Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
117/16.0GAVFL.G1
Relator: JORGE BISPO
Descritores: NÃO PRONÚNCIA
OMISSÃO DE FACTOS
INJÚRIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) O despacho de não pronúncia que seja omisso quanto à enunciação dos factos que se consideram suficientemente indiciados e não indiciados padece de falta de fundamentação, geradora de mera irregularidade, devendo ordenar-se a sua reparação quando tal omissão puder afetar o valor do ato praticado.

II) Não será esse o caso se o tribunal se limitou a apreciar a questão de saber se a expressão dirigida pelo arguido ao assistente é objetivamente ofensiva da honra e consideração do seu destinatário e, tendo concluído em sentido negativo, a não pronunciar o arguido por um crime de injúria, exclusivamente com esse fundamento, pois a referida omissão da enunciação dos factos indiciados e não indiciados não é suscetível de afetar intrinsecamente o valor da decisão instrutória, não comprometendo a sua reapreciação em sede de recurso.

III) Segundo a normalidade da vida e as regras da experiência comum, a expressão “você é um ladrão”, dirigida pelo arguido ao assistente, tendo como pano de fundo um relacionamento conflituoso entre ambos, não pode deixar de ser tida como suscetível de ofender a honra e a consideração do visado, por a generalidade das pessoas lhe atribuir o significado de pessoa que furta ou rouba, que é um gatuno, que se apodera do alheio ou que é desonesta.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. No processo com o NUIPC 117/16.0GAVFL, findo o inquérito, o Ministério Público deduziu:

a) Despacho de arquivamento da queixa-crime apresentada por J. F. contra os arguidos M. P. e J. V., pela prática, cada um deles, de dois crimes de introdução em lugar vedado ao público, previstos e punidos (p. e p.) pelo art. 191º do Código Penal, T. P., pela prática de um crime de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. pelo mesmo artigo, e M. P., pela prática de um crime de ameaça, p. e p. pelo art. 153º, n.º 1, do Código Penal;
b) Despacho de acusação contra o arguido J. F., imputando-lhe a prática de um crime de ameaça, p. e p. no art. 153º, n.º 1, do Código Penal, cometido na pessoa de M. P..

2. Na sequência da notificação que lhes foi efetuada pelo Ministério Público, na qualidade de assistentes:

a) J. F. deduziu acusação particular contra M. P., imputando-lhe a prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º do Código Penal.
b) M. P. deduziu acusação particular contra J. F., pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo mesmo preceito.
O Ministério Público acompanhou ambas as acusações particulares.

3. J. F. requereu a abertura de instrução:

a) Na qualidade de assistente, relativamente ao despacho de arquivamento, visando obter a pronúncia do arguido M. P. pela prática dos dois crimes de introdução em lugar vedado ao público e por um crime de coação, p. e p. pelo art. 154º, n.º 1, do Código Penal, e dos arguidos T. P. e J. V. pela prática, cada um deles, do crime de introdução em lugar vedado ao público;
b) Na qualidade de arguido, relativamente à acusação pública e à acusação particular, visando a sua não pronúncia pelos crimes de ameaça e de injúria.

4. No termo da fase processual de instrução, o Mmº. Juiz proferiu decisão instrutória a:

- Não pronunciar o arguido J. F. pela prática do crime de injúria.
- Não pronunciar o arguido M. P. pela prática dos dois crimes de introdução em lugar vedado ao público.
- Não pronunciar o arguido M. P. pela prática do crime de coação.
- Não pronunciar os arguidos T. P. e J. V. pela prática, cada um deles, do crime de introdução em lugar vedado ao público.
- Pronunciar o arguido J. F. pela prática do crime de ameaça, pelas razões de facto e de direito vertidas na acusação do Ministério Público.
- Pronunciar o arguido M. P., pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. no art. 143º, n.º 1 do Código Penal, na sequência da comunicação da alteração da qualificação jurídica dos factos descritos no requerimento de abertura de instrução com vista a imputar-lhe o crime de coação.
5. Inconformados com o segmento da decisão instrutória relativo à não pronúncia do arguido J. F. pela prática do crime de injúria, dela recorreram, quer o Ministério Público, quer o assistente M. P..

5.1 - O Exmo. Procurador Adjunto extraiu da respetiva motivação as conclusões que a seguir se transcrevem :

«CONCLUSÕES
1.ª
Foi proferido despacho que decidiu, além do mais, não pronunciar o arguido J. F. pela prática de um crime de injúria, previsto e punido no artigo 181.º do Código Penal.

2.ª
Encontra-se suficientemente indiciado de que o arguido se dirigiu ao assistente o apodou de ladrão.

3.ª
Tal expressão é lesiva da honra e consideração do assistente e, logo, objetivamente injuriosa e criminalmente punida.

4.ª
O despacho recorrido violou o disposto no artigo 308.º n.º 1 do Código de Processo Penal, bem como o artigo 181.º n.º 1 do Código Penal.

Termos em que, deverá ser julgado procedente o presente recurso e, em consequência, ser revogado o despacho proferido e substituído por outro que pronuncie o arguido J. F. pela prática de um crime de injúria, previsto e punido no artigo 181.º do Código Penal, assim fazendo V. Exas., como sempre, JUSTIÇA!»

5.2 - Por seu lado, o assistente M. P. concluiu a sua motivação nos seguintes termos (transcrição):

«CONCLUSÕES:

I – O despacho de não pronúncia não enumera os factos provados e não provados o que constitui nulidade, devendo a mesma ser declarada com as consequências legais.
II – A presente decisão não está devidamente fundamentada o que constitui a nulidade insanável prevista na Lei e no Art.º 205º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.
III – A decisão recorrida é fruto de considerações individuais e meramente subjetivas, não aceites e até repudiadas pela sociedade.
IV – Resultam do Inquérito indícios suficientes e fortes com maior probabilidade de em julgamento ser o arguido condenado do que ser absolvido.
V – Deverá, pois, o arguido J. F. ser pronunciado pela prática de crime de injúria p. e p. no Art.º 181º, n.º 1 do Código Penal.
VI – O despacho de não pronuncia recorrido viola ou interpreta erradamente os Artigos 181º do Código Penal, 283º, n.º 2 e 308º, n.º 1 do C.P. Penal, Art.º 205º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, disposições que devem ser interpretadas e aplicadas no sentido exposto.

