Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | FERNANDO MONTERROSO | ||
| Descritores: | QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL NOTÁRIO TESTAMENTO | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 03/10/2011 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL | ||
| Decisão: | JULGADO IMPROCEDENTE | ||
| Sumário: | I. A dedução do incidente de dispensa de sigilo profissional pressupõe sempre a existência de uma recusa e o juízo de que a recusa é legítima. II- Não recusa o depoimento aquele que, tendo sido convocado para depor, comparece e se limita a solicitar que fosse agendado outro dia para que pudesse receber a autorização da sua ordem profissional para prestar depoimento. III- No caso de o acesso ao conteúdo de um testamento não se mostrar imprescindível para a descoberta da verdade deve prevalecer a salvaguarda da intimidade do testador, tutelada pelo artigo 164º n.º1 do Código do Notariado. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães No processo de inquérito 506/10.3TAPTL-RM dos serviços do Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Ponte de Lima são investigados factos susceptíveis de integrar a prática de crimes de falsificação de documento e burla. Em resumo tais factos consistem em Maria G..., internada na Casa de Caridade Nossa C... de Ponte de Lima, estando manifestamente incapaz para o acto, ter assinado uma procuração a favor de Aníbal V... a quem concedeu poderes para, na qualidade de presidente da direcção do referido lar, “junto de qualquer banco privado ou público proceder à transferência de quaisquer valores de contas tituladas pela mandante para a conta do Lar Nossa C...…”. Usando tal procuração terão sido levantados cerca de € 88.000,00 euros de uma conta bancária de que era titular a Maria G.... No decurso do inquérito, o magistrado do MP pretendeu inquirir Susana R..., notária perante a qual foi outorgada a procuração e ordenou que se solicitasse ao Cartório Notarial a certidão de um testamento efectuado pela Maria G.... Foi recusada a entrega de tal certidão, visto o disposto no art. 164 nº 1 do Cod. do Notariado. Então, no seguimento de despacho nesse sentido do magistrado do MP, o sr. juiz suscitou a intervenção deste Tribunal da Relação para que seja decidido o incidente, nos termos dos arts. 182 nº 2 e 135 nºs 2 e 3. Neste tribunal o sra. procuradora geral adjunta emitiu parecer no sentido do incidente ser deferido. Colhidos os vistos, cumpre decidir. * FUNDAMENTAÇÃOIniciou-se o inquérito com duas denúncias nas quais, em resumo, se relata o facto de Maria G..., internada na Casa de Caridade Nossa C... de Ponte de Lima, ter assinado uma procuração a favor de Aníbal V... a quem concedeu poderes para, na qualidade de presidente da direcção do referido lar, “junto de qualquer banco privado ou público proceder à transferência de quaisquer valores de contas tituladas pela mandante para a conta do Lar Nossa C...…” (cfr. procuração de fls. 15). A Maria G... não estaria capaz de avaliar o acto, pois “já não está nas suas faculdades mentais há mais de 3 anos” (…), tem “perda total de lucidez, não conhece as pessoas, mesmo assim passou a procuração para o Lar se apropriar da sua conta de aproximadamente 88 mil euros…”. Nas denúncias também se refere que a Maria G... fez um testamento (na de fls. 4 diz-se que tal testamento remonta já a Novembro de 1995). No âmbito da investigação o magistrado do MP decidiu: 1 – Inquirir Susana R..., notária perante a qual foi outorgada a procuração; e 2 – Ordenar a junção de certidão do testamento referenciado nas participações. Porque são situações distintas, terão tratamento diferenciado neste acórdão. * A – A inquirição da notária Susana R..., perante quem foi outorgada a procuraçãoVejamos o que consta dos autos: - a fls. 14 o magistrado do MP determinou a inquirição da notária Susana R..., perante quem foi outorgada a procuração; - a inquirição foi designada para o dia 9 de Novembro de 20010 (cota de fls. 16); - a fls. 17 foi lavrada a seguinte COTA: “Aos 9 de Novembro de 2010 compareceu nesta procuradoria-adjunta a notária Susana R..., tendo a mesma informado que tendo solicitado autorização à Ordem para prestar declarações no âmbito dos presentes autos, tal não lhe foi ainda concedido, pelo que referiu que logo que tal o seja comunicará a estes serviços a fim de lhe ser agendada nova data para se proceder à inquirição”; - a fls. 23 está o despacho do magistrado do MP a deduzir este incidente; - a fls. 39 está um ofício da secretária da direcção da Ordem dos Notários, no qual, após considerações sobre a entrega da certidão do testamento, se escreveu: “Todas as questões relativas ao direito notarial em abstracto, nomeadamente a capacidade e as formalidades da outorga dos actos, nomeadamente de procuração, podem ser efectivamente respondidas porque compreendem as legis artis do Notário no bom exercício da sua profissão”. * Daqui resulta a improcedência do incidente nesta parte.