Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
157/15.6GDGMR.G2
Relator: MÁRIO SILVA
Descritores: ACUSAÇÃO PARTICULAR
NÃO ACOMPANHAMENTO MºPº
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
PRAZO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/12/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1 - A acusação particular deduzida pelo assistente e não acompanhada pelo MP é insuscetível de suspender ou de interromper o decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal, nos termos do disposto nos arts. 120º, nº 1, al. b) e 121º, nº 1, al. b), ambos do CP.
2 - O "jus puniendi" atribuído ao Estado não é extensível ao assistente nos crimes de natureza particular, quando o MP (titular da ação penal) não acompanhe a acusação deduzida por aquele.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

1. Em processo comum (singular) com o nº 157/15.6GDGMR, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Local Criminal de Guimarães – Juiz 3, foi proferida sentença, datada de 09/12/2019 e depositada no mesmo dia, com a seguinte decisão (transcrição):

V. DISPOSITIVO:
Pelo exposto, julga-se a acusação particular e o pedido de indemnização civil parcialmente procedente e, consequentemente, decide-se:
a) Condenar o arguido M. B., na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 20,00 (vinte euros), pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, nº 1, do Código Penal.
b) Condenar o arguido nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC – artigos 513º e 514º, do CPP e artigo 8º, nº 5 e Tabela III, do RCP.
c) Condenar o arguido/demandado M. B. no pagamento ao demandante B. A. da quantia de € 600,00 (seiscentos euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a data da prolação desta sentença, até integral e efectivo pagamento, absolvendo-o do demais peticionado.
d) Sem custas na instância cível – artigo 4º, nº 1, alínea n), do RCP.

Notifique.
Remeta boletim à DSIC.
Proceda ao depósito – artigo 372º, nº 5, do Código Penal..”
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2 – Não se conformando com a decisão, o arguido interpôs recurso oferecendo as seguintes conclusões (transcrição):
“1. O arguido vinha acusado da prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º do Código Penal com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias, pelo que, por referência à citada moldura penal, o presente procedimento criminal extingue-se, por efeito da prescrição, logo que sobre a prática do crime haja decorrido o prazo de 2 anos.
2. Porém, nos casos, respetivamente, tipificados nos artigos 120.º e 121.º, ambos do Código Penal, vêm previstas determinadas situações em que ocorre a suspensão e/ou interrupção do prazo de prescrição do procedimento criminal, sendo certo que constitui entendimento jurisprudencial assente que a notificação da acusação particular não acompanhada pelo Ministério Público, não suspende, nem interrompe o prazo de prescrição do procedimento criminal - Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 445/2012, Diário da República, II de 16-11-2012.
3. Sem prejuízo da verificação das causas de interrupção da prescrição, nomeadamente com a constituição de arguido, previstas no artigo 121.º, n.º 1 do Código Penal, o número 3 da referida disposição legal preceitua que «a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade», o que, neste caso, corresponderá a 3 anos.
4. Considerando que o prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado – cfr. artigo 119.º, n.º 1 do Código Penal, o aludido prazo normal de prescrição (2 anos) acrescido de metade, começou a correr no dia 8 de dezembro de 2016, dia em que o arguido terá alegadamente praticado os factos de que vem acusado, pelo que, no dia 9 de dezembro de 2019, já o presente procedimento criminal se encontrava prescrito,
5. Prescrição que expressamente se argui e que conduz à extinção do presente procedimento criminal, nos termos do disposto do artigo 121.º, n.º 3, conjugado com o disposto nos artigos 181.º, n.º 1 e 118.º, n.º 1, alínea d), todos do Código Penal.
6. Sem prescindir, nos termos do nº 5 do artigo 32º da Constituição da República, o processo penal tem estrutura acusatória. Daqui resulta, além do mais, na distinção material entre o órgão que investiga e o que julga.
7. Tal como resulta dos despachos proferidos pelo Ministério Publico, não foram recolhidos indícios suficientes da prática do crime na fase do inquérito.
8. Aliás, nos termos do disposto no artigo 311º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal, o Juiz deveria ter despachado no sentido da rejeição da acusação, uma vez que tal norma permite ao juiz do julgamento a apreciação das provas indiciárias para efeitos de rejeição da acusação com fundamento na manifesta insuficiência daquelas provas.
9. Porém, tendo o processo chegado a julgamento sem que tivessem sido recolhidos quaisquer indícios da pratica do crime por parte do arguido, sem que existissem quaisquer provas, passou tal operação a ser assumida pelo juiz de julgamento, violando, deste modo a estrutura acusatória do processo penal e, consequentemente, o disposto no artigo 32º, nº 5, da Constituição.
10. Ainda e sem prescindir, o Recorrente impugna a decisão acerca da matéria de facto, pois que entende que não ter ficado provada a matéria de facto constante dos números 1, 2, 3, 4 e 14 dos factos provados, impondo a prova produzida decisão diferente da que foi tomada, nos termos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
11. Com efeito, quer as declarações do assistente e demandante civil B. A., quer o depoimento da testemunha J. G., em que o Tribunal assenta a sua convicção jamais poderia permitir a prova dos enunciados factos, conforme se poderá facilmente constatar das transcrições dos respetivos depoimentos que anteriormente se efetuou e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
12. Na verdade, e salvo o devido respeito por opinião contrária, as declarações do assistente revelaram-se claramente interessadas na condenação do arguido, porquanto foram pautadas por teorias da conspiração e por uma obsessão incompreensível pelo arguido e pelas atividades empresariais que este desenvolve.
13. Acresce que, as declarações do assistente mais não são do que a imputação de factos criminosos ao arguido, idênticos à queixa que desencadeou o presente processo, e que não se mostram suficientes para sustentar uma acusação para julgamento, tanto assim é que o próprio Ministério Público não acompanhou a acusação particular por aquele deduzida.
14. No que concerne ao depoimento da testemunha J. G., que se nos afigura contraditório e eivado de dúvidas – não obstante o Tribunal recorrido considerar que este corroborava parcialmente as declarações do assistente -, não podemos deixar de fazer alusão às discrepâncias gritantes que neste se verificaram face ao que pela testemunha havia sido dito em sede de inquérito.
15. Ante o exposto, cremos, pois, que não pode ser conferida qualquer credibilidade ao depoimento da testemunha J. G., que, após referir por diversas vezes que não prestou atenção à conversa mantida entre assistente e arguido, veio a referir que, afinal, os terá ouvido chamar nomes, pese embora desconheça o conteúdo da demais conversação mantida entre aqueles.
16. Por fim, uma palavra para as declarações do arguido, que de forma coerente e imparcial, confirmou a existência da discussão objeto destes autos, que se tratou apenas de uma conversa com berros e nunca com injúrias.
17. Em face do exposto, e ante a insuficiência e incongruência da prova produzida, não resultou provado que o arguido dirigiu ao assistente as expressões injuriosas constantes da acusação particular deduzida, a saber, «filho da puta», «corno» e «cabrão», pelo que devem os factos dispostos nos artigos 1, 2, 3, 4 e 14 da matéria de facto provada ser dados como não provados.
18. Assim, alterada a decisão proferida quanto à matéria de facto, deve o arguido e demandado civil ser absolvido, quer da prática do crime de injúria, p. e p. pelo art. 181.º, n.º 1 do Código Penal, quer do pedido de indemnização civil contra si deduzido na acusação particular.

