| Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | HEITOR GONÇALVES | ||
| Descritores: | PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO DEPOIMENTO INDIRECTO | ||
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| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 05/17/2004 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
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| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PROVIDO | ||
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| Sumário: | I – Nos termos do art. 343º do C. P. Penal, o arguido é inteiramente livre de se pronunciar sobre os factos da acusação ou sobre os que resultarem da discussão da causa, assistindo-lhe, também, o direito de se remeter ao silêncio, sem que o tribunal disso possa extrair ilações em seu prejuízo ou benefício. II – coberto desse silêncio não pode impedir que o Tribunal aprecie livremente os depoimentos das testemunhas, ainda que a razão de ciência das mesmas radique em informações ou declarações que o arguido lhes tenha prestado. III – Nesses casos, não pode afirmar-se a afectação do contraditório, que é a razão subjacente à proibição de depoimentos indirectos prevista no art. 129º do C. P. Penal. IV – Ao arguido cabe a responsabilidade de adoptar a estratégia que entender mais adequada à sua defesa, mas o respeito pelos princípios da legalidade, da proporcionalidade, do contraditório e da igualdade não deixa de se verificar se o tribunal, a requerimento ou oficiosamente tomar declarações a testemunhos de “ouvir dizer”, estando a “fonte” presente em tribunal, em condições de poder confirmar, negar ou esclarecer tais depoimentos. | ||
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| Decisão Texto Integral: | Acordam em audiência na Relação de Guimarães I. Por acórdão de 2 de Julho de 2003, proferido no processo comum colectivo 52/00, do Tribunal Judicial de Amares, a arguida "A" foi absolvida do crime de homicídio, previsto e punido pelo artigo 131º, do Código Penal, que o Ministério Público lhe imputara na acusação, e do pedido de indemnização deduzido pelos demandantes "B", "C" e "D". II. Factos dados como provados: a. No dia 5 de Setembro de 2000, pelas 16h30, José ..., marido de "A" dirigiu-se ao lugar de ..., em Valdozende, Terras de Bouro, para esperar Maria ... - id. a fls.142, por forma a impedi-la de desviar a água de rega e lima para o seu terreno. b. Por volta das 18h10 chegou àquele local "A" com o mesmo propósito, uma vez que já há alguns anos havia divergências sobre o aproveitamento da referida água. c. Cerca das 18h30m chegou ao referido local Maria ..., com o propósito de desviar a água para a sua propriedade, objectivo esse a que "A" se opôs, começando ambas a discutir. d. O local onde se encontrava a arguida "A" ficava num socalco de terreno que se situa num plano superior em cerca de um metro acima do terreno onde estava Maria .... e. O terreno onde se encontrava Maria ... estava cultivado, pelo que não continha pedras, existindo uma plantação de milho que estava pronto para ser colhida. f. A dita Maria... sofreu fractura do ramo esquerdo e posterior da primeira vértebra cervical, originando a luxação desta relativamente ao buraco occipital e à segunda vértebra cervical, com o consequente esmagamento/estiramento da medula. g. Posteriormente, o marido da arguida chamou ao local uma ambulância que transportou a ofendida ao Hospital de Vieira do Minho, onde esta, em consequência directa e necessária das referidas lesões, veio a falecer pelas 19h40m. h. Desde a morte da Maria..., os Assistentes "B" e "D" que com ela residiam ficaram privados do montante de cerca de € 355 que aquela auferia mensalmente, por limpar as partes comuns de um prédio em Braga, por efectuar limpezas numa casa particular em Braga e por cuidar de um jardim, cultivar o terreno e limpar a casa de uma Quinta em Valdozende. i. A Maria... sempre gozou de muito boa saúde, era uma mulher de hábitos regrados, administrando a casa de família, tomando conta de um neto como sempre tinha tomado dos filhos e contribuindo para as despesas da casa com os proventos que recebia. j. Cada um dos herdeiros, especialmente o viúvo "B", sofreu um enorme abalo psíquico, um profundo desgosto e dor em virtude da morte da mãe e mulher, à qual devotavam, com reciprocidade, sincero amor e afecto. k. Os Demandantes Civis tiveram de pagar o funeral da