Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
98/10.3PTBRG.G1
Relator: LÍGIA MOREIRA
Descritores: CARTA DE CONDUÇÃO
ERRO SOBRE A ILICITUDE
ERRO SOBRE AS CIRCUNSTÂNCIAS DE FACTO
CRIME
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/09/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO PROCEDENTE
Sumário: I Quando o arguido conhece o circunstancialismo fáctico em que actua, mas não representa o carácter ilícito da sua conduta, incorre em erro sobre a valoração, configurando-se “erro sobre a ilicitude” e caso tal erro lhe seja censurável, deve ser punido nos termos do nº 2 do art. 17º do C. Penal, com a pena aplicável ao crime doloso respectivo, a qual pode ser especialmente atenuada.
II- Quando o arguido actua com conhecimento do tipo de ilícito, mas no caso concreto em defeito do conhecimento de circunstância(s) desse tipo de ilícito, incorre em erro intelectual que afasta o seu dolo, configurando-se “erro sobre circunstância(s) de facto do tipo” e caso tal erro lhe seja censurável, só pode ser punido se o crime em causa for punível a título de negligência, nos termos conjugados do art. 16 nº 1,2 e 3 e 13 do C. Penal.
III- Apurado nos autos que o arguido conduziu com a carta de condução já caducada, com conhecimento de que assim conduzir constituiria crime, porém na convicção de que a sua carta ainda se mantinha válida, crente de que podia conduzir e não estava a praticar crime, tem-se que actuou em defeito de conhecimento acerca da sua real situação, ainda com consciência ético jurídica recta, numa atitude de fidelidade ao Direito, só que frustrada por circunstância que o fez errar, configurando-se “erro sobre circunstância de facto do tipo de crime”, e não, erro sobre a ilicitude como considerado no Tribunal a quo.
IV- Impendendo sobre o arguido a obrigação de atentar na data da validade da carta de condução, incorre em “erro censurável”, mas não sendo o crime p. no art. 3 nº 2 do Dl 2/98 de 31/1 expressamente previsto a título de negligência, o arguido não é punido.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência, os Juízes na Secção Criminal deste Tribunal:

No processo sumário nº 98/10.3PTBRG no 4º Juízo Criminal de Braga o arguido JOSÉ G... foi condenado pela prática, como autor material, de crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo art. 3 nº 2 do Dl nº 2/98 de 3/1, na pena de 60 dias de multa à razão diária de 7,00 Eur (total de 420,00 Eur).
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Inconformado com a sentença, dela recorreu, apresentando as seguintes conclusões:
É verdade que conduziu nas circunstâncias de tempo e lugar provadas, tendo a carta de condução caducada a 30/10/06, mas pelo Tribunal foi dado como não-provado que soubesse que conduzia o veículo sem ser portador de título válido que o habilitasse à condução e que assim quisesse agir, com consciência da que a sua conduta era proibida e punida por Lei.
A Mª Juíza considerou no caso, erro sobre a ilicitude censurável, mas não é censurável. Na DGV disseram-lhe que só deveria proceder à sua renovação aos 65 anos de idade, tem a 4ª classe e o pequeno cartão de plástico não é fácil de interpretar em todas as letras, números e siglas, pelo que não omitiu qualquer dever de cuidado ou de informação que sobre si impendia. O Tribunal violou o art. 17 nº 1 do CPenal.
Ainda que assim não fosse, a conduta do arguido pode reconduzir-se a erro sobre as circunstâncias de facto que tem por efeito a exclusão do dolo do tipo cf. art. 16 nº 1 do CPenal. Apesar de ressalvada a punibilidade a título de negligência, cf. art. 16 nº 3 do CPenal, quando censurável aquele erro, a verdade é que no caso em apreço, não está aquela prevista na lei, o que implica a absolvição do arguido,
Conclui pedindo seja considerada a existência de erro na qualificação juridico-penal da factualidade dada por provada e consequentemente, ser qualificado como “não censurável” o erro sobre a ilicitude cf. art. 17 nº 1 do CPenal ou, caso assim não se entenda, ser subsumida a conduta, ao erro sobre as circunstâncias do facto nos termos do art. 16 nº 1 do CPenal, e sempre ser absolvido.
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Quer o Ministério Público junto do Tribunal recorrido, quer a Exma Sra Procuradora Geral Adjunta nesta Relação, pugnaram pela improcedência do recurso.
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Foi cumprido o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.
Colhidos os Vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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O âmbito do presente recurso está delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. Assim no caso, importa apreciar da qualificação jurídica dos factos; do erro sobre a ilicitude e do erro sobre as circunstâncias de facto.