Termos em que deve ser admitido o presente recurso e, consequentemente, revogada a sentença recorrida, absolvendo o arguido do crime pelo qual vem acusado e julgando improcedente o pedido de indemnização civil, assim se fazendo JUSTIÇA.”

3 – A Exma. Procuradora da República na primeira instância apresentou resposta ao recurso, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção da sentença proferida, após formular as seguintes conclusões (transcrição):

“1. O arguido M. B. interpôs recurso da sentença que o condenou pela autoria de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181º, nº 1 do Código Penal, pugnando pela sua absolvição, invocando a prescrição do procedimento criminal, violação da estrutura acusatória do processo penal e que a prova produzida encontra-se indevidamente valorada, impondo decisão diversa.
2. Com o devido respeito por melhor entendimento, sempre terá de considerar-se que ocorreu uma interrupção e suspensão do prazo de prescrição com a notificação da acusação, nos termos previstos no artigo 120º, nº 1, al. b) e 121º, nº 1, al. b) ambos do Código Penal.
3. Não basta o mero decurso do tempo para que ocorra a prescrição do procedimento criminal, não devendo sobrevir a prescrição quando a pretensão punitiva do Estado é confirmada através de certos atos de perseguição penal ou quando a situação é tal que exclua a possibilidade daquela perseguição, tendo sido neste sentido que foram estabelecidas circunstâncias ou situações que determinam a suspensão e a interrupção do prazo de prescrição do procedimento criminal e que se encontram enumeradas, respectivamente, nos artigos 120º e 121º do Código Penal.
4. Muito embora na acusação particular não acompanhada pelo Ministério Público não exista uma confirmação da pretensão punitiva do Estado manifestada em acto de perseguição penal, no caso em apreço a situação é tal que exclui a possibilidade daquela perseguição, razão pela qual deve ainda assim ocorrer uma suspensão do prazo de prescrição.
5. A admitir-se a não suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal nos termos da al. b) do nº 1 do artigo 120º, tal implicaria que o assistente tivesse de prescindir do seu direito a requerer a abertura de instrução quanto aos demais factos ilícitos que denunciou objecto de despacho de arquivamento por parte do Ministério Público e prescindir do seu direito a recorrer da decisão instrutória que lhe foi desfavorável caso pretendesse ver a acusação particular por si deduzida submetida a julgamento dentro do prazo de 2 anos contado desde a prática dos factos.
6. Por outro lado, a intenção ao consagrar a causa de suspensão do prazo de prescrição aliada à notificação da acusação foi fixar um período razoável e adequado para a conclusão do processo, sendo que a única restrição estatuída pelo legislador foi que não pode ultrapassar os três anos.
7. Assim, limitar a suspensão do prazo de prescrição aos casos de acusação pública ou acusação particular acompanhada pelo Ministério Público não tem a mínima correspondência legal e contraria até a evolução legislativa.
8. Uma interpretação que exclua a notificação da acusação particular de causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal parece-nos ser manifestamente contrária à maior amplitude da norma que lhe foi concedida pelo actual Código Penal face à redacção do Código Penal de 1982 e, consequentemente, manifestamente contraria à intenção do legislador.
9. Por último, cumpre ainda considerar que o douto Acórdão do Tribunal Constitucional nº 445/2012 não tem força obrigatória geral e limita-se a declarar não inconstitucional a interpretação dos artigos 120º, nº 1, al. b) e 121º, nº 1, al. b) do Código Penal no sentido de que a prescrição do procedimento criminal não se suspende nem interrompe com a notificação da acusação particular se esta não for acompanhada pelo Ministério Público.
10. Todavia, conforme se diz no inicio da parte II de tal acórdão “não compete ao Tribunal censurar o acerto da interpretação normativa em causa”, tendo-se limitado a apreciar a constitucionalidade dessa interpretação normativa.
11. Assim, muito embora e seguindo-se o referido Acórdão do Tribunal Constitucional se aceite que tal interpretação não se encontra ferida de inconstitucionalidade, não nos parece a interpretação mais correcta e acertada face a tudo o que acima se expôs e tendo também em consideração a salvaguarda de todos os interesses em causa na acção penal, que para além do interesse punitivo e de revalidação da vigência da norma, terá também de englobar o interesse do ofendido e em especial do assistente.
