Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
171/23.8GACBC-B.G1
Relator: ISABEL GAIO FERREIRA DE CASTRO
Descritores: ESCUSA
INTERVENÇÃO NOUTRO PROCESSO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: DEFERIDO
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - Por força do princípio do juiz natural, a subtração de um processo criminal a quem foi atribuída competência para o julgar, através de sorteio aleatório, efetuado atualmente por meio informático e nos termos pré-determinados na lei, é absolutamente excecional e apenas pode ocorrer nas situações de impedimento, recusa e escusa, sujeitas a apertada regulamentação prevista nos artigos 39.º a 47.º do Código de Processo Penal.
II – Nos casos de recusa e de escusa, a lei faz depender o deferimento do pedido da verificação de uma cláusula geral de suspeição, da existência de motivo sério e grave, adequado a gerar a desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, a averiguar em concreto, que pode decorrer, além do mais, da intervenção deste noutros processos (que não têm de ser de natureza penal) ou em fases anteriores do mesmo processo, quando fora dos casos previstos como sendo, objetivamente, causa de impedimento – artigos 40.º e 43.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal.
III - Numa situação em que o juiz pede escusa num processo criminal em que os factos em que se baseiam, quer a acusação, quer o pedido de indemnização civil, correspondem, em essência, aos que foram objeto de providência cautelar de restituição provisória de posse e da respetiva ação principal em que interveio anteriormente, sendo o ali arguido/demandado aqui requerido e réu, respetivamente, é de deferir tal pedido porquanto as intervenções no âmbito daqueles processos cíveis implicam, necessariamente, a apreciação das condutas imputadas e, incontornavelmente, a efetivação de juízos sobre a qualificação das mesmas como lícitas ou ilícitas, nomeadamente para aferir dos pressupostos do decretamento da providência e da responsabilidade civil por factos ilícitos, ainda que na vertente cível, sendo suscetíveis de criar um sentimento, fundado e sério – junto dos cidadãos comuns e dos próprios sujeitos processuais, mormente o arguido –, de dúvida e suspeita quanto à imparcialidade e isenção do primeiro para agora intervir no julgamento penal.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I - RELATÓRIO

