Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | MARIA DE FÁTIMA ANDRADE | ||
Descritores: | NULIDADE DA SENTENÇA EFICÁCIA EXTERNA DAS OBRIGAÇÕES DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE COLETIVA | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 07/11/2017 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 2.ª SECÇÃO CÍVEL | ||
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Sumário: |
I- Para que ocorra a nulidade de sentença por oposição entre os fundamentos e a decisão, é pressuposto que o raciocínio lógico-dedutivo exposto na sentença recorrida decorrente da subsunção dos factos ao direito sofra ele mesmo de contradição na exposição dos seus fundamentos. II- Invocada conduta abusiva de terceiro, no âmbito da responsabilidade delitual, é de admitir a eficácia externa das obrigações. III- Não carece de manifesta falta de fundamento a pretensão fundada no instituto da desconsideração da personalidade coletiva, quando é invocada atuação abusiva da sócia de pessoa coletiva que através desta obteve em prejuízo de terceiros um benefício ilegítimo. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães I- Relatório “Bebidas, S.A.” melhor id. a fls. 2v., autora nos autos de ação declarativa sob a forma de processo comum que deduziu contra: “Café Restaurante Snack bar Unipessoal, Lda.”; Nuno F.; “CL, Unipessoal” e Liliana, todos melhor ids. a fls. 23 v., notificada da decisão que em sede de despacho saneador e apreciando parcialmente o mérito da causa – nesta parte tendo valor de sentença (artigo 595º nº 3 do CPC) declarou que “Improcede (…) por total falta de fundamento a ação proposta contra estas RR. (3ª e 4ª) que da mesma vão absolvidas”, da mesma interpôs recurso pugnando pela revogação de tal decisão/sentença, para tanto apresentando as seguintes CONCLUSÕES: «1º Vem o presente recurso interposto da aliás douta DECISÃO de 12/12/2016 que, além do mais, absolveu os 3º e 4º réus do pedido. 2º Na presente ação, a autora invocou (I) a responsabilidade contratual da 1ª Ré – artºs 7 a 33 inclusive da petição inicial, (II) corresponsabilizou o 2º réu, nos termos dos artigos 34 a 87 da mesma peça e (III) entendeu que os 3º e 4º réus respondiam solidariamente pela dívida da 1ª ré, conjuntamente com esta e o 2ºréu, com base no disposto no art.º 490 do código civil (teriam agido de má fé e com abuso de direito, no sentido da frustração dos créditos da autora, sendo delitualmente (ou extracontratualmente) responsáveis com base na teoria “do terceiro cúmplice) – cfr. especialmente os artigos 117 a 123 da p. i.; (IV) para o efeito, invocou, ainda que os 2º, 3º e 4º réus agiram de má-fé e com abuso de direito, procurando com a sua ilícita atuação, unicamente, que a 1ª ré nada pagasse à autora (realçando-se, além do mais, a confusão de patrimónios entre todos os réus, a composição societária comum e/ou familiar entre as duas sociedades rés e os laços de parentesco entre o 2º e 4ª réus). 3º A douta decisão recorrida absolveu os referidos 3º e 4º réus com base, em resumo, nos seguintes fundamentos: (I) a desconsideração da personalidade jurídica destina-se exclusivamente à responsabilização dos sócios; (II) os 3ºe 4º réus não são sócios da 1ª Ré, única entidade que contratou com a Autora; (III) o invocado artigo 490 do CC não tem aplicação no presente caso, porque a Autora não assaca qualquer responsabilidade à única sócia da 1ª Ré (Ana F.), não existindo uma situação de co-ilicitude quanto aos 3ºe 4º Réus . 4º Salvo o devido respeito por melhor opinião, sem razão. 5º Em primeiro lugar, e ao contrário do defendido pela douta decisão recorrida o 2º Réu foi demandado não só como gerente, mas, também, como cúmplice no objetivo de frustração dos créditos da Autora – cfr., além do mais, a matéria dos artigos 88, 89, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 111 e 121 da petição inicial. 