É que só há lugar à dedução do incidente quando alguém se tiver escusado a depor invocando o sigilo profissional e a recusa for legítima. O incidente pressupõe sempre a existência de uma recusa e o juízo de que a recusa é legítima. Para remover tal recusa legítima é competente o tribunal imediatamente superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, que decidirá se, no caso concreto, se justifica a quebra do segredo profissional (nº 3 do art. 135 do CPP). Se a recusa for considerada ilegítima, por não caber no âmbito do segredo profissional, não há lugar à dedução do incidente, mas à decisão pelo tribunal respectivo de que o depoimento deve ser prestado (nº 2 do art. 135 do CPP). Ora, no caso, nem sequer houve recusa. A senhora notária nunca recusou o depoimento e sem essa formalidade não pode ser deduzido o incidente. Apenas solicitou que fosse agendado outro dia, para que pudesse receber a autorização da sua ordem profissional para o prestar, o que é diferente. Essa autorização foi-lhe, aliás, concedida, como decorre do conteúdo do ofício de fls. 39 acima transcrito. B – A entrega da certidão do testamento A sra. notária recusou a entrega da certidão do testamento “uma vez que dispõe o art. 164 nº 1 do Código do Notariado, que as certidões de testamentos públicos e de escrituras de revogação de testamentos só podem ser extraídas, sendo vivos os testadores, quando estes ou procuradores com poderes especiais as requeiram…” (fls. 8 ). Embora refira que a recusa não tem a ver com a invocação do sigilo profissional, mas com o facto de haver uma determinação legal expressa (fls. 21), deverá entender-se que existe uma invocação implícita da existência de sigilo. Porém, também nesta parte, improcede o incidente. No despacho em que o deduziu o magistrado do MP indica uma razão para a junção da certidão do testamento. Transcreve-se: “basta pensar no esvaziamento da investigação que decorreria de o acesso ao testamento permitir identificar a instituição denunciada como beneficiária das disposições deste”. Ou seja, se bem se percebe, entende aquele magistrado que se o beneficiário do testamento for a própria Casa de Caridade Nossa C... de Ponte de Lima, o comportamento denunciado já não integraria a previsão de qualquer crime. Talvez já fosse lícita quer a alegada forma como a procuração foi obtida, quer a apropriação do dinheiro da Maria G.... Sendo evidente que esta razão não procede, pouco há a dizer. Apenas se referirá que o testamento, pela sua própria natureza, não cria, antes da morte do testador, quaisquer direitos patrimoniais a favor do benificiário, ou sequer quaisquer expectativas patrimoniais juridicamente relevantes. O testamento é sempre livremente revogável a todo o tempo, não podendo o testador, sequer, renunciar à faculdade de o revogar, no todo ou em parte (art. 2311 do Cod. Civil). Por outras palavras, mesmo que a Casa de Caridade Nossa C... de Ponte de Lima seja a beneficiária do testamento, nunca a apropriação do dinheiro existente na conta bancária da Maria G... poderá ser entendida pelo Direito como uma espécie de «antecipação de pagamento». Não há alguma relação de causalidade entre as outorgas do testamento e da procuração. Não se descortina alguma utilidade em aceder ao conteúdo do testamento (talvez feito há mais de 15 anos), para investigar os factos que envolveram a passagem da procuração e o uso que lhe foi dado. O testamento e a procuração têm apenas um ponto em comum: são ambos da autoria da Maria G.... Porém, sejam os beneficiários do testamento as pessoas ou entidades A, B ou C, isso em nada alterará a configuração criminal dos factos denunciados, se estes efectivamente tiverem ocorrido. Talvez tivesse sido mais avisado, em face do conteúdo do auto de inquirição à Maria G... de fls. 13, ter-se ordenado a imediata e urgente realização de um exame pericial às suas faculdades mentais, em vez de se gastarem meses a tentar obter a certidão pretendida. Por tudo o exposto, o acesso ao conteúdo do testamento não se mostra imprescindível (é mesmo este o termo usado no art. 135 nº 3 do CPP) para a descoberta da verdade, devendo prevalecer, no caso, a salvaguarda da intimidade do testador, bem tutelado pela norma referida do art. 164 nº 1 do Código do Notariado. DECISÃO Os juízes desta Relação de Guimarães julgam totalmente improcedente o presente incidente de levantamento de sigilo. Não são devidas custas. |