Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1691/08-1
Relator: ISABEL ROCHA
Descritores: CHEQUE
FALSIFICAÇÃO
RESPONSABILIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/15/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: JULGADA IMPROCEDENTE
Sumário: 1. Na base da emissão de um cheque existem duas relações jurídicas distintas entre o emitente e o banco sacado: o contrato ou convenção de cheque e a relação de provisão que pode assumir, entre outras, a forma de depósito.
2. Do contrato ou convenção de cheque derivam para as partes vários deveres, nomeadamente os deveres, para o cliente, de verificar o estado da sua conta e de zelar pelos impressos de cheque e, para o Banco, de pagar o cheque emitido pelo cliente nos termos contratados e o de verificar cuidadosamente os cheques.
3. O depósito bancário deve ser qualificado como um contrato de depósito irregular, pelo que, de acordo com o disposto no artº 1206º do CC, ao mesmo devem ser aplicadas, na medida do possível, as regras do contrato de mútuo, designadamente o disposto no artº 1144º do CC, segundo a qual a coisa mutuada (no caso depositada) integra-se desde logo na propriedade do mutuado (no caso o depositário). Trata-se assim de um contrato “translativo do domínio da coisa” que tem como efeitos, entre outros, o da transferência do risco para o adquirente, tendo pois plena aplicação o disposto no artº 796º do CC, segundo o qual, neste tipo de contratos, o perecimento ou deterioração da coisa por causa não imputável ao alienante (no caso o depositante) corre por conta do adquirente (no caso o depositário).
3. Assim, se o Banco pagar um cheque falsificado, incumprindo quer o contrato de cheque, quer o contrato de depósito, para ilidir a presunção de culpa do artº 799º do CC, terá de provar, não só que agiu com a diligência exigível, mas também que o “perecimento da coisa” resultou de culpa do depositante, nos termos do citado artº 796º.
4. Ou seja, mesmo que o Banco demonstre que, não obstante ter pagar um cheque falsificado, agiu com a diligência devida nomeadamente cumprindo o referido dever de verificação do cheque, só pode afastar a sua culpa e consequente responsabilidade contratual perante o cliente, se demonstrar que é a comportamento culposo deste que se deve tal pagamento.
Decisão Texto Integral: A... Lima e esposa, M... Novo, residentes no lugar do Barreiro, Facha, intentaram no Tribunal Judicial de Ponte de Lima, acção com processo sumário contra “Banco B... SA”, com sede na Rua de Sá da Bandeira nº 20, Porto, pedindo que esta seja condenada a pagar-lhes a quantia de € 5.536,66, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde 9/11/2001 até integral pagamento.
Alegam em síntese que: são titulares de uma conta bancária domiciliada na agência de Ponte de Lima do Banco B... SA, com quem celebraram convenção mediante a qual ficaram autorizados a dispor ou movimentar, por meio de cheques, as quantias que aí depositavam; no âmbito dessa convenção a Ré forneceu aos AA vários cheques; em 2001, o então marido da filha dos AA, L... Oliveira, apoderou-se, retirando-os da residência destes, de dois desses cheques, que abusivamente preencheu e assinou imitando, num deles a assinatura da A mulher e, noutro, a assinatura do A marido; tais cheques obtiveram boa cobrança e, por estes factos, o identificado Luís foi julgado em processo comum colectivo, tendo sido condenado, pela prática de dois crimes de burla e de dois crimes de falsificação de documento, em pena de prisão e ainda a pagar aos AA a quantia de € 5.536,66 acrescida de juros, que não pagou por não ter meios para tanto; do simples exame visual das assinaturas apostas nos dois referidos cheques resulta evidente que as mesmas não foram apostas pelos AA; os funcionários do Banco que os aceitaram para cobrança não conferiram tais assinaturas, como era seu dever, pelo que também a Ré é responsável pelo ressarcimento dos prejuízos sofridos pelos AA.
A Ré contestou, impugnando os factos alegados pelos AA, alegando que: as assinaturas apostas nos cheques em causa coincidem, por semelhança e em primeira aparência, com as dos AA tal como constam da ficha de assinaturas existente no Banco, tendo sido conferidas pelos funcionários que os pagaram; o Banco B... jamais incorreu em qualquer conduta ou omissão que legitime o pedido efectuado pelos AA, que aliás, até agora nada reclamaram da Ré.