6º Assim, a douta sentença recorrida decidiu contra a realidade processual dos autos e, portanto, é nula por contradição entre os seus fundamentos e a decisão (art.º 615 NCPC). 7º Depois, e em consequência do antes referido, também não é verdade que não tenha sido invocada factualidade consubstanciadora da co-ilicitude entre os segundo, terceira e quarta rés (cfr especialmente os artigos 117 a 123 da petição inicial por reporte aos factos antes descritos na mesma peça), com má-fé e abuso de direito. 8º A maior parte da doutrina e jurisprudência conhecidas defende a eficácia externa das obrigações contratuais em casos similares ao presente. 9º Aplicados aos contratos, o princípio da boa-fé em sentido objetivo constitui uma regra de conduta segundo a qual os contraentes devem agir de modo honesto, correto e leal, não só impedindo assim comportamentos desleais como impondo deveres de colaboração entre eles (artigos 227º, nº 1, 239º, 334º, 437º, nº 1 e 762º, nº 2 do código civil). 10º Também nas obrigações, ao elemento interno – o direito contra o devedor (a sociedade 1ª Ré) acresce um elemento externo – o dever, imposto a todos, de respeitar o direito do credor, não impedindo o cumprimento nem colaborando no incumprimento. 11º Dever que os 2º, 3º e 4º réus flagrantemente violaram. 12º Assim, enquanto a 1ª ré incorre em responsabilidade civil, o segundo (além do mais), terceiro e quarto réus incorrem em responsabilidade extra obrigacional ou delitual (artigos 483º e 490º do código civil). 13º Não podia, portanto, o Dig.º Tribunal recorrido decidir, como fez, do pedido da presente ação quanto aos 3º e 4º réus, absolvendo-os. 14º Pois que a petição inicial apresentada contém os factos pertinentes à causa, no mínimo indispensáveis para a solução que a autora quer obter: os factos necessários e suficientes para justificar o seu pedido quanto aos 3º e 4º Réus. 15º Verifica-se terem sido invocados todos os pressupostos do dever de indemnizar por parte dos 2º, 3ºe 4º Réus, numa relação de co-ilicitude, previstos nos art.ºs 483º e 490º do Código Civil pois que foi invocado que toda a atuação daqueles não consubstanciou mais do que um propósito, voluntário, consciente e doloso, com o fito de prejudicar os credores sociais, nomeadamente a autora, frustrando o seu crédito sobre a 1ªRé. 16º A douta sentença recorrida, é nula e como tal deve ser declarada (art.º615 NCPC). 17º Assim não se entendendo, deve então ser ela revogada, por ter violado por erro de interpretação o disposto nos citados preceitos e diplomas legais e substituída por outra que julgue no sentido antes defendido, nomeadamente ordenando o prosseguimento dos autos também contra os 3º e 4º Réus, assim se fazendo J U S T I Ç A.”. Não foram apresentadas contra-alegações. “serem os 1ª , 2º , 3ª e 4ª réus condenados solidariamente a pagarem à autora: A/ a indemnização prevista no n. º 3 da cláusula 8ª , no importe de 43.333,33 eur; B/ os juros de mora sobre a quantia referida na anterior alínea a) , à taxa legal para as dívidas comerciais, desde janeiro de 2013, até à data do efetivo e integral pagamento, importando os já vencidos, na presente data, em 10.196,69 euros; C/ a devolução da contrapartida concedida pela autora, deduzida da parte proporcional correspondente ao período do contrato cumprido, no valor de 91.000,00 eur – cfr. n. º 4ª da citada cláusula 8ª ; D/ os juros sobre a quantia referida na antecedente alínea c/ , à taxa máxima permitida pela aplicação conjugada dos artigos 559. º , 559. º-A e 1146. º, n. º 2, do código civil, desde 15/07/2011 até ao efetivo e integral pagamento – cfr. n. º 4 da citada cláusula, importando os juros já vencidos até à presente data, em 56.135,78 euros; E/ tudo no montante global de 