Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
277/24.6T8MAC-F.G1
Relator: ROSÁLIA CUNHA
Descritores: PROPOSTA DO PLANO DE INSOLVÊNCIA
INVEROSIMILIDADE DA APROVAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/23/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - A decisão judicial constitui um ato jurídico, pelo que se lhe aplicam, por analogia, os preceitos que disciplinam a interpretação da declaração negocial constantes dos arts. 236º a 238º do CC.
II - Na interpretação da decisão judicial deve ter-se em conta o iter processual, levando em consideração o desenvolvimento e as vicissitudes do processo concreto, nomeadamente os atos anteriormente praticados ou determinados que antecederam e motivaram a decisão.
III - Só a falta absoluta da indicação dos fundamentos de facto ou de direito será geradora de nulidade, não ocorrendo tal vício nas situações de mera deficiência, insuficiência ou mediocridade de fundamentação.
IV - Não padece de nulidade, por falta de fundamentação de facto e de direito, a decisão judicial que, fazendo menção às referências dos requerimentos nos quais os credores manifestaram a sua oposição à aprovação do plano de insolvência, não admitiu o plano, nos termos do art. 207º, nº 1, al. b) do CIRE, por ser inverosímil que o mesmo viesse a ser aprovado.
V- De acordo com a al. b) do nº 1 do art. 207º do CIRE, constitui fundamento para a não admissão da proposta de plano de insolvência a manifesta inverosimilhança da sua aprovação pela assembleia de credores.
VI - Para aferição da existência deste fundamento é necessário realizar um juízo de prognose sobre a probabilidade de aprovação do plano, tomando em consideração, entre outros fatores, as posições que os credores já tenham manifestado no decurso do processo.
VII - Se já se pronunciaram contra o plano credores que representam 91,49% do valor total dos créditos, fazendo um juízo de prognose sobre a probabilidade de o plano vir a ser aprovado, é manifestamente inverosímil que tal aprovação venha a ocorrer, pelo que se verifica o fundamento previsto na al. a) do nº 1 do art. 207º do CIRE, justificativo da sua não admissão pelo juiz.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

RELATÓRIO

Por sentença proferida em 24.10.2024 foi declarada a insolvência de EMP01..., UNIPESSOAL, LDA. e foi dispensada a realização da assembleia de apreciação do relatório.
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Em 24.2.2025, foi proferido despacho que, em virtude de não ter sido requerida a realização da assembleia de apreciação do relatório, nos termos do art. 36º, nº 3 do CIRE, determinou a notificação do Sr. Administrador da Insolvência para, no prazo de 15 dias, apresentar o relatório a que alude o art. 155.º do mesmo diploma legal.
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Em 13.3.2025, foi junto aos autos o relatório do Administrador da Insolvência.
Foi também junta a lista de créditos, nos termos do art. 154º do CIRE, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, na qual constam como credores, representativos das percentagens da totalidade de créditos, os seguintes:

Banco 1..., S.A – 9,07%
EMP02..., AS – 0,77%
Banco 2..., SA – 3,26%
Banco 3..., SA – 1,38%
Banco 4..., SA – 1,18%
EMP03..., SA – 9,01%
Banco 5..., SA – 0,31
Banco 6..., SA - 4,02%
ISS, IP – 2,69%
ISS, IP – 0,07%
EMP04..., Unipessoal, Lda. – 1,03%
EMP05..., Sa – 0,48%
EMP05..., Sa – 2,68%
MP/AT – 3,22%
MP/AT – 0,16%
MP/AT – 42,68%
EMP06..., SA – 1,58%
EMP06..., SA – 0,22%
EMP07..., SA – 0,60%
Banco 7..., SA – 14,02%
EMP08..., SA – 0,67%
Sociedade Comercial EMP09..., Lda. -0,05%
EMP10... serviços, AS - 0,86%.