Dispensada a elaboração do despacho saneador e a selecção da matéria de facto nos termos do disposto nos artºs 508º B, nº 2 e 510º nº 1 do CPC, foi cumprido o disposto no artº 512º nº 1 do CPC, tendo sido designada audiência de discussão e julgamento, com gravação da prova e em observância do legal formalismo.
Após decisão sobre a matéria de facto, o Mmº Juiz a quo proferiu sentença, julgando a acção procedente por provada, condenando a Ré a pagar aos AA a quantia de € 5.536,66 acrescida de juros de juros vencidos e vincendos desde a data da citação até integral pagamento.
Inconformada, a Ré interpôs recurso de apelação, apresentando alegações que terminou com as seguintes conclusões:
1.Vem o presente recurso da douta sentença proferida nestes autos em 18.02.2008, circunscrevendo-se embora o objecto desses à condenação do Banco Réu em pagar aos Autores o valor do cheque n° 7277463471 (Esc. 1.000.000$00);
2.Está dado como provado nos autos que, em Novembro de 2001, L... Oliveira — ao tempo genro dos Autores - apropriou-se ilicitamente desse cheque n° 7277463471 e preencheu-o, apondo-lhe a data de 09.11.2001, a quantia por extenso e em algarismos de Esc. 1.000.000$00 e, falsificando pelo seu punho a assinatura do Autor, nesse mesmo dia se dirigindo à agência do B... de Ponte de Lima, onde apresentou esse mesmo cheque a pagamento;
3.O funcionário do Banco Réu, J... Costa, conferiu a assinatura desse cheque n° 7277463471, por semelhança com a assinatura do Autor constante na ficha de abertura da conta bancária deste;
4.E, após o L... Oliveira ter assinado presencialmente o seu nome no verso do cheque, procedeu ao respectivo pagamento àquele L... .
5.Como expressamente foi assinalado pelo Digmo. Magistrado "a quo", em sede de fundamentação da douta decisão sobre a matéria de facto, de 18.02.2008:
— tal cheque tem aposto carimbo de controlo de assinatura;
- esse controle foi efectuado conscienciosamente pela testemunha J... Soares
da Costa;
-por comparação com a firma do Autor constante da ficha de abertura de conta bancária;
6. E, "entre a assinatura do A. constante da ficha de abertura de conta e a que se encontra inscrita no cheque em questão não há quaisquer diferenças gritantes ou visíveis que indiciem que a assinatura pudesse ser falsificada";
7.Incluiu-se ainda na matéria de facto dada como provada que os cheques dos autos foram falsificados pelo genro dos Autores, L... Oliveira — depois de este os ter facilmente furtado de casa daqueles, mais concretamente da gaveta da cozinha onde sabia que a A. Mulher os guardava;
8.Tem-se como pacífico, na nossa melhor doutrina e jurisprudência, que o contrato de depósito bancário celebrado entre as instituições de crédito e os seus clientes, faz impender sobre os Bancos a responsabilidade contratual da conservação e guarda dos valores depositados — onerando a posição contratual destes com o risco inerente à conservação do dinheiro depositado, de cuja guarda e destino Ihes cabe escrupulosamente cuidar, até porque para si se transfere a propriedade da coisa fungível depositada, aquando da constituição do depósito.
9.Assim, cabe ao depositário demonstrar que a falta de cumprimento da obrigação contratual de restituição do valor depositado não procede de culpa sua.