200.665,80 eur. Subsidiariamente, Caso se entenda que o valor a pagar pelos 2º , 3ª e 4ª rés possui um carácter indemnizatório, - que os mesmos sejam condenados a pagar à autora uma indemnização igual aos valores referidos nas anteriores alíneas A/ ,B/, C/, D/ e E/, assim como juros vincendos, calculados nos mesmos termos, até integral e efetivo pagamento.” ii- Para tanto e em suma alegou a A.: “A) a primeira ré é a única parte outorgante no contrato ajuizado e como tal a reclamada devedora, B) a única sócia desta ré como resulta dos documentos juntos com a pi e a própria autora reconhece é Ana F., C) As 3º e 4º RR não tiveram qualquer intervenção no contrato celebrado com a autora. Estas RR não são, como tal, suscetíveis de ser responsabilizadas perante a autora mediante o recurso à desconsideração da personalidade jurídica. É que a desconsideração da personalidade jurídica aplica-se - verificados os respetivos requisitos - ao devedor e apenas em relação aos créditos em que terá havido uma situação de abuso de direito por parte dos sócios. (…) Não se vê como terceiros em relação ao contrato dos autos possam ser demandados ao abrigo deste instituto que requer a qualidade de devedor. Tão pouco tem aqui aplicação o artigo 490º do cc. É que se mais não fora, a autora não assaca qualquer responsabilidade a título de desconsideração da personalidade à única sócia primeira ré, a Ana F.. Logo fica afastada qualquer co-ilicitude em relação às terceira e quarta rés.” * *** Conhecendo. Em função das vicissitudes processuais acima enunciadas e tendo presente que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, tal como já supra referido, cumpre em primeiro lugar apreciar da invocada nulidade da sentença, por contradição entre os fundamentos e a decisão. Preceitua o artigo 615º nº 1 al. c) que a sentença é nula quanto “Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;”. Para que ocorra a invocada nulidade é pressuposto que o raciocínio lógico-dedutivo exposto na sentença recorrida decorrente da subsunção dos factos ao direito sofra ele mesmo de contradição na exposição dos seus fundamentos. Diversamente, não configura esta nulidade o eventual erro de julgamento derivado de errada subsunção dos factos ao direito ou mesmo de errada aplicação do direito [sobre a distinção entre nulidade por oposição entre os fundamentos e decisão versus erro de julgamento, cfr. Ac. STJ de 30/05/2013, Relator Álvaro Rodrigues, in www.dgsi.pt/jstj]. Ora in casu e analisada a argumentação jurídica exposta na sentença recorrida, temos que esta em si mesma é coerente e segue uma linha de raciocínio consequente na aplicação do direito em face dos factos provados. Assim o que a recorrente enquadrou em sede de nulidade de sentença por contradição entre os seus fundamentos e decisão, integra antes o igualmente invocado erro na aplicação do direito, a ser em seguida apreciado. Improcede assim o primeiro fundamento deste recurso, por não verificada a nulidade de sentença invocada pela recorrente. Apreciando agora a questão principal do recurso fundada em erro na aplicação do direito, importa aferir se a factualidade alegada pela recorrente é suscetível, a provar-se, de levar à procedência da pretensão formulada contra as 3ª e 4ª RR.. Para apreciação desta questão, importa determo-nos um pouco na apreciação do instituto da desconsideração da personalidade coletiva. Inexistindo norma que expressamente o consagre, tem-se convocado o mesmo com mais relevo ao abrigo do instituto do «abuso do direito – na modalidade de abuso institucional – uma vez que está em causa (…) um abuso do instituto (a personalidade jurídica das sociedades comerciais ou a separação dos patrimónios).» [cfr. Catarina Serra in Revista Julgar, n.