NESTES TERMOS, com o Douto Suprimento de Vossa Excelências devem as nulidades suscitadas serem julgadas procedentes com as implicações legais e caso assim não se entenda ser o presente recurso julgado procedente decretando-se ou ordenando-se a pronúncia do arguido pela prática de crime de injúria p. e p. no Art.º 181º, n.º 1 do Código Penal.»

6. O Exmo. Procurador Adjunto na primeira instância respondeu ao recurso do assistente M. P., dando por reproduzido o teor da motivação do recurso também por si interposto, devendo, assim, o arguido ser pronunciado.

Em resposta a ambos os recursos, o arguido J. F. sustentou não se verificar a invocada nulidade da decisão instrutória e que, a existir qualquer irregularidade, a mesma não é juridicamente relevante, uma vez que se consegue bem discernir qual o caminho lógico-racional que desembocou na sua não pronúncia. Quanto ao mais, sustenta que os recursos devem ser rejeitados, por os recorrentes não levarem às conclusões quais os factos que devem considerar-se suficientemente indiciados, nem por remissão para a acusação particular, mas que, ainda que assim não seja, a expressão "ladrão" expressa apenas o descontentamento do arguido pelo facto de o assistente se ter introduzido, por duas vezes, ilegitimamente no seu terreno, não representando, pois, uma verdadeira ofensa à sua honra e consideração, pelo que nunca poderia ser alvo de tutela penal, para além de que o arguido tinha fundamento séria para, em boa fé, reputar como verdadeira a afirmação que fez, o que exclui a punibilidade da sua conduta, uma vez que o assistente tinha invadido a sua propriedade, andando pelo jardim e circulando pela casa, sem ter autorização para o efeito e aproveitando a ausência dos donos. Por outro lado, tal conduta terá sido provocada por uma conduta ilícita ou repreensível do ofendido, designadamente, o facto de este lhe ter invadido a sua propriedade por mais do que uma vez e pelo facto de lhe ter chamado ordinário nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, como decorre da acusação particular apresentada, pelo que o inquérito deveria ter sido arquivado com dispensa de pena, nos termos do disposto no artº 186º, n.º 2, do Código Penal e 280º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
7. Previamente a ordenar a subida dos autos a esta Relação, o Mmº. Juiz a quo proferiu despacho a sustentar que não se verifica a invocada nulidade, não só por a lei não exigir a enunciação dos factos indiciados e não indiciados no despacho de não pronúncia, mas também porque o tribunal, ao considerar que que a expressão objetivamente imputada - "você é um ladrão" - não assumia carácter injurioso, limitou-se à apreciação jurídica da matéria, concluindo pela não pronúncia.
8. Na intervenção a que se refere o art. 416º do Código de Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto nesta Relação emitiu parecer no sentido de que, independentemente de o tribunal a quo não se ter pronunciado sobre a intenção com que o arguido proferiu a expressão, concretamente se pretendia ou não ofender a honra e consideração devidas ao assistente, se com isso pretendia dizer que cometia crimes de roubo, o certo é que, em qualquer das situações, o facto de se dizer a alguém "você é um ladrão" é objetivamente ofensivo da honra e consideração que são devidas a essa pessoa, tanto no sentido de pessoa que rouba, que furta, como no sentido de pessoa que não é honesta numa transação, que procede de má-fé, o que é a mesma coisa que dizer-lhe que é um biltre, um patife, um tratante, em velhaco, ou mesmo no sentido de pessoa que leva uma vida sem grandes responsabilidades, à base de expedientes pontuais, que vive à custa dos outros, defendendo, assim, que deve conceder-se provimento aos recurso.
9. Cumprido o disposto no art. 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não houve resposta qualquer a esse parecer.
10. Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c) do mesmo código.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

De acordo com o disposto no art. 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente das respetivas motivações, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso.

No caso em apreço, em face das conclusões formuladas nos recursos, as questões a apreciar são as seguintes:

a) - Saber se a decisão instrutória, na parte em que despronunciou o arguido J. F. pelo crime de injúria, padece do vício de nulidade, por não conter a descrição dos factos indiciados e não indiciados.
b) - Em caso de improcedência dessa questão, saber se estão verificados os elementos objetivos de tal crime.

2. DA DECISÃO RECORRIDA:

O despacho recorrido tem o seguinte teor, na parte relevante para a apreciação dos recursos (transcrição parcial):

«I. Relatório
(…)
M. P. deduziu acusação particular contra J. F., acusando-o da prática de um crime de injúria, p. e p. no art. 181º do Cód Penal (fls 204/206).

O Ministério Público acompanhou a acusação particular contra J. F., pela prática de um crime de injúria, p. e p. no art. 181º do Cód Penal (fls 209).

(…)
J. F., na qualidade de arguido, veio requerer abertura de instrução (…) em relação à acusação particular pelo crime de injúria, p. e p. no art. 181º, n.º 1, ambos do Cód Penal, entendendo que (…) não se pode(m) manter por razões de forma e de substância.

(…)
No que diz respeito à acusação particular pelo crime de injúria, o arguido alega que as expressões dirigidas ao ofendido não representam uma ofensa à sua honra ou consideração, a ponto de serem dignas de censura penal, pelo que não merece qualquer punição; mais alega que a expressão foi proferida no contexto de uma discussão e após duas invasões do seu terreno por banda do ofendido, cunhado e filho, pelo que teria fundamento para, em boa-fé, a considerar verdadeira, excluindo a punibilidade da sua conduta, nos termos do disposto nos arts. 181º, n.º 2 e 180º, n.º 2 do Cód Penal ou o inquérito deveria ter sido arquivado com dispensa de pena, nos termos dos arts. 186º, n.º 2 do Cód Penal e 280º, n.º 2 do Cód de Proc Penal.