12. Em suma, versando sobre o caso em apreço, tendo-se suspendido o prazo de prescrição do procedimento criminal em 12/12/2017 por força do disposto no artigo 120º, nº 1, al. b) do Código Penal e ainda não tendo sequer decorrido o prazo de 3 anos fixado pelo nº 2 do mesmo normativo legal, o procedimento criminal ainda se encontra suspenso e não prescrito, não assistindo qualquer razão ao recorrente.
13. Noutro ponto, é entendimento do recorrente que a acusação particular deveria ter sido rejeitada, nos termos do disposto no artigo 311º, nº 1, al. a) do Código de Processo Penal por manifestamente infundada.
14. Todavia, parece olvidar o recorrente o disposto no nº 3 do mesmo normativo legal que elenca as situações em que a acusação se considera manifestamente infundada. Não cabe neste elenco a insuficiência de indícios quanto à pratica dos factos pelo arguido.
15. A este respeito já se pronunciou o Tribunal Constitucional no Acórdão nº 101/2001, do qual se retira que é efectivamente a estrutura acusatória do nosso processo penal que veda que o Juiz de Julgamento aprecie os elementos de prova produzidos em sede de inquérito e rejeite a acusação por manifestamente infundada com base na insuficiência de indícios.
16. Deste modo, bem andou o tribunal a quo ao receber a acusação particular tal como fez, não decorrendo de tal decisão qualquer vicio ou violação de principio constitucionalmente consagrado.
17. Por último, quanto à decisão sobre a matéria de facto, esta mostra-se integralmente correcta, baseando-se na apreciação da prova produzida em audiência de julgamento e em toda a prova documental junta aos autos, a qual foi apreciada segundo as regras da experiência e da livre convicção do julgador.
18. Das passagens dos depoimentos transcritos pelo recorrente, não resulta que se impunha decisão diversa à proferida, sendo apenas entendimento do recorrente a diferente interpretação que lhes poderia ter sido dada.
19. A pretensão do recorrente não se funda em que tenha sido produzida prova no sentido de o arguido dever ser absolvido mas tão só diverge do tribunal a quo quanto à valoração da prova produzida e, fruto disso, ocorre uma desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido a do arguido, ora recorrente.
20. Sucede que, ao atacar a decisão recorrida com base na valoração atribuída à prova produzida ou a eventual erro na apreciação, o recorrente põe em causa a regra ínsita no artigo 127º do Código de Processo Penal, que determina que o Juiz julgue segundo as regras da experiência e da sua livre convicção.
21. No caso sub judice, a decisão sobre a matéria de facto foi adequada e materialmente correta, porque resultou de uma análise crítica da prova, em obediência aos princípios de direito probatório e à luz das regras da experiência comum e de juízos de normalidade.
22. O Tribunal recorrido fundamentou as suas opções valorativas em função do conjunto de provas produzidas, dentro do quadro legal do mencionado principio da apreciação da prova e com respeito pelo in dubio pro reo
23. O Tribunal ponderou devidamente cada um dos elementos de prova produzidos em julgamento, apreciando-os criticamente. A credibilidade destas provas encontra-se justificada no exame minucioso das mesmas, inexistindo qualquer prova a favor de não terem ocorrido os factos imputados aos Recorrentes ou que os mesmos não fossem por eles responsáveis. Tão pouco inexiste qualquer prova que suscite dúvida no julgador, pelo que a aplicação do principio in dubio pro reo tão pouco foi ponderada na sentença recorrida.
24. Assim, dispondo o Tribunal a quo do privilégio da imediação das provas e assentando a convicção do julgador, em larga medida, no que tal imediação lhe permite apreender, andou bem aquele Tribunal quando deu como provados os factos descritos, entre os demais, nos pontos 1), 2), 3), 4), e 14) a matéria de facto provada.
25. Pelas razões ora aduzidas, entende-se que a sentença proferida pelo Tribunal a quo não deverá merecer quaisquer reparos, devendo, pois, ser mantida, nos seus precisos termos e, por conseguinte, o presente recurso deverá soçobrar.
Nestes termos e melhores de Direito, deve ser negado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser mantida, na íntegra, a decisão recorrida, como é de Direito e Justiça.”
4 – Também o assistente/recorrido apresentou resposta ao recurso, pugnando, a final, pela manutenção da decisão de primeira instância.
5 - Nesta instância, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, sufragando a posição do Ministério Público na primeira instância e concluindo que o recurso não merece provimento.
6 – No âmbito do estabelecido no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, o recorrente apresentou resposta ao parecer, persistindo na argumentação já explanada no recurso.
7 – Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, al. c), do Código de Processo Penal.
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II – Fundamentação