1. - No âmbito do processo comum, com intervenção do tribunal singular, que sob o n.º 171/23.... corre termos no Juízo de Competência Genérica de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, em que é arguido AA, veio o Ex.mo Sr. Juiz de Direito BB, a exercer ali funções, deduzir incidente de escusa, nos seguintes termos:
«No âmbito dos presentes autos, verificou-se, por conhecimento funcional, aquando melhor análise dos mesmos para marcação de audiência de julgamento, que o circunstancialismo que fundamenta a acusação é o mesmo que fundamenta o pedido e causa de pedir no âmbito do Proc. n.º 312/23.... (bem como¸ mutatis mutandis, da providência cautelar de restituição provisória da posse a ele apensa), que corre termos neste juízo, sendo que aquele se traduz numa acção de natureza civil, sendo de espécie declarativa, condenatória, seguindo a forma comum.
Concretizando.
Nestes autos, o arguido acusado é AA, a quem é imputada a prática de quatro crimes de dano, dois crimes de furto e um crime de desobediência qualificada.
Decorre, sucintamente, do alegado na acusação que em virtude Processo Comum n.º 260/21...., que também correu termos nestes autos, foi celebrada transacção, donde resulta o reconhecimento, além do mais, pelo arguido de que a água captada no subsolo do prédio ... pertence, na quota ideal de metade, a CC e a sua mulher DD, sendo que em dia não concretamente apurado, mas situado entre os dias ../../2023 e ../../2023, o arguido terá cortado tubos de condução de água pertencente àqueles.
Mais é dito que no dia 15/06/2023, após reparação dos mesmos, por CC, terá o arguido repetido (de forma similar) tal actuação.
Ainda, é alegado a 27/06/2023, tais eventos voltaram (de forma semelhante) a acontecer, por banda do arguido.
Por outro lado, é dito que por via disso, CC e os demais comproprietários da água intentaram procedimento cautelar de restituição provisória de posse da água, que deu origem ao Proc. n.º 241/23...., que também correu termos neste juízo, vindo a mesma a ser julgada procedente e, por via disso (e além do mais), “AA e EE a restituir aos Requerentes CC e DD a posse da água captada no subsolo do  prédio “...”, sito no lugar ..., da freguesia e concelho ...”.
Mais é referido que foram os arguidos advertidos que o incumprimento daquela decisão consubstanciava a prática do crime de desobediência qualificada.
É, posteriormente, alegado que o arguido infringiu tal ordem.
Nos dias referidos, é alegado que o arguido se veio a apoderar-se de duas peças de união de tubos de água e da água supra-referida, fazendo-as suas, contra a vontade do seu dono.
No Proc. n.º 312/23...., a causa de pedir que fundamenta (parte) dos pedidos ali deduzidos são os mesmos, sendo, apenas, a diferença a circunstância de as partes não coincidem totalmente, no sentido de que ali são autores CC e DD e são réus o aqui arguido AA e o seu filho EE.
Ainda, a audiência final no âmbito daqueles autos foi realizada no dia 20 de Março de 2024, que foi presidida pelo ora subscritor.
Por outro lado, o procedimento cautelar que supra se aludiu e que se encontra, agora, apensa aos aqueles (pelo que o Proc. n.º 241/23.... é, agora, o Proc. n.º 312/23....), por se ter consubstanciado num procedimento cautelar prévia à propositura da acção principal, sendo que os mesmos foram julgados, também, pelo ora subscritor, sendo que, agora, colocado na situação de (eventualmente) julgar uma alegada desobediência qualificada que deles terá, segundo a acusação, acontecido.
(…) para efeitos de recusa (no caso, porque promovida pelo próprio, de escusa) o circunstancialismo de ocorrência de suspeitas (por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade) podem decorrer, além do mais, da intervenção do juiz noutros processos (que se tem não ter de ser de natureza penal)[1] ou em fases anteriores do mesmo processo, quando fora dos casos previstos como sendo, objectivamente, causa de impedimento - artigos 40.º e 43.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal.
Face ao até então referido, o ora subscritor presidiu a duas audiências (uma das quais ainda não se encontra terminada, estando em falta, apenas, a produção de alegações finais, mas, em qualquer dos casos, é expectável que a Sentença seja proferida em momento anterior à que ocorrerá nestes autos), em que já ouviu as versões dos intervenientes (são as mesmas, ainda que em posições ou qualidades não totalmente coincidentes) sobre o recorte histórico objecto dos vários processos.
Mais, no Proc. n.º 312/23...., o objecto dos autos, incidente, além do mais, em pedidos de indemnização (responsabilidade civil extracontratual) que pressupõe um juízo de culpabilidade (em circunstâncias similares ao que acontece no âmbito penal) das acções imputadas aos Réus (incluindo o aqui arguido) que eventualmente vierem a resultar da factualidade que vier a ser dada como provada (que actualmente não se encontra assente, mas que toda a prova tendente a tal se encontra produzida).
Poderá, assim, estar em causa a imparcialidade que se pretende no âmbito do processo penal para que o julgador parta, ab initio, sem qualquer preconceito ou ideia pré-concebida, que crê o ora subscritor, face ao circunstancialismo descrito, não caber a si ajuizar (numa espécie, naturalmente, de filtragem inicial), por poder, inconscientemente, estar toldado (por falta de equidistância) na sua isenta apreciação.
Destarte e pese embora nenhum dos demais sujeitos processuais (mormente, aqueles que também intervieram nos processos cíveis) ter suscitado o incidente de recusa, considera- se que é de colocar aos Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Guimarães a apreciação do supra exposto, num prisma de pedido de escusa do ora subscritor artigos 43.º, n.ºs 1, 2 e 4, e 45.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal.
Nestes termos, solicita-se que V.ªs Excelências, Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Guimarães, apreciem o então exposto, que se considera integrar uma situação de escusa, nos termos e para os efeitos do artigo 43.º, n.ºs 1, 2 e 4, do Código de Processo Penal, e, fazendo uso do vosso reconhecido mais elevado e superior critério, decidam se é a mesma de conceder, o que se requer.»