(…)
Posto isto, cumpre decidir-se:
*
II. Saneamento

O Tribunal é absolutamente competente em termos de ordem jurisdicional, hierarquia, matéria e território.
O Ministério Público, assistente e arguida têm legitimidade para a causa.
O requerimento de abertura de instrução foi apresentado tempestivamente por quem tinha legitimidade para o mesmo e obedece aos pressupostos legais.
Não foram invocadas nem detetadas nulidades, exceções ou questões prévias que obstassem ao conhecimento do mérito da causa.
A forma de processo é a própria.
*
III. Fundamentação de facto

IV. Fundamentação de Direito

a) das finalidades da instrução

(…)

b) dos factos

b.1) sobre a acusação pelo crime de ameaça e pelo crime de injúria

(…)
b.1.2) sobre o crime de injúria

No que diz respeito à acusação particular pela prática do crime de injúria, p. e p. no art. 181º, n.º 1 do Cód Penal, o arguido J. F. encontra-se acusado de se ter dirigido ao assistente M. P. e de lhe ter dito «você é um ladrão», tendo pretendido ofender, como efetivamente ofendeu, a honra e consideração social do assistente.

Por seu turno, o arguido alega que as expressões dirigidas ao ofendido não representam uma ofensa à sua honra ou consideração, a ponto de serem dignas de censura penal, pelo que não merece qualquer punição; mais alega que a expressão foi proferida no contexto de uma discussão e após duas invasões do seu terreno por banda do ofendido, cunhado e filho, pelo que teria fundamento para, em boa-fé, a considerar verdadeira, excluindo a punibilidade da sua conduta, nos termos do disposto nos arts. 181º, n.º 2 e 180º, n.º 2 do Cód Penal ou o inquérito deveria ter sido arquivado com dispensa de pena, nos termos dos arts. 186º, n.º 2 do Cód Penal e 280º, n.º 2 do Cód de Proc Penal.

Posto isto, cumpre decidir-se:

Lê-se nas citadas normas o seguinte:

Artigo 181.º

Injúria
1 - Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.
2 - Tratando-se da imputação de factos, é correspondentemente aplicável o disposto nos n.os 2, 3 e 4 do artigo anterior
O bem jurídico protegido com esta incriminação é a honra (como aliás se infere da sua inserção sistemática), sendo certo que este conceito se reporta à essência da personalidade humana, integrando o seu conteúdo a probidade, a retidão, a lealdade e o bom carácter, podendo definir-se como «a dignidade subjetiva, ou seja, o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui. Diz assim respeito ao património pessoal e interno de cada um - o próprio eu».

Por seu lado, o conteúdo do conceito de consideração reporta-se ao património de bom nome e da confiança que cada um adquiriu ao longo da sua vida, traduzindo-se no «merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade objetiva, que é o mesmo que dizer, a forma como a sociedade vê cada cidadão - a opinião pública».

Não será todo o facto que envergonha, perturba ou humilha que cabe na previsão do artigo, sendo necessário considerar a «intensidade» da ofensa ou perigo de ofensa.

Uma das características da injúria é a sua relatividade, o que quer dizer que o carácter injurioso de determinada palavra ou ato é fortemente dependente do lugar ou ambiente em que ocorre, das pessoas entre quem ocorre, do modo como ocorre. Daí que só em cada caso concreto se possa afirmar se há ou não comportamento delituoso.
A injúria não se confunde com a simples indelicadeza, com a falta de polidez ou mesmo com a grosseria, as quais são comportamentos que apenas podem traduzir falta de educação. A injúria é mais do que isso e quando se pune um ato injurioso não se visa a proteção da suscetibilidade pessoal deste ou daquele mas tão só da sua dignidade, da sua honra e consideração.

Sucede que existe um consenso na generalidade das pessoas, pelo menos de um certo país, sobre o que razoavelmente se não deve considerar ofensivo. Na realidade, existe em todas as comunidades um «sentido comum», aceite por todos ou, pelo menos, pela maioria sobre o comportamento que deve nortear cada um na convivência com os outros, em ordem a que a vida em sociedade se processe com um mínimo de normalidade. Trata-se de um sentir comum em que se reconhece que a vida em sociedade só é possível se cada um não ultrapassar certos limites na convivência com os outros.

Tais limites como que se acham inscritos num «Código de Conduta» de que todos são sabedores, o qual reflete o pensamento da própria comunidade e, por isso, é por todos reconhecido ou, pelo menos, pela maioria. Do elenco desses limites ou normas de conduta fazem parte «regras» que estabelecem a «obrigação e o dever» de cada cidadão se comportar relativamente aos demais com um mínimo de respeito moral, cívico e social.

É evidente que esse mínimo de respeito não se confunde com educação ou cortesia. Assim, os comportamentos indelicados, e mesmo boçais, não fazem parte daquele mínimo de respeito. Efetivamente, o direito penal, neste particular, não deve, nem pode proteger as pessoas face a meras impertinências.

Por exemplo, já foi decidido no Douto Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra de 18/09/2013, proc. n.º 471/09.0PBTMR.C1 que comete o crime de injúria aquela que, dirigindo-se á ofendida, em voz alta, por forma a ser ouvido por todos os presentes, lhe diz: és «uma pessoa tão importante que é uma merda»; objetivamente, ao considerar que a ofendida como pessoa «é uma merda», a arguida colocou em causa globalmente a sua personalidade, excedendo manifestamente o direito à crítica sobre a importância social da ofendida, entrando no puro juízo insultuoso.

No que concerne ao elemento subjetivo, o tipo fica preenchido com o dolo em qualquer uma das suas modalidades, não sendo necessária a verificação de um particular animus injuriandi, conforme resulta da jurisprudência pacífica dos tribunais superiores.
*
No caso concreto, o Tribunal entende que assiste razão ao arguido.