1 - O objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação (artº 412º, n1, do Código de Processo Penal e jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ nº 7/95, de 19/10, publicado no DR de 28/12/1995, série I-A), sem prejuízo de questões a conhecer oficiosamente, como sejam as cominadas com a nulidade de sentença, com vícios da decisão e com nulidades não sanadas (artigos 379º e 410º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal) – cfr. Acórdãos do STJ de 25/06/98, in BMJ nº 478, pág. 242; de 03/02/99, in BMJ nº 484, pág. 271; Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, vol. III, págs. 320 e ss; Simas Santos/Leal Henriques, “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 3ª edição, pág. 48.

2 - As questões invocadas pelo recorrente são as seguintes:
- Prescrição do procedimento criminal;
- Violação da estrutura acusatória do processo penal;
- Impugnação ampla da matéria de facto.

3 – Fundamentação constante da sentença recorrida (transcrição):
II. OS FACTOS:

A. FACTOS PROVADOS:

Da acusação particular:

1) No dia 08 de Dezembro de 2016, pelas 15h00, o assistente, quando se encontrava na sua propriedade, sita em …, …., Guimarães, foi confrontado com vários insultos, tais como “filha da puta”, “corno” e “cabrão”, dirigidos à sua pessoa, aos berros, apesar da proximidade física entre ambos, proferidos pelo arguido.
2) Com tal comportamento, o assistente sentiu-se vexado e ofendido. 3) Desde modo, o assistente viu a sua honra e consideração social ofendida, no local da sua residência perante as pessoas que estavam perto.
4) O arguido ao actuar do modo descrito agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que tais imputações eram falsas e que a sua conduta era proibida por lei e com o objectivo de seriamente ofender o assistente.

Da situação pessoal e económica do arguido:

5) O arguido é industrial.
6) O arguido tem registado em seu nome um prédio urbano cujo valor patrimonial é de € 33.779,24, bem como 4 veículos, do ano de 1998, 2000, 2003 e 2015.
7) O arguido consta registado como Membro de Órgão Estatutário em 15 empresas.
8) Encontra-se registado na segurança social como contribuinte, tendo declarado o salário mensal de €3.000,00, referente ao mês de Outubro de 2019.
9) A esposa trabalha numa empresa de que o arguido é sócio-gerente.
10) O arguido e a sua esposa declararam rendimentos referentes ao ano 2018, nos seguintes montantes: € 122.329,28, referente a rendimentos do trabalho; € 25.575,46, a referente a rendimentos prediais
11) Vive em casa própria.
12) Concluiu o Curso Geral da Escola Industrial de …, que lhe dá a equivalência ao 7º ano de escolaridade.
13) Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido.

Do pedido de indemnização civil (para além dos factos provados da acusação particular):

14) A conduta do arguido deixou o assistente envergonhado, ofendido, enxovalhado e emocionalmente abalado, o que se refletiu numa constante inquietação sempre que vem à rua, pois que poderá cruzar-se com o arguido, tendo o assistente receio de ser novamente ofendido pelo arguido.

