Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | ALCIDES RODRIGUES | ||
Descritores: | CONTRATO DE CRÉDITO AO CONSUMO PERDA DO BENEFÍCIO DO PRAZO RESOLUÇÃO DO CONTRATO PRESSUPOSTOS | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 02/08/2018 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PARCIALMENTE PROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 2.ª SECÇÃO CÍVEL | ||
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Sumário: | I - Num contrato de crédito ao consumo, ao qual é aplicável o regime do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 02/06, o exercício ou a invocação da perda do benefício do prazo ou da resolução do contrato pressupõe que o credor demonstre, cumulativamente: (i) a falta de pagamento de, pelo menos, duas prestações sucessivas; (ii) cujo montante exceda 10% do montante total do crédito (iii) e que, sem sucesso, interpelou o devedor concedendo-lhe um prazo suplementar de, pelo menos, 15 dias para proceder ao pagamento das prestações em falta, acrescidas da eventual indemnização (moratória) devida, com a expressa advertência dos efeitos da resolução do contrato e/ou da perda do benefício do prazo. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães I. Relatório Credora X apresentou, no Juízo Local Cível de Barcelos– Juiz 1 – do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, requerimento de injunção que, após oposição, originou a presente ação especial de cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, de harmonia com o disposto no Decreto – Lei nº 269/98, de 1 de Setembro, contra Maria, pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 6.349,85, acrescida de € 2.416,51 a título de juros de mora vencidos, e, ainda, na quantia de € 200 (duzentos euros) relativa a despesas administrativas. Para tanto alegou, em resumo, que no exercício da sua atividade, celebrou com a Ré e com o falecido marido daquela, José, um contrato de concessão de crédito. A quantia mutuada acrescida de juros remuneratórios e demais encargos devidos era para ser reembolsada em prestações mensais e sucessivas, vencendo-se no dia um de cada mês. Desde 29 de Dezembro de 2015, a Requerida não efetuou mais qualquer pagamento referente às prestações que tinha que liquidar relativamente ao contrato, achando-se em dívida a quantia de € 6.349,51, a que acrescem os juros à taxa contratual de 23,40%, no montante de € 2.416,51. A falta de pagamento das restantes prestações importa o respetivo vencimento, assistindo-lhe o direito de resolver o contrato e exigir o pagamento das prestações vencidas, acrescidas de juros moratórios, e das prestações vincendas. *** Regularmente citada, contestou a Ré, nos termos constantes de fls. 12 a 16, na qual arguiu as exceções de ilegitimidade passiva, de ineptidão do requerimento injuntivo e de prescrição dos juros peticionados. A final pugnou, também, pela total improcedência da ação.*** A Autora respondeu às exceções invocadas pela Ré, pugnando pela respetiva improcedência e peticionou a condenação da Ré como litigante de má fé (cfr. fls. 37 a 43). *** Por despacho de fls. 64 e ss., foi julgada improcedente a exceção de ineptidão da petição inicial, assim como a exceção de ilegitimidade, tendo sido designada data para audiência de discussão e julgamento.* Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento (cfr. actas de fls. 103 a 105). * Posteriormente, a Mmª. Julgadora a quo proferiu sentença, datada de 26/06/2017, (cfr. fls. 106 a 110), nos termos da qual decidiu julgar a presente ação parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência, condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de € 6.349,95, ao qual acrescem os juros que se vencerem desde as respetivas datas de vencimento das respetivas prestações, à taxa contratual ajustada entre as partes de 23,38%. * Inconformada, a Ré Maria interpôs recurso da sentença (cfr. fls. 115 a 