10. E isto em conformidade com a disciplina jurídica relevante, aqui aplicável ao contrato de depósito, e à paralela convenção de cheque, celebrados entre Autores e Réu - a dos arts. 798° e 799°, e 562° do Código Civil;
11.Que remete a ponderação da situação "sub judice" para os princípios gerais da responsabilidade civil;
12.Daí que seja a culpa o factor a ponderar pelo julgador se chamado a conhecer da imputação de responsabilidade civil em casos como o dos autos;
13.No concreto caso "sub júdice", a responsabilidade objectiva do prejuízo de que os Autores se queixam vem por eles mesmos imputada - como pressuposto da acção — ao seu genro L... Oliveira, aliás já condenado pela prática de um crime de falsificação de documento e de um crime de burla, e no pagamento de uma indemnização civil, pelos mesmos factos que aqui estão em causa;
14.Tais crimes foram praticados num contexto familiar dos Autores, proporcionado por relações de confiança e conhecimento íntimo necessariamente consentido e/ou promovido por aqueles — que permitia que o delinquente soubesse da existência e do local de guarda dos cheques aqui em causa;
15.Ora, ao contrário do que os Autores alegaram nesta acção, o Banco Réu conferiu escrupulosamente a assinatura aposta no cheque n° 7277463471, como sendo do A. Marido;
16.E o próprio e Digmo. Julgador da causa — perito dos peritos, melhor exemplo do "bonus pater familae" que — valorando a prova — constata que "entre a assinatura do A. constante da ficha de abertura de conta e a que se encontra inscrita no cheque em questão não há quaisquer diferenças gritantes ou visíveis que indiciem que a assinatura pudesse ser falsificada";
17.Neste contexto, não se vê como, no caso dos autos, pode ter-se como imputável ao Banco Réu qualquer culpa, ainda que leve, nos prejuízos decorrentes para os Autores da falsificação de documentos e da burla que se mostrou protagonizada pelo, ao tempo, genro daqueles;
18.Daí que a presente acção — na parte a que se circunscreveu este recurso - deva ser julgada improcedente, na linha da melhor jurisprudência a sobre a matéria, e da doutrina ai citada, que se mencionou no contexto;
19.Sendo patente que mal andou a douta sentença recorrida ao condenar o Banco Réu no pagamento aos Autores dos valores correspondentes ao capital e juros relativos ao cheque n° 7277463471 em causa nestes autos;
20. Pois, ao fazê-lo — e salvo o devido respeito - fez errada aplicação, interpretação e integração do disposto nos arts. 798° e 799°, e 562° do Código Civil;
21. Motivo pelo qual deve ser revogada, para que se julgue a acção improcedente nessa parte.

Os AA responderam, sustentando que deve manter-se a decisão recorrida.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

IIFUNDAMENTAÇÃO
Objecto do recurso
Considerando que:
O objecto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (artºs 684º nºs 3 e 4 e 690 nº 1 do Código de Processo Civil);
Nos recursos apreciam-se questões e não razões;
Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu acto, em princípio delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,
A questão a decidir, no caso em apreço, é a de saber se, a conferência, por parte do funcionário do banco Réu, da assinatura no cheque a que alude o recorrente, falsificado por terceiro, o exime da responsabilidade de ressarcir os AA pelo valor titulado pelo mesmo, que foi pago ao falsificador.

Na sentença recorrida deram-se como provados os seguintes factos:
1- Os AA celebraram com o R. um contrato de conta bancária, passando a ser titulares da conta bancária n° 13392260001, domiciliada na agência de Ponte de Lima do Banco B....
2-Simultaneamente, os AA. e o R. celebraram uma convenção mediante a qual ficaram aqueles autorizados a dispor ou movimentar, por meio de cheques, as quantias depositadas na conta no 13392260001.
3-No âmbito dessa convenção, o R. forneceu aos AA. a seu pedido e para seu uso, os cheques com os números 6377463471 e 7277463470, entre outros.
4-Em data indeterminada do mês de Novembro de 2001, anterior ao dia 08, L... Oliveira, a data casado com a filha dos AA. M... Lima, dirigiu-se à casa de residência daqueles, sita no lugar de Barreiro, Facha, Ponte de Lima, a pretexto de ir buscar o seu filho menor.
5-Aproveitando a ausência temporária da A., o L... abriu a gaveta da cozinha onde sabia que esta guardava os cheques e daí retirou os cheques n° 6377463471 e 7277463470.
6-De seguida, o L... preencheu o cheque n° 6377463471, apondo-Ihe a data de 08 de Outubro de 2001 e o montante em algarismos e por extenso de 110.000$00 (cento e dez mil escudos) e escreveu, no local reservado a assinatura do sacador, o nome do A.
7- O L... preencheu o cheque n° 7277463470, apondo-lhe a data de 09 de Novembro de 2001 e o montante em algarismos e por extenso de 1.000.000$00 (um milhão de escudos) e escreveu, no local reservado a assinatura do sacador, o nome da A.