B. FACTOS NÃO PROVADOS:

Da acusação:

a) As expressões referidas em 1) foram proferidas perante vizinhos e familiares.

III MOTIVAÇÃO:

O Tribunal formou a sua convicção apreciando de forma crítica o conjunto da prova produzida em audiência, a qual foi apreciada segundo as regras da experiência e da livre convicção do julgador, nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal.
O arguido confirmou as circunstâncias de tempo e lugar apuradas. Relatou que se apercebeu que o assistente estava a colocar uma vedação no terreno, que é contíguo ao seu, tendo o assistente objectos necessários aos trabalhos colocados no terreno do arguido, o que o desagradou iniciando-se uma discussão entre ambos. Admitiu que o tom de voz, de ambos, era elevado e que se exaltou um pouco. Negou, contudo, ter proferido as expressões que lhe são imputadas.
O assistente, num registo se que se nos afigurou sincero, objectivo, coerente e, por vezes, algo emocionado, confirmou as circunstâncias de tempo e lugar apuradas, tendo ainda reproduzido as expressões que o arguido lhe dirigiu, tudo nos precisos termos dados como provados. Mais aludiu às divergências existentes entre si o arguido, aos sentimentos e emoções de que foi acometido na sequência da conduta deste último, o que, de resto, está conforme às regras da normalidade.
A testemunha J. G., à data funcionário do assistente, cuja presença no local é confirmada pelo próprio arguido, referiu que aí se encontrava a reparar uma vedação quando chegou o arguido, tendo-se iniciado entre este e o assistente uma acesa discussão, de tal modo que preferiu ausentar-se do local com receio do que pudesse acontecer. A testemunha, com alguma relutância, motivada, cremos, por receios relacionados com represálias ou por não querer prejudicar ninguém, admitiu ter ouvido o arguido a apodar o assistente de “filha da puta”.
Dito isto, as declarações do assistente mereceram a credibilidade do tribunal, foi este a vítima das expressões do arguido, explicou como sucederam os factos, prestou declarações de forma espontânea, consistente, sem contradições, demonstrando claramente como tais expressões o afectaram, pelo que o tribunal não teve razões para dele duvidar, não tendo tido quaisquer dúvidas de que o arguido proferiu as ditas expressões e que as mesmas afectaram o assistente na sua honra e consideração. Ademais, é de referir que as declarações do assistente, para além de parcialmente corroboradas pelo depoimento da testemunha inquirida, são tanto mais verosímeis quanto se sabe que a discussão ocorrida foi acesa e exaltada, contexto que propicia, segundo juízos da experiência, infelizmente, a agressão moral do contendor.
No que concerne ao elemento subjectivo, ponderou-se o iter criminis do arguido, ou seja a acção objectiva apurada, apreciada à luz de critérios de razoabilidade e bom senso e das regras de experiência da qual se extrai a sua intenção, sendo certo que não foi produzida qualquer prova susceptível de contrariar tal entendimento.
O arguido esclareceu a sua situação pessoal e económica, nos precisos termos dados como provados, tendo as suas declarações sido complementadas com a informação do Serviço de Finanças e Segurança Social de fls. 566/596.
A inexistência de antecedentes criminais resulta do CRC junto aos autos.
Os factos não provados resultam da falência da prova, pois que ficou claro que as expressões foram proferidas perante a testemunha inquirida e não perante outros vizinhos ou mesmo familiares do assistente.”
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III - Apreciação do recurso

Preceitua o artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, que: “Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.

No recurso não foi invocado qualquer dos vícios supra elencados, nem os mesmos não se vislumbram da decisão recorrida, assim como qualquer nulidade, pelo que nada há a conhecer neste capítulo.
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Prescrição do procedimento criminal

O recorrente começa por invocar a prescrição do procedimento criminal contra si instaurado.

Estriba-se, em síntese, nos seguintes argumentos:

- É de 2 (dois) anos o prazo de prescrição do procedimento criminal pelo crime de injúria de que foi acusado – art. 119º, nº 1, al. d), do Código Penal;
- Ainda que se verifiquem causas de suspensão e/ou de interrupção do referido prazo, a prescrição tem-se por verificada decorridos 3 (anos) sobre o decurso da prática dos factos – arts. 119º, nº 1 e 121º, nº 3, ambos do Código Penal;
- Constitui entendimento jurisprudencial assente que a notificação de acusação particular não acompanhada pelo Ministério Público não suspende nem interrompe o prazo de prescrição;
- Tendo os factos ilícitos sido praticados em 08/12/2016, quando ocorreu a leitura da sentença, em 09/12/2019, estava prescrito o procedimento criminal.

