Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
141/14.7TBGMR-E.G1
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: INSOLVÊNCIA
REMIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/03/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: a) Apesar de não expressamente previsto no CIRE, nada deve obstar ao exercício do direito de remição em processo de insolvência.
b) À atribuição do direito de remição ao cônjuge é indiferente o regime de bens em que o casamento foi celebrado.
c) Quando a lei estabelece apenas termo final (dies ad quem) para o exercício do direito, a respetiva efetivabilidade não fica prejudicada se ele for exercido em data anterior.
d) A data relevante para efeitos de “entrega dos bens” ou “assinatura do título” [art. 843º nº 1 al. b) do CPC] é a da concretização desses atos, independentemente de terem existido datas anteriores (entretanto dadas sem efeito) designadas para o efeito.
e) Se, numa venda por negociação particular, o Administrador da Insolvência outorga num contrato promessa e, posteriormente vem o cônjuge do Insolvente a exercer o direito de remição de forma válida e atempada, o incumprimento do contrato promessa não pode ser qualificado de ilícito pois que o Administrador se limita a dar efetividade a um direito consignado na lei.
f) A indemnização de 5% prevista no art. 843º nº 2 do CPC só é devida: (i) nos casos de venda por propostas em carta fechada; (ii) se o direito de remição só for exercido depois do ato de abertura e aceitação das propostas; (iii) se o proponente que vai ser substituído já tiver depositado o valor total do preço da venda.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I - HISTÓRICO DO PROCESSO
1. B, Lda. instaurou a presente ação contra a MASSA INSOLVENTE DE C… e o seu administrador D… pedindo:
a) sejam os Réus condenados, solidariamente, ao pagamento do montante de € 72.000,00, correspondente ao dobro do sinal pago em singelo;
b) subsidiariamente, seja o administrador de insolvência condenado ao pagamento de € 72.000,00, correspondente ao dobro do sinal pago em singelo;
c) ainda subsidiariamente, sejam os réus, solidariamente, condenados ao pagamento do montante de 5% do preço do imóvel prometido.
Como suporte factual, alegou ter dirigido aos autos do processo de insolvência uma proposta de aquisição de uma fração autónoma aí apreendido, juntamente com um cheque de € 72.000,00; posteriormente, foi celebrado um contrato promessa com a Massa Insolvente representada pelo Sr. Administrador; no dia anterior à outorga da escritura pública, o Sr. Administrador comunicou que o negócio não se iria realizar em virtude de a mulher do Insolvente ter exercido o direito de remição.
Em contestação, os Réus impugnaram a factualidade alegada e suscitaram a irregularidade do mandato, a incompetência territorial do Tribunal e a ilegitimidade do Réu D….
Considerando-se habilitada para decidir, a M. mª Juíza proferiu saneador sentença julgando a ação totalmente improcedente.

2. Inconformada, vem a Autora apelar para este Tribunal da Relação, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
«I. Importa saber se o direito de remição exercido pelo cônjuge do insolvente foi exercido por quem tem legitimidade, nesse caso, se o direito foi exercido de forma correcta e legal;
II. Assim como, em consequência da validação e permissão de um exercício de remição ilegal, se a recorrente tem direito aos pedidos indemnizatórios da obrigação de pagamento do sinal em dobro pela massa insolvente e subsidiariamente pelo senhor Administrador de insolvência; assim como do direito à indemnização de 5% estatuída no artigo 843.° do CPC
III. O direito de remição foi exercido pelo cônjuge do insolvente, casado no regime de separação de bens.
IV. A finalidade conspícua do direito de remição - que prevalece sobre o direito de preferência - é a protecção da família, através da preservação do património familiar, evitando a saída dos bens objecto de execução do âmbito da família do executado
V. Ora, in casu, estando em vigor o regime da separação de bens, não existe, como aliás nunca existiu património comum, razão pela qual o marido ficou insolvente e privado da disposição e administração dos seus bens e a cônjuge mulher contínua ainda hoje solvente e com total disposição e administração dos seus bens.
VI. Destarte, partindo da ratio legis do artigo 842.° do CPC, somos levados a concluir que o cônjuge do insolvente não tem legitimidade para remir.
