Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:
I- RELATÓRIO
AA… intentou a presente ação declarativa, sob a forma de processo sumário, contra BB… e herança aberta por óbito de CC… (representada pelos respetivos herdeiros, BB, DD e EE), pedindo a condenação solidária dos réus no pagamento da quantia de € 21.592,20 acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento.
Para tanto alega, em síntese, que, em 26 de Janeiro de 2009, o falecido CC e mulher BB celebraram um contrato de empréstimo no valor de € 15.000,00 com a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, sendo que, para garantia do cumprimento das obrigações assumidas, o autor da herança Ré e a Ré BB subscreveram a livrança que foi título executivo na Execução que, sob o n.º 114/11.1TBPRG, correu termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Peso da Régua, tendo o Autor aposto o seu autógrafo no verso dessa livrança, dando o seu aval àqueles.
Acrescenta que, em virtude de não ter sido paga a livrança na data do seu vencimento, o credor interpôs a aludida ação executiva contra todos os devedores originários e o ora Autor, na qualidade de avalista, tendo este procedido ao pagamento da quantia global de € 21.592.20, envolvendo a quantia exequenda e custas judiciais, ficando, por isso, sub-rogado nos direitos do credor, direito esse que pretende exercitar por via desta ação.
Regularmente citados os réus, apenas o réu EE apresentou contestação, na qual, desde logo, se defende por exceção dilatória, advogando que a herança aberta por óbito de CC carece de personalidade judiciária, posto que o respetivo acervo hereditário se mostra partilhado.
Articula ainda que o valor líquido total dos bens partilhados ascendeu a € 14.004,54, cifrando-se o valor da sua quota hereditária em € 2.334,09, montante esse que já liquidou junto do exequente no âmbito do processo n.º 114/11.1TBPRG-B, do 1.º juízo do tribunal Judicial de Peso da Régua, mostrando-se, nessa medida, extinta a sua responsabilidade pelo pagamento da dívida reclamada pelo ora demandante.
Teve lugar audiência prévia, no âmbito da qual foi proferida decisão que absolveu da instância a herança aberta pelo óbito de CC, se definiu o objeto do litígio e se fixaram os temas da prova.
Realizou-se audiência final com observância do formalismo legal.
Foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, em consequência do que:
a)- se condenou a ré BB a pagar ao autor AA a quantia de 21.592,20 (vinte e um mil quinhentos e noventa e dois euros e vinte cêntimos), acrescida dos juros de mora, à taxa legal, desde a citação, até integral e efetivo pagamento;
b)- se condenou BB, DD e EE enquanto herdeiros de CC, a reconhecer a existência da divida ao autor AA no montante de 21.592,20 (vinte e um mil, quinhentos e noventa e dois euros e vinte cêntimos), acrescida dos juros de mora, à taxa legal, desde a citação, até integral e efetivo pagamento; e a ver satisfeito pelos bens da herança do de cuius CC o crédito do aqui autor;
c)- se absolveram os réus DD e EE do demais peticionado.
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Não se conformando com o assim decidido, veio o Réu EE interpor o presente recurso, o qual foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes
CONCLUSÕES:
I- O recurso é de direito.
II- O autor intentou a presente acção contra BB e herança aberta por óbito de CC, representada pelos respectivos herdeiros, BB, DD e EE, pedindo a condenação solidária dos réus no pagamento da quantia de € 21.592,20, acrescida de juros de mora até integral pagamento.
III- O réu EE, ora recorrente, contestou, alegando em síntese o seguinte:
- a herança não tem personalidade judiciária, pelo que deve ser absolvida da instância;
- cada herdeiro apenas responde em proporção da quota que lhe tenha cabido na herança;
- o valor líquido total dos bens partilhados foi de € 14.004,54, pelo que o valor da quota do contestante foi de € 2.334,09, pelo que apenas responde até esse montante;
- montante esse que já liquidou junto do exequente no âmbito do processo n." 114111.1TBPRG-B, do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Peso da Régua;
- concluindo, quanto a si, que a acção seja julgada improcedente.