122) e formulou, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões (que se transcrevem (1)):«I. Vem o presente recurso interposto da sentença, que julgou parcialmente procedente ação intentada pela Credora X. II. Proferida a sentença nos termos em que o foi, e não se conformando, a Recorrente com o conteúdo da douta decisão, por se entender, como se entende, que a solução encontrada na douta sentença em crise, não só viola, no caso sub-Júdice, o sentimento ético-jurídico de Justiça, que ao caso cabe, e ainda que tal solução, na aplicação do direito ao caso concreto, pode e deve, eventualmente, ser outra, pelo que se suscita e requer a reapreciação da decisão através do presente recurso. III. Desta feita e tendo em conta a prova carreada para os presentes autos, estamos em concluir, com a devida vénia, que a presente sentença revela uma decisão injusta e pouco lúcida, considerando provados factos que não deveria considerar e julgando provados factos que, no nosso modesto entendimento, deveriam ser julgados como não provados. IV. Atenta a prova produzida é concluir, no nosso modesto entendimento o facto provado 5, ou seja: V. “5 – A Ré não efetua qualquer pagamento referente ao ajuste negocial mencionado em 2) desde 29 de Dezembro de 2015, achando-se em dívida, relativamente ao contrato mencionado em 2), a quantia de € 6.349,85 (seis mil trezentos e quarenta e nove euros e oitenta e cinco cêntimos).” VI. Porém é pela própria testemunha da Autora, no depoimento escrito apresentado, refere os pagamentos realizados, constando nomeadamente pagamento feito a 30 de Dezembro de 2015, no montante de 200.00€, VII. Logo, se mostra que não poderia aquele facto ter dado como assente, tendo em conta o admitido pela própria testemunha, VIII. Demais e no que refere a testemunha Bruna, filha da Ré, foi pela mesma referido que a ré, sua mãe, não tinha recebido qualquer comunicação de incumprimento do contrato mutuário, e consequentemente o pedido para efetuar o pagamento da quantia mutuada pela Credora X, ou seja não houve a interpelação admonitória dando por incumprido o contrato de Financiamento IX. Ora, conforme a nossa jurisprudência tem vindo a decidir, “não contém uma interpelação admonitória do devedor moroso para o cumprimento de uma obrigação, dentro de certo prazo perentório determinado, sob pena de se considerar o seu incumprimento como definitivo, a comunicação que o credor faz ao devedor de “recorrer, de imediato, às vias judiciais competentes, se, no prazo oito dias, não for efetuado contacto com o intuito de regularizar a situação”, mas sem nada dizer quanto a qualificar a obrigação por, definitivamente, não cumprida. X. Inexistindo uma situação de impossibilidade da prestação ou de incumprimento definitivo, carece o autor de base legal para proceder, validamente, à resolução do contrato, e, não tendo, igualmente, fundamento convencional para exercer esse direito, “ – vide Ac.do STJ datado de 28-04-2009 nos autos de processo nº 09A0679, disponível em www.dgsi.pt, XI. Nos presentes autos, conforme refere a testemunha, não existiu interpelação a resolver o referido contrato, essencial para a se achar resolvido, tal como a nossa jurisprudência refere, de acordo com o princípio geral enunciado no artigo 779.º do Código Civil, o benefício do prazo tem-se por estabelecido a favor do devedor, quando se não demonstre que o foi a favor do credor, ou do devedor e do credor conjuntamente. XII. De referir que, atenta a data de celebração dos contratos dos autos, encontram-se os mesmos sujeitos ao regime especial estabelecido pelo DL 133/2009 de 2.6, diploma que transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2008/48/CE, do Parlamento e do Conselho, de 23 de Abril, relativa a contratos de crédito aos consumidores, uma vez que o mesmo entrou em vigor no dia 1 de Julho de 2009, XIII. Este diploma que se afasta do regime geral do citado art. 