Na lista não constam créditos subordinados.
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Em 21.3.2025, a insolvente apresentou proposta de plano de recuperação (cf. ref. ...70).
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Em 3.4.2025 foi proferido despacho que, no que aqui releva, determinou a notificação “dos credores para, no prazo de 5 dias, procederem à votação por escrito quanto às propostas do plano de insolvência apresentado pela Insolvente, com a expressa advertência de que se nada disserem se considera que nada têm a opor a que o senhor Administrador de Insolvência fique encarregado de proceder à elaboração do mesmo, nos termos do disposto no artigo 193.º, n.º 2 do mesmo Diploma Legal e que a administração da sociedade fique a cargo da própria insolvente.
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Em 3.4.2025, o Banco 8..., S.A. veio dizer que o plano não merecerá o seu voto favorável e que o mesmo contém violação não negligenciável de normas aplicáveis ao seu conteúdo (cf. ref. ...24).
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Em 4.4.2025, EMP11... – Sociedade Financeira de Crédito, S.A. veio dizer que vota contra a admissão da proposta de plano (cf. ref. ...25).
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Em 7.4.2025, Banco 4..., S.A. veio dizer que vota contra a apresentação de um plano de insolvência, posição que já havia manifestado em 20.3.2025 (cf. refs. ...92 e ...98).
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Em 8.4.2025, Banco 2..., S.A. veio dizer que vota desfavoravelmente a proposta de plano de insolvência apresentado pela insolvente (cf. ref. ...82).
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Em 8.4.2025, Banco 1... S.A. Sucursal em Portugal veio dizer que vota contra de plano de insolvência apresentado (cf. ref. ...21).
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Em 25.3.2025, EMP10..., A.S. veio dizer que que se opõe a que a administração da sociedade insolvente seja feita pela própria devedora e, em 9.4.2025, veio dizer que vota contra de plano de insolvência apresentado (cf. refs. ...04 e ...42).
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Em 1.4.2025, EMP06..., S.A. veio dizer que não se opõe à possibilidade de a insolvente apresentar um plano de insolvência, mas sugeriu a introdução de alterações no plano apresentado no que concerne ao seu crédito (cf. ref. ...60).
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Em 11.4.2025, Banco 7..., S.A. veio dizer que vota contra de plano de insolvência apresentado (cf. ref. ...93).
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Em 14.4.2025, ISS, Instituto de Segurança Social IP veio dizer que vota contra de plano de insolvência apresentado (cf. ref. ...52).
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Em 14.4.2025, Banco 5..., S.A. veio dizer que vota contra de plano de insolvência apresentado (cf. ref. ...84).
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Em 24.4.2025, o Ministério Público, em representação da Autoridade Tributária, veio manifestar a sua posição desfavorável quanto ao plano de insolvência apresentado (cf. ref. ...06).
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Em 24.4.2025, o Sr. Administrador Judicial veio juntar aos autos síntese da posição manifestada pelos credores quanto ao plano de insolvência apresentado, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzida, onde consta que votaram o plano 45% dos credores, não tendo votado 55% dos mesmos. Todos os credores que manifestaram a sua posição (45%) votaram contra o plano (cf. ref. ...47).
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Em 6.5.2025 foi proferido despacho com o seguinte teor:

“referência n.º ...70, ...98, ...04, ...60, ...24, ...25, ...92, ...82, ...21, ...42, ...93, ...52, ...84, ...47, ...06:
A insolvente apresentou plano de insolvência nos termos do disposto nos artigos 192.º e seguintes do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, propondo medidas com incidência no passivo.
Devidamente notificados, os credores pronunciaram-se, tendo decorrido, de forma expressa, a improbabilidade do plano merecer a aprovação dos seus credores.
Nos termos do disposto no artigo 207.º nº 1, alínea b) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, e uma vez que a aprovação do plano pela assembleia de credores ou a posterior homologação pelo juiz se mostra manifestamente inverosímeis, não admito o plano de insolvência apresentado pela devedora com a referência n.º ...70.”
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A insolvente não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