IV- "Discutida a causa mostram-se provados os seguintes factos:
1. No dia 26 de Janeiro de 2009, CC e mulher, ora Ré, BB, celebraram um contrato de empréstimo no valor de € 15.000,00 com a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo.
2. Para garantia do cumprimento das obrigações por si assumidas, os referidos CC e BB subscreveram uma livrança, bem como o autor deu o seu aval à mesma.
3. Por a quantia mutuada não ter sido liquidada, a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo intentou acção executiva que correu termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Peso da Régua sob o nº.114/11.1TBPRG, contra os devedores principais, CC e BB, e o avalista, ora autor.
4. No âmbito da acção executiva referida em 3., o autor na qualidade de avalista, procedeu ao pagamento da quantia global de € 21.592,20, envolvendo a quantia exequenda e custas judiciais, na data da instauração da presente acção.
5. No dia 28 de Abril de 2010 faleceu CC, no estado de casado com a Ré BB, deixando como únicos e universais herdeiros, para além da sua esposa, os dois filhos, DD e EE.
6. No dia 2 de Julho de 2010, através do procedimento simplificado de partilha e registos, os herdeiros de CC procederam à partilha dos bens deixados por aquele.
7. No âmbito da referida partilha, os herdeiros estipularam/atribuíram os seguintes valores: aos bens o valor total de € 258.319,54; o valor de € 244.315,00 ao passivo; pelo que o valor líquido dos bens comuns do casal dissolvido foi de € 14.004,54, sendo que a quota-parte de BB foi de € 9.336,36 e cada um dos filhos de € 2.334,09.
8. No âmbito da referida partilha todos os bens, no valor total de € 258. 319,54, foram adjudicados ao herdeiro EE, assim como o valor do passivo no valor de € 244.315,00, tendo sido fixado o valor de tornas que teria de pagar a BB, no valor de € 9.336,36 e a DD no valor de e 2.334,09.
9. Corre termos sob o nº. 138/11.9TBPRG do Tribunal Judicial de Peso da Régua a acção de anulação de partilha extrajudicial referida em 6. a 8.
10. No âmbito do processo nº 114/11.1TBPRG- B do Tribunal Judicial de Peso da Régua, EE pagou à ali exequente Caixa Agrícola Mútuo Douro, Cargo e Tâmega CRL a importância € 2.334,09.
11. A acção executiva que corre termos sob o n. o 114/11. 1 TBPRG-B do Tribunal Judicial do Peso da Régua foi declarada extinta no dia 07.01.2014.
V- O recurso é limitado à parte da Douta Sentença recorrida que condenou os réus: b) Condena-se BB, DD e EE, enquanto herdeiros de CC, a reconhecer a existência da dívida ao autor AA no montante de €' 21.592,20 (vinte e um mil, quinhentos e noventa e dois euros e vinte cêntimos), acrescida dos juros de mora, à taxa legal, desde a citação, até integral e efectivo pagamento; e a ver satisfeito pelos bens da herança do de cuius CC o crédito do aqui autor.
VI- Para o Tribunal a quo todos os bens da herança de CC respondem perante a dívida ao autor.
VII- No entanto, salvo o devido e muito respeito, o Tribunal a quo não tem razão nesse propósito.
VIII- A herança antes de partilhada, enquanto património autónomo, responde pelo pagamento das respectivas dívidas - artigo 2068° C. C.
IX- Mas, em consequência da partilha da herança de, CC deixou de haver solidariedade entre os herdeiros para com os credores, respondendo cada qual apenas pela quota-parte nessa herança que lhe tenha cabido - artigos 51 3° e 2098°, n° 1, do C. C.
X- Quanto ao recorrente, esse valor corresponde a 2.334,09 €, pelo que é nesse valor que este herdeiro e réu responde para com o aqui autor, credor da herança (ponto 7. da matéria de facto provada).