2. - O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ser deferido o pedido de escusa.

3. - Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir, a tal nada obstando.
*
II. – FUNDAMENTAÇÃO

1. - Emergem da prova documental e da consulta eletrónica do processo de que foi extraída a certidão que deu origem ao presente incidente de escusa as seguintes as incidências processuais relevantes para a apreciação e decisão do mesmo:

1.1- Na Ação de Processo Comum n.º 260/21.... que correu os seus termos no Juízo de Competência Genérica de ... figuravam, na qualidade de Autores, FF, GG, DD e CC e, na qualidade de Réus, EE, HH e AA, os quais chegaram ao acordo infra transcrito, que foi devidamente homologado por sentença, em 19/04/2022, condenando e absolvendo o Tribunal as partes nos seus precisos termos (cf. artigos 283.º, n.º 2, 284.º, 289.º, n.º 1 a contrario e 290.º do Código de Processo Civil):
«ACORDO:
1- Os réus reconhecem que os autores são plenos proprietários, em comum e na proporção de metade para os 1ºs autores e metade para os 2ºs autores, da água captada no subsolo do prédio ..., atrás referido no artº 2 e conduzida em tubo plástico até aos seus prédios urbanos referidos no artº 20º;
2 - Os autores declaram para todos os efeitos, que os tubos que conduzem as águas da nascente referidas no número anterior, para os seus prédios urbanos referidos no artigo 20 da petição inicial não atravessam qualquer prédio da titularidade dos réus, pelo que não está constituída qualquer servidão de aqueduto, em que seja serviente o prédio dos réus.
3 - Fica constituída servidão de passagem momentânea, para acesso dos autores, ao túnel de onde provêm as águas da nascente, apenas e só, para obras de manutenção e conservação dos tubos e da caixa existentes no interior do túnel, sendo que esse acesso se processa a partir do caminho existente, situado a nível superior junto à zona rochosa existente no limite de tal prédio.
Para o seu exercício, os autores comunicarão a qualquer um dos réus, por qualquer meio escrito (sms ou outro), com antecedência mínima de 24 horas.
4 - Os réus, no prazo de 8 dias, pagarão aos autores, a quantia de € 520,00 (quinhentos e vinte euros), por transferência bancária, que o mandatário dos autores comunicará ao mandatário dos réus.
5 - As custas em divida a juízo serão suportadas por autores e réus em partes iguais, prescindindo mutuamente de custas de parte.»

1.2- Por requerimento de 03/07/2023, CC e DD intentaram uma providência cautelar de restituição provisória de posse da água contra AA, EE e HH, que deu origem ao processo cautelar n.º 241/23...., do Tribunal de Competência Genérica de ....

1.3- Após audiência presidida pelo Ex.mo Sr. Juiz ora requerente, Dr. BB, em 11/09/2023 foi proferida sentença que julgou a providência cautelar totalmente procedente, tendo o Tribunal decidido nos seguintes termos:
«a) Ordena-se que os requeridos AA e EE a restituir aos Requerentes CC e DD a posse da água captada no subsolo do prédio “...”, sito no lugar ..., da freguesia e concelho ...;
b) Ordena-se que os Requeridos AA e EE não impeçam, por qualquer forma, os Requerentes CC e DD de acederem à mina e aí executarem os trabalhos necessários para a captação e condução das águas para os seus prédios
c) Condenam-se os Requeridos AA e EE no pagamento, a título de sanção pecuniária compulsória, da quantia de 100 (cem) euros à razão diária por atraso/violação no cumprimento do referido nas alíneas anteriores, quantia essa que se destina, em partes iguais, aos requerentes CC e DD e ao Estado.
(…)
Após a efectivação da providência, citem-se os Requeridos, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 366.º, n.º 6, 372.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 376.º, n.º 1, do Código de Processo  Civil, de que caso infringissem a providência cautelar decretada, sem prejuízo das medidas adequadas à sua execução coerciva, incorriam na prática do crime de desobediência qualificada, previsto e punível pelo disposto conjugado dos artigos 348.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Código Penal e artigo 375.º do Código de Processo Civil.»