º 9 – “Desdramatizando o afastamento da personalidade jurídica (e da autonomia patrimonial)” p. 117]. Identifica esta autora como intuito típico deste instituto a punição dos «sujeitos que constituem o substrato pessoal da sociedade, que formam e manifestam os interesses e vontade da sociedade (o “homem oculto” atrás do ente societário)». Justificando este instituto é afirmado no Ac. R. Lx. de 16/05/2013, Relator Ezagüi Martins in http://www.dgsi.pt/jtrl: que através do recurso ao mesmo “…estará em causa a derrogação do princípio da separação entre a pessoa coletiva e aqueles que por detrás dela atuam, (…) ou, dito de outro modo, a eventualidade de – sem normas específicas e por exigência do sistema – o Direito, em certas situações, passar do modo coletivo ao modo singular, ignorando a presença formal duma pessoa coletiva(…).”. Elencando os grupos de situações em que se tem manifestado o recurso a este instituto, Menezes Cordeiro (igualmente citado no Ac. supra referido) in “O levantamento da Personalidade Coletiva no direito civil e comercial”, ed. Almedina 2000 – págs. 115 a 124 - realça 3 grupos de casos: a confusão de esferas jurídicas - quando em causa está a separação entre o património da sociedade e a do sócio ou sócios; a subcapitalização - aferida pela constituição da sociedade com um capital insuficiente em função do seu próprio objeto ou da sua atuação, surgindo assim como tecnicamente abusiva; e o atentado a terceiros e abuso de personalidade - sempre que a personalidade coletiva seja usada de modo ilícito ou abusivo para prejudicar terceiros. Exigindo-se neste caso uma utilização contrária a normas ou princípios gerais, incluindo a ética dos negócios para haver levantamento. Concluindo este autor que “O abuso do instituto da personalidade coletiva é uma situação de abuso do direito ou de exercício inadmissível de posições jurídicas, verificadas a propósito da atuação do visado, através duma pessoa coletiva” (vide p. 123 da ob. Cit.). Dando nota de que a jurisprudência tem reconhecido o abuso da personalidade coletiva e desta fazendo uma elucidativa resenha, no AC. STJ de 10/01/2012, Relator Salazar Casanova in http://www.dgsi.pt/jstj enquadra-se este instituto nos seguintes termos “Ac. do S.T.J. de 30-11-2010 (Fonseca Ramos), revista n.º 1148/03.5TVLSB.S1- 6ª secção (…) “ a desconsideração ou levantamento da personalidade coletiva das sociedades comerciais - disregard of legal entity - tem na sua base o abuso do direito da personalidade coletiva […] e que a desconsideração, como instituto assente no abuso do direito - art. 334.º do CC -, tem em si abrangida a violação das regras da boa-fé no interagir com terceiros, implica a existência de uma conduta censurável que só foi possível alcançar mediante a separação jurídica do ente societário - através da personalidade jurídica que a lei lhe atribui - e a pessoa dos sócios, para assim almejar um resultado contrário a uma reta atuação; ou ainda, o Ac. do S.T.J. de 21-2-2006 (Paulo Sá), revista n.º 3704/05 (…) na vertente do abuso de personalidade, podem perfilar-se algumas situações em que a sociedade comercial é utilizada pelo(s) sócio(s) para contornar uma obrigação legal ou contratual que ele, individualmente assumiu.». Com o mesmo fim de enquadramento e citando Menezes Cordeiro lê-se no referido Ac. «que o levantamento é um instituto de enquadramento, de base aparentemente ‘geográfica’, mas com todas as vantagens científicas e pedagógicas dele decorrentes. Guardadas as devidas distâncias, outro tanto se passa com a própria boa-fé. Reunindo institutos de origens muito diversas - culpa in contrahendo, abuso do direito, alteração das circunstâncias, complexidade intraobrigacional e interpretação do contrato – a boa fé permitiu afeiçoá-los a todos, inserindo-os, de modo mais cabal, na complexidade do sistema». Concluindo-se que este autor justifica