Sucede, porém,
XI- Que o recorrente já pagou, no âmbito do processo n.º 114/11.1 TBPRG-B do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Peso da Régua, a quota-parte que lhe coube na herança (pontos 10. e 11. da matéria de facto provada), pelo que, no que respeita à sua responsabilidade no pagamento da dívida em mérito, deveria julgar-se a acção improcedente.
XII- Assim, a Douta Sentença recorrida violou, por incorrecta interpretação e aplicação da lei, entre outras, as normas jurídicas dos artigos 513° e 2098°, n.º 1 do Código Civil.
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O Autor, devidamente notificado, não apresentou contra-alegações.
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Após os vistos legais cumpre decidir.
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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Cód. Processo Civil.
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações, a questão a decidir traduz-se, na essência, em determinar se o Réu apelante pode ser, e em que medida, responsabilizado pelo pagamento da ajuizada dívida do seu falecido pai.
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III- FUNDAMENTOS DE FACTO
A matéria de facto relevante para a questão a decidir é a seguinte:
1. No dia 26 de Janeiro de 2009, CC e mulher, ora Ré, BB, celebraram um contrato de empréstimo no valor de € 15.000,00 com a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo.
2. Para garantia do cumprimento das obrigações por si assumidas, os referidos CC e BB subscreveram uma livrança, bem como o autor deu o seu aval à mesma.
3. Por a quantia mutuada não ter sido liquidada, a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo intentou ação executiva que correu termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Peso da Régua sob o n.º 114/11.1TBPRG,contra os devedores principais, CC e BB, e o avalista, ora autor.
4. No âmbito da ação executiva referida em 3., o autor na qualidade de avalista, procedeu ao pagamento da quantia global de € 21.592.20, envolvendo a quantia exequenda e custas judiciais, na data da instauração da presente ação.
5. No dia 28 de Abril de 2010 faleceu CC, no estado de casado com a Ré BB, deixando como únicos e universais herdeiros, para além da sua esposa, os dois filhos, DD e EE.
6. No dia 2 de Julho de 2010, através do procedimento simplificado de partilha e registos, os herdeiros de CC procederam à partilha dos bens deixados por aquele.
7. No âmbito da referida partilha os herdeiros estipularam/atribuíram os seguintes valores: aos bens o valor total de € 258.319,54; o valor de € 244.315,00 ao passivo; pelo que o valor líquido dos bens comuns do casal dissolvido foi de € 14004,54, sendo que a quota-parte de BB foi de € 9336,36 e a de cada um dos filhos de € 2334,09.
8. No âmbito da referida partilha todos os bens, no valor total de € 258.319,54 foram adjudicados ao herdeiro EE, assim como o valor do passivo no valor de € 244.315,00, tendo sido fixado o valor de tornas que teria de pagar a BB, no valor de € 9336,36 e a DD no valor de € 2334,09.
9. Corre termos sob o n.º 138/11.9TBPRG do Tribunal Judicial do Peso da Régua ação de anulação de partilha extrajudicial referida em 6. a 8..
10. No âmbito do processo n.º 114/11.1TBPRG-B do Tribunal Judicial do Peso da Régua, o Réu EE pagou à ali exequente Caixa Agrícola Mútuo do Douro, Corgo e Tâmega CRL a importância de € 2.334,09.
11. A ação executiva que corre termos sob o n.º 114/11.1TBPRG-B do Tribunal Judicial do Peso da Régua, foi declarada extinta no dia 07.01.2014.
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IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO
Como resulta evidenciado no relatório que antecede, através da propositura da presente ação declaratória visou o Autor exercer o direito de regresso que lhe assiste, por ter procedido, enquanto avalista, ao pagamento do montante aposto em livrança que havia sido subscrita por BB e CC (entretanto falecido, tendo-lhe sucedido como herdeiros legitimários, BB, sua mulher, e os seus filhos DD e EE), os quais, na data do respetivo vencimento, não procederam, enquanto obrigados cambiários principais, a esse pagamento.
