente o pedido deduzido pelos 2.º e 3.º réus contra o Autor e 1.ª Ré, quanto ao valor de 231.893,05 Eur. (duzentos e trinta e um mil, oitocentos e noventa e três euros e cinco cêntimos), acrescido do valor das obras em curso e declarar nulo todo o processo, nos termos dos artºs. 186.º, n.º 1 e n.º 2, al. c), e n.º 4, 196.º e 278.º, n.º 1, al. b), 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º al. b) e 578.º, todos do C.P.Civ, por ineptidão da petição, e em consequência absolvem-se os réus da instância e “ainda que assim não se entenda, decide-se declarar nulo todo o processo, nos termos dos artºs. 193.º, 196.º e 278.º, n.º, al. b), 576.º, nºs 1 e 2, 577.º al. b) e 578.º, todos do C.P.Civil, por erro na forma de processo, não sendo nenhum acto aproveitável e, em consequência, absolvem-se os réus da instância”.
2. O Tribunal recorrido sustenta na decisão ora em crise que a petição inicial é inepta por existir contradição nos pedidos formulados pelo Autor, e que, mesmo que não se considere existir tal contradição verifica-se in casu erro na forma do processo.
3. No caso concreto não se verifica nem contradição entre os pedidos formulados pelo Autor que determine a ineptidão da petição inicial, nem erro na forma de processo.
4. Da análise a petição inicial no seu todo, bem como os pedidos formulados pelo Autor, é, pois, possível destrinçar dois blocos de pedidos.
a) Um primeiro bloco constituído pelos pedidos formulados pelo Autor nas alíneas a) e b) respeitante ao pedido de condenação da Ré no pagamento de indemnizações que são devidas ao Autor em virtude da dissolução do vínculo conjugal, relativos à benfeitoria erigida num prédio rústico que é propriedade da ora Ré, benfeitoria essa construída em parte com bens próprios do ora Autor e noutra parte com bens comuns do casal.
b) Num segundo bloco, constituído pelas alíneas c) e d) do pedido formulado pelo Autor é peticionada a condenação do terceiro adquirente dos bens nos efeitos da impugnação pauliana do acto lesivo da garantia patrimonial do crédito do ora Autor.
5. No caso sub judice os pedidos formulados pelo Autor estão interligados entre si, pois os dois últimos pedidos correspondentes às al.s c) e d) apenas podem proceder, se, pelo menos um dos primeiros (os constantes nas alíneas a) e b) for igualmente julgado procedente, porquanto o reconhecimento da existência de um crédito é pressuposto da procedência da impugnação pauliana.
6. Analisando o trecho da sentença ora em crise onde o Tribunal recorrido aborda a questão da incompatibilidade dos pedidos, é notório que o Tribunal recorrido labora em erro porquanto parte do pressuposto de que o direito de crédito do Autor emerge contrato de compra e venda celebrado entre os Réus quando este, na realidade, decorre da dissolução do vínculo matrimonial que o ligava à 1º Ré, servindo o referido contrato apenas como bitola para o cálculo dos valores indemnizatórios devidos pela 1ª Ré ao Autor.
7. Ao contrário do afirmado pelo Tribunal recorrido, ao formular os pedidos vertidos nas alíneas c) e d), mais concretamente ao peticionar a ineficácia do negócio ora em causa, o Recorrente não está a pugnar pela anulação do acto, pois nas acções de impugnação o acto é válido, está perfeito em todos os seus requisitos mas por razões exógenas (como a lei privilegiar o interesse do credor em relação ao terceiro adquirente torna-se ineficaz.
8. O Tribunal Recorrido considerou ainda existir in casu erro na forma de processo, porquanto no entendimento do mesmo, o autor optou pelo processo comum, quando deveria ter intentado um processo especial de inventário.
9. Acontece que, a definição de conflitos entre os cônjuges não pode estar condicionada pela instauração, pendência ou finalização de uma acção de divórcio nem tem que aguardar pela futura e eventual instauração de processo de inventário para efeitos de partilha dos bens comuns do casal, podendo verificar-se a necessidade de obter uma antecipada clarificação da situação, configurando entendimento contrário a negação ilegítima do direito de acção genérica e amplamente consagrado no art. 2º, nº 2, do CPC, nos termos do qual, detectado um direito material, o respectivo titular pode obter o seu reconhecimento judicial, não existindo apoio algum para se concluir que o direito fique a aguardar a ocorrência de um evento futuro e incerto.
10. Destinando-se o processo de inventário a partilhar bens comuns do casal, a resolução antecipada de questões prejudiciais
a) permite simplificar e abreviar a tramitação do processo de inventário;
b) evita ainda que, mais tarde, os interessados sejam remetidos para os meios comuns,
c) permite ganhos de celeridade quando a delimitação entre os bens comuns e os bens próprios seja antecipadamente feita em acção declarativa com processo comum.
d) proporciona ganhos ao nível da justiça material, pois a imediata discussão da questão, sem aguardar pela finalização da acção de divórcio e pela eventual instauração do processo de inventário permite atenuar os efeitos erosivos que o decurso do tempo provoca ao nível de determinados meios probatórios, como ocorre com os depoimentos testemunhais que porventura intervenham para dilucidar a questão.
11. No caso em apreço não se verifica in casu erro na forma do processo, dada a natureza dos pedidos cumulados e a complexidade das questões suscitadas nos presentes autos, e a mais que provável remessa dos interessados para os meios comuns para resolver as questões suscitadas nos presentes autos.