não se dever reconduzir o levantamento a cada um dos vários institutos jurídicos que a nossa lei civil acolhe porquanto e «apesar da apontada fragmentação dogmática, apenas a ideia global de levantamento permite: alcançar novas e mais apuradas hipóteses de responsabilidade civil; obter perspetivas aprofundadas de interpretação normativa; conquistar vias mais finas de concretização da boa fé. Ainda que como ( mero) instituto de enquadramento, o levantamento tem uma efetiva eficácia dogmática: a natureza sistemática do pensamento jurídico a tanto conduz” (Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo III, Pessoas ,2004, pág. 646/648).». Do exposto conclui-se que o levantamento ou desconsideração da personalidade coletiva pressupõe a verificação de situações de evidente abuso dos sócios da pessoa coletiva que através desta – e sob a proteção da sua autonomia patrimonial e da responsabilidade limitada dos sócios - logram obter para si um benefício ilegítimo em prejuízo de terceiros, sem que o recurso aos demais institutos jurídicos permita corrigir a ilicitude da conduta. O caráter subsidiário e excecional que o recurso a este instituto deve obedecer é reconhecido de forma dominante conforme o refere Catarina Serra no artigo publicado na Revista Julgar já acima citado (p.118). Natureza supletiva igualmente realçada no artigo de Armando e Luís Lemos Triunfante – “Desconsideração da personalidade jurídica – Sinopse doutrinária e jurisprudencial in Revista Julgar n.º 9 p. 131 a 146 (vide em concreto p. 140). Neste último artigo, os autores realçam a necessidade de invocar a “desconsideração da personalidade coletiva” apenas nas hipóteses residuais porquanto em muitas das situações em que este instituto é convocado, a solução cabal da situação se resolve nomeadamente pelo recurso à responsabilidade pessoal do sócio, «fazendo o seu património responder pelos efeitos do(s) ato(s) reprovado(s) pela consciência jurídica dominante. Esta resolução mostra-se adequada e suficiente para o grupo das situações em que um ato só é praticado na esfera da sociedade por causa da separação patrimonial e da responsabilidade limitada inerente à corporação, quando se pretende sim, diretamente, o benefício de um ou mais sócios e o prejuízo de terceiros» (p. 134). Elencando como situações residuais aquelas em que o cerne da questão não reside na confusão patrimonial mas antes ao nível da confusão de pessoas, ou quando a comunhão de interesses não se verifica entre a sociedade e algum dos seus sócios (vide pág. 136/137). No mais e procurando elencar as situações em que o próprio ordenamento jurídico alarga a garantia e a responsabilidade para proteção dos credores, afastando por tal o recurso a este instituto identificam estes autores vários normativos legais do CSC entre os quais mencionam os artigos 71º e segs. do CSC que preveem a responsabilidade de gerentes e administradores perante a sociedade, sócios e terceiros (vide págs. 137 a 141 da Revista citada). Tendo presentes estes considerandos e revertendo ao caso sub judice, importa em primeiro lugar realçar que e ao contrário do que foi pressuposto da decisão do tribunal a quo, o instituto da desconsideração da personalidade coletiva não foi invocado pela A. por referência à 1ª R. e atuação da sua sócia única, esta efetivamente não demandada. Na verdade o recurso a este instituto foi invocado por referência à 3ª R. e sua (única) sócia 4ª R. (vide de novo 116º da p.i.), o que se entende na perspetiva em que tendo sido a 3ª R. quem (de acordo com o alegado) com a 1ª R. outorgou contrato de transmissão do estabelecimento comercial e nesta medida apenas a esta podendo ser imputada atuação abusiva, pretendendo a A. igualmente responsabilizar a 4ª R. sócia única da 3ª, invocou para o efeito este instituto baseado em