Sendo absolutamente pacíficas as conclusões obtidas pelo recorrente quanto aos prazos de prescrição (“normal” e “alargado”) aplicáveis ao ilícito em apreço, assim como as datas da prática dos factos e da leitura da decisão, a única questão a apreciar neste âmbito é saber se a notificação da acusação (no caso, uma acusação particular não acompanhada pelo Ministério Público) constitui ou não, causa de suspensão e/ou de interrupção do decurso daquele prazo.
Também está assente que a acusação particular e despacho de não acompanhamento pelo MP, foram notificados ao arguido em 12/12/2017.
O recorrente defende - alegando ser entendimento jurisprudencial assente - que a notificação da acusação particular, quando não acompanhada pelo Ministério Público (como ocorreu in casu), é insusceptível de originar a suspensão ou interrupção do decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal. Em abono da sua tese, o recorrente invoca o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 445/2012, in DR, II, de 16/11/2012.
É o que cumpre, portanto, dilucidar.
Uma nota preliminar, apenas para referir a existência de uma outra causa de interrupção da prescrição – o pedido de apoio judiciário para nomeação de patrono, na pendência de acção judicial – na previsão do artigo 24º, nº 4, da Lei nº 34/2004, de 29/09.
Só que esta interrupção, ocorrida em 03/05/2017 (data da junção aos autos do pedido de protecção jurídica, cfr. fls. 211), cessou na data da notificação ao patrono da sua nomeação, isto é, em 26/05/2017 (cfr. fls. 229 e segs.), iniciando-se, então, nova contagem do prazo prescricional.
Nestes termos, na falta de qualquer outra causa de interrupção ou de suspensão do respectivo prazo (de dois anos), sempre a prescrição do procedimento criminal estaria verificada aquando da leitura da sentença em 09/12/2019.

Apreciando a questão.

Vejamos o que dispõem as normas do Cód. Penal em causa (na parte atinente):

Art. 120º - Suspensão da prescrição
“1 - A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:
(…)
b) O procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, a partir da notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou do requerimento para aplicação de sanção em processo sumaríssimo;
2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior a suspensão não pode ultrapassar três anos.
(…)
6 – A prescrição volta a correr a partir do dia em que cessar a causa da suspensão.”.

Art. 121º - Interrupção da prescrição
“1 – A prescrição do procedimento criminal interrompe-se:
(…)
b) Com a notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, com a notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou com a notificação do requerimento para aplicação de sanção em processo sumaríssimo;
2 – Depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição.
3 – Sem prejuízo do disposto no nº 5 do artigo 118º, a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade. (…).”.

Na sua alegação do entendimento jurisprudencial assente, o recorrente invoca o já referido Acórdão do Tribunal Constitucional (nº 445/2012).
Na pesquisa que efetuámos, além do Acórdão objecto de recurso para o TC, lográmos encontrar um outro que subscreve tal tese (do TRE de 05/02/2019, no proc. 727/15.2T9TNV.E1) e uma decisão sumária (do TRL de 06/02/2009, no proc. 2748/05.4TASNT-3) (ambos disponíveis nas bases de dados da DGSI), com fundamento em que a notificação de acusação particular não acompanhada pelo MP ““não traduz a vontade do “Estado, como intérprete das exigências comunitárias”, de “efectivar, no caso, o seu jus puniendi””.
Ainda no mesmo sentido, a Tese de Mestrado em Direito de Pedro Filipe Gama da Silva (“A prescrição como causa de extinção da responsabilidade criminal – Um estudo de direito penal português”, Universidade Coimbra, 2015), que apenas menciona “Se classicamente a interrupção está ligada à prática de actos judiciais, a actos de um juiz, com o assumir do Ministério Público como titular do inquérito, impôs-se atribuir esse efeito a actos levados a cabo pelo Ministério Público. Esse poderes, porém, não podem ser exercidos pelos particulares, o que significa que, por exemplo, uma acusação particular, no âmbito dos crimes particulares em sentido estrito, se não for acompanhada pelo Ministério Público não interrompe (nem suspende) a prescrição.” – fls. 104, na qual se refere, em nota de rodapé, que Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal”, não distingue a acusação pública da particular.
Já o citado Acórdão do TC, decidiu “não julgar inconstitucional a norma dos artigos 120°, n° 1, alínea b) e 121°, n° 1, alínea b), ambos do Código Penai (CP), na interpretação segundo a qual a prescrição do procedimento criminal não se suspende, nem interrompe com a notificação da acusação particular, se esta não for acompanhada pelo Ministério Público”.
Disserta-se nesse Acórdão que: “(…) a interrupção da prescrição do procedimento pressupõe que o Estado, por intermédio dos seus órgãos competentes e mediante atos processuais inequívocos, em si mesmos e considerando a natureza e finalidade da fase em que se integram, manifeste claramente ao agente a intenção de efectivar, no caso, o seu ius puniendi (cf. Acórdão de fixação de jurisprudência de 16 de novembro de 2000, do Supremo Tribunal de Justiça, Diário da República, 1ª série, de 6 de dezembro de 2000). A questão que no presente processo se coloca é se constitucionalmente se impõe que o mesmo efeito que a lei atribui à acusação do Ministério Público, seja reconhecido, nos crimes particulares, à acusação do assistente, ainda que desacompanhada pelo Ministério público.
(…)
A realização do imperativo constitucional de permitir ao ofendido intervir no processo penal com vista à atuação do jus puniendi concretiza-se, principalmente, mediante a investidura na qualidade de sujeito processual, pela via da constituição como assistente (artigo 68.” do CPP).
Á lei configura o assistente em processo penal como um colaborador do Ministério Público, a cuja actividade subordina a sua atuação no processo, salvas as exceções legalmente previstas (artigo 69°, nº 1, do CPP). (…).
(…) a posição do assistente nunca poderia ser comparada, como sujeito processual, com a do Ministério Público. O Ministério Público é o órgão integrado na organização dos tribunais a que a Constituição comete o exercício da acção penal (artigo 219°, n° 1, da CRP). (…)
(…) seja qual for a natureza do crime, seja este de natureza pública, semipública ou particular, o jus puniendi é sempre do Estado, não um direito subjectivo que integre a esfera jurídica do ofendido embora para ser exercido através dos tribunais. Deste modo, a circunstância de a lei atribuir ao Ministério Público especiais poderes processuais, ou de fazer decorrer efeitos substantivos de atos processuais do Ministério Público que não reconhece a atos de função processual idêntica quando praticados pelo assistente, não viola, por si mesma, o princípio da igualdade. O estatuto constitucional do Ministério Público no que à titularidade da acção penal respeita constitui suporte constitucional bastante para a diferente atribuição de efeitos jurídicos substantivos a atos processualmente idênticos.”