Pugna o Recorrente pela procedência do recurso e, em consequência, pela revogação da douta decisão recorrida, substituindo-se por outra que ordene o prosseguimento dos autos e conheça dos pedidos formulados pelo Autor.
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Foram apresentadas contra-alegações concluindo os Recorridos pela manutenção do decidido.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

A questão decidenda a apreciar, delimitada pelas conclusões do recurso, consiste em saber se se verifica:

- contradição entre os pedidos formulados pelo Autor que determine a ineptidão da petição inicial;
- erro na forma de processo.
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III – FUNDAMENTAÇÃO

Para a apreciação das questões decidendas, os elementos a considerar são os seguintes:

1. O Autor na sua petição inicial formula os seguintes pedidos:

a) Seja a 1.ª ré condenada a pagar-lhe o valor de 63.631,88 Eur., correspondente ao valor atualizado e então usado para suportar os custos iniciais da moradia que foi construída no prédio doado pelos pais daquela à mesma, e enquanto eram casados;
b) Seja a 1.ª ré condenada a pagar-lhe o valor de 39.862,20 Eur., correspondente à meação do autor na indemnização devida pela 1.ª ré ao património comum do ex-casal pela construção da aludida benfeitoria (prédio edificado);
c) Ser decretada a ineficácia em relação ao autor do ato de compra e venda do prédio edificado/benfeitoria, por escritura outorgada entre a 1.ª ré e o 3.º réu, agindo este em representação do 2.º réu;
d) Ser ordenado ao 2.º réu – procurador do 3.º réu, a restituição do prédio, de modo a que o autor se possa pagar à custa dele.

2. Para sustentar estes pedidos, o Autor alega, sumariamente o seguinte:

- O autor foi casado com a 1.ª ré e que tal casamento foi dissolvido por divórcio decretado a 20.02.2014, mas que só a partir de Agosto de 2016 cessaram em definitivo a comunhão de cama, mesa e habitação;
- Em 5 de Abril de 1994, os pais da 1.ª ré procederam à doação à mesma, por conta da sua quota disponível, de um prédio rústico, prédio onde o autor e a 1.ª ré vieram a construir a sua casa de morada de família, tendo ali edificado uma casa de habitação de rés-do-chão com cinco divisões e a área de 199 m2, com um logradouro e terreno de lavradio;
- O custo inicial dessa construção foi suportado com o dinheiro proveniente de uma indemnização recebida pelo autor em 1997, no valor de 8.500.000$00 (oito milhões e quinhentos mil escudos), além disso, o autor e a 1.ª ré socorreram-se de crédito bancário obtido junto da Caixa ..., para o que celebraram os mútuos que identifica no art. 18.º da petição, para garantia dos quais foram constituídas as hipotecas referidas no art. 19.º da petição;
- Este prédio foi penhorado a 1.3.2017 no âmbito do processo executivo n.º (…) do 2.º Juízo de execução de Vila Nova de Famalicão, em que é exequente o (…) e credor reclamante a (…);
- Como na data da penhora o autor e a 1.ª ré ainda não haviam procedido à partilha do património comum, acordaram vender o prédio para proceder ao pagamento dos créditos reclamados, celebrando um contrato de mediação imobiliária;
- Porém, a 2.11.2017 soube o autor que a 1.ª ré, e por escritura pública lavrada a 31.10.2017, vendeu o prédio ao ora 2.º réu, naquele ato representado pelo 3.º réu, sem que lhe tenha dado conhecimento disso.
- Não obstante reconheça que o imóvel é um bem próprio da 1.ª ré, porquanto a casa foi edificada sobre um bem próprio dela (prédio rústico doado), mostra-se inviabilizada a partilha dos bens do casal, em sede de inventário, porque já não pode ali ser relacionada a benfeitoria correspondente, não podendo ele reclamar o valor despendido com o arranque da construção (dinheiro exclusivamente seu) e o valor correspondente à metade que lhe caberia no património comum do casal;
- A 1.ª ré locupletou-se injustificadamente à sua custa, enriquecendo o seu património, pelo que deve ser obrigada a pagar-lhe a indemnização que corresponda aos valores que indica.
- O prédio era o único bem susceptível de assegurar o pagamento das quantias devidas, estando impedido o autor de obter o pagamento do seu crédito à custa do produto da venda do imóvel, o que o 2.º e o 3.º réu não podiam ignorar, já que tiveram acesso à documentação relativa ao mesmo, de onde resultava que o prédio rústico (onde foi edificada a casa) doado à 1.ª ré o havia sido na constância do matrimónio de autor e 1.ª ré, pelo que agiram com ela conluiados, para impedir que o autor recebesse qualquer quantia decorrente da venda feita a 31.10.2017;
- Deve ainda ser declarada a ineficácia da aludida venda em relação a si próprio, aqui autor.

3. Teor da decisão recorrida:

«(…) as pretensões deduzidas pelo autor em juízo são substancialmente incompatíveis.