781º C. C., contendo medidas claramente protecionistas dos consumidores, dispõe no seu art. 20º que dispõe que: “Em caso de incumprimento do contrato de crédito pelo consumidor o credor só pode invocar a perda do benefício do prazo e a resolução do contrato, se, cumulativamente, ocorrerem as circunstâncias seguintes: a) a falta de pagamento de duas prestações sucessivas que excedam 10% do montante total do crédito; b) ter o credor, sem sucesso, concedido ao consumidor um prazo suplementar mínimo de 15 dias para proceder ao pagamento das prestações em atraso, acrescidas da eventual indemnização devida, com a expressa advertência dos efeitos da perda do benefício do prazo ou da resolução do contrato”. XIV. Como tem sido entendimento da doutrina e da jurisprudência nesta matéria, o vencimento imediato das prestações por força da lei, ou por força do contrato, não é automático, não prescindindo de interpelação ao devedor. XV. A este propósito, escreveu o Prof. A. VARELA (“Das Obrigações em Geral”, II, 4ª ed., pg 52): - “O vencimento imediato das prestações cujo prazo ainda se não vencera constitui um benefício que a lei concede – mas não impõe – ao credor, não prescindindo consequentemente de interpelação ao devedor. XVI. “A interpelação do devedor para que cumpra imediatamente toda a obrigação (realizando as prestações restantes) constitui a manifestação da vontade do credor em aproveitar o benefício que a lei lhe atribui” [no mesmo sentido, na doutrina, Menezes Cordeiro in “Direito das Obrigações”, 2º, 1994, ed. AAFDL, pg. 195, n.55 e cf. ainda Menezes Leitão in Direito das Obrigações, II, 158 e Gravato Morais, in Contratos de Crédito ao Consumo, Almedina, 2007, págs. 196]. XVII. Quando tal suceda, o credor goza do direito de exigir o pagamento, não só da prestação em falta, mas ainda de todas as restantes, não vencidas, não se operando o vencimento destas ex vi legis, mas mediante interpelação do credor, nos termos gerais. XVIII. Com efeito, não se prevê na lei nem no contrato a dispensa de interpelação do devedor para cumprimento, razão pela qual o credor não fica dispensado de fazer a interpelação extrajudicial para o pagamento». XIX. O Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 19.06.1995, cujo sumário se passa a transcrever parcialmente, reflete a querela doutrinária enunciada: «Ainda que se admita como exata a interpretação do art. 781.º do C. Civil de que ‘vencimento imediato’ das prestações posteriores de uma dívida pelo não pagamento de uma delas, significa a ‘exigibilidade imediata’ que não dispensa a interpelação do devedor”. XX. O que no caso não sucedeu. XXI. Conforme a testemunha ouvida, Bruna, quando questionada se alguma vez a ré foi interpelada para pagamento da dívida a mesma refere; Minuto 3:05 Mandatária da Ré: só o seu pai é que tinha telefone. E por correio? Recorda-se de ter recebido alguma comunicação em nome da sua mãe? Minuto 3:12 Testemunha: da minha mãe? Minuto 3:12 Mandatária da Ré: sim. Minuto 3:13 Testemunha: penso que não. Minuto 3:17 Mandatária da Ré: à sua mãe não chegava cartas? Minuto 3:18 Testemunha: penso que não, acho que de nada. Minuto 3:21 Mandatária da Ré: lembra-se de a sua mãe ter dito: olha a Credora X mandou-me uma carta. Minuto 3:24 Testemunha: não, não. XXII. Com efeito, não foi dado cumprimento para a resolução do contrato, visto que não se provou que foi enviada alguma interpelação para a ré, e consequentemente não se pode considerar resolvido o contrato de crédito. XXIII. Ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou, por erro de interpretação, o disposto no art. 20º do DL 133/2009 de 2.6, diploma que transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2008/48/CE, do Parlamento e do Conselho, de 23 de Abril.». * Não consta que a Autora tenha apresentado contra-alegações.* O recurso foi admitido por despacho de 2 de novembro de 2017 como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cfr. fls. 125).* Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.* II. Questões a decidir.Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal, por ordem lógica da sua apreciação, consistem em saber: 1.ª – Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto. 2ª – Da inverificação dos pressupostos da resolução do contrato. * III. FundamentosA sentença recorrida deu como provados os seguintes factos: 1 – Em 5 de Agosto de 2008, José, na qualidade de 1º mutuário / titular, e Maria, na qualidade de 2º mutuário / titular, solicitaram à Credora X a concessão de um crédito pessoal no montante de € 10.000 (dez mil euros). 2 – Tal pedido, que deu origem ao contrato registado sob o nº …, que foi assinado pela Ré Maria, na qualidade de 2º mutuário / titular, foi aceite pela Credora X, tendo ficado ajustado entre as partes que a quantia mutuada seria paga em 96 mensalidades, no valor unitário de € 237,22 (duzentos e trinta e sete euros e vinte e dois cêntimos), incluindo este valor o custo do seguro subscrito, no montante de € 21,41, as quais se venciam no dia um de cada mês. 3 – Foi, ainda, convencido entre os outorgantes, que a tal concessão de crédito era aplicável uma TAEG de 23,38%. 4 – Consta ao artigo 4º das condições gerais do acordo mencionado em 2), que foram assinadas pela Ré Maria, na qualidade de 2º mutuário / titular, o seguinte: “4.1. Caso o mutuário não faça o pagamento de uma prestação na data de vencimento ficará em mora, acrescendo à prestação uma penalidade mensal de 1% sobre cada uma das prestações em mora, sem prejuízo da Credora X poder aplicar ainda uma penalização adicional de valor correspondente às despesas ocasionadas pela constituição em mora, de acordo com o preçário em vigor. 4.2. Mantendo-se o incumprimento, a Credora X pode resolver o contrato e exigir o pagamento imediato de toda a dívida (incluindo capital remanescente, juros contratuais e demais encargos vencidos), sem prejuízo da incidência de juros de mora à taxa legal sobre toda a dívida vencida, em qualquer das modalidades de crédito a que o mutuário haja recorrido. Caso a Credora X resolva o contrato e/ou recorra a juízo para obter o pagamento, as penalidades devidas pela mora serão substituídas por uma penalidade única de 8% sobre todo o saldo em dívida, a título de cláusula penal. (…)”: 5 – A Ré não efetua qualquer pagamento referente ao ajuste negocial mencionado em 2) desde 29 de Dezembro de 2015, achando-se em dívida, relativamente ao contrato mencionado em 2), a quantia de € 6.349,85 (seis mil trezentos e quarenta e nove euros e oitenta e cinco cêntimos). * E deu como não provados os factos seguintes:a) A Autora teve despesas administrativas no valor de € 200 (duzentos euros); b) A ré não assinou o contrato referido em 2) dos factos provados. * IV. Do objecto do(s) recurso(s) 1. Delimitadas, sob o n.º II, as questões essenciais a decidir, é o momento de apreciar cada uma delas. 1.1. Da impugnação da matéria de facto. Em sede de recurso, vem a apelante impugnar a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal de 1.ª instância. Para que o conhecimento da matéria de facto se consuma, deve previamente o recorrente, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, cumprir o ónus de impugnação a seu cargo, previsto no artigo 640º do CPC, o qual dispõe que: “1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. 3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.». Aplicando tais critérios ao caso, constata-se que a recorrente indica o facto que pretende que seja decidido de modo diverso, inferindo-se por contraponto a redação que deve ser dada (da modificação do facto provado para não provado), como ainda o(s) meio(s) probatório(s) que na sua ótica o impõe(m), pelo que podemos concluir que cumpriu suficientemente o ónus estabelecido no citado artigo 640.