vítima, que ascendeu a € 1 343,01 (Esc. 269.250$00). l. A Arguida não possui antecedentes criminais. m. Possui boa aceitação na respectiva comunidade, pese embora o conflito sobre partilha de águas que mantinha com os Assistentes e a vítima; trabalha na agricultura e sempre foi dona de casa (mesmo no período em que se encontrou emigrada com seu marido). Factos dados como não Provados: 1. Após uma breve troca de palavras sobre a referida questão da água, a arguida "A" lançou-se do local onde encontrava - num plano superior em cerca de um metro de altura em relação ao local onde se encontrava a ofendida - sobre Maria ..., fazendo-a cair ao chão e rebolando-se de seguida as duas no chão. 2. Quando já se encontravam as duas no chão, a arguida "A" empurrou e torceu a cabeça da Maria ..., efectuando um movimento brusco de hipertensão da cabeça da Maria ... relativamente ao pescoço desta, causando-lhe directa e necessariamente com tal movimento a fractura do ramo esquerdo e posterior da primeira vértebra cervical, originando a luxação desta relativamente ao buraco occipital e à segunda vértebra cervical, com o consequente esmagamento/estiramento da medula. 3. A arguida sabia que, agindo pela forma descrita, molestava fisicamente a ofendida e que actuando, como pretendeu e concretizou, efectuando um movimento brusco de hipertensão da cabeça da ofendida relativamente ao pescoço desta, atingia uma parte vital do corpo da ofendida, consciente de que este seria um meio idóneo e capaz de causar a morte da ofendida, tal como pretendeu e ocorreu. 4. Assim, a arguida actuou da forma supra descrita em livre manifestação da vontade com o propósito concretizado de matar a ofendida. 5. Que antes de perecer a vítima Maria... tenha suportado um penoso e profundo sofrimento físico e moral, apercebendo-se da iminência da sua morte e que ainda estivesse viva quando foi socorrida no local do crime e transportada para o hospital de Vieira do Minho. Motivação (transcrição): “A convicção do Tribunal achou-se tendo por base os únicos meios de prova disponíveis: o relatório de autópsia de fls. 23 e 24, o qual descreve a causa da morte da vítima, complementado pelas declarações do perito médico legista Manuel ..., prestadas em audiência de julgamento – declarou que na base do acontecido, na respectiva biodinâmica, se encontra um movimento de hiperextensão da coluna para trás, seguida de rotação à esquerda, face à fractura à esquerda da vértebra – não descartou, todavia, o perito a hipótese de tal ter sido provocado por uma queda de pequena altura; relativamente à presença no local da Arguida e de seu marido a sós com a vítima e das horas a que tal se passou, tal facto foi unanimemente mencionado pelas testemunhas que chegaram ao local logo após, os vizinhos Maria D... e José P..., bem como Manuel M... e Leonel R... (chamados ao local a fim de verificarem os “problemas” que havia e que prestaram primeiros socorros à vítima, tendo, só após a presença desses dois no local, sido chamada a ambulância); as primeiras duas testemunhas citadas, bem como outras, Mª da G..., acrescidos do depoimento dos Assistentes, elucidaram o Tribunal sobre as divergências que vinham existindo no decorrer daquele ano de 2000 sobre a partilha de uma água que servia para os usos dos prédios quer da vítima e seu marido, quer da Arguida e marido; a discussão em voz alta foi mencionada pelas testemunhas Mª D... e José P..., situados em prédio vizinho (apesar da distância a que se encontravam, as primeira citada testemunha foi terminante quanto ao facto de ter ouvido vozes alteradas, respondendo: “aí estão eles pegados”); o local onde se encontrava a vítima, mais alto que o terreno da Arguida, e a natureza de cultivo do terreno de baixo, onde a vítima foi encontrada, foi unanimemente referido pelas testemunhas que conhecem o local, designadamente as que foram confrontadas com as fotos dos autos, António D... (soldado da G.N.R., que compareceu no local após a vítima ter sido retirada de ambulância) e Manuel M...; a confirmação do falecimento da vítima no hospital de Vieira foi referida, incluindo a hora a que se verificou, pelas testemunhas Fernando M... (socorrista e motorista da Cruz Vermelha) e pelo acompanhante na ambulância Manuel M.... Todavia, não se pôde formar qualquer convicção sobre o facto de se ter, ou não, a vítima lançado sobre a Arguida, sobre o facto de se terem rebolado as duas