DA FUNDAMENTAÇÃO

DOS FACTOS PROVADOS

Em 13 de Dezembro de 2010, pelas 16 horas, o arguido conduziu o veículo ligeiro de passageiros, Fiat Punto, de matrícula 49-40-..., na Rua Sá de Miranda em Braga, sem que estivesse legalmente habilitado à condução do veículo na via pública.
Fora titular da carta de condução -P321027- mas com validade terminada em 30 de Outubro de 2006.
O arguido tal não sabia. Não sabia que não estava habilitado a conduzir e que ao fazê-lo incorria na prática de crime.
Trabalha como guarda-nocturno, em posto de abastecimento de combustíveis a veículos, auferindo cerca de 550,00 Eur/m.
Vive em casa própria, com a esposa, reformada e uma filha menor, estudante.
Tem a 4ª classe.
Não tem antecedentes criminais.

DOS FACTOS NÃO PROVADOS

Que o arguido soubesse que não podia conduzir, que a sua conduta era proibida por lei.

DA CONVICÇÃO

O Tribunal baseou-se no crc, na livre confissão da factualidade objectiva pelo arguido e nas declarações do mesmo quanto à sua situação sócio-económica e quanto ao desconhecimento de que não se encontrava legalmente habilitado a conduzir, tendo sido reputado de genuíno e no depoimento de Manuel Pereira, agente da PSP que operou a fiscalização em causa.