º. Acontece, porém, que o ponto impugnado da matéria de facto – item 5 matéria de facto provada da decisão recorrida – mostra-se admitido por acordo, já que o mesmo não foi impugnado pela ré em sede da oposição deduzida (art. 574º, n.ºs 1 e 2 “ex vi” do art. 549º, n.º 1, ambos do CPC), estando portanto excluído da produção de prova. Com efeito, como foi salientado na decisão recorrida, em sede de defesa apresentada na oposição, a Ré limitou-se a arguir a sua ilegitimidade, a invocar a exceção de ineptidão da petição inicial, bem como a exceção perentória de prescrição dos juros peticionados, não tendo tomado posição especificada quanto aos factos alegados em sede de requerimento injuntivo. Nesta conformidade, resta concluir pela manifesta improcedência da impugnação da matéria de facto, visto que o facto impugnado foi, e bem, tomado em consideração na decisão recorrida por se mostrar admitido por acordo (art. 607º, n.º 4, 2ª parte (2) do CPC). * 1.2. – Reapreciação da matéria de direito (da inverificação dos pressupostos da resolução do contrato)O Tribunal da 1ª instância considerou estarmos perante um contrato de mútuo, porquanto resulta dos autos que a Autora se obrigou a emprestar à Ré a quantia de € 10.000,00 e que esta se comprometeu a pagar à Autora tal quantia em 96 prestações, no valor unitário de € 237,22, as quais se venciam no dia um de cada mês, a que acrescia ainda uma TAEG de 23,38%. Resultando provado que a Ré desde 29 de dezembro de 2015 que não paga qualquer prestação, o Tribunal recorrido concluiu que, em face de tal incumprimento e atento o estipulado no contrato celebrado entre as partes, venceram-se todas as demais prestações, ficando por regularizar o valor correspondente às demais prestações, no valor de € 6.349,95, ao qual acrescem os juros que se vencerem desde as respetivas datas de vencimento das respetivas prestações, à taxa contratual ajustada entre as partes de 23,38%. A recorrente insurge-se contra esta sentença com base no pressuposto de que a recorrente não procedeu à interpelação admonitória indispensável à resolução do contrato. Diz, por isso, ocorrer violação do disposto no art. 20º do Dec. Lei n.º 133/2009, de 2/06, diploma que transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2008/48/CE, do Parlamento e do Conselho, de 23 de Abril. Centraremos, pois, a nossa atenção neste ponto. A sentença recorrida teve apenas em conta o Decreto-Lei n.º 359/91, de 21/09, mas não o Decreto-Lei n.º 133/2009 (3), afigurando-se-nos que o deveria ter feito, uma vez que, apesar do contrato objeto dos autos ter sido outorgado em data anterior à entrada em vigor desse diploma legal, não está o mesmo compreendido nas exclusões previstas nos arts. 2.º e 3.º. Impõe-se, portanto, proceder aqui à sua abordagem, dado que a questão vem suscitada no âmbito do recurso. O contrato em causa nos autos foi apelidado pela própria Autora como “contrato de crédito pessoal”, cuja concessão de crédito, segundo o clausulado, se regia pelo DL n.º 359/91, de 21/09, pelas condições particulares incluídas neste contrato e pelas condições gerais (4). Por sua vez, por estar em causa a celebração de um mútuo com vista à concessão de crédito pessoal, a sentença recorrida concluiu – sem que tal mereça controvérsia ou impugnação de qualquer uma das partes – que o contrato respetivo deve ser qualificado como um contrato de crédito ao consumo. A este propósito, nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 do art. 4º do Decreto-Lei n.º 133/2099, de 2 de Junho, entende-se por contrato de crédito: “Contrato pelo qual um credor concede ou promete conceder a um consumidor um credito sob a forma de diferimento de pagamento, mútuo, utilização de crédito ou qualquer outro acordo de financiamento semelhante.” Aderindo-se a tal qualificação, não se justifica mais apurada fundamentação sobre essa temática. Assinala-se apenas que, sendo esse Decreto-Lei n.