pelo chão e de a Arguida ter empurrado e torcido a cabeça da vítima: em primeiro lugar, nenhuma das testemunhas que prestaram declarações presenciou os factos, apenas os citados Maria D... e José P... ouviram um grito da “comadre” que, após, “esmoreceu”; a Arguida não prestou declarações, bem como seu marido não o fez, usando ambos da faculdade legal; os demais depoimentos são meramente indirectos: a testemunha socorrista Fernando M... refere que a Arguida lhe disse “engadalhámo-nos uma na outra” e a testemunha Manuel do N... (inspector da P.J.) relatou a reconstituição do acidente que efectuou, em sede de inquérito, com o auxílio das declarações da Arguida e de seu marido – nenhum desses depoimentos pode servir para formar convicção do Tribunal em sede de julgamento; é certo que existem sinais de confronto físico no cadáver da vítima (fls. 23 – escoriações compatíveis com “unhadas” na testa e no lábio, confirmadas pelas declarações em audiência do perito Manuel ... e da testemunha Manuel M...), acrescendo cabelos curtos de cor preta nos tegumentos unguenais da vítima (cf. relatório da autópsia), mas de tal facto não se pode retirar que a Arguida e a vítima se tenham envolvido fisicamente (também o marido da Arguida se encontrava no local), nem pode deixar de se hipotizar quer que a causa de morte nada tenha a ver com um confronto físico ainda que este confronto tenha ocorrido (nada se sabe sobre o eventual desenrolar do confronto, e trata-se de uma morte compatível com uma queda de pequena altura), nem pode deixar de se encarar como possível (tão possível como a hipótese relatada na acusação) a do envolvimento do marido da Arguida nos factos. Sendo assim, nenhuma convicção se pode formar sobre os factos trazidos a audiência de julgamento, nem tão pouco uma convicção que apontasse para a prática de um crime de ofensas corporais agravadas pelo resultado (artº 145º C.Pen.), designadamente porque nenhuma imputação, quer de ofensa corporal, quer de omissão de dever de cuidado na produção do resultado morte, se retira, em estrita análise dos factos trazidos a julgamento, do comportamento da Arguida ou de terceiro, pois que se ignora maxime o iter da eventual agressão. Os factos provados relativos ao pedido cível resultaram do depoimento unânime das testemunhas José A... e mulher Mª da L..., Eduardo R..., das relações da vítima, pelo conhecimento directo e isenção revelados nos depoimentos respectivos, não contraditados, por qualquer forma, acrescendo os documentos juntos com o pedido cível. O facto “não provado”, quanto ao pedido cível, foi desmentido pelo perito Manuel ... (esta morte é imediata à acção de esmagamento da medula; o esmagamento da medula é uma forma de morte frequente em, v.g., acidentes de viação, sendo as mulheres ligeiramente mais expostas a esta causa de morte, mais facilitada pelo fenómeno da osteoporose, mais acentuado nas mulheres, após o fenómeno da perda de estro génios. As condições de vida da Arguida resultam do C.R.C. dos autos e prova abonatória apresentada, designadamente os vizinhos Elisa G..., Almeno G... e Abílio G... (actual presidente da Junta de Freguesia). Do desconhecimento acerca da verificação material dos factos trazidos a julgamento, impõe-se absolver a Arguida, por via da aplicação do princípio “in dubio pro reo”. III. O assistente "B" interpôs recurso dessa decisão, pretendendo que os factos não provados, constantes dos supra itens 1, 2, 3 e 4, sejam incluídos nos factos provados. Para lograr esse desiderato, aduz os seguintes argumentos: a) a veracidade desses factos resulta da prova documental (sobretudo o relatório de autópsia de fls 23 e segs) e pericial (depoimento do médico legista Manuel ...) e testemunhal, em especial os depoimentos de Fernando M..., Maria A... e José P..., relativamente aos quais não foi suscitado qualquer reparo sobre a sua coerência, autenticidade e credibilidade; b) esses depoimentos foram postergados pelo tribunal a pretexto de se tratar de depoimentos indirectos e, quanto ao primeiro, devido ao errado, embora implícito, pressuposto de que ofende o disposto no artigo 356º, nº7, do CPP; c) tais razões emergem duma interpretação inaceitável das normas do artigo 129º e 356º, nº7, que, por um lado, não impedem a valorização de depoimentos indirectos, desde que tenha sido satisfeita, como foi, a condição da identificação da respectiva fonte, e, por outro, não descartam a