E, mais adiante:

“É certo que nos crimes particulares, apesar de conferir dignidade penal à ofensa a determinado bem jurídico, a lei não comete ao Ministério Publico a prossecução oficiosa da acção penal. Em último termo, nesse género de crimes, o papel conformador autónomo quanto à atuação do poder punitivo do Estado é atribuído ao ofendido, ou melhor, ao assistente. (…) No que toca à atuação pública do poder punitivo os seus momentos determinantes são fortemente condicionados por impulsos do ofendido. Efetivamente, se o assistente acusar, o Ministério Público poderá acusar ou não, mas só pode acusar pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros que não impuserem alteração substancial daqueles (artigo 285º, nº 4, do CPP). Deste modo, neste género de crimes, a pretensão de fazer corresponder uma sanção penal à prática de certos factos típicos é substancialmente protagonizada pelo assistente.
Todavia, o processo penal não se converte, por isso, num mero processo de interesse privatístico. Mesmo com os poderes de promoção do procedimento condicionados pela atuacão do ofendido, é ao Ministério Público que, constitucionalmente, continua a caber a titularidade da acção penal orientada pelo princípio da legalidade. Independentemente de saber se a interpretação normativa em causa é a mais acertada, encontra-se nessa configuração constitucional e na natureza prevalentemente substantiva da prescrição, fundamentação material bastante para só atribuir afeito interruptivo ou suspensivo da prescrição, a mais dos que decorrem de atos jurisdicionais, à afirmação da vontade de perseguição penal que seja assumida, em nome do Estado, pelo Ministério Público.”
A extensa transcrição realizada tem como desiderato fundamental a integral subscrição dos argumentos aí doutamente expendidos.
Na verdade, ainda que o legislador não tenha produzido uma redacção inequívoca - definidora do tipo de acusação e em que circunstâncias - das causas susceptíveis de suspender e de interromper o decurso do prazo de prescrição – e podia e devia tê-lo feito, tanto mais que tais causas constam do Título subsequente ao que trata do direito de queixa e de acusação particular (Título IV do Livro I do C. Penal) -, tendo em conta a natureza essencialmente substantiva da prescrição, bem como o exclusivo atribuído constitucionalmente ao Ministério Púbico da titularidade da acção penal, a única conclusão a extrair é que, nos crimes dependentes de acusação particular, a acusação deduzida pelo assistente, se não acompanhada pelo Ministério Público, não tem a virtualidade de operar a suspensão e/ou interrupção da prescrição do procedimento criminal.
Em suma, no caso dos autos não ocorreu qualquer causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal, tendo-se verificado uma interrupção do prazo da mesma (por força do pedido de protecção jurídica formulado).
A contagem do prazo de prescrição reiniciou-se com a nomeação de patrono (em 26/05/2017), ocorrendo a prescrição do procedimento criminal dois anos após.
Assim sendo, aquando da prolação da sentença, em 09/12/2019, o procedimento criminal encontrava-se já prescrito.
Neste segmento, importa conceder provimento ao recurso.
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O recorrente veio invocar a violação do princípio da estrutura acusatória do processo penal.