Com efeito, dada a solidariedade imperfeita ou aparente que se verifica entre os subscritores da livrança e o seu avalista, tendo resultado demonstrado que o demandante procedeu a esse pagamento, por mor do disposto no art. 32º-III ex vi do art. 77º, ambos da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, ficou “sub-rogado nos direitos emergentes da letra [livrança] contra a pessoa a favor de quem foi dado o aval e contra os obrigados para com esta em virtude da letra [livrança]”, acrescentando o seu art. 47º, I e II que “os (…) avalistas de uma letra [livrança] são todos solidariamente responsáveis para com o portador”, sendo certo que “o portador ou qualquer dos signatários de uma letra [livrança] quando a tenha pago tem o direito de acionar todas estas pessoas, individualmente ou coletivamente, sem estar adstrito a observar a ordem por que elas se obrigaram”.
Na espécie não se questiona que os referidos obrigados principais, em sede de regresso, estão constituídos no dever de reembolsar o Autor do montante que este teve de pagar ao portador da livrança, que o acionou com base na responsabilidade cambiária que assumiu em resultado da prestação de aval; Aliás, a Ré BB nem sequer deduziu oposição à concreta pretensão de tutela jurisdicional que aquele contra ela aduziu na presente demanda.
A questão que se coloca no presente recurso e que importa dirimir prende-se antes em determinar se o Réu apelante poderá responder e em que termos por essa dívida enquanto herdeiro do falecido CC, seu pai.
O thema decidendum gira, portanto, em torno da problemática da responsabilidade dos herdeiros pelas dívidas do autor da sucessão.
É sabido, que a morte de uma pessoa física produz diversas consequências jurídicas que carecem de resolução, mormente se, como sucede in casu, no momento do decesso o património do de cuius for composto por dívidas, tornando-se mister nessa situação acautelar os direitos dos respetivos credores – o que tem lugar através do fenómeno sucessório.
Com efeito, em consonância com o que se dispõe no art. 2024º do Código Civil (diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem), através da sucessão, as situações jurídicas patrimoniais (ativas e passivas) que compunham a esfera jurídica do falecido no momento do seu óbito serão transmitidas aos seus sucessores, caso estes aceitem a herança.
O fenómeno sucessório assume, pois, uma função simultaneamente individual e coletiva – ao proteger a propriedade privada, ampara também os direitos dos credores do falecido oferecendo-lhes, tanto quanto possível, a mesma garantia patrimonial que tinham anteriormente. Este objetivo, tal como enfatiza OLIVEIRA ASCENSÃO In Direito Civil. Sucessões, 5ª edição, págs. 402 e seguinte. , é alcançado pelo “ingresso do herdeiro na posição jurídica do de cuius”, sendo a herança constituída pelas situações jurídicas de natureza patrimonial que se encontravam na titularidade do falecido no momento da morte e não devam extinguir-se por efeito desta (cfr. arts. 2024º e 2025º).
A herança identifica-se, por conseguinte, com a noção de património global (rectius, de património coletivo), já que entre nós se admite a sucessibilidade não apenas dos bens, mas das situações jurídicas patrimoniais ativas e passivas que compunham a esfera patrimonial do falecido aquando da sua morte.
No concernente às dívidas que compunham o património do de cuius aquando do seu decesso, enquanto situações jurídicas passivas, subsistem para além do seu falecimento, sendo normalmente integradas no objeto da herança.
Na verdade, tal como emerge do art. 2068º, são encargos da herança aqueles pelos quais a herança responde, sendo que entre os encargos aí previstos conta-se, no que ao caso importa, o pagamento das dívidas do autor da sucessão.
Todavia, o facto de nesse normativo se afirmar que “a herança responde” não significa que se atribua à herança a responsabilidade pelos seus encargos antes se devendo entender por herança os bens que fazem parte da mesma (cfr. arts. 2071º e 2097º).
A herança não pode ser responsável pelos seus próprios encargos na medida em que não é uma pessoa jurídica mas uma massa de situações jurídicas ativas e passivas. É certo que a herança (enquanto estiver jacente) goza de personalidade judiciária (cfr. art. 12º, al. a) do Cód. Processo Civil) mas desse facto não decorre a personalidade jurídica; Pelo contrário, daí se infere antes a sua natureza de património autónomo, destituído de personalidade jurídica.