1.4- Em 12/10/2023, CC e DD e EMP01... – Manutenção e reparação de veículos, Lda. instauraram a ação principal – a que coube o n.º 312/23...., da qual o sobredito processo cautelar passou a constituir o apenso A – contra AA e EE, pedindo, a final, que estes sejam condenados:
a) – a reconhecerem que, com a sua atuação, violaram o direito de compropriedade dos autores à água nascida no subsolo do prédio denominado ...;
b) – a não impedirem, por qualquer forma, os autores de acederam à mina e aí executarem os trabalhos necessários para a captação e condução das águas e sua condução para os prédios dos 1ºs autores;
c) – a pagarem à segunda autora a título de danos patrimoniais:
- a importância de 10.673.62 referente aos danos patrimoniais já sofridos;
- a importância de 75 € por cada dia de falta de água desde a data da propositura desta ação;
d) – a pagarem aos primeiros autores a título de danos patrimoniais:
- o montante dos prejuízos decorridos da falta de água na sua casa, jardim e quintal, montante esse que se apurará em sede de execução de sentença;
e) – a pagarem aos primeiros autores a título de danos não patrimoniais:
- a cada um dos primeiros autores a importância de 3.550,00 €;
- a cada um dos autores, a importância de 50 € por cada dia de falta de água desde a data da propositura da ação;
f) – a pagarem uma sanção pecuniária compulsória de valor não inferior a € 5.000,00 (cinco mil euros) por cada novo ato de violação dos direitos referidos nas alíneas anteriores.».

1.5- No processo n.º 312/23.... está a decorrer a audiência de julgamento, também presidida pelo Ex.mo Sr. Juiz ora requerente, faltando apenas a produção de alegações finais, sendo expectável que a sentença venha a ser proferida antes da que vier a ser proferida no âmbito do processo referido no ponto seguinte.

1.6- Em 09/01/2024, no âmbito do processo comum com o n.º 171/23...., foi deduzida a acusação contra AA, a quem é imputada a prática de quatro crimes de dano, dois crimes de furto e um crime de desobediência qualificada, em síntese, com os seguintes fundamentos:
- No Processo Comum n.º 260/21...., foi celebrada transação, donde resulta o reconhecimento, além do mais, pelo arguido AA de que a água captada no subsolo do prédio ... pertence, na quota ideal de metade, a CC e a sua mulher DD;
- Em dia não concretamente apurado, mas situado entre os dias ../../2023 e ../../2023, o arguido terá cortado tubos de condução de água pertencente àqueles;
- No dia 15/06/2023, após reparação dos mesmos, por CC, terá o arguido repetido (de forma similar) tal actuação;
- Em 27/06/2023, tais eventos voltaram (de forma semelhante) a acontecer, por banda do arguido;
- CC e os demais comproprietários da água intentaram procedimento cautelar de restituição provisória de posse da água, que deu origem ao Proc. n.º 241/23...., que também correu termos neste juízo, vindo a mesma a ser julgada procedente e, por via disso (e além do mais), foi ordenado que “AA e EE [restituíssem] aos Requerentes CC e DD a posse da água captada no subsolo do  prédio “...”, sito no lugar ..., da freguesia e concelho ...”, tendo os requeridos sido advertidos de que o incumprimento daquela decisão consubstanciava a prática do crime de desobediência qualificada, tendo o arguido sido notificado dessa decisão em 20/09/2023;
- Não obstante isso, entre o dia ../../2023 e o dia 22/09/2023, o arguido, apesar de saber que ao atuar dessa forma violava aquela decisão cautelar de restituição provisória da posse, voltou a estroncar fechadura do portão de acesso à mina e a cortar, em diversos pontos, os tubos de condução da água, com o objetivo concretizado de impedir o ofendido de se apossar e utilizar a água da mina.
- Com as reparações do portão que dá acesso àquela mina, o ofendido despendeu, até agora, a quantia de € 380,00 e com as reparações do tubo cortado pelo arguido a quantia de € 777,48;
- O arguido apoderou-se de duas peças de união de tubos de água e da água, fazendo-as suas, contra a vontade do seu dono.