º 133/2009 lei especial face ao regime geral, isso não prejudica a aplicabilidade dos preceitos gerais do mútuo (art. 1142º e seguintes do Código Civil), bem como das regras gerais dos contratos, em tudo o que pelo diploma especial não for especificamente regulado, pois «a lei especial tem como característica só incidir limitadamente sobre a disciplina resultante da norma geral anterior naquele sector em que se destina a operar, e assim mesmo de harmonia com os princípios contidos na lei geral» (5). De entre os aspetos inovadores que foram introduzidos no âmbito da disciplina dos contratos de crédito aos consumidores, destaca-se o reforço dos direitos dos consumidores, “nomeadamente o direito à informação pré-contratual” e o estabelecimento, “na linha do disposto nos artigos 934º a 936º do Código Civil” de “novas regras aplicáveis ao incumprimento do consumidor no pagamento de prestações, impedindo-se que, de imediato, o credor possa invocar a perda do benefício do prazo ou a resolução do contrato” ( cfr. preâmbulo do citado Dec. Lei nº 133/2009). Daí prescrever o seu art. 20º que: «1 — Em caso de incumprimento do contrato de crédito pelo consumidor, o credor só pode invocar a perda do benefício do prazo ou a resolução do contrato se, cumulativamente, ocorrerem as circunstâncias seguintes: a) A falta de pagamento de duas prestações sucessivas que exceda 10% do montante total do crédito; b) Ter o credor, sem sucesso, concedido ao consumidor um prazo suplementar mínimo de 15 dias para proceder ao pagamento das prestações em atraso, acrescidas da eventual indemnização devida, com a expressa advertência dos efeitos da perda do benefício do prazo ou da resolução do contrato. 2 — A resolução do contrato de crédito pelo credor não obsta a que este possa exigir o pagamento de eventual sanção contratual ou a indemnização, nos termos gerais». O citado normativo prevê os requisitos de aplicabilidade de dois institutos, de alcance diverso, quais sejam, a perda de benefício do prazo e a resolução do contrato. Trata-se, sem dúvida, de um regime bem mais restritivo e gravoso para o credor do que o regime geral, pois impõe-lhe condições para o exercício ou invocação da perda do benefício do prazo ou da resolução do contrato (art. 1147º, 779º e 780º do CC). Assim, no tocante à resolução do contrato, por força da referida lei especial, deixa de estar sujeita ao regime geral da cláusula resolutiva imposta invariavelmente nos contratos de crédito ao consumo. Como requisitos destaca-se, em primeiro lugar, o incumprimento do dever de pagamento das prestações relativas ao contrato de crédito, desde que tal seja imputável ao consumidor. Além disso, é indispensável que se verifique a falta de pagamento de duas prestações sucessivas, pois que o não cumprimento de uma das prestações ou de duas prestações não consecutivas não permite ao credor acionar o mecanismo da resolução contratual. Daqui decorre, no dizer de Gravato Morais (6), que o incumprimento do dever de pagamento das prestações relativas ao contrato de crédito, imputável ao consumidor, “deixa de estar sujeito ao regime geral do art. 781º do CC, na hipótese de perda do benefício do prazo, ou à cláusula resolutiva aposta invariavelmente nos contratos de crédito ao consumo, que determinava como causa de extinção a falta de pagamento de uma só prestação, verificando-se agora uma restrição assinalável no tocante ao seu exercício, para efeitos de protecção do consumidor”. De igual modo, determina-se que a falta de pagamento ultrapasse os 10% do montante total do crédito. Por fim, exige-se, ainda, uma interpelação do consumidor sujeita a determinados requisitos: (i) a fixação de um prazo suplementar de, pelo menos, 15 dias para proceder ao pagamento das prestações em falta, acrescida da indemnização (moratória) devida; (ii) a expressa advertência dos efeitos da perda de benefício do prazo ou da resolução contratual). A prova desta comunicação, exigida pelo disposto no art. 20º do Decreto-Lei n.