É que o autor peticiona, por um lado, a condenação da 1.ª ré, a título indemnizatório, no pagamento dos valores de 63.631,88 Eur., este correspondente ao valor actualizado em dinheiro que alegadamente lhe pertencia e que foi usado para financiar o início da construção da casa, e de 39.868,20 Eur., este correspondente ao valor da sua meação no património comum pela edificação da benfeitoria referida, alegando que tais créditos decorrem da cessação das relações patrimoniais do ex-casal, e que com a transmissão do prédio ao 2.º réu a 31.10.2017, a 1.ª ré se locupletou com a totalidade do preço recebido, sem que tenha feito a necessária conferência de valores ao património comum, por outro lado, peticiona que se decrete a ineficácia em relação a ele próprio do aludido negócio celebrado a 31.10.2017, já que o mesmo foi celebrado com o intuito de impedir o pagamento dos seus créditos sobre o património comum, por ser o bem seu objecto (a benfeitoria – prédio misto) o único bem susceptível de garantir o pagamento desses aludidos créditos.

Ou seja, o autor deduz os pedidos de 1) e 2) partindo do pressuposto de que o negócio celebrado entre a 1.ª ré e o 2.º réu, representado pelo 3.º réu, e através da escritura realizada a 31.10.2017, é válido e eficaz, pelo que fez nascer na sua esfera o direito de reclamar no património comum a sua quota-parte, por se tratar o imóvel de uma benfeitoria útil e que não pode ser levantada sem detrimento do prédio onde foi realizada, mas depois deduz, e de forma cumulativa, os pedidos de 3) e 4), de declaração de ineficácia do mesmo negócio, celebrado através da aludida escritura de 31.10.2017, por estar impossibilitado de proceder à satisfação do seu crédito à custa do produto da venda do imóvel onde foi edificada a benfeitoria.

Não pode o autor invocar, em simultâneo, e para justificar o pedido de reconhecimento judicial de diferentes direitos, a validade e a invalidade do mesmo negócio jurídico.

Não pode o autor pedir que se reconheçam créditos sobre o património comum decorrentes da validade de uma compra e venda do prédio sobre o qual foi construída a casa de morada de família (benfeitoria), e ao mesmo tempo pedir que se reconheça que essa mesma compra e venda é ineficaz em relação a si, por inválida, visto que celebrada para o prejudicar, por conluio dos co-réus, para que ele fosse impedido de se pagar à conta do produto da venda desse mesmo prédio.

E também não pode o autor pedir que se declare a ineficácia do negócio em relação a si, socorrendo-se do disposto no art. 610.º do Código Civil, e depois solicitar que se condene o 2.º réu/adquirente do prédio à restituição do prédio (leia-se à transmitente, a aqui 1.ª ré) para que ele se pague à sua conta.

A declaração de ineficácia da compra e venda é também incompatível com a declaração de restituição do bem objecto da mesma ao transmitente, visto que julgada procedente, o credor tem direito à restituição do bem na medida do seu interesse, podendo executá-lo no património do obrigado à restituição (art. 616.º, nºs 1 e 4 do Cód. Civil).

O direito atribuído ao credor impugnante à restituição dos bens alienados ao património do devedor, significa, em primeiro lugar, que o credor impugnante pode executar os bens alienados como se eles não tivessem saído do património do devedor. Como tal, os bens não têm que reverter ao transmitente, permanecendo, antes, no património do obrigado à restituição, onde respondem pela obrigação.

A situação descrita consubstancia assim um caso de cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, pois os efeitos jurídicos que se pretendem obter por via dos aludidos quatro pedidos são por natureza inconciliáveis.

Como ensina Antunes Varela (in "Manual de Processo Civil", 2.ª ed., pág. 246, nota 4), "devem considerar-se incompatíveis não só os pedidos que mutuamente se excluem, mas também os que assentam em causas de pedir inconciliáveis". E aponta como exemplo o caso em que o autor, depois de arguir a anulabilidade do contrato, pede a sua anulação e, ao mesmo tempo, a condenação do réu na principal prestação nascida do contrato (como se fosse válido).

Também Abrantes Geraldes (in "Temas da Reforma do Processo Civil", Tomo I, 2a ed, pág. 131), escreve (citando Rodrigues Bastos, "Notas ao CPC", voI. I, pág.388) que a expressão "pedidos incompatíveis" tem o significado de não poderem ser ambos acolhidos sem se admitir uma contradição interna na ordem jurídica.

No presente caso, em face do já exposto, temos de concluir que os pedidos formulado estão numa relação de incompatibilidade total, quer o 1) e o 2) com o 3) e o 4), quer o 3) com o 4).

Do erro na forma de processo:

Caso não se entenda existir uma ineptidão da petição inicial, e acautelando já a eventual inovação, em sede de recurso, de entendimento jurídico diverso, que venha a merecer procedência, impõe-se ainda dizer que também existe erro na forma de processo.