1.7- Em 05/02/2024, EMP01... - Manutenção e reparação de veículos, Lda. veio deduzir pedido de indemnização civil contra o arguido AA, com fundamento, em essência, nos factos constantes da acusação.

1.8- Em 07/03/2024 foi o processo comum n.º 171/23.... remetido para julgamento, tendo o Ex.mo Juiz BB a quem aquele caberia formulado o presente pedido de escusa em 21/03/2024.

2. - Apreciação

Vigora, entre nós, a regra do juiz natural, consagrada no artigo 32º, n.º 9, da Constituição da República Portuguesa, que garante um direito fundamental dos cidadãos – o de que a causa seja julgada por um tribunal previsto como competente por lei anterior, proibindo-se a criação de tribunais ad hoc ou a atribuição de competência a um tribunal diferente do que era legalmente competente à data do crime (princípio da determinação prévia da competência).
Com efeito, a subtração de um processo criminal ao Juiz – o chamado “juiz natural” - a quem foi atribuída competência para julgar um caso, através de sorteio aleatório, efetuado atualmente por meio informático e nos termos pré-determinados na lei, não pode deixar de ser encarada como absolutamente excecional.
A previsão processual penal relativa aos impedimentos, recusas e escusas – artigos 39.º a 47.º do Código de Processo Penal – constitui a positivação do desvio àquela norma e tem subjacente uma relação «patológica» com um processo em concreto.
Como expressivamente se sintetiza no sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.11.2010, «I - A Constituição da República Portuguesa consagra, no seu art. 32º, n.º 9, como uma das garantias do processo penal, o princípio do juiz natural, cujo alcance é o de proibir a designação arbitrária de um juiz ou tribunal para decidir um caso submetido a juízo, em ordem a assegurar uma decisão imparcial e isenta. O juiz que irá intervir em determinado processo penal é aquele que resultar da aplicação de normas gerais e abstratas contidas nas leis processuais e de organização judiciária sobre a repartição da competência entre os diversos tribunais e a respetiva composição. III - O juiz só pode ser afastado se a sua intervenção no processo for suscetível de pôr seriamente em causa esses mesmos valores de imparcialidade e isenção. Os casos em que esses valores podem perigar estão bem definidos na lei e em moldes que não desvirtuem aquela garantia de defesa (cf. arts. 39.º a 47.º do CPP). IV - Para afastar o juiz natural não é suficiente um qualquer motivo que alguém possa considerar como gerador de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz. É preciso que o motivo seja sério e grave, pois o juiz natural só pode ser arredado se isso for exigido pela salvaguarda dos valores que a sua consagração visou garantir: imparcialidade e isenção. Por isso é excecional o deferimento de um pedido de escusa»[1].

Com relevo para o caso, estipula o artigo 43º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe recusas e escusas:

“1 – A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
2 – Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do nº 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40º.
3 – A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis.
4 – O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos números 1 e 2.
5 – Os atos processuais praticados por juiz recusado ou escusado até ao momento em que a recusa ou a escusa forem solicitados só são anulados quando se verificar que deles resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo; os praticados posteriormente, só são válidos se não puderem ser repetidos utilmente e se se verificar que deles não resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo”.   