Destarte, afigura-se-nos, pois, não se revelar correto falar-se de responsabilidade da herança já que o facto de se empregar a expressão “a herança responde” deve ser entendido como a intenção de fazer limitar a responsabilidade pelos encargos da herança aos bens herdados, ou seja, a de fazer da herança, conforme tem sido generalizadamente defendido, um património autónomo de afetação especial – ou seja, um “núcleo patrimonial que só responde e responde só ele por certas dívidas” Cfr., por todos, CAPELO DE SOUSA, Direito das Sucessões, Vol. II, 3ª edição renovada, págs. 73 e seguintes e GOMES DA SILVA, Herança e sucessão por morte. A sujeição do património do de cuius a um regime unitário no livro V do Código Civil, 2002, pág. 144 e seguintes, embora este último autor ressalte que na aceitação pura e simples se estabelece uma separação patrimonial imperfeita entre a herança e o património pessoal do herdeiro, uma vez que, por ausência de inventário, se afigura difícil demonstrar o ativo que compõe a herança e afastar as agressões dos credores hereditários ao patrimonial pessoal do herdeiro. .
Há, por conseguinte, que articular o art. 2068º com outras disposições legais (v.g. art. 2071º) para determinar quem são os verdadeiros responsáveis pelos encargos da herança já que a herança em si será apenas o limite dessa responsabilidade.
Ora, o nosso regime jurídico (cfr. art. 2071º) estabelece, como regra, o princípio da responsabilidade limitada do herdeiro pelos encargos da herança, quer tenha havido aceitação a benefício de inventário, quer a herança tenha sido aceite pura e simplesmente (cfr. art. 2052º), cingindo-se a sua responsabilidade às forças da herança, isto é, é sempre uma responsabilidade intra vires hereditatis, corroborando assim a afirmação acima feita de que estamos perante um património autónomo na medida em que, em princípio, só os bens da herança é que respondem pelos encargos hereditários.
No que tange propriamente à responsabilidade dos herdeiros, há que distinguir consoante a herança se encontre indivisa, ou seja, já aceite mas não estando ainda determinada a titularidade das concretas situações jurídicas que a compõem ou, pelo contrário, já esteja partilhada, através do preenchimento da quota de cada herdeiro.
No primeiro caso, diz-nos o art. 2097º que os bens da herança respondem coletivamente pela satisfação dos respetivos encargos e, na medida em que estamos perante um património coletivo, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros (art. 2091º, nº 1).
Após a partilha da herança, como salientam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA In Código Civil Anotado, Vol. VI, pág. 158. Ainda no mesmo sentido pode ver-se CAPELO DE SOUSA, ob. citada, vol. II, págs. 109 e seguintes.
, «o panorama jurídico da responsabilidade pelos encargos dela (nomeadamente quanto aos antigos débitos do de cuius) sofre uma alteração substancial, embora sem nunca esquecer a raiz da proveniência dessas dívidas. Enquanto a herança se manteve no estado de indivisão, porque nenhum dos herdeiros tinha ainda direitos sobre bens certos e determinados, todos os bens hereditários respondiam coletivamente; a partir da divisão da herança, passa a responder cada herdeiro, individualmente, pela satisfação de cada dívida da herança (ou de cada encargo dela), mas apenas em proporção da quota que lhe coube na partilha (dentro, por conseguinte das forças dos bens que especificamente recebeu da herança, nos termos resultantes do disposto no artº 2071º)».
Daí que, após a partilha, carece de sentido aludir a bens da herança, pois cada um desses bens entrou na esfera jurídica patrimonial do herdeiro a quem coube, perdendo qualquer ligação à herança que, enquanto património autónomo, deixou de ter existência jurídica.