Para o efeito alega que:

- o art. 32º, nº 5, da CRP, impõe a distinção entre o órgão que investiga e o que julga;
- uma vez que o Ministério Público concluiu não ter recolhido indícios suficientes da prática do crime, a investigação passou a ser assumida pelo juiz de julgamento;
- este deveria ter rejeitado a acusação, por manifesta insuficiência das provas indiciárias recolhidas, ao abrigo do disposto no art. 311º, nº 2, al. a), do CPP.

A questão apenas exige algumas linhas para o seu esclarecimento.
Desde logo, por estar prejudicada pela decisão ora proferida quanto à prescrição do procedimento criminal.
Mas também pela sua manifesta improcedência.
Efetivamente, a norma citada pelo recorrente admite a rejeição da acusação, no despacho de saneamento do processo, quando seja considerada manifestamente infundada.
Mas tal conceito está expressamente definido no nº 3 – aditado pelo DL nº 59/98, de 25/08, que fez caducar a jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ nº 4/1993, de 1993/02/17 - do mesmo artigo (311º), em cujas alíneas não se inclui a insuficiência da prova indiciária.
Dito de outro modo, desde que a acusação esteja “formalmente” perfeita – arguido identificado, narração dos factos que constituem o crime e indicação das provas respetivas, assim como as disposições legais aplicáveis – o juiz está impedido de tomar outra atitude que não a de marcar o julgamento, não podendo sindicar a suficiência da prova indiciária.
Também nesta parte, o recurso improcede.
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O recorrente impugna ainda a matéria de facto, nos termos do disposto no art. 412º, nº 3, do CPP, entendendo que os factos provados nos artigos 1 a 4 e 14, devem ser tidos como não provados.
Também nesta parte a questão aparenta estar ultrapassada pela decisão acerca da prescrição, mas não é assim, pela sua relevância quanto à parte cível.
É que, nos termos da jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ nº 3/2002 (in DR, I Série-A, nº 54, de 05/03/2002), “Extinto o procedimento criminal, por prescrição, depois de proferido o despacho a que se refere o artigo 311.° do Código de Processo Penal mas antes de realizado o julgamento, o processo em que tiver sido deduzido pedido de indemnização civil prossegue para conhecimento deste.”.
É o que se verifica no presente caso, pois o despacho previsto no art. 311º do CPP foi proferido a 06/12/2018 (cfr. fls. 517/8 dos autos), antes da ocorrência da prescrição.
O recorrente, para a impugnação da decisão da matéria de facto indicada, estriba-se na desvalorização das declarações do assistente (face ao interesse deste no desfecho do processo) e do depoimento da testemunha ouvida (porque contraditório e eivado de dúvidas), em conjugação com as declarações do arguido, que admitiu a ocorrência de uma conversa com o assistente “em alto tom”, mas negou a troca de insultos.
Cumpre desde já salientar que, da própria transcrição das declarações do arguido, resulta que não houve apenas um pequeno atrito, mas que se tratou de “uma conversa de berros”, ainda que negue a existência de insultos.
É pacífico que, no caso de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, sendo antes um remédio, remédio jurídico, para evitar erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como foi apreciada e ponderada a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto indicados pelo recorrente.
“O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total dos acervos dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados.
Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa”
A sentença recorrida explicita o juízo formulado, designadamente a opção realizada entre as versões apresentadas a juízo e as razões em que tal opção se fundou, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova.
E, ouvida a prova produzida em audiência, conclui-se que foi apreciada de modo racional e objectivo, de acordo com a lógica, a experiência comum e os ditames legais, não podendo ser considerada arbitrária e, portanto, não merecendo qualquer censura.
No fundo, o recorrente esforça-se - ao desvalorizar as declarações do assistente e o depoimento da testemunha e ao hiperbolizar as suas próprias declarações – por tentar impor a sua própria convicção à do julgador.
Esquecendo, porém, que a convicção formada por este – que também subscrevemos, – porque assente na imediação e na oralidade e na capacidade de perceção que estas proporcionam, só pode (e deve) ser alterada se os meios de prova indicados pela recorrente, impuserem uma outra solução e não quando apenas a admitam – é o que resulta do disposto no artigo 412º, nº 3, al. b), do CPP (sublinhado nosso).
Não é, manifestamente, o caso dos autos, pelo que o recurso improcede neste segmento.
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IV – DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em:

- julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido M. B., no segmento que se reporta à prescrição do procedimento criminal, que se declara, revogando a sentença recorrida no que concerne à condenação criminal e respectivas custas processuais;
- na parte restante, julgar o recurso improcedente, confirmando a sentença recorrida.
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Sem custas.
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A primeira instância providenciará pelas necessárias comunicações da ocorrência da prescrição.
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(Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários – artigo 94º, nº 2, do Código de Processo Penal).
Guimarães, 12 de Outubro de 2020

(Mário Silva - Relator)
(Maria Teresa Coimbra - Adjunta)