8- O L... dirigiu-se ao estabelecimento de minimercado de J... Lima, no lugar de Felgueiras, Vitorino de Piães, Ponte de Lima, onde por ser conhecido do mesmo, pediu que lhe fosse descontado o cheque n° 6377463471.
9- O J... Lima solicitou ao L... que assinasse o cheque no verso, tendo-Ihe entregue em seguida os esc. 110.000$00, ficando com o cheque consigo.
10- O J... Lima apresentou esse cheque a pagamento no dia 09 de Novembro de 2001, depositando-o na sua conta do B..., tendo obtido boa cobrança.
11-No dia 09 de Novembro de 2001, o L... dirigiu-se a agência do B... de Ponte de Lima, tendo apresentado a pagamento o cheque n° 7277463470, com o valor inscrito de esc. 1.000.000$00.
12- O funcionário da caixa desse balcão entregou-lhe essa quantia, após o L... ter assinado o cheque no verso, apondo o seu nome.
13- O funcionário do Réu conferiu a assinatura constante do cheque 7277463470 por semelhança com a assinatura constante na tiara de abertura de conta.
14- Antes de terem interposto a presente acção, os AA. nunca apresentaram qualquer reclamação ao R. pelo facto de este ter entregue as quantias inscritas nos cheques 6377463471 e 7277463470.
O DIREITO
Está em causa nos autos a responsabilidade da Ré “Banco B... SA”, pelo pagamento de um cheque falsificado, que obteve pagamento através dos fundos que os AA tinham depositado naquele Banco.
Tal cheque, no valor de um milhão de escudos, aparentando ser uma ordem de pagamento emitida pela A. mulher, foi, como resulta da factualidade provada, inteiramente forjado por um terceiro, sem o conhecimento dos mesmos AA.
Como se retira do disposto no artº 3º da Lei Uniforme das Letras e Livranças, o cheque é um título de crédito, à ordem ou ao portador, literal, autónomo e abstracto, contendo uma ordem incondicionada dirigida a um Banqueiro (sacado) no qual o emitente (sacador) tem fundos disponíveis, no sentido de pagar à vista a soma nele inscrita (cfr F. Correira e A. Caeiro, in RDES 1978, pag 457).
A Lei Uniforme sobre cheques não tomou posição no tocante à emissão de cheques falsos, pelo que, a determinação de quem responde pelos prejuízos derivados do pagamento destes cheques no âmbito relações entre o emitente e o banco sacado, deve fazer-se segundo os princípios da responsabilidade civil contratual. Na verdade, não se vislumbra a existência de responsabilidade objectiva ou pelo risco, designadamente do banco sacado, por força do carácter excepcional de tal responsabilidade, que não está prevista na lei para o caso dos autos (cf. artº 483º nº 2 do CC).

Na base da emissão de um cheque existem duas relações jurídicas distintas entre o emitente e o banco sacado: o contrato ou convenção de cheque e a relação de provisão, que pode assumir, entre outras, a forma de depósito, abertura de crédito, conta corrente ou desconto.
Ora, no caso em apreço, ficou efectivamente provado que os AA celebraram com a Ré dois contratos: Um contrato de “conta bancária” por força do qual depositaram na agência da Ré em Ponte de Lima, várias quantias monetárias e um contrato mediante a qual ficaram autorizados a dispôr ou a movimentar, por meio de cheques, essas mesmas quantias depositadas.

Este último contrato ou convenção de cheque consiste no “acordo pelo qual o Banco acede, comprometendo-se ao pagamento, a que o seu cliente – titular de um direito de crédito sobre a provisão – mobilize os fundos à sua disposição, por meio da emissão de cheques”, cf Sofia de Sequeira Galvão, “Contributo Para o Estudo do Contrato de Cheque, Revista da ordem dos Advogados, ano 52, Abril de 1992, pag. 69. Trata-se de um contrato autónomo, que não se confunde com a relação de provisão, que pode existir sem que se convencione a utilização de cheques. Sofia Galvão, na obra citada defende que tal contrato pode ser caracterizado como um contrato de mandato sem representação, assentando no princípio da boa-fé e na tutela da confiança.
Por outro lado, sendo um negócio jurídico bilateral, do mesmo derivam necessariamente direitos e deveres para ambas as partes.