VII. No âmbito de venda por negociação particular, o Sr. A.I. celebrou com a recorrente contrato promessa de compra e venda, através do qual esta declarou adquirir e aquela vender um prédio urbano, pelo valor global de 360.000,00€; como forma de sinal e principio de pagamento a recorrente emitiu e entregou aos recorridos cheque visado, no valor de 72.000,OO€, correspondente o 20% do valor proposto para aquisição, sendo que a escritura publica foi agendo para o dia 31- 10-2014, pelos 14h30.
VIII. Estatui o artigo 843.° do CPC que, na modalidade de venda mediante propostas em carta fechada, o direito de remição for exercido em momento posterior ao acto de abertura e aceitação das propostas e nas restantes modalidades de venda, o remidor deve, no momento do exercício do direito de remição depositar integralmente o preço. eventualmente com o acréscimo de 5% para a indemnização do proponente, nos casos em que este já tenha feito o depósito referido no n.º 2 do artigo 824. D do CPC.
IX. ln casu, a remidora, aquando da manifestação do exercício do direito de remição, dia 30-10-2014, apresentou um simples cheque, emitido por terceiro, no valor de 72.000,00€, correspondente a 20% do valor proposto para aquisição (360.000,OO€), sendo que o 2.° Réu informou que faria o depósito do referido cheque no dia imediatamente a seguir e que, verificada a provisão, seria agendada a escritura com a remidora.
X. A remidora e, por sua vez, os recorridos violaram a lei ao validar o tal direito de remição, porquanto a remidora deveria, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 843.° do CPC, proceder ao depósito integral do preço, portanto, da importância de 360.000,00€, o que não fez.
XI. A remidora não procedeu ao depósito da totalidade do preço nem no momento do exercício do direito de remição nem em momento posterior, ou seja, no prazo estabelecido no artigo 843.°, n.º 1, 01. b) do CPCP --- até à outorga da competente escritura publica, agendada para o dia 31- 10-2014.
XII. Acresce que, na eventualidade de se aceitar que a remidora instrua o exercício do direito de remição apenas e tão só com o valor correspondente a 20% da aquisição, a titulo de caução, o que não se aceita, mas que apenas se equaciona para efeitos de raciocínio, sempre se dirá que também aqui aquela violou a lei e, por consequência os requeridos ao validar o exercício de um direito de remição que não reunia os pressupostos legais.
XIII. Com efeito, a previsão do n.º 2 do artigo 843.° do CPC (ex vi n." 1 do artigo 824.° do CPC) determina que seja efectuado o pagamento da quantia devida, que fique na disponibilidade do processo, porém, a ter existido efectiva cobrança do cheque, esta ocorreu em momento posterior àquele estabelecido por lei, pois o cheque no valor de 72.000,OO€, correspondente a 20% do valor da aquisição, foi um cheque simples e não um cheque visado, porquanto não permite a boa cobrança imediata.
XIV. O não cumprimento da promessa de compra e venda não se fundou no cumprimento de uma decisão judicial nem tão pouco no cumprimento da própria lei, situação configurada no próprio contrato promessa de compra e venda como justificativa para que a promitente compradora não exigisse à promitente vendedora o reembolso em dobro das quantias entregues a título de sinal e principio de pagamento, mas sim porque o 2.° Réu decidiu aceitar e validar o exercício de um direito de remição claramente violador da lei!
XV. O 2.° Réu, por si e enquanto representante da massa insolvente, tinha obrigação de saber, ora não fosse o exercício das suas funções de administrador judicial, que a cônjuge do insolvente ao não depositar a integralidade do preço aquando da manifestação da intenção em exercer o direito de remição, dia 30-10-2014, nem tão pouco até à data da outorga da escritura pública, agendada para o dia 31-10- 2014, pelas 14h30, violava a lei, porém, mesmo assim, não se coibiu de permitir o exercício daquele direito.
XVI. Nos termos do n.º1 do artigo 59.° do ClRE, o administrador da insolvência responde pelos danos causados ao devedor e aos credores da insolvência e da massa insolvente pela inobservância culposa dos deveres que lhe incumbem; a culpa é apreciada pela diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado.