possibilidade de um cidadão, que não integre um órgão de polícia criminal nem tenha servido tal função no decurso do inquérito, depor sobre o teor e conteúdo de conversas que manteve com os arguidos; d) estamos, assim, perante um erro notório na apreciação da prova, que preenche os requisitos do vício previsto na al. c), do nº2, do artigo 410º e constitui nulidade; IV. A arguida e o Ministério Público responderam às motivações de recurso. Diz a arguida: as dúvidas quanto à causa da morte são uma constante do depoimento do perito médico-legal; a testemunha Fernando M... não soube identificar a pessoa que proferiu a expressão «engadalhamo-nos aqui uma na outra»; o depoimento das testemunhas Maria D... e José P..., para além de não terem presenciado os factos, também não tiveram conhecimento de quem os praticou. Por sua vez, o Ministério Público, embora concordando que o depoimento da testemunha podia ser valorado, concorda com o julgamento da matéria de facto, atenta a aplicação do princípio in dúbio pró reo. V. Nesta Relação, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, cujo teor se passa a transcrever: «Ao invés da posição firme, que necessariamente se respeita, do magistrado do MºPº na 1ª instância no sentido da improcedência do recurso por apelo ao princípio in dubio pro reo, cremos que a prova produzida em audiência e que de forma exemplar foi transcrita e à documentação constante dos autos, não só consente e como obriga à alteração da matéria de facto que na sentença foi dada como não provada e já supra relatada. Ou seja, percorremos o caminho, difícil, por certo - são as veredas da justiça, que efectuou o recorrente, dando total valia à argumentação pelo mesmo oferecida. A segunda consideração tem a ver com a completa desnecessidade de se estar a repetir a argumentação trazida pelo recorrente pois, como é evidente, representaria uma completa inutilidade. Aqui, então, se dá como reproduzida a argumentação invocada, com vénia. Porém, e relativamente à mesma, sempre será possível operar um incisivo acrescento em ordem à consistência do propósito pugnado: a revogação do acórdão. Apesar de ser afirmada pelo Tribunal a quo a existência de uma dúvida, decisiva, sobre a autoria da lesão corporal fatal que vitimou a Maria A... – se produto da acção da arguida "A" se de fortuita e infeliz queda - certo é que esta, afinal, e apelando-se às regras da experiência e da demais prova vertida nos autos, não se pode representar. Ou seja, salvo melhor opinião, onde o Tribunal a quo constatou dúvida, a mesma não existe. E aquela não se verifica porque em momento algum da prova produzida se afirmou a existência de uma queda infortunada e vitimizadora. Aliás, como muito bem evidencia e demonstra o recorrente assistente. Afastada que está a hipótese da queda, sobeja, com plenos foros de credibilidade, consistência e verosimilhança que, por isso, de hipótese evolui para certeza: a morte da Maria A... e sobreveio no decurso de uma contenda, concretamente quando esta e a arguida "A" estavam engalfinhadas uma na outra em confronto físico. As testemunhas invocadas pelo recorrente dão plena conta da existência da mencionada rixa. É facto inultrapassável. Isto, malgrado o silêncio a que a arguida se remeteu no julgamento, no pleno exercício de um direito próprio. De facto, é também imperioso considerar o seguinte: 1. a arguida estava no local da contenda quando ao mesmo acorreu a GNR que ainda presenciou a retirada do cadáver do local; 2. Não há dúvidas de que quando a Maria Alice foi retirada donde estava já era cadáver, pois que, atenta a causa da morte, como bem clarifica o Ex.mo perito médico Manuel R..., “… este tipo de mecanismo de morte é, mais ou menos, instantâneo”, não sendo compatível com um quadro de agonia – queixas ou gritos – “silenciosa no sentido de ser mais ou menos rápida … O estiramento …vertebro-medular simultâneo automaticamente provoca a morte” – vd. fls. 437 e 438 da Transcrição; 3. O chamamento da GNR foi efectuado a pedido da testemunha Manuel G..., tendo utilizado o seu próprio telemóvel – “Ainda estava com vida e então mandei imediatamente chamar a GNR e a ambulância” – vd. fls. 524, tendo esta chegado primeiro “ mas quase em simultâneo” – vd. fls. 525. Ora, em face destes elementos, resulta evidente que aquela testemunha, confesso inimigo da vítima e seus familiares – vd. fls. 529, quando tocou na prostrada vítima, de