Como se vê, a lei não enumera as causas geradoras de suspeição que servem de fundamento à recusa/escusa, antes “utiliza uma forma ampla, abrangente de todos os motivos que sejam adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz”[2] .
Essas causas – de ordem subjetiva e/ou objetiva – têm que se materializar em motivos sérios e de tal modo graves que sejam adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz[3] .
A propósito desta questão, escreveu-se no Acórdão n.º 129/2007, do Tribunal Constitucional: a imparcialidade dos tribunais é uma exigência não apenas contida no artigo 32º da Constituição, mas uma decorrência do Estado de direito democrático (artigo 2º), na medida em que se inscreve na garantia universal de defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, através de um órgão de soberania com competência para administrar a justiça (artigo 202º, n.º 1, da Constituição). Ora, neste dever genérico de imparcialidade do tribunal inclui-se uma exigência de não suspeição subjetiva do juiz; a atividade do juiz não pode apresentar-se contaminada por circunstâncias geradoras de desconfiança quanto à sua imparcialidade[4].
A imparcialidade do juiz não se apresenta, porém, sob uma noção unitária – as diferentes perspetivas, vistas do exterior, do lado dos destinatários titulares do direito a um tribunal imparcial, refletem dois modos, diversos, mas complementares, de consideração e compreensão da imparcialidade: a imparcialidade subjetiva e a imparcialidade objetiva[5].
Sob o prisma subjetivo, a imparcialidade relaciona-se com a posição pessoal do juiz, pressupondo a demonstração e determinação daquilo que um juiz, integrando um tribunal, pensa e pondera, no seu íntimo foro, perante um certo dado ou circunstância, envolve saber se este guarda em si qualquer motivo que possa determiná-lo a favorecer ou a desfavorecer um interessado na decisão, importando demonstrar ou indiciar, de modo relevante, uma tal predisposição. Dada a formação do juiz e os especiais deveres de isenção e imparcialidade que sobre ele recaem, a imparcialidade subjetiva presume-se até prova em contrário.
Já sob a perspetiva objetiva, releva o fator da incontornável aparência, fazendo intervir não apenas considerações de carácter orgânico e funcional, mas também todas as posições com relevância estrutural ou externa que, do ponto de vista de um destinatário da decisão – seja um sujeito processual, seja o cidadão comum –, possam fazer suscitar dúvidas, dando causa ao receio, objetivamente justificado, quanto ao risco da existência de algum elemento, prejuízo ou preconceito que contra aquele sujeito processual possa ser negativamente considerado.
O incidente de recusa/escusa do «juiz natural» só pode, assim, lograr obter provimento quando se demonstre que a sua intervenção no processo pode ser considerada suspeita, por se verificar, para tanto, motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a respetiva imparcialidade.
Como se afirma no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.04.2005, «[a] gravidade e a seriedade do motivo hão de revelar-se, assim, por modo prospetivo e externo, e de tal sorte que um interessado – ou, mais rigorosamente, um homem médio colocado na posição do destinatário da decisão – possa razoavelmente pensar que a massa crítica das posições relativas do magistrado e da conformação concreta da situação, vistas pelo lado do processo (intervenções anteriores), ou pelo lado dos sujeitos (relação de proximidade, quer de estreita confiança com interessados na decisão), seja de molde a suscitar dúvidas ou apreensões quanto à existência de algum prejuízo ou preconceito do juiz sobre a matéria da causa ou sobre a posição do destinatário da decisão»[6].
Os motivos sérios e graves, adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador «hão de […] resultar de objetiva justificação, avaliando-se as circunstâncias invocadas pelo Requerente não pelo convencimento subjetivo deste, mas pela valoração objetiva das mesmas circunstâncias a partir do senso e experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade em que se insere o julgador.»[7]
Assim, «estando em causa o princípio do juiz natural e a eficiência do funcionamento do sistema processual penal, não é qualquer dúvida que possa eventualmente ser oposta em relação às condições do juiz para exercer a sua função de modo isento e imparcial que, em mais, deve ditar o seu afastamento»[8], havendo a recusa/escusa de reportar-se, desde logo por via do disposto no n.º 1 do artigo 43.º, do Código de Processo Penal, a uma suspeição fundada em motivo sério e grave, que existe e é objetivável.
Como se escreve no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/10/2001[9], «A gravidade e seriedade do motivo de que fala a lei – artigo 43º, nº 1 do CPP – hão de ser aferidos em função dos interesses coletivos, mormente do bom funcionamento das instituições em geral e da justiça em particular, não bastando que uma avaliação pessoal de quem quer que seja, nomeadamente do arguido, o leve a não confiar na atuação concreta do magistrado», acrescentando-se no mesmo aresto que «Em todo o caso, uma elementar razão de certeza jurídica impõe que tal aferição tenha sempre de partir e ter como base visível e decisivo os concretos atos processuais praticados, documentados e documentáveis na sua essência, por via da consulta do processo».