º 133/2009, da resolução do contrato de crédito ao consumo por iniciativa do credor, perante o incumprimento do devedor, incumbe ao mesmo credor, nos termos do disposto no art. 342º, n.º 1 do C.C. Sucede que os factos atinentes a esta segunda condição – concessão do prazo suplementar e expressa advertência –, não constam da matéria de facto da sentença, e não constam porque nem sequer foram alegados pela Autora, ora recorrida. Vejamos: O contrato data de 5 de agosto de 2008, com o n.º …, respeitando a um capital mutuado de € 10.000,00 a liquidar em 96 prestações iguais e sucessivas, no valor de € 237,22 cada, tendo sido ainda convencido entre os outorgantes que à concessão do crédito era aplicável uma TAEG de 23,38%. Provou-se ainda que, desde 29 de dezembro de 2015, a Ré não efetua qualquer pagamento referente ao ajuste negocial acordado entre as partes. Em ponto algum da matéria de facto provada na sentença se refere que a Autora procedeu à resolução do contrato ou que tenha interpelado a Ré com a fixação de um prazo suplementar (7). Ora, como é sabido, a resolução convencional do contrato efetua-se, e só opera, mediante declaração à outra parte. - arts. 432º n.º 1 e 436º n.º 1 do CC. Além disso, como vimos, quer quanto à perda do benefício do prazo, quer quanto à resolução do contrato de crédito, a lei exige uma interpelação admonitória com fixação de prazo suplementar mínimo de 15 dias (art. 20º, n.º 1, al. b) do Dec. Lei n.º 133/2009). Nada foi alegado quanto à interpelação da mutuária e, por inerência, não se mostra provado. Assim sendo, e porque essa interpelação tem que existir (com a expressa menção dos efeitos referidos na al. b) do n.º 1 do art. 20º do Decreto-Lei n.º 133/2009), há que concluir não se ter verificado ainda a resolução do contrato de crédito (nem a perda de benefício do prazo) (8). Ou seja, não se operou o vencimento de todas as prestações. O mesmo é dizer que, quanto ao contrato objeto dos autos, a Ré está simplesmente em mora. Nessa medida, e de acordo com as regras substantivas, a Ré não podia ser condenada a pagar todas as prestações, mas apenas as prestações vencidas, e não pagas, acrescidas da indemnização moratória (juros à taxa contratual ajustada entre as partes de 23,38%). Os elementos fácticos apurados nos autos não (nos) permitem, porém, determinar inteiramente o quantitativo preciso das prestações vencidas em dívida (9), na medida em que dos elementos documentais carreados aos autos pela recorrida (10) parece depreender-se alguns meses em falta anteriores a dezembro de 2015 (sem que os mesmos se mostrem efetivamente concretizados), além de que os valores mensais pagos não são certos ou fixos (não constando sequer alegada a concretização mensal dos valores em falta). Nesta situação importa ter presente o estipulado no art. 609º, n.º 2 do CPC, segundo o qual, se não houver elementos para fixar a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida. Impõe-se, por isso, nos termos do citado preceito legal a condenação da ré no pagamento das prestações vencidas à data da apresentação do requerimento de injunção, a liquidar em incidente de liquidação posterior ou subsequente à condenação, nos termos do art. 358º, n.º 2, do CPC (11). As partes, ao ficarem vencidas por decaimento, são responsáveis pelo pagamento das custas, provisoriamente e em partes iguais, na instância recorrida, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC (12). Nesta conformidade, a pretensão neste recurso da recorrente é de julgar parcialmente procedente. * Sumário (ao abrigo do disposto no art. 667º, n.