Com efeito, o termo «ladrão», na Língua Portuguesa, não tem necessariamente o sentido de acusar alguém da prática de um crime de furto mas podendo ter igualmente a conotação de pessoa que procede de má-fé, um agiota que lucra com o mal dos outros ou um «maganão» (no sentido brejeiro, com o significado de «jovial», «patusco», pessoa que leva uma vida sem grandes responsabilidades, à base de expedientes pontuais).

Ora, lendo a acusação particular como um todo, fica no Tribunal a perceção de que o arguido, ao dirigir-se ao assistente chamando-lhe «ladrão», não o pretendia acusar de ter subtraído alguma coisa mas somente de ter agido de má-fé, ao entrar no terreno sem autorização, de não assumir as responsabilidades pelo que fez.

Pese embora tal expressão possa magoar – como efetivamente terá magoado, conforme se deduz da apresentação de acusação particular – os sentimentos do ofendido, não se pode afirmar, sem cair em exageros, que a expressão «ladrão» ofenda o Código de Conduta moral, cívico e social que orienta a generalidade das pessoas.

Com efeito, a ser de outra maneira, qualquer expressão idónea a atingir os sentimentos do ofendido poderia abstratamente cair na previsão penal da injúria, em claríssima violação do princípio da proporcionalidade consagrado no art. 18º, n.º 2 da CRP.

De resto, assiste ao assistente outra via menos intrusiva de ser ressarcido da expressão alegadamente proferida, nomeadamente a responsabilidade civil por violação de direitos de personalidade, nos termos do art. 70º do Cód Civil.

Termos em que se impõe que o arguido não seja pronunciado pela prática do crime de injúria, p. e p. no art. 181º, n.º 1 do Cód Penal.
(…)

IV. Dispositivo

Termos em que o Tribunal decide:

1. Não pronunciar o arguido J. F. pela prática de um crime de injúria, p. e p. no art. 181º do Cód Penal.

(…).»

3. APRECIAÇÃO DOS RECURSOS

3.1 – Da nulidade da decisão instrutória

O assistente M. P., nas conclusões I e II do respetivo recurso, invoca que a decisão instrutória, na parte em que despronunciou o arguido J. F. pela prática do crime de injúria que lhe imputara na acusação particular, padece do vício de nulidade insanável, prevista na lei e no art. 205º, n.º 2, da Constituição, traduzido em insuficiente fundamentação, por falta da enumeração dos factos indiciados e não indiciados.

3.1.1 - A jurisprudência é pacífica quanto à necessidade de o despacho de não pronúncia, enquanto ato decisório do juiz, ter de ser fundamentado, o que significa que nele devem ser especificados os motivos de facto e de direito da respetiva decisão (art. 97º, n.ºs 1, al. b), e 5 do Código de Processo Penal, diploma a que pertencem os artigos doravante citados sem qualquer referência), de forma a permitir a sua impugnação e o reexame da causa pelo tribunal de recurso.
Para além dessa imposição legal expressa, saliente-se que o cumprimento da exigência de fundamentação do despacho de não pronúncia que conheça do mérito da causa, com a indicação dos factos indiciados e não indiciados, é essencial para a fixação dos efeitos do caso julgado.

Com efeito, o despacho de não pronúncia por insuficiência de indícios deverá fixar expressamente quais os factos considerados não suficientemente indiciados. Isto porque sobre eles forma-se caso julgado, em termos de ser inadmissível a reabertura do processo face à eventual descoberta de novos factos ou meios de prova, ao contrário do que acontece com o inquérito arquivado, que pode ser reaberto se forem descobertos factos novos (art. 279º, n.º 1) [2].

A diferença de tratamento entre estas duas decisões justifica-se pela sua diferente natureza: enquanto o despacho de arquivamento constitui uma decisão do Ministério Público, que põe termo a uma fase processual caracterizada pela falta de contraditório, a decisão de não pronúncia é proferida após um debate público, contraditório e tematicamente vinculado, pelo que a tomada de posição sobre aqueles factos pelo juiz de instrução terá de beneficiar do princípio do caso julgado, como decisão jurisdicional que é.

Assim sendo, o juiz de instrução que, pronunciando-se sobre o objeto do processo, decide que não se indiciam suficientemente os factos imputados ao arguido e que, por isso, não o pronúncia, não seguindo o processo para julgamento, profere uma decisão de mérito, que tem força vinculativa, não só dentro do processo em que foi proferida, mas também fora dele, constituindo caso julgado material, só mediante recurso de revisão podendo ser reaberta a discussão sobre tais factos.

Daí que o despacho de não pronúncia tenha de especificar os factos em relação aos quais existe prova indiciária suficiente e aqueles em relação aos quais não existem indícios suficientes, uma vez que que tal omissão afeta intrinsecamente o valor daquela decisão e impede que o tribunal de recurso se pronuncie sobre ela.

Porém, contrariamente ao propugnado pelo recorrente, com apoio em parte da jurisprudência [3], em nossa opinião, tal vício não consubstancia a nulidade insanável da decisão instrutória por ausência de fundamentação, nos termos do art. 308º, n.º 2, nem tão pouco uma nulidade sanável ou dependente de arguição perante o tribunal a quo (e já não em recurso), como também é sustentado por alguma jurisprudência [4].

Como já decidimos no acórdão desta Relação de 23-10-2017 [5], no qual também interviemos nas mesmas qualidades de relator e de adjunto, citado, aliás, pelo arguido na sua contra motivação, na esteira de várias decisões dos Tribunais Superiores [6], o vício em questão constitui antes uma mera irregularidade, com base na seguinte linha de argumentação:

A remissão feita pelo n.º 2 do art. 308º para o art. 283º, n.º 3 [cuja al. b) comina de nulidade a acusação que não contenha a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança], só pode respeitar ao despacho de pronúncia, face ao teor das várias alíneas daquele n.º 3 do art. 283º, na medida em que as exigências contidas nas alíneas a) a f) não fazem qualquer sentido num despacho de não pronúncia, restando apenas a inócua al. g), que se reporta à data e assinatura, obrigatórias em qualquer despacho.