“1. Por sentença de 24 de outubro de 2024 foi declarada a insolvência da recorrente, transitada em julgado a 20 de fevereiro de 2025, na qual fora dispensada a realização de assembleia de credores para apreciação do relatório.
2. Após apresentação do relatório do Sr. Administrador de Insolvência e com o seu conhecimento, a insolvente apresenta a 21 de março de 2025 uma proposta de plano de recuperação nos termos do artigo 193º, nº 1 do CIRE.
3. Perante a apresentação da proposta de plano, o Tribunal a quo notificou os credores para se pronunciarem quanto à proposta apresenta, em cinco dias, com a advertência de que “se nada disserem se considera que nada têm a opor.”
4. Pese embora o resultado tenha sito positivo (55% vs. 45%) o Tribunal decidiu rejeitar liminarmente a proposta do plano de insolvência, por se mostrar manifestamente inverosímil a sua aprovação em assembleia de credores e posterior homologação (art. 207º, n. 1 al. b) do CIRE); optando, assim, por ignorar o carácter subsidiário da solução de liquidação da empresa ao invés da sua recuperação.
Pois bem,
5. A empresa Recorrente dedica-se ao transporte de mercadorias, e, pelo menos, desde que apresentara a proposta de plano de recuperação (21 de março de 2025) a sua condição contabilística e financeira tem sofrido avanços consideráveis – o que de resto foi dando conhecimento ao Sr. Administrador de Insolvência.
6. Certo é que neste momento já se encontra um diferencial entre os créditos reclamados e os valores efetivamente considerados para efeitos de plano em cerca 459 485,46€, seja por extinção de algumas dívidas, seja resultado do valor considerado em dívida pelo credor Ministério Público que, evidentemente, altera o panorama de negociação dos restantes credores.
7. Para além do aumento de faturação verificado no presente ano em correspondência com o pontual pagamento de salários aos trabalhadores, pagamento de planos prestacionais à Autoridade Tributária, pagamento Segurança Social e Autoridade Tributária, e pagamento de combustível, portagens s e parques que resultam da manutenção do exercício da atividade.
8. Tudo o quanto demonstra uma clara evolução positiva no desenvolvimento e crescimento da empresa insolvente, impulsionando a sua saúde financeira com vista à recuperação e satisfação de todos os credores.
Por outo lado,
9. A sentença padece de vício de falta de fundamentação e, portanto, nula conforme previsto no artigo 615, nº 1, al. b) do CPC, por remissão do artigo 17º do CIRE, uma vez não ter especificado os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão de rejeição.
10. Não houve pronúncia por parte do Administrador de Insolvência relativa à proposta do plano apresentada e a inaudita votação por escrito remetida aos credores – que cremos sem cabimento legal por se tratar de matéria de exclusiva cognição do Juiz – não deverá resultar na rejeição liminar do plano.
Veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13/12/2023, Relator Maria Catarina Gonçalves: “II- É na sequência desse despacho de admissão liminar – e não antes – que o contraditório é facultado aos credores, mediante a discussão e votação do plano que lhes é facultada em assembleia de credores para o efeito convocada e mediante a possibilidade de suscitarem ao juiz as questões que entendam relevantes para o efeito de ser recusada a respetiva homologação (cfr. artigos 215.º e 216.º do CIRE).”
11. Na verdade, a proposta pode ser rejeitada quando se verifique alguma das situações previstas no artigo 207º, nº 2 do CIRE, sendo que a subsumida ao caso concreto pelo Tribunal a quo - al. b) - reporta-se a uma vertente de economia processual em que o Juiz pode “rejeitar liminarmente propostas manifestamente inviáveis, independentemente da razão porque foram apresentadas, evitado assim os atrasos que as discussões dessas propostas necessariamente causariam ao processo.”
12. Pelo que para além do despacho se encontrar ferido de vício de falta de fundamentação, nem tão pouco o caso concreto poderá ser suscetível de enquadrar numa situação de rejeição por manifesta inviabilidade.