É assim lícito concluir que, consumada a partilha e integrados os bens herdados nos patrimónios de cada um dos herdeiros a quem foram adjudicados, deixa de se poder falar em bens da herança, deixando outrossim de haver solidariedade entre os herdeiros para com os credores daquela, o que significa, pois, que os credores da herança apenas passam a ter a faculdade de exigir dos herdeiros a quota-parte que a cada um deles tenha cabido (cfr. art. 2098º, nº 1).
Aqui chegados, a questão que se coloca é a de saber se o apelante pode ver excluída a sua responsabilidade pelo pagamento da ajuizada dívida em resultado de ter procedido à liquidação de dívida da herança em montante correspondente à quota-parte que recebeu na herança de seu falecido pai.
É exatamente neste ponto que se situa o âmago do objeto do presente recurso.
Foi a esta questão que a sentença recorrida respondeu negativamente e é primordialmente em relação a tal resposta negativa que se reporta, em termos úteis, a divergência recursiva.
Com efeito, a este propósito, escreveu-se na sentença (citando o acórdão do STJ de de31.01.2006 - processo nº 05A3992), que “enquanto que BB será condenada a pagar a dívida, porquanto a mesma assume-se não só como herdeira de CC, mas também como devedora principal, já os herdeiros daquele apenas poderão ser condenados a reconhecer tal dívida e a verem satisfeitos pelos bens da herança e a verem satisfeitos pelos bens da herança os créditos dos credores do de cujus”. Na decorrência dessa argumentação, no dispositivo desse ato decisório, foi julgada parcialmente procedente a ação, condenando, para além do mais, “BB, DD e EE enquanto herdeiros de CC, a reconhecer a existência da dívida ao autor AA no montante de € 21.592,20 (…), acrescida dos juros de mora, à taxa legal, desde a citação, até integral e efetivo pagamento; e a ver satisfeito pelos bens da herança do de cujus CC o crédito do aqui autor”.
No seguimento das considerações supra expendidas, o raciocínio argumentativo utlizado na decisão sob censura somente faria sentido se estivéssemos em presença de uma herança indivisa e não partilhada. Isso mesmo resulta do acórdão do STJ que o tribunal a quo convocou em arrimo da posição que veio a sufragar, já que, como se refere nesse aresto (na esteira, aliás, do entendimento preconizado por MARTINS DA FONSECA A herança indivisa – sua natureza jurídica. Responsabilidade dos herdeiros pelas dívidas da herança, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 46º, pág. 582, o qual, mais adiante (pág. 586), acrescenta que numa demanda com essas caraterísticas os herdeiros “são partes legítimas na ação em que se pretenda que, pelas forças da herança, se paguem as dívidas do respetivo autor, apenas porque a herança não tem personalidade judiciária. Mas responsabilidade não têm, nem podem ser condenados e, muito menos, solidariamente”.), enquanto a herança estiver indivisa “os herdeiros serão demandados e condenados, mas não a pagar os créditos, tão-somente a reconhecerem a sua existência ou a verem satisfeitos pelos bens da herança os créditos dos credores do de cuius”.
Ora, em consonância com o tecido factual apurado (e que não mereceu qualquer reação por banda do autor), ficou demonstrado que:
. No dia 2 de Julho de 2010, através do procedimento simplificado de partilha e registos, os herdeiros de CC procederam à partilha dos bens deixados por aquele, tendo estipulado os seguintes valores: aos bens o valor total de € 258.319,54; o valor de € 244.315,00 ao passivo; pelo que o valor líquido dos bens comuns do casal dissolvido foi de € 14004,54, sendo que a quota-parte de Júlia Rocha foi de € 9336,36 (aí se incluindo a respetiva meação) e a quota-parte de cada um dos filhos cifrou-se em € 2334,09 [(€ 258.319,54 - € 244.315,0) : 2 : 3];
. No âmbito da referida partilha todos os bens, no valor total de € 258.319,54 foram adjudicados ao herdeiro EE, assim como o valor do passivo no valor de € 244.315,00, tendo sido fixado o valor de tornas que teria de pagar a BB, no valor de € 9336,36 e a DD no valor de € 2334,09;
. No âmbito do processo n.º 114/11.1TBPRG-B do Tribunal Judicial do Peso da Régua, EE pagou à ali exequente Caixa Agrícola Mútuo do Douro, Corgo e Tâmega CRL a importância de € 2.334,09.