Como sobressai com meridiana clareza do que vimos expondo, tem de haver uma especial exigência quanto à objetiva gravidade da causa de suspeição de um Juiz, pois, se assim não fosse, estava encontrado um meio fácil, mas ínvio, de se contornar o princípio do juiz natural, afastando-o por qualquer motivo quando nisso houvesse interesse.
Destarte, sendo consabido que, por vezes, ocorrem circunstâncias particulares que podem colidir com o comportamento isento e independente expectável do julgador, colocando em causa a sua imparcialidade, bem como a confiança dos sujeitos processuais e do público em geral (comunidade) na aplicação da justiça, para o efeito de apreciação do requerimento de recusa/escusa o que releva determinar é se um cidadão médio, representativo da comunidade, pode, fundadamente, suspeitar que o juiz, influenciado pelo(s) facto(s) que lhe serve(m) de fundamento, deixe de ser imparcial e prejudique/beneficie algum dos sujeitos/intervenientes processuais.
O motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz pode decorrer, além do mais, da intervenção daquele noutros processos (que não têm de ser de natureza penal)[10] ou em fases anteriores do mesmo processo, quando fora dos casos previstos como sendo, objetivamente, causa de impedimento – artigos 40.º e 43.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal.
Em suma, a lei faz depender o deferimento do pedido da verificação e concessão de recusa/escusa de uma cláusula geral de suspeição, da existência de motivo sério e grave, adequado a gerar a desconfiança sobre a imparcialidade do juiz. Porém, não define os conceitos de seriedade e gravidade do motivo da recusa/escusa, conceitos que terão, então, de ser densificados a partir de regras de razoabilidade e do senso comum e, portanto, tendo em conta a perspetiva do homem médio, do cidadão comum, representativo do sentir da comunidade, mas sempre por referência aos dados específicos da situação concreta.
No caso vertente, como deflui da narrativa dos eventos processuais acima descritos existe uma questão relacionada com a propriedade e utilização de águas que já foi objecto de três processos de natureza cível – ação de processo comum n.º 260/21.... [em que AA figurava como réu] que terminou por acordo entre os intervenientes, homologado por sentença; a providência cautelar de restituição provisória da posse a que coube o n.º 241/23.... [em que AA figurava como requerido], que foi julgada procedente; e a respectiva acção principal, que correstermso sob o n.º 312/23.... [em que AA figurava como réu], que se encontra em fase de julgamento, faltando apenas as alegações finais.
O Ex.mo Juiz de Direito BB, ora requerente, teve intervenção na sobredita providência cautelar, na diligência de produção de prova e na decisão que proferiu, julgando-a procedente nos moldes supra descritos, e intervém também na respetiva ação principal, presidindo à audiência de julgamento, que se encontra na fase de alegações finais, após o que terá que proferir a pertinente sentença.
Entretanto, foi remetido para marcação de julgamento – que caberia ao Ex.mo Juiz de Direito BB que exerce funções no Juízo de Competência Genérica de ... – o processo comum n.º 171/23...., em que é arguido AA, contra quem o Ministério Público deduziu acusação, imputando-lhe a prática de quatro crimes de dano, dois crimes de furto e um crime de desobediência qualificada, e a lesada deduziu pedido de indemnização civil.
Os factos em que se baseiam, quer a acusação, quer o pedido de indemnização civil, correspondem, em essência, aos que foram, e são objeto, da providência cautelar de restituição provisória de posse e da respetiva ação principal.
Ora, as intervenções do Ex.mo Juiz de Direito BB na providência cautelar e na ação principal de que aquela depende implicam, necessariamente, a apreciação das condutas adotadas por AA e, incontornavelmente, a efetivação de juízos sobre a qualificação das mesmas como lícitas ou ilícitas, nomeadamente para aferir dos pressupostos do decretamento da providência e da responsabilidade civil por factos ilícitos, ainda que na vertente cível.
 Assim, conquanto no processo comum n.º 171/23.... se vise apurar a eventual responsabilidade de AA na vertente criminal – e, também, reflexamente cível, por força do pedido de indemnização civil ali enxertado –, uma vez que estão em causa, grosso modo, os mesmos factos, afigura-se-nos de meridiana clareza que as intervenções do Ex.mo Juiz de Direito BB nos aludidos processos cíveis são passíveis de criar um sentimento, fundado e sério – em face dos cidadãos comuns e dos próprios sujeitos processuais, mormente o arguido –, de dúvida e suspeita quanto à imparcialidade e isenção daquele para agora intervir no julgamento – tanto mais que foi requerida  intervenção do tribunal singular, ao abrigo do disposto no artigo 16º, n.º 3, do Código de Processo Penal – e proferir sentença que, em caso de condenação, implicará, além do mais, a aplicação de penas.
Mostra-se, pois, claramente fundamentado o pedido de escusa.
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III - DECISÃO