Em sede de audiência prévia foram as partes alertadas para a circunstância de, atenta a causa de pedir da acção, e bem assim a da reconvenção deduzida pela 1.ª ré, entender o Tribunal que a finalidade última dos autos é a partilha do acervo patrimonial, activo e passivo, do autor e da 1.ª ré, em virtude da dissolução do seu casamento, conforme o disposto no art. 1689.º do Código Civil.
De facto, e considerados os pedidos formulados em 1) e 2) pelo autor, e ainda o pedido reconvencional da 1.ª ré, entendemos que está em causa a partilha entre o ex-casal do direito de crédito decorrente da realização de uma benfeitoria no prédio rústico doado à 1.ª ré a 5 de Abril de 1994 pelos seus pais e do passivo entretanto liquidado aos credores hipotecários.

De facto, na petição o autor alega que após a aludida doação à 1.ª ré, decidiu o casal realizar a construção da sua casa de morada de família naquele prédio rústico, para o que usaram, para financiar a respectiva construção, uma tranche inicial em dinheiro que pertencia em exclusivo ao autor, por ser proveniente de uma indemnização que lhe foi paga, e ainda o valor obtido com o financiamento que pediram para o efeito à (…).

O custo final daquela construção importou no total de 102.253,56 Eur. (cento e dois mil, duzentos e cinquenta e três euros e cinquenta e seis cêntimos), sendo que a casa ficou pronta e passou a ser por eles habitada desde 2002 até Agosto de 2016, data em que cessaram de facto a coabitação.

Mais alega o autor que, em face de dificuldades económicas entretanto surgidas, o prédio em causa foi objecto de uma penhora (prédio aí já descrito como prédio misto, composto de casa de rés-do-chão, com logradouro e terreno de lavradio), pelo que decidiram o autor e a 1.ª ré proceder à sua venda por forma a liquidar os créditos reclamados na execução n.º (…), tendo para o efeito celebrado um contrato de mediação com a sociedade imobiliária “(…).”.

Quando existia já uma pessoa interessada na aquisição e pelas condições fixadas, redigido que foi o contrato promessa de compra e venda a 6.09.2017, só o autor e a aludida interessada compareceram nas instalações da “…” para assinar o mesmo, escusando-se a 1.ª ré a comparecer para tal efeito.

No dia 2.11.2017 teve o autor conhecimento de que a 1.ª ré transmitiu o prédio ao 2.º réu, por meio de escritura pública outorgada a 31.10.2017, sem que previamente tivesse sido feita a partilha dos bens que integram o património comum do dissolvido casal (art. 49.º da pi), e sem que a 1.ª ré tivesse dado prévio conhecimento ao autor das condições da venda, e sem obter o seu consentimento.

Alega ainda o autor que, tendo a casa de morada de família sido edificada sobre um bem próprio da 1.ª ré, porque edificada sobre um bem doado à mesma pelos seus pais, a mesma adquiriu a qualidade de bem próprio, deve ser indemnizado pelo valor das despesas feitas para a sua construção – por estar em causa uma benfeitoria útil, que não pode ser levantada sem detrimento do prédio sobre a qual foi edificada. Deve pois o valor da benfeitoria ser relacionado como crédito do património comum do casal, que responde pelo passivo comum.

Como por via da transmissão a terceiro impediu a 1.ª ré a partilha desse crédito, deve agora ser condenada a indemnizá-lo, sob pena de enriquecimento sem causa.

Recortada assim a petição inicial e, em particular, os pedidos nela formulados, percebemos que o interesse primário ou final do autor consiste de facto na partilha do direito de crédito derivado da benfeitoria realizada no prédio rústico doado à 1.ª ré pelos seus pais e na partilha do passivo entretanto liquidado, e que já existia na data do divórcio (20.02.2014), mas que não foi por eles conferido/partilhado pois se mantiveram ainda assim a residir em comunhão de leito, mesa e habitação pelo menos até Agosto de 2016, momento em que decidiram prosseguir vidas separadas. Pedido que o autor justifica só agora ser feito pelo facto de a 1.ª ré ter vendido o aludido prédio a 3.º, o que, na óptica daquele, fez nascer na sua esfera o direito de reclamar tais valores.

Perante a factualidade acima indicada pode concluir-se, com toda a segurança, que o que o autor pretende é o relacionamento e a subsequente partilha, do património comum do casal que já existia à data do divórcio. Porém, e para este efeito lançou o autor mão da presente acção de processo comum.

E, efectivamente, como se sabe, a todo o direito há de corresponder uma acção (art. 2.º, n.º 2 do C.P.Civil.). Mas não qualquer acção.

Ora, a partilha subsequente a separação judicial de bens ou divórcio, conforme resulta do disposto, conjugadamente, nos artºs. 1689.º, 1770.º, 1788.º, 1790.º, 2101.º e 2102.º, todos do Código Civil; e artºs. 2.º, n.º 3, 3.º, n.º 6 e 79.º a 81.º, todos da Lei n.º 23/2013 (Regime Jurídico do Processo de Inventário, de ora em diante só designada por RJPI), deverá, na falta de acordo entre os cônjuges, ser feita mediante processo especial de inventário a correr termos no cartório notarial territorialmente competente.

Será nesse processo especial que deverão ser relacionados os bens próprios e os bens comuns do casal, sendo a relação passível de reclamação (art. 32.º, por força do art. 79.º, do RJPI), a tramitar em conformidade com o disposto nos artºs. 35.º e 36.º do mesmo diploma.