Assim, o cliente do banco adquire, pela celebração do contrato de cheque, o direito de emitir cheques sobre os fundos de que dispõe, sabendo que o Banco os pagará. Paralelamente, o cliente obriga-se a verificar o estado da sua conta e a zelar pelos impressos de cheque que o Banco lhe disponibiliza, assumindo assim um dever de vigilância, obrigação derivada do contrato.
O Banco, por sua vez, assume, como dever principal, o dever de pagamento do cheque emitido pelo cliente nos termos que com este contratou e ainda outros deveres laterais como o de observar a revogação de um cheque e o de verificar cuidadosamente os cheques que lhe são apresentados (cf Sofia Galvão, obra citada, fls 79 e ss.)
O Banco cumpre este seu dever de fiscalização dos cheques que lhe são apresentados a pagamento, quando se convence, de um modo que corresponde ás exigências do trânsito em massa, que o cheque, pela sua aparência global exterior dá a impressão de ser verdadeiro.
Assim, o Banco deve considerar, no cumprimento deste dever, determinados factores que podem indiciar a falsificação, tais como: o montante do cheque (se este se revelar excepcionalmente elevado, numa apreciação relativa e função do saldo e da história da conta); o balcão de apresentação do cheque (se este for diferente daquele em que o Cliente /Sacador tem conta pode existir também um motivo de suspeita - cf ob. citada, pag 102).
Expressão deste dever é um outro dever essencial: o de verificação da assinatura, que Sofia Galvão, cuja obra aqui seguimos de perto, considera verdadeiramente absoluto. Se o Banco pagar um cheque falsificado por um terceiro, incumpriu o contrato de cheque, só se libertando da responsabilidade se conseguir provar que, mesmo cumprindo escrupulosamente tal dever, não podia ter dado pela falsificação.
Ou seja, neste caso, para que impenda sobre o Banco sacado (devedor) a obrigação de indemnizar o prejuízo causado ao credor, é necessário que o não cumprimento lhe seja imputável a título de culpa, nos termos do disposto no art. 798º do C. Civil.
A culpa, na responsabilidade contratual, presume-se do devedor, conforme disposto no art. 799º do C. Civil.
Para ilidir tal presunção, deve pois o Banco que paga um cheque falsificado, provar, ou que agiu com toda a diligência exigível no caso e que, mesmo assim, não foi possível detectar a falsificação, ou que, o pagamento do cheque se deveu em exclusivo a culpa do emitente, designadamente porque não acautelou a vigilância dos seus impressos de cheque ou porque conhecia a falsificação e não a comunicou ao Banco.

Mas, como já referimos, a emissão de um cheque pressupõe ainda a existência de uma relação de provisão que pode assumir várias formas. No caso, provou-se que AA e Ré celebraram um contrato intitulado de “conta bancária”, também designado contrato de depósito bancário. Este contrato tem sido qualificado pela doutrina e pela jurisprudência como um contrato de depósito irregular, uma vez que a propriedade da coisa depositada, de natureza fungível, se transfere para o depositário, ao contrário do que sucede no contrato de depósito regular em que a propriedade sobre a coisa depositada continua a pertencer ao depositante (cfr entre outros, Acórdãos do STJ, de 8/5/84, BMJ, 337º-377, de 14/6/84, BMJ, 338º-432, de 17/6/86, BMJ, 358º-565, de 19/10/93, CJ, Ano I, tomo III, 69, e de 21/5/96, CJ, Ano IV, tomo II, 82, da Relação de Lisboa de 12/06/2007 p nº 308/2007, in http://www.dgsi.pt.jtrl) Moutinho de Almeida, “Responsabilidade Civil dos Bancos pelo Pagamento de Cheques Falsificados”, pags 107 e ss). Na verdade, o Banco pode utilizar o dinheiro depositado, consumindo-o e servindo-se dele “para si ou os seus negócios” (cf ob. citada, Moutinho de Almeida).
O depósito irregular é assim, um contrato “translativo do domínio da coisa” (cf CC anotado, 3ª edição, Pires de Lima A. Varela, Vol II, pag 783) tal como resulta do disposto nos artºs 1205º e 1206º do Código Civil, que mandam aplicar a este contrato, na medida do possível, as regras do contrato de mútuo. Ora, nos termos do artigo 1144º desse Código, a coisa mutuada (no caso, depositada) integra-se desde logo na propriedade do mutuário (no caso, o depositário) que apenas ficará constituído, por força do artigo 1142º desse diploma, na obrigação de restituir em género.