XVII. Ora, reportando-se à situação dos presentes autos, foi o Sr. Administrador Judicial, no exercício das suas funções, que escolheu a modalidade de venda ---- negociação particular ----, outorgou contrato promessa de compra e venda com a recorrente; exigiu a emissão de cheque visado, no valor de 20% do valor proposto para aquisição, tendo recebido o cheque emitido pela recorrente; agendou escritura pública para o dia 31-10-2014; desmarcou a escritura em questão com o fundamento da cônjuge do insolvente ter exercido de forma válido o direito de remição, quando o não foi!
XVIII. Acresce que, nada na lei exclui o direito a indemnização do 5%, no caso de venda realizada em negociação particular.
XIX. A aqui Autora viu coarctadas as suas expectativas de adquirir o imóvel identificado nos autos na noite imediatamente anterior ao dia da outorga da escritura pública, portanto, a parcas horas de escriturar a aquisição do imóvel.
XX. Com efeito, não tendo sido a Autora/recorrente que deu causa à não concretização do negócio prometido e estando o preço integral da aquisição à total disposição das RR, é a Autora titular da indemnização de 5% prevista no n.º 2 do artigo 843.° do CPC.
XXI. Com efeito, deve a sentença a quo ser revogada por outra que julgue procedente por provado o pedido de condenação da massa insolvente a entregar a importância paga a título de sinal em dobro à aqui recorrente, dado o incumprimento contratual que apenas a ela é imputável de forma dolosa; Se assim não se entender, sempre se dirá que deverá ser o Senhor Administrador de insolvência condenado a reembolsar o sinal em dobro à aqui recorrente, por ter agido de forna dolosa ao validar e permitir o exercício de um direito de remição claramente violador das disposições legais, a saber: artigos 842.°, 843.° e 825.° do CPC, ex vi, artigos 161.°, 164.° e 59.° todos do CIRE.
TERMOS EM QUE DEVERÁ O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE E, POR VIA DELE, SER JULGADO INVÁLIDO O EXERCICIO DO DIREITO DE REMIÇÃO, COM AS DEVIDAS E LEGAIS CONSEQUENCIAS LEGAIS.»

3. Os Réus não responderam.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO
4. OS FACTOS
Em 1ª instância foram considerados assentes os seguintes os factos:
1. Autora é uma sociedade comercial que se dedica com escopo lucrativo à compra e venda de imóveis.
2. No exercício da atividade, a Autora dirigiu proposta de aquisição de fração autónoma para habitação de tipologia t4, duplex, designado pela letra H do prédio urbano sito na avenida 31 de janeiro, n.º 618, 5.º andar, apreendida à ordem dos autos de insolvência n.º 141/14.7TBGMR.
3. A proposta de aquisição foi acompanhada do envio de um cheque visado no valor de € 72.000,00.
4. A 29 de setembro de 2014 foi outorgado contrato designado de promessa de compra e venda da referida fração pelo preço total de € 360.000,00, entre a Autora e a 1.ª Ré, representada pelo administrador de insolvência, aqui 2.º réu, nos termos do documento junto a fls. 15 e que aqui se dá como integralmente reproduzido.
5. O 2.º Réu, na qualidade de administrador de insolvência, agendou a celebração da escritura de compra e venda para o dia 31 de outubro de 2014.
6. No dia 30 de outubro, o 2.º réu, na qualidade de administrador de insolvência, informou a Autora que o cônjuge do insolvente havia manifestado o interesse em exercer o direito de remir, dando sem efeito a escritura marcada.
7. No auto de apreensão ficou consignado que o administrador procederia à venda extrajudicial por negociação particular.
8. O insolvente era à data casado no regime de separação de bens com Célia Margarida Teixeira Correia Natal.
9. O cônjuge do insolvente exerceu o direito de remição, tendo efetuado os seguintes pagamentos: € 72.000 em 30/10/2014, € 128.000 em 11/11/2014 e € 160.000 em 18/12/2014, data da escritura.
10. À Autora foi devolvido o montante de € 72.000,00.

5. O MÉRITO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art. 639º nº 1, 635º nº 3 e 4, art. 608º nº 2, ex vi do art. 663º nº 2, do Código de Processo Civil (de futuro, apenas CPC).