O autor optou pelo processo comum, quando deveria ter intentado um processo especial de inventário.

E a tal não obsta, salvo o devido respeito, a ocorrência de transmissão do prédio a terceiro, esta transmissão em nada inviabiliza a pretensão do autor, já que como o próprio reconhece o bem transmitido é um bem próprio da 1.ª ré, logo o mesmo apenas é levado ao inventário, não para partilha, mas para integrar o património do cônjuge a que pertence, no caso sendo conferido à 1.ª ré, e para responder pelo passivo da exclusiva responsabilidade dela e, eventualmente, responder pelo passivo comum, enquanto o valor das despesas efectuadas para a edificação desse bem – despesas com a construção do prédio urbano edificado sobre o rústico doado, serão relacionadas como crédito sobre o património comum.

Caso se verifique, após as operações de partilha previstas no art. 1689.º do Código Civil, que o autor é credor da 1.ª ré, e que esta tem a pagar tornas ao autor, homologada a partilha, disporá este de uma sentença que pode executar contra a 1.ª ré, caso aquele valor não seja voluntariamente liquidado.

Resumindo, a Lei n.º 23/2013 estabeleceu o regime jurídico do processo de inventário, atribuindo a competência regra para o mesmo aos notários, sem prejuízo da atribuição de competência residual ao tribunal para a resolução de problemas específicos (art. 3.º do RJPI).

E, é consabido, as normas sobre distribuição de competências entre as várias entidades públicas e sobre as formas processuais de que as pessoas se podem socorrer para fazer valer os seus direitos são normas de direito público, insusceptíveis de serem afastadas por vontade dos particulares.

Pelo que o presente processo comum é impróprio para a dedução dos pedidos 1) e 2), havendo ainda quem entenda que, por força disso, o tribunal é materialmente incompetente para a tramitação do mesmo.

Porém, entendemos não apreciar sequer a questão relativa à eventual incompetência absoluta do Tribunal, em razão da matéria, na medida em que a mesma questão apenas se coloca entre Tribunais e não entre Tribunais e outras entidades – vejam-se os arts. 64.º e 99.º, n.º 2, do C.P.Civil.

Dispõe a este propósito o art. 193.º do C.P.Civil o seguinte: «1. O erro na forma do processo importa unicamente a anulação dos actos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se unicamente os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida na lei. 2. Não devem, porém, aproveitar-se os atos já praticados se do facto resultar uma diminuição de garantias do réu. 3. O erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte é corrigido oficiosamente pelo juiz, determinando que se sigam os termos processuais adequados.».

No caso, existe um erro na forma do processo, que determina a nulidade de todos os actos praticados, posto nenhum (desde logo a petição) pode ser aproveitado, sendo tal nulidade de conhecimento oficioso e constituindo excepção dilatória insuprível.
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A decisão recorrida assenta a verificação da contradição de pedidos na consideração de que não pode o autor invocar, em simultâneo, a validade e a invalidade do mesmo negócio jurídico. Explicita que não pode o autor pedir que se reconheçam créditos sobre o património comum decorrentes da validade de uma compra e venda do prédio sobre o qual foi construída a casa de morada de família (benfeitoria), e ao mesmo tempo pedir que se reconheça que essa mesma compra e venda é ineficaz em relação a si, por inválida, visto que celebrada para o prejudicar, por conluio dos co-réus, para que ele fosse impedido de se pagar à conta do produto da venda desse mesmo prédio.

Cremos, ressalvado o muito respeito, que os pedidos formulados pelo Autor e os fundamentos que o sustentam não assentam na invocação, simultânea, da validade e invalidade do mesmo negócio jurídico.

Analisando a petição inicial no seu todo, bem como os pedidos formulados pelo Autor, é possível destrinçar dois conjuntos de pedidos.

O primeiro, constituído pelos pedidos formulados nas alíneas a) e b), respeita ao pedido de condenação da Ré no pagamento de indemnizações devidas ao Autor em virtude da dissolução do vínculo conjugal, relativos à benfeitoria erigida num prédio rústico que é propriedade da Ré, construída em parte com bens próprios do Autor e noutra parte com bens comuns do casal.

Num segundo grupo, constituído pelos pedidos das alíneas c) e d), é pedida a condenação do terceiro adquirente dos bens nos efeitos da impugnação pauliana do ato lesivo da garantia patrimonial do crédito do Autor.

Para a verificação de uma incompatibilidade substancial os pedidos terão de ser formulados em cumulação, para serem todos eles atendidos, em simultâneo, terá de tratar-se de uma cumulação pura e simples ou simultânea em que o autor pretende a procedência, por igual, de todos os pedidos.

Por outro lado, como a propósito ensina Anselmo de Castro, só interessa “a contradição lógica, a incompatibilidade material entre os pedidos, e já não o enquadramento ou qualificação a fazer dos factos segundo a lei” (1).

Quer no caso de pedidos alternativos, em que o autor põe os pedidos disjuntivamente, à escolha do réu, quer no caso de pedidos subsidiários, em que o autor deduz um dos pedidos a título principal, e outro ou outros apenas como pedidos de recurso, não se está perante uma verdadeira cumulação de pedidos: há uma pluralidade, mas é aparente ou apenas formal, visto que o autor não pretende fazer valer, simultaneamente, os vários pedidos, só se propondo obter o reconhecimento de um deles (2).