Assim, tudo indica que o legislador, com a referida remissão, disse mais do que pretendia, já que a mesma só se justifica em relação ao despacho de pronúncia, e já nunca ao despacho de não pronúncia, porquanto só o primeiro deve conter os requisitos formais de uma acusação, previstos nas alíneas do n.º 3 do art. 283º, entre eles a descrição dos factos imputados ao arguido [al. b)].

Daí que, tal como acontece com a acusação que não contenha a narração desses factos, que a lei fulmina com a nulidade, também o despacho de pronúncia que não descreva a factualidade suficientemente indiciada e não indiciada padece de nulidade, a qual é insanável, não obstante o art. 283º, n.º, 3, não o refirir expressamente nem a mesma figurar do elenco do art. 119º. Tal conclusão decorre da conjugação com o disposto no art. 311º, n.ºs 2, al. a), e 3, al. b), que prevê a rejeição da acusação que não contenha a descrição dos factos, por ser manifestamente infundada, consequência essa aplicável ao despacho de pronúncia por força da remissão feita pelo art. 308º, n.º 2.

Já o despacho de não pronúncia que seja omisso quanto à descrição dos factos considerados indiciados e não indiciados não padece de nulidade, não tal não estar legalmente previsto, mas sim de mera irregularidade.

Com efeito, de acordo com o princípio da legalidade que vigora no regime geral das nulidades em processo penal, só são nulos os atos que, sendo praticados com violação ou inobservância da lei, esta expressamente comine essa consequência (art. 118º, n.º 1), sendo que, nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular (n.º 2 do mesmo artigo).

Em suma, somos de opinião que a falta de fundamentação traduzida na não enunciação dos factos que se consideram suficientemente indiciados e aqueles que se consideram não suficientemente indiciados, quando verificada no despacho de não pronúncia, reconduz-se a uma mera irregularidade, ainda que de conhecimento oficioso, embora se ocorrer no despacho de pronúncia já consubstancia uma nulidade insanável.

Pese embora o assistente não tenha arguido tal irregularidade no momento temporal imposto pelo art. 123º, n.º 1, ou seja, no próprio ato em que foi cometida (leitura da decisão instrutória, uma vez que nela esteve presente, assistido pelo seu Exmo. mandatário), apenas o fazendo no presente recurso, o certo é que a irregularidade em apreço, por poder afetar o valor do ato praticado, é de conhecimento oficioso, podendo ordenar-se a sua reparação no momento em que dela se tomar conhecimento, conforme prevê o n.º 2 do art. 123º, não carecendo, pois, de ser invocada pelo interessado.

3.1.2 – Posto isto, vejamos se a decisão instrutória, na parte em apreço – não pronúncia do arguido J. F. pelo crime de injúria imputado na acusação particular deduzida pelo assistente M. P. – padece da referida irregularidade.
De acordo com o teor desse libelo, o arguido encontrava-se acusado de, dirigindo-se ao assistente, lhe ter dito “você é um ladrão”, tendo pretendido ofender, como efetivamente ofendeu, a honra e consideração social do mesmo.

O arguido J. F. requereu a abertura de instrução alegando, nessa parte, que a expressão dirigida ao assistente não representa uma ofensa à sua honra e consideração, a ponto de ser digna de censura penal, mais sustentando que a mesma foi proferida no contexto de uma discussão e após duas invasões do seu terreno por parte do assistente, cunhado e filho, pelo que teria fundamente para, em boa-fé, a considerar verdadeira, excluindo a punibilidade da sua conduta, nos termos dos arts. 181º, n.º 2, e 180º, n.º 2, do Código Penal ou o inquérito deveria ter sido arquivado com dispensa de pena, nos termos dos arts. 186º, n.º 2, do Código Penal e 280º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Em suma, o arguido sustentou que a sua conduta não integra a prática do crime de injúria que lhe é imputado, por a expressão que dirigiu ao assistente (“você é um ladrão”) não ser suscetível de representar uma ofensa à honra ou consideração do mesmo.

Na decisão instrutória, debruçando-se sobre esta questão, o Mm.º Juiz entendeu assistir razão ao arguido, argumentando que, «o termo “ladrão”, na Língua Portuguesa, não tem necessariamente o sentido de acusar alguém da prática um crime de furto mas podendo ter igualmente a conotação de pessoa que procede de má-fé, um agiota que lucra com o mal dos outros ou um “maganão” (no sentido brejeiro, com o significado de “jovial”, “patusco”, pessoa que leva uma vida sem grandes responsabilidades, à base de expedientes pontuais)» e que, «(…) lendo a acusação particular como um todo, fica no Tribunal a perceção de que o arguido, ao dirigir-se ao assistentes chamando-lhe “ladrão”, não o pretendia acusar de ter subtraído alguma coisa mas somente de ter agido de má-fé, ao entrar no terreno sem autorização, de não assumir as responsabilidades pelo que fez» termos em que «(…) não se pode afirmar, sem cair em exageros, que a expressão “ladrão” ofenda o Código de Conduta moral, cívico e social que orienta a generalidade das pessoas».

Nessa conformidade, decidiu despronunciar o arguido pela prática do crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º do Código Penal.
Nessa parte da decisão instrutória, o Mm.º Juiz de instrução não procedeu, efetivamente, à enunciação dos factos que considerava suficientemente indiciados e não suficientemente indiciados.

Porém, tal omissão não afeta intrinsecamente o valor daquela decisão, nem impede que o tribunal de recurso se pronuncie sobre ela, na medida em que o Mm.º Juiz a quo limitou-se a apreciar a questão meramente jurídica, suscitada no requerimento de abertura de instrução, de saber se a conduta do arguido é objetivamente ofensiva da honra e consideração do assistente. E tendo concluído em sentido negativo, foi esse o único fundamento da decisão de despronunciar o arguido pelo crime de injúria.