Como se refere no citado acórdão do STJ de 21/05/1996, este contrato tem vantagens para ambas as partes: para o depositante enquanto coloca a coberto da guarda do depositário e em clima de maior confiança e segurança os seus valores, com o benefício de poder auferir de remuneração correspondente; para o depositário, na medida em que, com entrada de valores na sua propriedade, deles possa ter a livre disponibilidade para prossecução dos fins lucrativos que com a respectiva actividade pretende alcançar.
A referida transferência de domínio, como referem Pires de Lima e A, Varela, na obra citada, vol lI, pag 685, “tem entre outros efeitos, o da transferência do risco para o adquirente, em harmonia com a regra res perit domino”, tendo pois plena aplicação o disposto no artº 796º do CC, segundo o qual, neste tipo de contratos, o perecimento ou deterioração da coisa por causa não imputável ao alientante (no caso depositante) corre por conta do adquirente (no caso o depositário).
Ou seja, desde que não se verifique actuação, quer do depositante, quer do depositário, propiciadora do surgimento de irregularidades, a responsabilização pela integridade do depósito impende sobre o depositário, nos termos do disposto no artº 796º nº 1 do CC.
Assim, por força desta disposição legal, tendo havido incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato de depósito por parte do Banco, este só poderá ilidir a presunção de culpa que resulta do artº 799º do CC se provar que agiu com a diligência exigível e que o evento danoso se deu por causa imputável ao depositante.

Vejamos agora o caso concreto dos autos.
Provou-se que:
Em data indeterminada de Novembro de 2001 anterior ao dia 8, o então marido da filha dos AA, aproveitando a sua ausência, subtraiu da casa destes de gaveta onde os haviam guardado, dois impressos de cheque (que a Ré lhes havia disponibilizado por força do contrato de cheque que celebraram) apondo, no cheque em causa, a data, o montante em algarismos e por extenso de esc. 1.000.000$00, escrevendo, no local reservado à assinatura do sacador, o nome da A mulher;
No dia 9 de Novembro, o mesmo indivíduo dirigiu-se à agência da Ré de Ponte de Lima, tendo apresentado o pagamento o dito cheque falsificado, recebendo do funcionário bancário a dita quantia.
De tais factos resulta que, efectivamente, se verificou, em primeiro lugar, um incumprimento do contrato ou convenção de cheque por parte da Ré, que pagou um cheque que não continha qualquer ordem de pagamento válida dos titulares da conta.
A questão que agora se nos coloca é a de saber se a devedora conseguiu provar que tal incumprimento não procede de culpa sua, ou por ter actuado com toda a diligência exigível, ou porque se verificou culpa dos AA.
Apenas se provou que o impresso de cheque que depois foi preenchido e assinado pelo terceiro falsificador, genro dos AA, foi por aquele subtraído da residência destes, mais concretamente de uma gaveta da cozinha onde o guardavam, aproveitando para tanto a ausência temporária da A mulher. Tais factos não permitem concluir a existência de qualquer culpa dos AA: estes tinham o impresso de cheque guardado numa gaveta da sua residência, lugar de acesso restrito; o falsificador tinha relação de afinidade com os AA e justificou a sua deslocação á residência destes com o pretexto de que ia buscar o seu filho menor; não foram alegados quaisquer factos de onde resulte que os AA podiam prever a conduta do genro, sendo-lhes pois exigível um cuidado redobrado pelo facto de o mesmo ter acedido à sua residência; não foram também alegados factos de onde resulte que os AA deram pela falta do impresso de cheque antes do pagamento deste e que, consequentemente, tenham omitindo assim o dever de informar o banco desse facto.
Contudo, dos factos apurados, que aliás não são abundantes, resulta que o funcionário da Ré conferiu a assinatura do “sacador”, por semelhança com a constante na ficha de abertura de conta e que a quantia titulada só lhe foi paga após o falsificador ter assinado o seu nome no verso do cheque.
Serão tais factos suficientes para se concluir que o Banco, através do seu funcionário, cumpriu o dever de fiscalização do cheque e o dever de conferência da assinatura do sacador?