pronto, representou uma inultrapassável realidade: para além de um caso de saúde, estava perante “um caso de polícia”, havendo necessidade de intervenção da GNR. É que, indiscutivelmente, ele bem sabia que aquele resultado tinha como antecedente imediato a existência de uma briga, aliás a razão da sua presença no local com um filho da arguida, como está confirmado a fls. 522 e 524 dos autos. A viagem da GNR para o local foi, precisamente, porque não se desenhava um singular e infeliz acidente fortuito – uma queda – que impusesse apenas a presença da emergência médica. Ao invés, prefiguravam-se responsabilidades e de natureza criminal. Assim, nada consente que se hipotise a existência de uma queda como justificação para a causa da morte da Maria A.... Pelo contrário, a morte desta aconteceu no decurso da luta corporal havida, de um confronto físico. Mas perguntar-se-á: haverá dúvida sobre a existência da falada luta corporal envolvendo a Maria A... e a "A"? O recorrente, como já se disse, evidencia a prova que aponta, fora de qualquer dúvida para esta afirmação. Mas importa adiantar um pouco mais. De facto, é incontornável que a GNR procedeu à detenção de uma pessoa. Esta foi realizada pelo soldado da GNR António D..., conforme se vê de fls. 4 verso. A pessoa detida foi, precisamente, a arguida "A". E porque é que a autoridade policial a deteve? A resposta a esta questão não a vamos colher no depoimento da testemunha António D... prestada na audiência de julgamento. Não se encontra no âmbito da prova testemunhal, mas sim no da prova documental. Vamos descobri-la no AUTO DE NOTÍCIA que, ao tempo, foi lavrado. Ora, nele fez-se consignar expressamente: a)	“ Deu-se uma desavença entre a suspeita atrás identificada ( a "A") e a Srª Maria A... …”; Como muito bem esclarece o perito médico que realizou a autópsia, a)	As lesões corporais visíveis na vítima – lesão vértebro-medular da coluna cervical: fractura do ramo esquerdo e posterior da primeira vértebra cervical, luxação desta relativamente ao buraco occipital e esmagamento e estiramento da medula - podem ocorrer no decurso de uma rixa, estando o agressor “ numa parte posterior à vítima” – vd. 434; Aqui chegados, cremos estar afastada a existência de qualquer dúvida, mormente a representada pelo Tribunal a quo. A conclusão a que chegamos é totalmente díspar da do Tribunal a quo, respeitando ela, sempre, o princípio da imediação e da oralidade. Importa, assim, que o Tribunal de recurso altere, em substância, os factos dados como não provados, produzindo relativamente aos mesmos uma afirmativa. Após tal, emerge uma nova questão, a de saber se há prova relativamente à intenção de matar. Cremos que avançar para uma resposta afirmativa será não considerar toda a prova produzida. A morte da Maria A... sobreveio no decurso do confronto físico acima evidenciado, ou seja, por acção da "A" no puxar dos cabelos à Maria A.... Porém, sem que aquela representasse sequer como possível que do mesmo pudesse advir a morte da sua contentora. O “desmaio”, a “surpresa” do mesmo, a natureza da lesão física e a sua bio-dinâmica, tudo plasmado na dúvida de fingimento que a arguida logrou verbalizar, conduzem-nos à ideia de afastamento de uma concreta intenção de matar. Assim, apesar do recorrente continuar a considerar a existência de prova do crime de homicídio voluntário simples, nós ficamo-nos pela verificação de um crime de ofensas corporais agravado pelo resultado, na previsão do art. 145, nº1, al. a) do CPenal. Aliás, o próprio recorrente apesar de invocar tal possibilidade – vd. motivação a fls. 379 verso, nas conclusões que elaborou deixou cair tal hipótese. Todavia, pelo que se deixou exposto, nós pugnamos pela condenação da arguida pela autoria do predito crime. Em conclusão: o recurso, salvo melhor e mais avisada opinião, merecerá provimento» 