Por outro lado, ainda, no caso de pedidos sequenciais em que o autor formula um pedido principal e, na procedência deste, formula outro ou outros pedidos, estamos perante uma cumulação sucessiva, que não poderá nunca dar lugar à ineptidão porque há um pedido principal.

No caso, o Autor formula os pedidos todos a título principal, embora os pedidos c) e d) pressuponham, ou tenham por fundamento, a procedência dos primeiros. Quer dizer, a pretensão de impugnação pauliana encontra-se formulada para ser exercida em cumulação com a por si deduzida de reconhecimento do crédito e para o caso de procedência desta.

Caso se considere que há um pedido principal e um secundário, então, pela natureza das coisas, está implícito o pensamento do autor de fazer valer sempre a pretensão principal, ainda que a secundária não possa vingar, devendo o processo prosseguir para conhecimento daquela.

Sendo todos os pedidos principais e equivalentes entre si, o tribunal se desse por verificada uma incompatibilidade substancial suscetível de gerar a ineptidão da petição inicial, sempre deveria convidar o autor a aperfeiçoar a petição inicial, mediante a escolha do pedido que pretende que seja apreciado na ação.

As razões que justificam a solução prevista no artigo 38º para a coligação ilegal -escolha pelo autor do pedido com o qual o processo deve prosseguir - mantém validade para o caso de dedução de pedidos incompatíveis (3).

Esta é a solução que emerge como única à luz das novas conceções contempladas pelo Novo Código de Processo Civil assente em preocupações de justiça material e economia processual, para o efeito reforçando os poderes processuais do juiz.

Daqui resulta que, no caso, seja qual for o entendimento que se adote, nunca a solução poderá ser a da ineptidão da petição inicial, com a absolvição dos réus da instância.

Prosseguindo, agora, numa análise substantiva vejamos, então, se a situação descrita consubstancia um caso de cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, por os efeitos jurídicos que se pretendem obter por via dos pedidos formulados são por natureza inconciliáveis.

A dedução cumulativa de pedidos entre si absolutamente incompatíveis implica contradição no objeto do processo que impede a sua necessária identificação.

A afetação do vício é de tal ordem que, seguindo os exemplos dados por Lebre de Freitas, não tem condições para a decisão de mérito pretendida o processo em que seja, pedida ao mesmo tempo, a efetivação duma prestação e a omissão de a realizar, a resolução dum contrato e a condenação do réu no seu integral cumprimento, ou o direito de propriedade do autor sobre coisa que, ao mesmo tempo, ele alegue ter adquirido por compra e venda e por transmissão sucessória (4).

Na decisão recorrida entendeu-se que o autor invocava, em simultâneo, e para justificar o pedido de reconhecimento judicial de diferentes direitos, a validade e a invalidade do mesmo negócio jurídico.

Assim não é.

A questão da validade ou invalidade do negócio jurídico não é sequer fundamento ou pressuposto em que assente as pretensões formuladas pelo Autor.

Quanto à primeira pretensão, a mesma não assenta no pressuposto de que o direito de crédito do Autor emerge do contrato de compra e venda celebrado entre os Réus, antes decorre da dissolução do vínculo matrimonial que o ligava à Ré.

O contrato de compra e venda celebrado entre os Réus, mais concretamente o valor pelo qual foi vendido o imóvel, apenas releva como referente para cálculo dos valores indemnizatórios devidos pela Ré ao Autor.

Quanto à segunda pretensão (impugnação pauliana), o Autor ao pedir a ineficácia do negócio, não está a pugnar pela invalidação do ato, antes pressupõe a sua validade, está só a lançar mão de um meio de conservação da garantia do cumprimento da obrigação.

Como se decidiu no recente acórdão do STJ de 15/01/2019, “O regime da impugnação pauliana caracteriza-se, quanto aos efeitos da procedência da respectiva ação, enquanto direito pessoal de restituição, porquanto o acto visado não é afectado na sua validade intrínseca, apenas deixa de produzir efeitos em relação ao credor impugnante e só na medida do seu interesse, ou seja, uma vez satisfeito o direito do credor o acto impugnado permanece integralmente válido” (5).

É orientação doutrinal e jurisprudencial uniforme a admissibilidade, no mesmo processo, do pedido de reconhecimento de um crédito e condenação do devedor na sua satisfação em cumulação com o pedido de impugnação pauliana.

A este propósito, escreve Cura Mariano que “nada impede que, no mesmo processo, se cumule o pedido de condenação do devedor a satisfazer o crédito e o do terceiro adquirente nos efeitos da impugnação pauliana, ao abrigo do disposto no art. 30º do CPC” (6).

Os pedidos estão interligados entre si, pois os dois últimos apenas podem proceder, se, pelo menos um dos primeiros for igualmente julgado procedente (o reconhecimento da existência do crédito é pressuposto da procedência da impugnação pauliana).