Mais!
13. O Tribunal a quo deveria ter ordenado o desentranhamento do requerimento referência ...06 junto pelo Ministério Publico enquanto representante da Fazenda Nacional, uma vez que notificado a 3 de abril de 2025 – como aliás todos os restantes credores - pronunciou-se apenas a 24 de abril de 2025.
14. Sendo assim totalmente extemporâneo, atendendo à advertência remetida na notificação: “adverte-se de que se nada disser se considera nada ter a opor a que o senhor Administrador de Insolvência fique encarregado de proceder à elaboração do mesmo, nos termos do disposto no artigo 193º, n.º 2 do Diploma Legal e que a administração da sociedade fique a cago da própria insolvente.”
15. Aliás, atendendo a este concreto requerimento apresentado, o credor toma em consideração o valor em cobrança coerciva (42.157,07€) enquanto que a insolvente na proposta apresentada indica o valor de 471.637,28€, o que naturalmente implicaria uma disponibilidade orçamental muito diferente para colmatar as exigências dos restantes credores.
16. Tudo fatores que naturalmente não forem tomados em consideração nem pelos credores aquando da votação por escrito relativa à proposta de plano de recuperação, nem tão pouco - com certeza – pelo Tribunal a quo que se limitou a rejeitar a proposta.
17. Assim, o recurso fundamenta-se essencialmente no seguinte:
- nulidade invocada, resultado do vício de falta de fundamentação do despacho recorrido;
- consideração do voto extemporâneo de um dos credores que haveria que ter sido ordenado desentranhar;
- desconsideração do resultado da votação positiva (55%) face à cominação determinada pelo Tribunal a quo advertindo os credores de que nada dizendo se tomava por aceite a proposta de plano de recuperação apresentada;
- condição contabilística e financeira caracterizada por uma grande evolução e crescimento da empresa em detrimento do momento da apresentação do plano, com aumento de faturação e produtividade, cumprimento dos deveres e obrigações subjacentes, bem como na atualização dos valores da massa em dívida.”
*
O Ministério Público apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, tendo formulado as seguintes conclusões:
“I. O Ministério Público nunca foi notificado do despacho de 03-04-2025, porquanto a notificação não foi partilhada com o signatário.
II. Não tendo existido notificação, não funciona a presunção de notificação prevista no artigo 252.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
III. A Autoridade Tributária nunca foi notificada do despacho de 03-04-2025.
IV. A Autoridade Tributária só foi notificada para se pronunciar após e-mail do Exmo. Administrador de Insolvência remetido no dia 15-04-2025.
V. A Autoridade Tributária manifestou a sua posição no dia 17-04-2025 junto do Exmo. Administrador de Insolvência.
VI. Mesmo que se considere que o Ministério Público teve conhecimento no dia 17-04-2025, continuava a não ter conhecimento do prazo concedido aos credores, pelo que se deverá aplicar o prazo supletivo de 10 dias previsto no artigo 149.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
VII. Ainda que assim não se entenda, o Ministério Público juntou o requerimento no 2.º dia posterior ao término do prazo após ter tido conhecimento da posição da Autoridade Tributária, pelo que deveria de ter sido notificado nos termos do artigo 139.º, n.º 6, do Código de Processo Civil.
VIII. Em face do exposto, o voto da Autoridade Tributária não foi extemporâneo nem deve ser ordenado o seu desentranhamento.”
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O recurso foi admitido na 1ª instância como de apelação, a subir imediatamente em separado, com efeito devolutivo, não tendo sido objeto de alteração neste Tribunal da Relação.
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Determinada a baixa dos autos à 1ª instância para pronúncia sobre a nulidade invocada no recurso, foi proferido despacho, em 1.10.2025 (ref. Citius 27177190), que considerou que a mesma não se verifica.
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Foram colhidos os vistos legais.