 Colhidos os vistos, cumpre decidir: Nos termos da acusação deduzida pelo Ministério Público, a morte da Maria A... foi uma consequência directa e necessária da fractura do ramo esquerdo e posterior da primeira vértebra cervical, com o consequente esmagamento/estiramento da medula, lesões essas que foram causadas pela arguida ao empurrar e torcer o pescoço da ofendida, efectuando um movimento brusco de hipertensão da cabeça desta relativamente ao pescoço, agindo com a consciência de este ser um meio idóneo e capaz de causar a morte da ofendida, tal como pretendeu e ocorreu. O tribunal recorrido deu como provadas essas lesões e o nexo de causalidade entre elas e a morte da Maria A..., mas considerou como não provado que as mesmas tivessem sido provocadas pela arguida, ou que esta quisesse e representasse tal evento, pois sobre essa matéria, conforme fez constar da motivação, os julgadores não conseguiram formar uma convicção segura. Por isso, resolvendo a dúvida em benefício da arguida, decidiu dar como não provada essa factualidade e, consequentemente, absolveu-a do crime de homicídio que lhe fora imputado na acusação pública Como razões explicativas dessa dúvida, refere o tribunal: o perito médico Manuel ... não descartou a hipótese de as lesões terem sido provocadas por uma queda de pequena altura; a vítima encontrava-se no local a sós com a arguida e o marido desta, e estes não prestaram declarações; os depoimentos das testemunhas Fernando M... (que ouviu da arguida: “engadalhámo-nos uma na outra”) e do Inspector da PJ, Manuel do N... (que relatou a constituição do acidente em sede de inquérito, com o auxílio das declarações da arguida e do seu marido) são meramente indirectos, pelo que não podem ser valorados em julgamento; apesar de existirem sinais de confronto físico no cadáver da vítima ( fls. 23 – escoriações compatíveis com “unhadas” na testa e no lábio, confirmadas pelas declarações em audiência do perito Manuel ... e da testemunha Manuel Maximino), acrescendo cabelos curtos de cor preta nos tegumentos unguenais da vítima, não se pode retirar daí que a arguida e a vítima se tenham envolvido fisicamente, nem pode deixar de se hipotizar quer que a causa da morte nada tenha a ver com um confronto físico ainda que este confronto tenha ocorrido (nada se sabe sobre o eventual desenrolar do confronto, e trata-se de uma morte compatível com uma queda de pequena altura), nem pode deixar de se encarar como possível a do envolvimento do marido da arguida nos factos. Na perspectiva do recorrente, essa decisão traduz um incorrecto julgamento da matéria de facto dada como não provada, e isso deve-se à circunstância de o tribunal não ter procedido a uma adequada avaliação da prova produzida em audiência, ter ofendido as regras do direito probatório material e ter incorrido em erro notório na apreciação da prova. Argumenta que a dúvida manifestada pelos julgadores não tem fundamento, porque a conjugação de toda a prova produzida aponta para a veracidade dos factos imputados à arguida, e concretiza a determinado passo das suas motivações: - “o depoimento prestado em audiência pelo médico legista Manuel ..., do qual resulta com enorme expressividade que a hipótese de as lesões sofridas pela vítima resultarem de uma pequena queda é postulada por simples preocupação de rigor científico e não colhe, de todo, a preferência do perito” ; - “ Os sinais objectivos da existência duma agressão constam dos autos e foram bem observados e relevados na motivação do douto acórdão…”; - “ Confirmando, por outro lado, a inexistência de qualquer queda, aponta o depoimento da testemunha Fernando M…. Saliente-se que o depoimento desta testemunha não mereceu nenhuma espécie de reparo, nem foi posta em causa a sua credibilidade” Quanto ao erro notório na apreciação da prova, diz o recorrente que a decisão ficou a padecer desse vício na medida em que o tribunal, na decisão da matéria de facto, postergou os depoimentos de Fernando M..., Maria D... e José P..., a pretexto de se tratarem de depoimentos indirectos e, quanto ao primeiro, devido ao errado, embora implícito, pressuposto de que ofende o disposto no artigo 356º, nº7, do CPP. Adianta que tais razões “emergem duma interpretação inaceitável das normas do artigo 129º e 356º, nº7, que, por um lado, não impedem a valorização de depoimentos indirectos, desde que tenha sido satisfeita, como foi, a condição da identificação da respectiva fonte, e, por outro, não descartam a possibilidade de um cidadão, que não integre um órgão de polícia criminal nem tenha servido tal função no decurso do inquérito, depor sobre o teor e conteúdo de conversas que manteve com os arguidos”. É por esta questão que iniciamos o conhecimento do objecto do recurso Como é sabido, o erro notório na apreciação da prova, como vício da decisão previsto na alínea c), do nº2, do artigo 410º, do CPP, deve resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, e determina o reenvio do processo para novo