atuação abusiva e concertada dos 2º e 4º RR. por via da constituição da 3ª R. e do negócio por esta celebrado. Tendo assim a A. alegado que os 2º e 4º RR. se serviram da personalidade coletiva da 3ª R. de modo abusivo e com o fito de a prejudicar (vide 98º a 106º e 111º da p.i. ) Por via desta concertada e abusiva conduta destas RR. tendo a A. peticionado a condenação solidária de todos os RR. Neste contexto e para o decidido – ainda que bem integrando o instituto em apreciação - partiu o tribunal a quo de um pressuposto que se não verifica para proferir a decisão recorrida. Ao invés, entendemos que não carece de manifesta falta de fundamento a pretensão fundada no instituto da desconsideração da personalidade coletiva, quando é invocada atuação abusiva da sócia de pessoa coletiva que através desta obteve em prejuízo de terceiros – in casu a A. - um benefício ilegítimo. Pelo que carece de apuramento a factualidade a este nível alegada, para a final apurar da eventual verificação de todos os requisitos de que depende o seu funcionamento, incluindo o seu caráter residual. Noutro contexto, releva ainda ter presente que e apesar da consensual e clássica conceção da relatividade dos direitos de crédito de acordo com a qual e negando a eficácia externa das obrigações, se entende que o direito creditício de tal relação derivado apenas pode ser exercido inter-partes (devedor e credor) tem vindo a ser gradualmente aceite a responsabilização do terceiro que viola o direito do credor na relação creditícia quando “no apertado circunstancialismo dos requisitos da responsabilidade delitual (…) se puder afirmar que a sua atuação foi dolosa, visando deliberadamente a frustração desse interesse” [cfr. neste sentido Ac. STJ de 20/09/2011, Relator Fonseca Ramos e ainda Ac. STJ de 29/05/2012, Relator Azevedo Ramos, ambos in www.dgsi.pt/jstj]. Neste último Ac. e dentro do mesmo pressuposto se podendo ler (no respetivo sumário): “II – Só nos casos em que ocorra abuso do direito de terceiro se deve admitir a eficácia externa das obrigações. III – Assim, só em casos particularmente escandalosos – quando o terceiro tenha tido intenção ou pelo menos consciência de lesar os credores da pessoa diretamente ofendida ou da pessoa com quem contrata – é que poderá ser justificado quebrar a rigidez da doutrina tradicional e admitir a eficácia externa das obrigações.”. Foi também neste contexto que as 3ª e 4ª RR. foram demandadas. Com base na mesma factualidade tendo ainda a recorrente invocado a responsabilidade dos 2º a 4º RR. por via do preceituado no artigo 490º do CC., enquanto terceiros cúmplices na atuação do devedor obrigado, in casu a 1ª R.. Fundando a atuação ilícita na mesma conduta abusiva que antes descrevera. O tribunal a quo limitou-se nesta sede a afastar a co-ilicitude das 3ª e 4ª RR. atenta a não responsabilização assacada pela autora à sócia da 1ª R. a título de desconsideração da personalidade coletiva. No contexto antes referido, afigura-se-nos igualmente não proceder o argumento apresentado. Relembrando por último que o tribunal não está vinculado às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, considerando as várias soluções plausíveis de direito, conclui-se que a pretensão da A. não é nos termos expostos destituída de manifesta falta de fundamento. Deverá portanto o tribunal a quo apurar a factualidade controvertida e em função da mesma subsumir os factos ao direito, oportunamente. Resta assim concluir pela procedência do recurso apresentado. IV- Decisão. Pelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar totalmente procedente a apelação, consequentemente se revogando a decisão recorrida e ordenando a prossecução dos autos também contra as 3ª e 4ª RR.. Custas pelos apelados. *** Guimarães, 2017-07-11 (Maria de Fátima Almeida Andrade) |