No que a este crime respeita, a decisão de mérito da instrução não se prendeu com a existência ou não de indícios suficientes sobre a prática dos factos imputados ao arguido, mas apenas com a qualificação jurídica dos mesmos.
Nessa medida, tal como o próprio arguido alega na sua contra motivação para sustentar a irrelevância da eventual irregularidade, a decisão recorrida, apesar de não conter a enumeração dos factos suficientemente indiciados e não indiciados, permite discernir perfeitamente o caminho lógico-racional que desembocou na não pronúncia.

Consequentemente, não está minimamente comprometida a sua reapreciação em sede de recurso, uma vez que a perceção do sentido da decisão não está dependente da enunciação desses factos, cuja falta não integra, pois, a apontada irregularidade.

Pelo exposto, a decisão instrutória, na parte relativa à não pronúncia do arguido J. F. pelo crime de injúria não padece da nulidade que lhe é assacada pelo recorrente, nem do vício de irregularidade.

Improcede, pois, este segmento do recurso.

3.2 - Da verificação dos elementos objetivos do crime de injúria

Nos respetivos recursos, o assistente M. P. (conclusões III a VI) e o Exmo. Procurador Adjunto insurgem-se contra o entendimento expresso na decisão instrutória de o comportamento imputado ao arguido J. F. na acusação particular deduzida pelo referido assistente não preencher os elementos objetivos do crime de injúria, o que, consequentemente, conduziu à sua não pronúncia.

Ao invés, sustentam os recorrentes, em suma, que a expressão “você é um ladrão”, dirigida pelo arguido ao assistente, é lesiva da honra e consideração deste último e, como tal, objetivamente injuriosa e criminalmente punida, devendo, pois, o arguido ser pronunciado pelo crime de injúria.

3.2.1 - De acordo com o teor do art. 181º do Código Penal, incorre na prática deste crime “quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração”.

Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19-12-2007 [7], para efeitos de tutela penal, cujo fundamento se busca na proteção do direito fundamental ao bom nome e reputação constitucionalmente consagrado no art. 26º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a honra traduz-se num bem jurídico multiforme, que mistura uma conceção fáctica, subjetiva e objetiva, com uma conceção normativa, pessoal e social, incluindo, desta forma, por um lado, o valor e dignidade pessoal e interior de cada indivíduo, e, por outro, a sua integração e consideração na comunidade em que se insere.

No caso do crime de injúria, prevê-se que a imputação de factos e a simples direção de palavras a outrem podem traduzir uma forma de ofensa da honra e consideração do visado.

No entanto, a ordem jurídica acolhe os direitos ao bom nome e reputação de forma harmonizada e convergente, de tal modo que, entre outros, devem ser excluídos do seu âmbito de proteção os conteúdos que possam considerar-se de plano constitucionalmente inadmissível, mesmo quando não ressalvados na sua definição literal.

Pela sua pertinência, transcrevemos o seguinte excerto do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06-01-2010 [8]:

«Como é sabido, a vida em sociedade pauta-se por normas, nem todas elas de carácter jurídico. A teia de relações sociais que necessariamente se estabelece em torno de cada indivíduo e que lhe permite interagir com os demais, pressupõe, por força da própria natureza humana, uma regulação normativa. Basicamente, é usual distinguir-se entre normas religiosas, normas de costume, normas morais e normas jurídicas - Para desenvolvimento do tema, veja-se Alessandro Groppali, “Introdução ao Estudo do Direito”, 3ª Ed., pags. 31/35.

As primeiras, valem nas relações entre os crentes de uma mesma religião ou fé e entre estes e o Deus em que acreditam. A violação destas normas importa, para o crente, a sanção do castigo divino e a desaprovação dos outros crentes.

As normas de costume respeitam ao comportamento em determinadas circunstâncias; são normas de conveniência, de decoro, de higiene, de etiqueta ou de cerimónia. A sua violação acarreta a reprovação por parte de quem lhes atribui importância, e pode importar ainda um sentimento de mal-estar ou desconforto social para quem, respeitando por princípio essas normas, delas se afastou. A sanção que as acompanha é, pois, essencialmente, uma reprovação social.

As normas morais radicam numa noção de “bem” e de “mal”, são normas cuja violação gera uma intensa reprovação por parte dos membros da comunidade e que nos casos mais ostensivos conduz a uma verdadeira desqualificação social do infrator, que se verá olhado com desdém ou deixará de ser aceite em certos círculos sociais.

Por fim, as regras jurídicas prendem-se com o núcleo essencial da convivência humana. Tutelam valores de tal modo relevantes para a vida em sociedade que o Estado impõe coativamente a sua observância, estipulando sanções para os infratores.

Todos estes grupos de normas se refletem, direta ou indiretamente, na personalidade moral dos indivíduos e todas as sociedades, pelo menos, as sociedades de pendor humanista, tutelam a personalidade moral.

Assim sucede entre nós, tutelando a Constituição da República Portuguesa a personalidade moral, consagrando a sua inviolabilidade no art. 25º, nº 1 - Art. 25º, nº 1, da CRP: “A integridade moral e física das pessoas é inviolável”.

No desenvolvimento desse princípio, o Código Civil consagra uma tutela geral, estatuindo, no respetivo art. 70º, nº 1, que “A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral”.
O direito penal, por seu turno, tutela a honra e reputação do indivíduo, enquanto expressão da irrenunciável dignidade pessoal.
Honra, no sentido pressuposto pelas normas que lhe conferem tutela penal, tanto pode ser a honra subjetiva ou interior, no sentido de juízo valorativo que cada um faz de si mesmo, como honra objetiva ou exterior, correspondente à consideração de que alguém goza entre quem o conhece, ao bom nome e reputação no contexto social envolvente - Para desenvolvimento do tema veja-se José de Faria Costa, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I, pág. 603, em anot. ao art. 180º.
A ofensa à honra ou consideração não é, no entanto, suscetível de confusão com a ofensa às normas de convivência social, ou com atitudes desrespeitosas ou mesmo grosseiras, ainda que direcionadas a pessoa identificada, distinção que importa ter bem presente porque estas últimas, ainda que possam gerar repulsa social, não são objeto de sanção penal.»