Daí que, encontrando-se partilhada a herança de AA (facto ocorrido em momento anterior à própria propositura da presente ação declarativa), os respetivos herdeiros só responderão pelas dívidas do de cuius na medida da quota-parte que lhes tenha cabido nessa herança, sendo certo que, como tem sido assinalado pela jurisprudência pátria Cfr., neste sentido, acórdão da Relação de Lisboa de 12.12.2006, relatado por Graça Amaral (processo nº 6646/2006-7), acórdãos da Relação de Coimbra de 12.09.2006, relatado por Artur Dias (processo nº 365-b/1998.C1) e de 9.09.2008, relatado por Jaime Ferreira (processo nº 164-G/1995.c1) e acórdão da Relação do Porto de 28.10.2010, relatado por Catarina Gonçalves (processo nº 81/09.1TBCHV.P1), todos disponíveis em www.dgsi.pt. , a medida da responsabilidade de cada um deles determina-se pela proporção da quota que lhes tenha cabido na herança e não por qualquer outro critério, designadamente pelo valor dos bens que lhes tenham sido adjudicados.
Deste modo, estando demonstrado que a quota-parte do apelante se cifrou em € 2.334,09, será esse o valor que constitui a medida da sua responsabilidade para com os credores da herança.
Como assim, demonstrado que está igualmente que o apelante procedeu ao pagamento de dívida da herança em montante correspondente ao seu quinhão hereditário, ficou, pois, desonerado do pagamento de outros encargos, mostrando-se, nessa medida, esgotada a sua responsabilidade enquanto herdeiro do devedor originário.
Refira-se, por último, que, contrariamente ao entendimento acolhido na sentença recorrida, não se antolha fundamento válido (sobretudo em homenagem ao princípio da economia processual, na vertente de que cada processo deve resolver o máximo possível de litígios Cfr., para maior desenvolvimento, MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, pág.388, sendo de ressaltar que a recente reforma da lei adjetiva veio reforçar esse princípio, tal como emerge, designadamente, dos arts. 2º, nº 1, 6º, nº 1, 130º e 547º do Cód. Processo Civil.
) para relegar o conhecimento dessa questão para a ação executiva, onde, naturalmente, o ora apelante poderia invocar a mesma materialidade em sede de enxerto declaratório de embargos, estribando-se no art. 744º do Cód. Processo Civil.
A presente apelação terá, pois, de proceder.
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SÍNTESE CONCLUSIVA
I- A herança antes de partilhada constitui um património autónomo de afetação especial que, enquanto tal, só responde e responde só ele pelo pagamento das respetivas dívidas, nos termos do art. 2068º do Código Civil.
II- Realizada que seja a partilha, os credores da herança apenas passam a ter a faculdade de exigir aos herdeiros a quota-parte que a cada um deles tenha cabido nessa herança.
III – Se após a partilha o herdeiro proceder ao pagamento de dívida da herança em montante correspondente ao seu quinhão hereditário, fica desonerado do pagamento de outros encargos desta.
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V- DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, em consequência do que se revoga parcialmente a sentença recorrida, julgando-se extinta a responsabilidade do Réu apelante no pagamento da ajuizada dívida.
Custas do recurso pelo Autor Com vem sendo entendido, em face do princípio da causalidade que rege em matéria de custas cíveis (art. 527º do Cód. Processo Civil), no recurso de apelação, pouco importa que o recorrido não tenha acompanhado o recurso, isto é, não tenha sustentado a legalidade da decisão impugnada pelo recorrente: desde que tenha a posição de parte vencida, há-de suportar as custas do recurso..
Notifique.
Guimarães, 8.10.2015
Dr. Miguel Baldaia Morais
Dr. Jorge Martins Teixeira
Dr. Jorge Miguel Seabra |