Ante o exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em deferir o pedido de escusa formulado pelo Ex.mo Juiz de Direito BB no âmbito do processo comum, que sob o n.º 171/23...., corre termos no Juízo de Competência Genérica de ....
Sem tributação.
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(Elaborado pela relatora e revisto e assinado eletronicamente pelos signatários – artigo 94º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal)
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Guimarães, 09 de abril de 2024

Os Juízes Desembargadores,

 Isabel Gaio Ferreira de Castro[Relatora]
Ana Teixeira[1.ª Adjunta]
Paulo Correia Serafim [2.º Adjunto]



[1] Proferido no processo 49/00.3JABRG.G1. No mesmo sentido Ac. do STJ de 05-04-2000, in CJ, 2000, pág. 244
[2] Germano Marques da Silva – Curso de Processo Penal I, pág.218.
[3] Cfr. autor e obra citada, pág. 219
[4] Disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20070129.html
[5] O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, relativamente à imparcialidade garantida no art. 6º, § 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, tem entendido que esta deve apreciar-se de um duplo ponto de vista: aproximação subjetiva, destinada à determinação da convicção pessoal de tal juiz em tal ocasião, ou seja, ao pensamento por ele manifestado numa dada situação concreta, não podendo traduzir qualquer preconceito ou prejuízos pessoais, sendo que a imparcialidade pessoal do juiz se deve presumir até prova em contrário; e também segundo uma apreciação objetiva, isto é, se ele oferece garantias bastantes para excluir a este respeito qualquer dúvida legítima. Também o Tribunal Constitucional tem reconhecido a mencionada dupla vertente do conceito de imparcialidade na consagração constitucional do princípio do acusatório e do princípio do processo justo e equitativo e, bem assim, a generalidade das decisões dos Tribunais Superiores.
[6] In www.dgsi.pt/jstj
[7] Cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de escreve-se no acórdão do STJ, de 10/04/2014, in www.dgsi.pt/jstj
[8] Jorge de Figueiredo Dias e Nuno Brandão, «Sujeitos Processuais Penais: o Tribunal», Coimbra, 2015, pág. 28
[9] Proferido no proc. n° 2452/01., 5º Secção
[10] Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª ed.-Lisboa: Universidade Católica Editora, 2009, da pág. 128 a 134.