No caso, são as seguintes as QUESTÕES A DECIDIR:
• Se o cônjuge do Insolvente, casados sob o regime de separação de bens, pode exercer o direito de remição
• Se o direito de remição foi exercido de acordo com os preceitos legais
• Se o incumprimento do contrato promessa é imputável, culposamente, ao Administrador da Insolvência

5.1. SE O CÔNJUGE PODIA EXERCER O DIREITO DE REMIÇÃO
Nos termos do art. 842º do CPC, é cometido o direito de remir ao “cônjuge que não esteja separado judicialmente de pessoas e bens”.
É consensual que a razão de ser da atribuição do direito de remição reside na proteção da família, mais especificamente do património familiar.
A lei nada diz quanto ao regime de bens em que é celebrado o casamento e, onde a lei não distingue, não o deve fazer o intérprete.
O facto de um casamento ser celebrado sob o regime de separação de bens não significa que não haja um “património familiar” pois enquanto persistir o casamento continua a existir “comunhão de vida” e a administração do património pode estar a cargo de um único dos cônjuges que não seja o proprietário dos bens: art. 1678º nº 1 al. f) e g) do Código Civil (CC).
Aliás, se, como pretende a Recorrente, a razão de ser do direito de remição fosse a proteção do “património conjugal”, não faria sentido que a sua atribuição fosse também cometida aos descendentes e ascendentes.
Pretende-se, pois, um conceito amplo de família.
«Pelo que respeita ao regime de bens, nenhuma influência exerce sobre a atribuição do direito de remição. Ou o casamento tenha sido contraído segundo o regime da comunhão geral, ou segundo o regime da simples comunhão de adquiridos, ou segundo o regime da separação absoluta, ou segundo o regime dotal, o cônjuge é sempre titular do direito de remição, contanto que entre ele e o executado não tenha sido decretada a separação judicial de pessoas e bens.»(1)
Consequentemente, o facto de os cônjuges do insolvente e da remidora ter sido celebrado sob o regime da separação de bens, não retira a esta a legitimidade para exercer o direito de remir.
Por fim, diga-se ainda que, apesar de não expressamente previsto, nada deve obstar ao exercício do direito de remição em processo de insolvência, como já entendeu Salvador da Costa e a jurisprudência (2).

5.2. SE O DIREITO DE REMIÇÃO OBEDECEU AOS PRESSUPOSTOS LEGAIS
Resulta dos factos provados que a venda seria extrajudicial, na modalidade de venda por negociação particular, pelo que o direito de remição podia ser exercido “até ao momento da entrega dos bens ou da assinatura do título que a documenta”: art. 843º nº 1 al. b) CPC.
Tratando-se da venda de um imóvel, a ser concretizada por escritura pública designada para o dia 31/10/2014, desconhece-se o dia em que o cônjuge exerceu o seu direito; porém, consta como provado que o foi antes do dia 30/10, pois nessa data o administrador de insolvência informou a Recorrente desse interesse do cônjuge em remir, dando sem efeito a escritura marcada.
Ora, ao estabelecer como data limite “até”, estamos perante um termo final (dies ad quem) e não um termo inicial (dies a quo), significando isso que nada impede que o exercício do direito seja efetuado em data anterior, pois a sanção legal reporta-se apenas ao termo final.
No caso, e pela ordem natural das coisas, era até isso que se impunha, como forma de evitar a prática de atos inúteis. Como é sabido, a outorga de uma escritura pública implica a preparação de documentos e agendamento com o notário pelo que, não faria sentido que se deixasse realizar o ato, ou que só aquando dele se viesse a manifestar a intenção.
Porque o titular do direito de remição não é notificado para a ação executiva, nem a venda por negociação particular é publicitada, «o direito de remição pode ser exercido pelo seu titular até ao momento da entrega dos bens ou da assinatura do título que a documenta». (3)
E, o que importa ao caso, é a data em que se efetivam e concretizam qualquer um desses momentos, independentemente de ter existido a designação de datas anteriores para o efeito, que, entretanto, vieram a ser alteradas.
Nesse sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra citado pela Recorrente: «3. Estando ainda o remidor dentro do prazo estabelecido na lei para o exercício do seu direito, não pode ter-se o mesmo por precludido antes de decorrido tal prazo, ainda que em momento anterior o remidor tenha pretendido exercer o seu direito, sem observância dos requisitos necessários à sua validade.