OBJETO DO RECURSO

Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações do recorrente, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, as questões relevantes a decidir, elencadas por ordem de precedência lógico-jurídica, são as seguintes:

I - saber se a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação de facto e de direito;
II - saber se não deve ser admitida a proposta do plano de insolvência por a aprovação do plano pela assembleia de credores ser manifestamente inverosímil.

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Os factos relevantes para as questões a decidir são os que se encontram descritos no relatório e resultam do iter processual.

FUNDAMENTOS DE DIREITO

I - Nulidade da decisão

A recorrente invoca que a decisão recorrida é nula, por violação do disposto no art. 615º, nº 1, al. b), do CPC, em virtude de não ter especificado os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão de rejeição do plano.

Dispõe o art. 615º, nº 1, do CPC, que é nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

As nulidades da decisão são vícios formais e intrínsecos de tal peça processual e encontram-se taxativamente previstos no normativo legal supra citado.
Os referidos vícios, designados como error in procedendo, respeitam unicamente à estrutura ou aos limites da decisão.
As nulidades da decisão, como seus vícios intrínsecos, são apreciadas em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento estes a sindicar noutro âmbito (cf. Acórdão desta Relação de 4.10.2018, Relatora Eugénia Cunha, in www.dgsi.pt).

O vício da sentença decorrente da não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, abreviadamente designado como vício de falta de fundamentação, encontra-se diretamente relacionado com a obrigação de o juiz fundamentar as suas decisões que não sejam de mero expediente, obrigação essa que lhe é imposta pelos arts. 154º e 607º, nºs 3 e 4, do CPC, e pelo art. 205º, nº 1, da CRP.
A exigência de fundamentação exerce a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo tribunal superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da justiça, inerente ao ato jurisdicional (José Lebre de Freitas, in A Ação Declarativa Comum À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, pág. 317).
Impõe-se ao juiz não só que explicite o que decidiu, mas também que indique os motivos que determinaram tal decisão, esclarecendo porque assim decidiu.
Na verdade, só sabendo os concretos fundamentos que justificaram a prolação da decisão as partes terão a possibilidade real e efetiva de proceder à sua impugnação e suscitar a sua sindicância por um tribunal superior. E o tribunal superior só pode sindicar a decisão proferida se conhecer os fundamentos de facto e de direito que a ela subjazem.
Todavia, é entendimento pacífico e consolidado quer da doutrina, quer da jurisprudência, que só a falta absoluta da indicação dos fundamentos de facto ou de direito será geradora da nulidade em causa, não ocorrendo tal vício nas situações de mera deficiência, insuficiência ou mediocridade de fundamentação.
Assim, como já afirmava o Prof. Alberto dos Reis (in Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 140), “há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade”.
Em idêntico sentido, referem Antunes Varela e outros (in Manual de Processo Civil, 2ª edição, p. 687), que, “para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente e incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”.

A decisão recorrida que supra se transcreveu não contém uma absoluta falta de fundamentação de facto e de direito, conforme passaremos a explicar.

A decisão judicial constitui um ato jurídico, pelo que se lhe aplicam, por analogia, os preceitos que disciplinam a interpretação da declaração negocial constantes dos arts. 236º a 238º do CC.
Assim, como regra, a decisão judicial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do seu contexto, não podendo, porém, a decisão valer com um sentido que não tenha no texto que a corporiza um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

Por outro lado, a decisão tem de ser interpretada tendo em conta o iter processual, levando em consideração o desenvolvimento e as vicissitudes do processo concreto, nomeadamente os atos anteriormente praticados ou determinados que antecederam e motivaram a decisão.

No caso em apreço, a insolvente apresentou proposta de plano de recuperação e, como não teve lugar a assembleia de credores, o tribunal determinou a notificação dos mesmos para, no prazo de 5 dias, procederem à votação por escrito quanto às propostas do plano de insolvência apresentado pela insolvente (despacho de 3.4.2025).

Na sequência deste despacho, vários credores pronunciaram-se contra a aprovação do plano, nos termos que se encontram descritos no relatório supra.

Após esta pronúncia, e reportando-se às referências “n.º ...70, ...36/...98, ...37/...04, ...60, ...24, ...25, ...95/...92, ...82, ...21, ...74/...42, ...93, ...52, ...84, ...47, ...06” - que são os requerimentos em que os credores manifestaram a sua posição desfavorável à aprovação do plano, a proposta de plano e a síntese da posição dos credores - a decisão recorrida considerou existir improbabilidade do plano merecer a aprovação dos credores e não admitiu o plano de insolvência apresentado pela devedora invocando o disposto no art. 207º, nº 1, al. b) do CIRE.

Ora, neste enquadramento, para qualquer declaratário normal resulta claro:

a) que a matéria de facto considerada na decisão recorrida consiste nas declarações emitidas pelos credores nos requerimentos com as referências nela indicadas nos quais estes manifestaram a sua posição desfavorável à aprovação do plano;
b) que a fundamentação de direito consiste na consideração de que, perante essas posições, é inverosímil que o plano venha a ser aprovado, o que, constitui um dos fundamentos de não admissão do mesmo constantes do art. 207º, nº 1, al. b) do CIRE.

E refira-se que é também claro que a recorrente compreendeu integralmente ser esta a matéria de facto e de direito considerada e ser este o sentido e alcance da decisão recorrida, conforme resulta da leitura, quer do enquadramento feito nas págs. 5 a 9 da motivação do recurso, quer das conclusões nºs 1 a 4.