Adianta-se ainda na decisão recorrida que também não pode o autor pedir que se declare a ineficácia do negócio em relação a si, socorrendo-se do disposto no art. 610.º do Código Civil, e depois solicitar que se condene o 2.º réu/adquirente do prédio à restituição do prédio (leia-se à transmitente, a aqui 1.ª ré) para que ele se pague à sua conta. A declaração de ineficácia da compra e venda é também incompatível com a declaração de restituição do bem objecto da mesma ao transmitente, visto que julgada procedente, o credor tem direito à restituição do bem na medida do seu interesse, podendo executá-lo no património do obrigado à restituição (art. 616.º, nºs 1 e 4 do Cód. Civil). Acrescenta-se na decisão sindicanda que o direito atribuído ao credor impugnante à restituição dos bens alienados ao património do devedor significa, em primeiro lugar, que o credor impugnante pode executar os bens alienados como se eles não tivessem saído do património do devedor. Como tal, os bens não têm que reverter ao transmitente, permanecendo, antes, no património do obrigado à restituição, onde respondem pela obrigação.

A situação em análise, já foi por diversas vezes tratada pela jurisprudência, tendo merecido o entendimento de que sendo embora o “direito à restituição” a expressão usada na lei se entende que se trata apenas do restabelecimento da garantia patrimonial diminuída, através da exposição desses bens, aos meios legais conservatórios colocados à disposição do credor.

A este propósito pode ver-se Cura Mariano, para quem “A expressão utilizada ‘direito à restituição’ não deve ser encarada no sentido de uma viagem de regresso entre patrimónios. Esta denominação não significa a reentrada dos bens alienados no património do devedor, num movimento retroactivo, nem sequer a entrega dos mesmos ao credor; mas tão-somente o restabelecimento da garantia patrimonial diminuída, através da exposição desses bens, independentemente da sua situação jurídica, aos meios legais conservatórios e executórios colocados à disposição do credor impugnante.Com a impugnação pauliana não se obtem a restauração do património do devedor, mas sim a reconstituição da garantia patrimonial do crédito do impugnante (7).

E continua este autor afirmando que “Neutralizam-se algumas das consequências do acto impugnado relativamente ao credor impugnante, sem afectar a sua validade, numa demonstração da sua filiação nos quadros da ineficácia stricto sensu”. (8)

Mas, como bem se observou no Acórdão da Relação de Lisboa, 05/07/2018 (9) se este direito à restituição não é bem uma restituição e se a lei tem de ser entendida num sentido mais preciso, o mesmo pode acontecer a um pedido formulado que reproduza a expressão legal, devendo ser então entendido, pelo juiz, num sentido mais preciso, mas sem que daí decorra que o pedido em causa não é um pedido possível e natural da impugnação pauliana.

E nesse aresto cita-se o exemplo do Acórdão do STJ de 01/10/2015, proc. 903/11.7TBFND.C1.S1: a autora propôs uma acção impugnando a doação feita pelos primeiros dois réus ao terceiro réu, de um prédio, pedindo que fosse declarada a ineficácia da doação e que fosse ordenado ao terceiro réu “a restituição do referido bem, de modo que a autora se possa pagar à custa desses prédios. O TRC acabou por declarar a ineficácia em relação à autora da doação, reconhecendo-lhe o direito a executar o identificado bem no património do réu adquirente. Não falou, pois, em restituição. Mas foi tudo ou foi só isso. O STJ confirmou este acórdão do TRC.

E conclui que o pedido de restituição dos bens pode ser feito na ação de impugnação pauliana, não estando em contradição com a causa de pedir da declaração de ineficácia, esclarecendo que não há duas causas de pedir, nem dois pedidos, mas uma simples ação de impugnação pauliana com um pedido formulado em termos admissíveis.

Dir-se-á, ainda, o seguinte.

A opção pelo aproveitamento do sentido lógico da pretensão da parte é, como já vimos, a que melhor resposta dá ao primado do direito substantivo (verdade material) sobre o direito adjetivo (verdade formal).

Obrigar-se o autor, num caso destes, ver declarada a ineptidão da sua petição inicial, para vir em seguida, dando o nome certo às coisas requerer a declaração de ineficácia do ato, e o direito a executar no património do adquirente o seu crédito, seria uma violência e a clara denegação prática de tudo quanto se deve ao direito processual, na supremacia relativa do direito substantivo sobre os puros ritos do direito adjetivo.

Foi tendo em vista este desiderato que a propósito da impugnação pauliana o STJ proferiu o acórdão de fixação de jurisprudência datado de 23.01.2001 e publicado, sob o n.º 3/2001, no D.R., 1.ª série, de 09.02.2001, em que firmou jurisprudência nestes termos: «Tendo o autor, em acção de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou a anulação do acto jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em relação ao autor (n.º 1 do artigo 616.º do Código Civil), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar tal ineficácia, como permitido pelo artigo 664.º»

Pelo que não se verifica a exceção dilatória da ineptidão da petição inicial por cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis.

Quanto ao erro na forma de processo.

A decisão recorrida considerou que perante a factualidade alegada o que o autor pretende é o relacionamento e a subsequente partilha do património comum do casal que já existia à data do divórcio. Porém, e para este efeito o processo próprio é o processo especial de inventário a correr termos no cartório notarial territorialmente competente.

Sempre ressalvado o muito respeito, não é só isso que o Autor pretende.