Nestes termos, nem todo o comportamento incorreto de um indivíduo merece tutela penal, devendo-se destrinçar as situações que traduzem, de facto, uma ofensa da honra de terceiros com dignidade penal, daquelas situações suscetíveis de revelar tão só indelicadeza, grosseirismo ou uma má educação do agente, sem repercussão relevante na esfera da dignidade ou do bom nome do visado. Importa ter em consideração que, por vezes, é normal algum grau de conflitualidade e animosidade entre os membros de uma comunidade, surgindo situações em que alguns deles se podem até expressar, ao nível da linguagem, de forma deselegante ou indelicada. Contudo, o direito não pode intervir sempre que a linguagem ou as afirmações utilizadas incomodam o visado, devendo a sua intervenção reservar-se para as situações em que é atingido o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana.

Por conseguinte, atentos os múltiplos fatores que concorrem para a identificação das condutas ofensivas da honra, apenas nos casos concretos é possível discernir quais as palavras ou afirmações que, efetivamente, comportam uma carga ofensiva da honra de um indivíduo. Para este efeito, cumpre considerar, não só as expressões em si mesmas ou o seu significado, mas todas as circunstâncias envolventes, como sejam, a comunidade mais ou menos restrita a que pertencem os intervenientes, a relação existente entre estes, o contexto em que as palavras são produzidas e a forma como o são.

Como é sumariado no acórdão desta Relação de Guimarães de 22-01-2018 [9], «O tipo legal previsto no art. 181º do C. Penal (crime de injúria), assegura o direito ao “bom-nome” e a “reputação”, constitucionalmente garantidos (art. 26º, nº 1 da CRP), sendo indispensável à formulação do juízo sobre a tipicidade a contextualização das expressões proferidas, de modo apreciar se, nas circunstâncias em que o foram, atingiram a pessoa visada, quer no valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer na própria reputação ou consideração exterior, no patamar mínimo exigível de carga ofensiva abaixo do qual não se justifica a tutela penal, segundo os princípios de intervenção mínima e de proporcionalidade, imanentes ao estado de direito».

Mais desenvolvidamente, menciona-se na fundamentação desse aresto que «Assim, e no que respeita à “injúria”, nem tudo o que causa contrariedade e se apresenta como desagradável, grosseiro e pouco educado, mesmo até quando formalmente pareça integrar o tipo de crime, será relevante para esse núcleo de interesses penalmente protegidos. A lei tutela a dignidade e o bom-nome do visado, e não a sua suscetibilidade ou melindre. A valoração deve fazer-se de acordo com o que se entenda por ofensa da honra num determinado contexto temporal, local, social e cultural. (…) Impõe-se, assim, olhar a expressão em apreciação, não isoladamente, mas no contexto e circunstâncias em que foi proferida, e apreciar se, nesse contexto, atingiu a visada num quadro merecedor de tutela penal. (…) Todavia, existem expressões, comunitariamente tidas como obscenas ou soezes, que, objetivamente, atingem a honra do visado, a não ser que se demonstre que este as emprega usualmente e aceita sempre receber a carga de ofensividade que é inerente a elas».

(…)
É certo que o atentado à honra não se confunde com a simples indelicadeza, com a falta de polidez ou mesmo com a grosseria (…) é próprio da vida em sociedade haver alguma conflitualidade entre as pessoas. Há frequentemente desavenças, lesões de interesses alheios, etc., que provocam animosidade. E é normal que essa animosidade tenha expressão ao nível da linguagem. Uma pessoa que se sente incomodada por outra “pode compreensivelmente manifestar o seu descontentamento através de palavras azedas, acintosas ou agressivas. E o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere suscetibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função
».

3.2.2 – Tendo, então, presente que a relevância penal das ofensas cometidas ao bem jurídico da honra e consideração deverá ser aferida em função do contexto em que as mesmas ocorram, bem como que há um patamar mínimo exigível de carga ofensiva, abaixo do qual não se justifica a tutela penal [10], vejamos quais os factos que, no caso dos autos, se mostram suficientemente indiciados.

De acordo com o teor da acusação particular, no circunstancialismo em apreço, junto à residência do assistente M. P., o arguido J. F., de viva voz, na presença de várias pessoas e por diversas vezes, disse-lhe “você é um ladrão”, “vou corrê-lo à pedrada”, querendo ofender a honra e a consideração social do assistente e agindo de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua atuação é proibida e punida pela lei penal.

O Mm.º Juiz de instrução entendeu não se poder afirmar, sem cair em exageros, que a expressão “ladrão” ofende o código de conduta moral, cívico e social que orienta a generalidade das pessoas, uma vez que esse termo, na Língua Portuguesa, não tem necessariamente o sentido de acusar alguém da prática de um crime de furto, podendo ter igualmente a conotação de pessoa que procede de má-fé, um agiota que lucra com o mal dos outros ou um «maganão» (no sentido brejeiro, com o significado de «jovial», «patusco», pessoa que leva uma vida sem grandes responsabilidades, à base de expedientes pontuais).

Mais refere que, lendo a acusação particular como um todo, fica a perceção de que o arguido, ao dirigir-se ao assistente chamando-lhe “ladrão”, não o pretendia acusar de ter subtraído alguma coisa mas somente de ter agido de má-fé, ao entrar no terreno sem autorização, de não assumir as responsabilidades pelo que fez.

Não cremos que assim deva ser entendido, porquanto, como salienta o Exmo. Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, o facto de se dizer a alguém “você é um ladrão” é objetivamente ofensivo da honra e consideração que são devidas a essa pessoa. Tanto no sentido de pessoa que rouba, que furta, como no sentido de que não é honesta numa transação, que procede de má-fé, o que é a mesma coisa que dizer-lhe que é um patife, um tratante, um velhaco, ou mesmo no sentido de pessoa que leva uma vida sem grandes responsabilidades, à base de expedientes pontuais, que vive à custa dos outros.