De salientar que o acerto ou desacerto fáctico-jurídico da decisão proferida é matéria que não releva para efeitos de apreciação da existência de nulidade da decisão e que apenas contende com a existência de erro de julgamento.
De onde decorre a conclusão inevitável de que a decisão recorrida não padece de absoluta falta de fundamentação de facto e de direito, pelo que não enferma do vício de nulidade previsto no art. 615º, nº 1, al. b) do CPC.
Nestes termos, improcede esta questão recursiva.
*
II – (In)existência de fundamento para não admissão da proposta do plano de insolvência por a sua aprovação pela assembleia de credores ser manifestamente inverosímil

Conforme dispõe o nº 1 do art. 1º do CIRE (diploma ao qual pertencem todas as normas subsequentemente citadas sem menção de diferente origem) o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e na repartição do produto obtido pelos credores.

O regime jurídico do plano de insolvência encontra-se regulamentado nos arts. 192º a 222º.
Dispõe o art. 192º, como princípio geral, que o pagamento dos créditos sobre a insolvência, a liquidação da massa insolvente e a sua repartição pelos titulares daqueles créditos e pelo devedor, bem como a responsabilidade do devedor depois de findo o processo de insolvência, podem ser regulados num plano de insolvência em derrogação das normas do presente Código (nº 1); o plano que se destine a prover à recuperação do devedor designa-se plano de recuperação, devendo tal menção constar em todos os documentos e publicações respeitantes ao mesmo (nº 3).

Por seu turno, o art. 207º consagra um conjunto de situações de não admissão da proposta do plano de insolvência.
Quando ocorra alguma das situações elencadas nas als. a) a d) do seu nº 1, o juiz tem o dever de recusar a admissão das propostas de plano que tenham sido apresentadas, excluindo o proémio do preceito o caráter facultativo ou opcional dessa decisão (cf. Carvalho Fernandes e João Labareda in CIRE Anotado, 3ª ed., pág. 757).

Assim, a proposta de plano apresentada tem que ser objeto de um despacho liminar “cujo objetivo último é, exatamente, a sua aprovação e homologação, em termos de se consolidar como um plano de regulação e satisfação do interesse dos credores, alternativo à execução universal do património do devedor” (Carvalho Fernandes e João Labareda in ob. cit., pág. 757).

No caso em apreço, a decisão recorrida não admitiu o plano de insolvência apresentado pela devedora invocando o disposto no art. 207º, nº 1, al. b).

Dispõe a al. b) do nº 1 do art. 207º do CIRE que o juiz não admite a proposta de plano de insolvência quando a aprovação do plano pela assembleia de credores ou a posterior homologação pelo juiz forem manifestamente inverosímeis.

Esta alínea contém, assim, dois fundamentos de não admissão da proposta do plano, a saber:
1) quando a aprovação do plano pela assembleia de credores for manifestamente inverosímil;
2) quando a homologação do plano pelo juiz for manifestamente inverosímil.

Apenas nos ocuparemos do primeiro dos fundamentos, relativo à inverosimilhança de aprovação pela assembleia de credores, porquanto, como supra já explanámos a propósito da interpretação da decisão recorrida, foi com base no mesmo que não foi admitida a proposta do plano, não se tendo a decisão debruçado sobre a não aprovação por manifesta inverosimilhança de homologação do plano pelo juiz.

Como explicam Carvalho Fernandes e João Labareda (in ob. cit., pág. 759), “quanto à inverosimilhança da aprovação pela assembleia, o tribunal terá de proceder a um exercício (...) que não prescinde de uma ponderação sobre o mérito da proposta, enquanto instrumento razoável de realização do interesse dos credores, alternativo ao modelo supletivo da lei. E deverá, neste quadro, tomar em consideração as posições que os credores – ou alguns deles – possam já ter manifestado nos autos, nomeadamente em sede da assembleia de apreciação do relatório a que se refere o art. 156º” (negrito nosso).
Em sentido idêntico, refere Maria do Rosário Epifânio (in Manual de Direito da Insolvência, 7ª ed., pág. 358), a propósito deste fundamento, que se trata “de um juízo de prognose do tribunal que recai sobre a própria atuação da assembleia de credores, mais concretamente sobre a possibilidade de o plano constituir um instrumento razoável de satisfação dos interesses dos credores e, assim, ser merecedor da sua aprovação, podendo para tal recorrer designadamente às posições manifestadas pelos credores ao longo do processo (por exemplo, na assembleia de apreciação do relatório prevista no art. 156º” (negrito nosso).