De acordo com o disposto no artº 799º nº 2 do CC, a culpa do devedor é apreciada nos termos aplicáveis à responsabilidade civil, ou seja, nos termos do disposto no artº 487º nº 2 do mesmo CC, “pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso”, isto é, a diligência que é exigida a uma pessoa normal, tendo como padrão a conduta de uma pessoa “ cuidadosa, atendendo à especialidade das diversas situações”, sendo que, “por homem médio” não se entende o puro cidadão comum, mas o modelo de homem que resulta do meio social, cultural e profissional daquele indivíduo concreto, isto é, “o homem médio que interfere como critério da culpa é determinado a partir do círculo de relações em que está inserido o agente” (vide Almeida Costa, in Direito das Obrigações – 9ª edição -, pág. 535).
Ora, a fiscalização do cheque e a conferência da assinatura do sacador foi efectuada, como o é normalmente, por um funcionário bancário, ou seja, por um profissional da banca que deve ter a formação e a experiência necessárias para detectar os indícios de uma falsificação. Como se refere no Acórdão do STJ de 11/05/1993, os Bancos devem ter ao seu serviço pessoas altamente preparadas para detectar a falsificação” (in http://www.dgsi.pt.jtrl e Novos Estilos, Sep. da Revista Sub Judice, nº 5, de Maio de 1993).
Do confronto das assinaturas do cheque e da ficha de assinaturas cujas cópias foram juntas aos autos, não resultam, à primeira vista, divergências óbvias. Apenas numa conferência mais cuidada se podem verificar pequenas diferenças no desenho do “M” de Maria ou no “N” de Nono. Conjugando tais pequenas diferenças com o facto de se tratar de um cheque de um milhão de escudos, emitido em 2001, que foi pago em numerário, sendo certo que não se apurou que este tipo de movimentos eram normais na conta bancária em causa, podemos concluir pela existência de culpa, ainda que leve, do funcionário bancário que, em face das referidas circunstâncias, poderia ter ido mais além no seu dever de diligência, tentando, por exemplo, o contacto com o cliente para se certificar da validade do cheque.
Mas, ainda que assim não se entenda, não podemos esquecer que, para além do incumprimento do contrato ou convenção de cheque, foi ainda incumprido o contrato de depósito irregular, já que, com a cobrança do cheque, o Banco não assegurou a integralidade do depósito nos termos do disposto no artº 1142º do CC, aplicável por força do disposto no art.º 1206 do mesmo diploma.
Ora, como já referimos e agora reafirmamos, havendo transferência de domínio da coisa depositada, o depositário só pode afastar a presunção de culpa que sobre ele impende se provar, não só que agiu com a diligência exigível, mas também que o perecimento da coisa resultou de culpa do depositante nos termos dos artºs 796º e 799º do CC, prova que não fez no caso concreto.
O facto de tal incumprimento ter resultado do pagamento de um cheque falsificado, não difere de outros casos em que o Banco deixa de assegurar a integralidade do depósito por causa de comportamentos fraudulentos de terceiros que, por exemplo, falsificam a assinatura do titular da conta numa ordem escrita de transferência.
Neste sentido, embora por vezes com diferente fundamentação, tem decidido a grande maioria da jurisprudência, designadamente os acórdãos já citados, e ainda, entre outros, o acórdão do STJ de 16/06/1981, in BMJ 308/255 (com fundamento nos artºs 769º e 770º do CC), o Ac. do STJ de 23/07/1985 publicado no BMJ 349/533 (com fundamento no artº 476º do CC) e, todos em http://www.dgsi.pt, os acórdãos, do STJ de 3/03/1998 e de 9/11/2000, desta Relação de Guimarães de 06/04/2005 e da Relação do Porto de 22/05/2008.

Pelo exposto e ainda nos termos dos artºs 798º e 506º do CC, verificando-se por parte da Ré um incumprimento culposo da obrigação em causa, deve a mesma indemnizar os AA pelo valor do cheque falsificado que estes deixaram de ter na sua disponibilidade, acrescido dos juros de mora tal como fixados na sentença recorrida, que se confirmará na íntegra.

III – DECISÃO
Por tudo o exposto, acordam os Juízes que constituem o Tribunal Colectivo em julgar improcedente a apelação, confirmando na íntegra a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.
Notifique.