Adiantando-se, desde já, que dada a natureza dos pedidos formulados e a complexidade das questões suscitadas nos presentes autos, a mais que provável remessa dos interessados para os meios comuns, justificaria, só por si, a adequação deste processo comum.

Na verdade, tem sido dada resposta positiva à questão de saber se está na disponibilidade dos interessados a discussão de questões prévias à partilha no âmbito de uma ação comum à margem do processo de inventário, sem necessidade de decisão anterior, neste processo, de remessa para os meios comuns.

Se bem analisarmos o regime do processo de inventário podemos constatar a existência de soluções tendentes à resolução de questões no âmbito do próprio processo de inventário com outras de resolução fora de tal processo.

A resolução de questões fora do processo de inventário, está pensada precisamente para aqueles casos em que a natureza ou a complexidade da matéria que lhes está subjacente aconselhem que não devam ser ali decididas. Daí que o art. 16º da Lei nº 23/2013 preveja a suspensão do inventário quando nele se suscitem questões que, pela sua natureza ou complexidade, não devam ali ser decididas, e a remessa dos interessados para os meios comuns.

Perante um tal quadro, como se decidiu no acórdão da Relação do Porto de 10/09/2013, desde logo se constata a inconveniência da solução decretada na decisão recorrida: ela corresponde a impedir os interessados de usarem um expediente processual que escolheram, sabendo-se que mais tarde poderão ser determinados a usarem esse mesmo expediente processual para a solução do seu litígio. Julgar inadmissível um processo comum e extinguir a respetiva instância, a fim de que o seu objeto seja decidido num outro processo, mas no âmbito do qual se admite que as partes venham a ser remetidas, para a solução do mesmo litígio, para um processo igual àquele que fora instaurado e que foi julgado extinto é claramente adverso a um interesse de economia processual, bem como ao interesse de criação de confiança dos cidadãos na ação do sistema judicial. Uma decisão formal como a proferida, dificilmente é aceite como razoável pela comunidade (10).

Outros ganhos se podem assacar à resolução prévia das questões aqui suscitadas antes do processo de inventário.

Desde logo, permite simplificar e abreviar a tramitação do próprio processo de inventário, com evidentes ganhos de celeridade.

Depois, a apreciação da questão no âmbito de uma acão com processo comum dá a todos os interessados superiores garantias de segurança, atenta a maior solenidade que rodeia o processo comum, em comparação com o processo especial de inventário.

Finalmente, ao nível da justiça material, pois que a imediata discussão da questão numa ação especialmente votada a esse fim permitirá atenuar os efeitos erosivos que o decurso do tempo provoca ao nível de determinados meios probatórios, como ocorre com os depoimentos testemunhais que porventura intervenham para dilucidar a questão, além de que proporciona a produção em termos mais eficientes dos próprios meios probatórios (11).

Por outro lado, ainda, tendo presente que o inventário se destina à partilha consequente à extinção da comunhão de bens entre cônjuges, é em rigor, como bem se disse no Acórdão desta Relação de Guimarães de 27.03.2014, “um inventário divisório, sendo o respectivo objectivo proceder à partilha dos bens que fazem parte de um património comum, nos precisos termos que a lei civil estabelece, tal só por si basta para concluir que a pretensão deduzida pelo autor na presente acção não encaixa na forma especial do processo de inventário referido, antes é o processo comum, o adequado/apropriado” (12).

Assim, se é certo que um dos elementos do litígio a dirimir contende com a superação da comunhão hereditária, a verdade é que que com ele se não confunde nem se esgota.

Assim, inexiste fundamento para impedir a discussão e resolução do litígio em apreço, em toda a sua amplitude, no âmbito de um processo comum.

Concluímos, por isso, não assistir razão ao tribunal recorrido ao cominar com nulidade absoluta, por erro na forma de processo.

Do que se deixa exposto, quanto à cumulação de pedidos e erro na forma de processo, haverá de revogar-se a decisão recorrida, o que implicará o prosseguimento do processo, para os seus ulteriores termos.

Termos em que procede a apelação.
*
IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e revogar a douta decisão recorrida, em razão do que a presente ação haverá de prosseguir os seus termos.
Custas pelos Recorridos.
Guimarães, 9 de Maio de 2019

Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. - Des. Fernanda Proença Fernandes
2º - Adj. - Des. Heitor Gonçalves


1. Anselmo de Castro, “Direito Processual Civil Declaratório”, Vol. II, Almedina, 1982, pág. 226.
2. Cf. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1993, reimpressão, pág. 179.
3. No sentido aqui defendido pode ver-se Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, pág. 361 e também o Acórdão da Relação de Coimbra de 31/05/2016, disponível em www.dgsi.pt .
4. Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, pág. 347.
5. Disponível em www.dgsi.pt.
6. João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, Almedina, pag. 281. No mesmo sentido, pode ver-se Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, pág. 75,
7. João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, Almedina, pag. 232/233.
8. João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, Almedina, pag. 234.
9. Disponível em www.dgsi.pt
10. Disponível em www.dgsi.pt.
11. Neste sentido, o Acórdão da Relação de Lisboa de 03/01/2011, disponível em www.dgsi.pt.
12. Acórdão desta Relação de Guimarães de 27.03.2014, disponível em www.dgsi.pt