(…)
Contudo, se é certo que nesse primeiro momento o direito não pode ter-se como validamente exercido, parece que nada obsta a que mais tarde (no caso quatro dias), desde que ainda dentro do prazo estabelecido no artº 843 nº 1 al. b) do C.P.C., o Requerente venha de novo exercer tal direito, que foi o que o mesmo veio fazer, efectuando desta vez o depósito integral do preço acrescido de 5%, conforme exigência legal.
Alega a Recorrente que o direito do Requerente caducou ao não ter sido exercido de forma válida naquele primeiro momento. Ora, se é verdade que inicialmente o direito não foi validamente exercido, por não ser acompanhado do depósito do preço, considera-se, no entanto, que não pode falar-se em caducidade do direito naquela altura, por não ter ainda decorrido o prazo concedido por lei para o efeito.» (4)
No caso, sabe-se que a escritura pública esteve inicialmente designada para o dia 31/10/2014, mas veio a ser dada sem efeito, acabando por ser concretizada em 18/12/2014 (facto provado nº 9) e que nessa data procedeu a remidora à última prestação do preço devido.
Tal como se disse quanto ao prazo, também nada deve impedir que parte do preço devido pelo remidor já tenha sido efetuado antes da data limite. Importante é que, na data da escritura, estivesse depositado o montante integral do preço. E foi o caso.
Assim, deve ter-se por atempado o exercício do direito, bem como o pagamento do preço.
Quanto ao facto de a remidora ter efetuado o pagamento por cheque simples, em vez de cheque visado, tal circunstância factual não consta destes autos; o que dos factos provados se pode presumir é que o os cheques obtiveram boa cobrança, tanto assim que foi devolvido à Recorrente o montante por ela depositado.

5.3. SE O INCUMPRIMENTO DO CONTRATO PROMESSA É IMPUTÁVEL AO ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
Consta do contrato promessa que a Recorrente declarou prescindir “da obtenção do dobro da quantia já paga” a título de sinal, apenas “em caso de não cumprimento do contrato promessa por exclusivos atos ou decisões judiciais emitidas pelo Tribunal competente da insolvência ou outras entidades que não da responsabilidade directa e a atribuir à Massa Insolvente ou ao Administrador da Insolvência” (cláusula 15ª).
Considera agora a Recorrente que a não outorga do contrato prometido não se ficou a dever a quaisquer “atos ou decisões judiciais”, mas apenas à livre decisão do Administrador, pelo que se deve ter o incumprimento por culposo, conferindo-se-lhe o direito ao dobro do sinal.
Mas, parece-nos, a esses “atos ou decisões judiciais”, não pode deixar de ser equiparado o cumprimento de obrigações legais, como é o caso de acautelar o direito de remição quando exercido.
Depois, há que registar que a responsabilidade do administrador da insolvência consignada no art. 59º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) se reporta apenas aos “credores da insolvência” e aos “credores da massa insolvente”, qualidade que não detém a Recorrente (pelo menos, não há disso qualquer referência nos autos (5), como se pode aquilatar da contraposição com os arts. 46º, 47º, 172º e 174º do CIRE.
«Qualquer atuação danosa do administrador que se processe para além do exercício das suas atribuições no processo está fora do âmbito do preceito anotando, independentemente de quem seja o lesado.
Paralelamente, para o regime aqui fixado ser aplicável, é necessário que o prejudicado seja o próprio devedor ou um credor.» (6)
Para além disso, para a pretendida indemnização do dobro do sinal, seria necessária a demonstração dos pressupostos da responsabilidade civil, de verificação cumulativa, designadamente o caráter ilícito da atuação do Administrador e a sua culpa.
Ora, dos factos provados não é possível qualificar de ilícita a conduta do Administrador, pois se limitou a dar efetividade a um direito de remição consignado na lei e exercido de forma válida, como já atrás se decidiu.
O mesmo se diga quanto à culpa. Dos factos provados não se vislumbra que a conduta do Administrador se haja pautado por algum conluio com o cônjuge remidor para frustrar a expetativas da Recorrente à realização do contrato prometido.
Quanto à indemnização de 5% prevista no art. 843º nº 2 do CPC, ela está prevista apenas para as situações de venda por proposta em carta fechada.