Efetivamente, afigura-se-nos que segundo a normalidade da vida e as regras da experiência comum, a imputação feita à pessoa do assistente – “você é um ladrão– não pode deixar de ser tida como suscetível de ofender a honra e a consideração do visado.

Com efeito, no concreto circunstancialismo do caso, designadamente, conforme melhor resulta dos autos, a existência de um conflito entre ambos, em que o assistente, nos dias anteriores, invadiu o terreno do arguido J. F., a generalidade das pessoas de bem não deixaria de atribuir à sobredita expressão o significado de pessoa que furta ou rouba, que é um gatuno, que se apodera do alheio ou que é desonesta.

Ainda que, como sustenta o Mm.º Juiz, o termo "ladrão" também possa ter outros significados, nomeadamente aqueles que aponta na decisão recorrida, o certo é que como resulta do Grande Dicionário da Língua Portuguesa [11], os sentidos de “malando”, “tratante” e "homem sem consciência" são figurados e os de "maroto", "maganão", "brejeiro" e "diabo" são familiares.

Ora, o que claramente emerge dos autos é que a expressão "você é um ladrão", dirigida pelo arguido ao assistente, não foi proferida num qualquer contexto familiar nem com um sentido meramente figurado, mas sim tendo como pano de fundo um relacionamento conflituoso entre ambos, envolvendo questões de propriedade, não se podendo deixar de lhe atribuir o significado de pessoa que não respeita a propriedade dos outros, com a inerente imputação de ilícitos penais.

Por conseguinte, à luz dos padrões médios de valoração social, a expressão em apreço, no contexto e circunstâncias em que foi dirigida pelo arguido ao assistente, é suscetível de ofender, de modo jurídico-penalmente relevante, a honra e consideração do visado, por visar nitidamente a esfera da sua dignidade pessoal, indo muito além de uma mera violação das regras de cortesia, delicadeza e boa educação e atingindo já o âmago do mínimo de respeito indispensável ao relacionamento em sociedade.

Conclui-se, assim, que a conduta imputada ao arguido J. F. na acusação particular deduzida pelo assistente M. P., é apta a, objetivamente, preencher os elementos do crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º do Código Penal, não podendo, pois, nessa parte, subsistir a decisão de não pronúncia fundada em entendimento contrário.

III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e parcialmente procedente o recurso interposto pelo assistente M. P. e, em consequência, revogar a decisão instrutória, na parte em que despronunciou o arguido J. F. pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º do Código Penal, determinando que a mesma seja substituída por outra em que, considerando que a expressão por ele dirigida ao preenche os elementos objetivos de tal crime, se decida em conformidade.

Relativamente ao recurso do assistente, fixa-se no mínimo a taxa de justiça devida pelo mesmo, atento o seu decaimento parcial (art. 515º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal), não havendo lugar a tributação pelo recurso do Ministério Público.
*
(Elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)
*
Guimarães, 10 de setembro de 2018


(Jorge Bispo)
(Pedro Miguel Cunha Lopes)


[1]- Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo a correção de gralhas evidentes, a formatação e a ortografia utilizada, que são da responsabilidade do relator.
[2]- Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado, António Henriques Gaspar e outros, 2014, Almedina, pág. 1024, no mesmo sentido se pronunciando Damião da Cunha, "Ne bis in idem e exercício da ação penal”, Que futuro para o processo penal?, pág. 557, e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição atualizada, 2009, Universidade Católica Editora, pág. 778, anotação 10ª.
[3]- Cf., designadamente, os acórdãos do TRC de 09-12-2010 (processo n.º 185/08.8GAFIG.C1), do TRE de 01-03-2005 (processo n.º 1481/04-1), do TRG de 04-05-2015 (processo n.º 154/14.9GBGMR.G1) e de 15-02-2012 (processo n.º 774/09.3GAPTL.G1), e do TRP de 26-04-2017 (processo n.º 719/16.4T9PRT.P1), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[4]- Cf., nomeadamente, os acórdãos do TRC de 16-06-2015 (processo n.º 12/11.9GTLRA.C1) e de 26-10-2011 (processo n.º 199/10.8GDCNT.C1), do TRG de 02-11-2015 (processo n.º 44/14.5GAMSF.G1) e do TRP de 31-05-2017 (processo n.º 628/14.1TDPRT.P1), de 21-01-2015 (processo n.º 9304/13.1TDPRT.P1), de 07-07-2010 (processo n.º 102/08.5PUPRT.P) e de 23-04-2008 (processo n.º 0810048), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[5]- Proferido no processo n.º 781/14.4GBGMR-B.G1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[6]- Cf. entre outros, os acórdãos do TRG de 09-07-2009 (processo n.º 504/07.4GBVVD-A.G1) e de 27-09-2004 (processo n.º 1008/04-2), do TRP de 14-06-2017 (processo n.º 5726/14.9TDPRT.P1), de 12-10-2016 (processo n.º 276/11.8TAVLC.P2) e de 10-12-2014 (processo n.º 281/12.7TAVLG.P1),todos disponíveis em http://www.dgsi.pt, e ainda os acórdãos do TRP de 06-01-2016, in Coletânea de Jurisprudência n.º 268, Tomo I, pág. 187, e do TRG de 04-07-2005, in Coletânea de Jurisprudência, Ano XXX, tomo IV, pág. 300.
[7]- Proferido no processo n.º 0745811, disponível em http://www.dgsi.pt.
[8]- Proferido no processo n.º 862/08.3TAPBL.C1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[9]- Proferido no processo n.º 154/15.1GAPCR.G1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[10]- Cf. ainda o acórdão do TRG de 23-02-2015, proferido no processo n.º 218/12.3TAPRG.G1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[11]- Editado pela Sociedade da Língua Portuguesa, Publicações Alfa, S.A., Lisboa 1991, para o Círculo de Leitores, sob a coordenação de José Pedro Machado, volume III, pág. 518.