º 3 do CPC):I - Num contrato de crédito ao consumo, ao qual é aplicável o regime do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 02/06, o exercício ou a invocação da perda do benefício do prazo ou da resolução do contrato pressupõe que o credor demonstre, cumulativamente: (i) a falta de pagamento de, pelo menos, duas prestações sucessivas; (ii) cujo montante exceda 10% do montante total do crédito (iii) e que, sem sucesso, interpelou o devedor concedendo-lhe um prazo suplementar de, pelo menos, 15 dias para proceder ao pagamento das prestações em falta, acrescidas da eventual indemnização (moratória) devida, com a expressa advertência dos efeitos da resolução do contrato e/ou da perda do benefício do prazo. * V. DECISÃO Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, revogando a sentença recorrida e condenando a Ré a pagar à Autora o montante das prestações vencidas à data da propositura da ação, a liquidar em incidente de liquidação nos termos do art. 358º, n.º 2, do CPC, acrescidas de juros moratórios, à taxa de 23,38%, devidos a partir da data de vencimento de cada uma dessas prestações. Custas da instância recorrida a cargo da apelante e da apelada, na proporção que, provisoriamente, se fixa em partes iguais, a corrigir em função do que resultar da posterior liquidação. Custas da apelação a cargo da apelante e da apelada, em partes iguais. * Guimarães, 8 de fevereiro de 2018 Alcides Rodrigues Espinheira Baltar Eva Almeida 1. Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo gralhas evidentes e a ortografia utilizada. 2. «Na fundamentação da sentença, (…) o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo (…)». 3. O referido Decreto-Lei procedeu à transposição para a ordem jurídica interna da Diretiva n.º 2008/48/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril, relativa a contratos de crédito aos consumidores, na parte referente às alterações introduzidas pela Diretiva n.º 2011/90/UE da Comissão, de 14 de novembro, estabelecendo a disciplina a que ficam sujeitos os contratos de crédito aos consumidores – cfr. art. 1º. Entrou em vigor em 01.07.2009 (art. 37º) e revogou, entre outros, o Decreto-Lei n.º 359/91, de 21.09 (art. 33º). 4. Cfr. contrato cuja cópia consta de fls. 43 vº e 44. 5. Cfr. Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, vol. I, Lisboa, 1987, p. 33 e Ac. da RE de 16.05.2013 (Relatora, Maria Isabel Silva), in www.dgs.pt. 6. Cfr. Crédito aos Consumidores, “ Crédito aos Consumidores”, Anotação ao Decreto-Lei n.º 133/2009, Almedina, 2009, p. 99. 7. E isto sucede porque, como resulta da leitura do requerimento de injunção, a Autora, ora apelada, nunca alegou sequer tais factos, dando como adquirido que «a falta de pagamento das restantes prestações importa o respectivo vencimento em conformidade com o contratado», assistindo-lhe «o direito de resolver o contrato e exigir o pagamento das prestações vencidas, acrescidas de juros moratórios, e das prestações vincendas». 8. Cfr. neste sentido, Gravato Morais, obra citada, pág. 100, nos termos do qual «só há lugar à perda do benefício do prazo ou à resolução do contrato de crédito depois de esgotado o prazo quinquenal (ou eventualmente superior) concedido sem que se verifique o pagamento dos valores em causa.». 9. O montante mencionado no item 5 dos factos provados compreende as prestações vencidas e as vincendas, não destrinçando umas das outras. 10. Cfr. fls. 44 v.º e 45. 11. Cfr., no sentido de que o tribunal, se não tiver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, condena no que vier a ser liquidado, quer o pedido seja de montante determinado, quer se trate de pedido genérico, Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 2017 – 9º ed., Almedina, p. 234 e os Acs. do STJ de 30/04/2014 (Relator Mário Belo Morgado), e de 19/05/2009 (Relator Azevedo Ramos), ambos consultáveis in www.dgs.pt. 12. Cfr. Abrantes Geraldes, in Temas Judiciários, I Vol. (1 - Citações e notificações em processo Civil 2 – Custas judiciais e multas cíveis), Almedina, 1998, p. 238 – 242, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª ed., Almedina, p. 419 e Ac. do STJ de 13/07/2017 (Relator Olindo Geraldes), in www.dgs.pt. |