julgamento, quando impossibilite a decisão da causa - artigo 426º, nº1 -, enquanto que a impugnação deduzida nos termos do artigo 412º, nºs 3 e 4, pressupõe a análise e ponderação da prova produzida em audiência (elementos externos à decisão) e visa a modificação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação (cfr. Artigo 431º). Assim sendo, podemos afirmar sem qualquer reserva que esse e qualquer outro dos vícios previstos no nº2, do artigo 410º, do CPP, constitui uma verdadeira questão prévia relativamente à impugnação da matéria de facto que é deduzida nos termos do artigo 412º, nºs 3 e4, do mesmo código. . Na motivação da decisão sobre a matéria de facto, consignou o tribunal colectivo: «os demais depoimentos são meramente indirectos: a testemunha socorrista Fernando M... refere que a Arguida lhe disse “engadalhámo-nos uma na outra” e a testemunha Manuel do N... (inspector da P.J.) relatou a reconstituição do acidente que efectuou, em sede de inquérito, com o auxílio das declarações da Arguida e de seu marido – nenhum desses depoimentos pode servir para formar convicção do Tribunal em sede de julgamento» Conjugando esta passagem com o que foi consignado antes e depois, cremos que o tribunal não formulou nem quis formular qualquer juízo sobre a coerência, autenticidade ou credibilidade dos depoimentos prestados pelas testemunhas. Quis apenas dizer que não foram levados em conta para a convicção do tribunal, ou melhor, tratou-os como se não existissem, a pretexto de serem depoimentos indirectos, sendo assim considerados porque, como razão de ciência, essas testemunhas se limitaram a referir aquilo que lhes foi relatado pela arguida e marido. Ou seja, embora não referindo o preceito legal, o tribunal tratou esses depoimentos como meios de prova proibidos, nos termos previstos pelo artigo 129º, nº1, do Código de Processo penal. Com o devido respeito, cremos que essa posição do tribunal recorrido não traduz, em parte, uma correcta interpretação dos preceitos legais que regem a prova. Vejamos: Quanto ao depoimento prestado pela testemunha Manuel do N..., agente da Polícia Judiciária, a sua razão de ciência, como a própria motivação do tribunal sugere, pode cindir-se em duas partes: Nas diligências a que procedeu para “reconstituição do acidente” e na colaboração recebida, para o efeito, pela arguida e marido. Compulsados os autos, constatamos que a intervenção daquele agente ocorreu a após o Ministério Público ter suscitado a intervenção da Polícia Judiciária por despacho de 28.02. 2001 (cfr. fls. 90), ou seja, numa altura em que já existia o processo crime a decorrer e a "A" havia sido constituída como arguida (cfr. interrogatório judicial de fls. 15 a 17). Consequentemente, a partir desse momento, todas as diligências de prova deveriam ser reduzidas a auto – artigo 275º, nº1, do CPP. O mesmo é dizer que, no caso dos autos, na esteira do decidido pelo Ac. do STJ de 30.09.98 (BMJ 479-pág. 414), todas «conversas informais» do arguido e do seu marido com a testemunha Manuel do N..., designadamente aquelas que foram prestadas no âmbito da sua colaboração para o reconhecimento do local e reconstituição do crime, nenhum valor probatório têm. Acresce que o mesmo agente, sobre os factos respeitantes ao crime em averiguação, ouviu a arguida e o seu marido, como resulta dos autos de fls. 115/118 e 129/131, onde, porventura, as referidas declarações informais anteriormente prestadas terão sido renovadas. Ora, se esses autos só podiam ser lidos em audiência com o acordo do Ministério Público, arguido e assistente (cfr. nºs 2 –b) e 5, do artigo 356º, do CPP) e se essa situação não se verificou (quod non est in actiis non est in mundo), também aquele referido agente da PJ não podia ser inquiridas como testemunhas sobre o conteúdo das mesmas declarações, porque o nº7 do artigo 356º o proíbe. Restava, assim, a validade do depoimento do órgão de polícia criminal, cuja razão de ciência não resultasse das informações recebidas pelas pessoas que ouviu em declarações., designadamente através da reconstituição do crime, documentos fotográficos do local etc., porque respeitam a factos do seu conhecimento e contacto directo. Assim, nessa parte, ao não valorar, como devia, o depoimento da testemunha Manuel do N..., a decisão recorrida incorreu em erro notório na apreciação da prova, vício previsto no artigo 410º, nº2, al. c), do Código de Processo Penal. 