O plano pode ser objeto de votação na assembleia de credores, nos termos do art. 209º, podendo nessa assembleia ser alterado pelo proponente no condicionalismo previsto no art. 210º, e pode também ser objeto de votação por escrito, nos termos regulados no art. 211º.

A proposta de plano de insolvência considera-se aprovada se, estando presentes ou representados na reunião credores cujos créditos constituam, pelo menos, um terço do total dos créditos com direito de voto, recolher mais de 50 /prct. da totalidade dos votos emitidos e, nestes, estejam compreendidos mais de metade dos votos correspondentes a créditos não subordinados com direito de voto, não se considerando como tal as abstenções (art. 212º, nº 1).

No caso em apreço, não se realizou a assembleia de credores, o que levou o tribunal a quo a proferir o despacho de 3.4.2025, determinando que os credores se pronunciassem no prazo de 5 dias, considerando-se nada terem a opor caso nada fosse dito nesse prazo.
Na sequência deste despacho, pronunciaram-se contra o plano os credores referidos no relatório supra, os quais representam 91,49% do valor total dos créditos.
Não se pronunciaram os restantes credores, que representam 8,52% do total dos créditos o que, à luz da advertência constante do despacho proferido em 3.4.2025, significa que não se opõem ao plano.

A divergência entre o ora referido e o que consta do quadro da síntese de votação dos credores apresentado pelo AI em 24.4.2025 (ref. ...47) - onde este menciona que votaram o plano 45% dos credores, não tendo votado 55% dos mesmos e que todos os credores que manifestaram a sua posição (45%) votaram contra o plano – decorre da circunstância de nesse quadro não terem sido consideradas as posições manifestadas pelo Ministério Público, em representação da Autoridade Tributária, e da EMP06..., que representam 47,86% dos créditos.

Assim, e uma vez que já se pronunciaram contra o plano credores que representam 91,49% do valor total dos créditos, fazendo um juízo de prognose sobre a probabilidade de o plano vir a ser aprovado, a conclusão que se impõe é a de que é manifestamente inverosímil que tal aprovação venha a ocorrer. Consequentemente, verifica-se o fundamento previsto na al. a) do nº 1 do art. 207º, justificativo da não admissão do plano pelo juiz.

De referir que não se mostra relevante a questão suscitada pela recorrente, no sentido de se desconsiderar o voto emitido pelo Ministério Público em representação da Autoridade Tributária, por o mesmo ter sido apresentado para além do prazo de 5 dias concedido pelo despacho de 3.4.2025. Na verdade, mais do que realizar uma votação por escrito stricto sensu, em que não se poderia admitir um voto apresentado extemporaneamente, o que se pretende com o aludido despacho é permitir aos credores a manifestação da sua posição quanto ao plano para efeitos de aferir liminarmente se ocorre alguma das situações elencadas nas als. a) a d) do nº 1 do art. 207º justificativas da sua não admissão. Por isso, neste enquadramento e para este efeito, é de levar em conta a posição expressa pelo Ministério Público, pois a mesma contribui para que se possa efetuar o necessário juízo de prognose quanto à (in)verosimilhança de futura aprovação do plano.

Consequentemente, improcede esta questão recursiva, o que significa que a decisão recorrida, que não admitiu a proposta de plano com fundamento no disposto no na al. b) do nº 1 do art. 207º, tem que ser mantida.
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Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.
Tendo o recurso sido julgado improcedente, a recorrente é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a disposição legal citada.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente e, em consequência, mantêm a decisão recorrida.

Custas da apelação pela recorrente.
Notifique.
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Guimarães, 23 de outubro de 2025

(Relatora) Rosália Cunha
(1º/ª Adjunto/a) Maria João Marques Pinto de Matos
(2º/ª Adjunto/a) Pedro Maurício