Não se esqueça que, nesta modalidade, o proponente só tem de juntar à proposta um cheque visado/garantia bancária no montante de 5% do valor anunciado e, só no caso de a sua proposta ter sido a aceite, é que tem de depositar a parte do preço em falta no prazo de 15 dias (art. 824º nº 1 e 2 do CPC).
Por outro lado, só depois de depositado o preço total e satisfeitas as obrigações fiscais é que os bens serão adjudicados ao proponente, emitindo-se o título de transmissão (art. 827º nº 1 do CPC.
Prevenindo essa décalage no tempo — proposta/aceitação/notificação para depositar o restante do preço em 15 dias/título transmissão —, e dado que o direito de remição pode ser exercido até à emissão do título de transmissão, entendeu o legislador penalizar o remidor que se apresenta a exercer o direito apenas no último momento.
Assim, a indemnização de 5% prevista no art. 843º nº 2 do CPC só é devida:
• Nos casos de venda por propostas em carta fechada
• Se o direito de remição só for exercido depois do ato de abertura e aceitação das propostas
• Se o proponente que vai ser substituído já tiver depositado o valor total do preço da venda.
Tais circunstâncias não se verificam no caso presente, pelo que não assiste à Recorrente o direito a essa indemnização.

6. SUMARIANDO (art. 663º nº 7 do CPC)
a) Apesar de não expressamente previsto no CIRE, nada deve obstar ao exercício do direito de remição em processo de insolvência.
b) À atribuição do direito de remição ao cônjuge é indiferente o regime de bens em que o casamento foi celebrado.
c) Quando a lei estabelece apenas termo final (dies ad quem) para o exercício do direito, a respetiva efetivabilidade não fica prejudicada se ele for exercido em data anterior.
d) A data relevante para efeitos de “entrega dos bens” ou “assinatura do título” [art. 843º nº 1 al. b) do CPC] é a da concretização desses atos, independentemente de terem existido datas anteriores (entretanto dadas sem efeito) designadas para o efeito.
e) Se, numa venda por negociação particular, o Administrador da Insolvência outorga num contrato promessa e, posteriormente vem o cônjuge do Insolvente a exercer o direito de remição de forma válida e atempada, o incumprimento do contrato promessa não pode ser qualificado de ilícito pois que o Administrador se limita a dar efetividade a um direito consignado na lei.
f) A indemnização de 5% prevista no art. 843º nº 2 do CPC só é devida: (i) nos casos de venda por propostas em carta fechada; (ii) se o direito de remição só for exercido depois do ato de abertura e aceitação das propostas; (iii) se o proponente que vai ser substituído já tiver depositado o valor total do preço da venda.

III. DECISÃO
7. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
Guimarães, 03.11.2016

Relatora, Isabel Silva
1º Adjunto, Pedro Alexandre Damião e Cunha
2º Adjunto, Maria João Marques Pinto de Matos

(1)José Alberto dos Reis, “Processo de Execução”, vol. 2º, 1985, Coimbra Editora, pág. 479.
Aliás, o Autor admite ainda que o direito de remição persiste até na separação de facto «e quando entre eles tenha sido decretada a simples separação judicial de bens.»
No mesmo sentido, Salvador da Costa, “A Venda Executiva, Os Direitos Reais De Aquisição E Os Direitos de Remição”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, vol. I, Coimbra Editora, 2013, pág. 1239.
(2) Salvador da Costa, “A Venda Executiva, Os Direitos Reais De Aquisição E Os Direitos de Remição”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, vol. I, Coimbra Editora, 2013, pág. 1238, dando ainda conta de ser esse também o entendimento de Alberto dos Reis, cf. nota (29).
Em termos jurisprudenciais, acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (TRC), de 14.07.2014 (processo 2741/11.8TBPBL-I.C1, Relator: Henrique Antunes) disponível em www.gde.mj.pt, sítio a ter em conta nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem.
(3)Salvador da Costa, artigo citado, pág. 1240.
(4) Acórdão do TRC, de 17.12.2014 (processo 306/05.2TBPCV-F.C1, Relator: Maria Inês Moura).
(5) Pelo contrário, o que se colhe é que a Recorrente foi uma mera proponente numa venda particular.
(6) Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 3ª edição, 2015, Quid Juris, pág. 343, anotação 5ª ao art. 59º.