 Igual vício foi cometido ao não ser valorado o depoimento da testemunha Fernando M..., mesmo que de um depoimento indirecto se tratasse (o que não é uma questão pacífica, como nos dá conta o acórdão do STJ de 12.12.01, proferido no processo nº. 3075/01, 3ª S., o qual considerou não se estar perante um depoimento indirecto, mas antes perante o relato de um facto concreto e de que a testemunha teve conhecimento directo, por o ter captado por intermédio dos seus “próprios ouvidos”, quando essa testemunha transmite ao tribunal que ouviu um dos co-arguidos dizer (….)) e independentemente da posição tomada pela arguida em audiência de julgamento. É inquestionável que, nos termos do normativo do artigo 343º, do CPP, o arguido é inteiramente livre de se pronunciar sobre os factos da acusação ou sobre os que resultarem da discussão da causa, assistindo-lhe inclusivamente o direito de se remeter ao silêncio, sem que daí o tribunal possa extrair ilações, em seu prejuízo ou benefício. Porém, a coberto desse silêncio não pode impedir que o tribunal aprecie livremente os depoimentos das testemunhas, ainda que a razão de ciência das mesmas radique em informações ou declarações que o arguido lhe tenha prestado. Com efeito, nesses casos, não pode afirmar-se a afectação do contraditório, que é a razão subjacente à proibição de depoimentos indirectos estabelecida no artigo 129º, do C. P. Penal. Cabe ao arguido e respectivo defensor adoptar a estratégia que entendam servir melhor a defesa, mas o respeito pelos princípios da legalidade, da proporcionalidade, do contraditório e de igualdade não deixam de ser respeitados se o tribunal, a requerimento ou oficiosamente, tomar declarações a testemunhos de “ouvir dizer”, estando a “fonte” presente em tribunal, em condições de poder confirmar, negar e esclarecer tais depoimentos. O tribunal não tem possibilidade de decidir da causa sem que, previamente, os referidos depoimentos passem pelo “crivo” de quem tem o poder de imediação da prova, não sendo também indiferente, depois de darmos uma vista de olhos pelos depoimentos transcritos, a circunstância de haver pormenores que este tribunal ad quem não pode captar, como são algumas referências que as testemunhas fizeram à morfologia dos terrenos e ao posicionamento da arguida e da vítima, aquando da inquirição, mais concretamente na altura em que lhes foram exibidas fotografias. Cremos que a não valoração dos depoimentos, nos termos acima referidos, teve influência na decisão da causa, embora estejamos convictos que não tanto como o recorrente pretende, mormente para a sustentação da tese do homicídio. Afigura-se-nos, porém, que, sem pretendermos fazer aqui qualquer antecipação de resultados probatórios, a valoração dos questionados depoimentos poderá ter a virtude de afastar a hipótese de as lesões que determinaram a morte terem sido causadas por uma queda ( a ter havido confronto físico, afastada fica, naturalmente, a hipótese o esmagamento/estiramento da coluna da vítima se ter verificado em momento anterior). Mas também com todo o respeito que nos merece a posição do Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, a não provar-se a intenção de matar, dificilmente se poderá sustentar a tese do crime preterintencional que indica no seu parecer ( o previsto no artigo 145º, nº1, al. a), do Código Penal), porque isso pressupunha a resolução de uma dificuldade, que é a de saber se a morte da vítima é um resultado que deve ser imputado à conduta da arguida. Para uma resposta positiva não bastará afirmar-se que as lesões constituíram uma condição sem a qual a morte da vítima não teria ocorrido (conditio sine qua non). Exige-se mais: que entre a conduta da arguida e a morte da vítima seja possível concluir-se, face às circunstâncias do caso, por um nexo de causalidade adequada. Ora, não nos parece que, a ter existido apenas um confronto físico, em que arguida e ofendida se agarraram pelos cabelos e rebolaram pelo chão, vingue a tese da preterintencionalidade, visto que a gravidade das lesões e a consequente morte da vítima não podem considerar-se de forma alguma um resultado típico daquela acção. Ultrapassadas essas considerações, impõe-se mais uma vez salientar que o tribunal recorrido deveria ter valorado, para poder formar a sua convicção sobre a matéria de facto, os depoimentos das testemunhas Manuel do N... e Fernando M..., ambos na parte em que a sua razão de ciência resulta do conhecimento directo, e a última também naquilo que ouviu dizer à arguida. Porque assim não procedeu o tribunal colectivo, o acórdão que proferiu ficou a padecer do vício de erro notório na apreciação da prova previsto no artigo 410º, nº2, al. c), do CPP, o qual, impossibilitando de decidir da causa, determina o reenvio do processo para novo julgamento, quanto à totalidade do seu objecto, nos termos dos artigos 426º e 426º-A, do referido código. 
 Decisão: Pelo exposto, dando provimento a uma das questões suscitadas pelo recorrente, acordam os Juízes desta Relação em anular o julgamento e acórdão recorrido, e determina-se o reenvio do processo para novo julgamento, quanto à totalidade do seu objecto (artigos 410º, nº2, al. c), 426º e 426º-A), do CPP. Custas pela recorrida, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC. Honorários legais ao advogado oficioso. |