FUNDAMENTAÇÃO

O arguido recorrente, condenado por crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo art. 3 nº 2 do DL nº 2/98 de 3/1 pretende ser absolvido, alegando, em suma, que ficou provado que não sabia que não estava habilitado a conduzir e que ao fazê-lo incorria na prática de crime e assim, actuou, ou em erro sobre a ilicitude não-censurável ou em erro sobre as circunstâncias de facto.
Assim, cumpre aqui apreciar se o arguido:
---actuou em erro sobre a ilicitude da sua conduta.
---actuou em erro sobre circunstância de facto.
---se o erro em causa é censurável.
---se, consequentemente, deve manter-se a sua condenação ou não.
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O erro sobre a ilicitude foi e continua a ser um dos temas mais difíceis da dogmática penal, conhecendo-se ao longo de um século três orientações principais: -a teoria do dolo (Metzka, Eduardo Correia), a teoria da culpa (Welzel) e a teoria de Figueiredo Dias que faz uma aproximação entre as duas, sendo do dolo à da culpa.
No erro sobre a ilicitude, o agente conhece o circunstancialismo fáctico em que actua mas não representa o carácter ilícito da sua conduta. Pratica um acto ilícito, convencido de que é lícito.
No Estado de Direito, numa perspectiva minimalista, o Direito Penal tende a reflectir as valorações ético-sociais, pelo que se parte da ideia de que um agente que haja interiorizado por completo a consciência axiológica social, ao representar a factualidade típica, convocará imediatamente o carácter ilícito da sua conduta. O erro sobre a ilicitude representa assim, uma desconformidade entre a consciência axiológica do agente e a consciência axiológica da comunidade. Ele traduz a pouca abertura do agente à axiologia comunitária, uma deficiente apreensão dos sentidos, representações e valorações da comunidade em que se insere. É um erro de valoração.
Segundo Eduardo Correia (teoria do dolo), a indiferença do agente, o seu não conhecimento da ilicitude do acto revelaria uma “negligência” assinalável, não enquanto modalidade de culpa, mas enquanto modalidade de culpa na formação da personalidade. Negligência não na prática do acto, antes “na formação da personalidade”, assim punível em todos os crimes, no quadro da moldura dolosa especialmente atenuada.
Na teoria da culpa, construção finalista (Welzel), a situação de erro sobre a ilicitude nunca excluía o dolo. Se o agente conhece e quer a factualidade típica, age dolosamente.
Erro sobre a ilicitude, se censurável, era na primeira teoria, punido a título de negligência e na segunda teoria, punido a título de dolo. Se não censurável, sempre não punido.
Para Figueiredo Dias, se o erro sobre a ilicitude é censurável, deverá ser punido a título de dolo, ainda que este dolo se reporte á personalidade do agente e não ao seu acto. È uma doutrina conciliatória que parte dos pressupostos da teoria do dolo mas chega ás soluções da teoria da culpa.
Se o erro for não censurável, exclui a culpa e por isso não será punido.
No nº 2 do art. 17 do CPenal, o legislador usou boa técnico legislativa, nele permitindo a leitura de todas as orientações referidas.
Dispõe o art. 17 do CPenal, no seu nº 1: “Age sem culpa quem actuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável” e no nº 2 “Se o erro lhe for censurável, o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respectivo, a qual pode ser especialmente atenuada”.
O erro sobre as circunstâncias de facto é um erro intelectual que se situa no plano do puro conhecimento. Traduz um defeito do conhecimento acerca dos elementos da hipótese constante do tipo.
Reporta-se a uma situação em que o agente não pretende praticar um crime, mas sim um acto lícito, mas actua negligentemente.
Faltando o elemento intelectual não existe dolo. Então o agente será punido a titulo de negligência.
Dispõe o art. 16 do CPenal, no seu nº 1: “O erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime, ou sobre proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto, exclui o dolo, no nº 2 “O preceituado no número anterior abrange o erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto ou a culpa do agente” e no nº 3 “Fica ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais”.
A negligência também é uma modalidade de culpa que se traduz na violação de um dever objectivo de cuidado. Nem toda a lesão de bens juridicos não dolosa é censurável enquanto negligente ----terá de existir a violação de um tal dever. Estes deveres objectivos de cuidado são uma espécie de ónus que se ligam à convivência social e relacionam-se com a necessidade de manter uma tensão psicológica que tende a evitar condutas que possam lesar o bem jurídico. Assim nos termos do nº 3 o erro sobre as circunstâncias de facto só será punido a título de negligência quando seja censurável, isto é quando fique a dever-se a descuido ou leviandade do agente no conhecimento da situação. O Juiz tem de fazer esta avaliação em concreto.
Como o Direito Penal é caracterizado pela fragmentaridade –tutela apenas os bens jurídicos fundamentais e mesmo aí, nos aspectos e violações mais graves (Cf. Faria da Costa) a tentativa e a negligência só relevam nos casos mais graves. Assim, ainda que a negligência seja censurável, a punição a esse título é, nos termos do art. 13 do CPenal, excepcional “Só é punível o facto praticado com dolo, ou nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”
O nº 3 do art. 16 deve pois, ser conjugado com o art. 13. A regra é que todos os crimes são puníveis a título de dolo. Já a título de negligência, será necessário que exista uma previsão expressa do legislador.
Daqui decorre que o erro sobre as circunstancias de facto, na medida em que afasta o elemento intelectual, e com isso o dolo, se traduza grande parte das vezes na total impunidade do agente.
Em suma, o crime praticado estando o agente em erro sobre as circunstâncias de facto só é punível a titulo de negligência, quando cumulativamente: 1-é censurável (se deva á leviandade, descuido do agente, haja violação de um dever objectivo de cuidado) 2- se trate de crime para o qual está prevista a punição a tal título (req. formal do art. 13).
Tudo isto ensina, além do mais, Almeida Costa in Lições de Direito Penal FDUP 2000/01.
O erro intelectual exclui o dolo, e tal erro existe quando falta ao agente ao nível da sua consciência psicológica, o conhecimento de um qualquer elemento que seja necessário para a que a sua consciência moral esteja na posse de todos os dados necessários para se colocar e resolver o problema da ilicitude –cf. Parecer do Prof. Figueiredo Dias na RLJ 109, pág. 136 e segs referido in CP Maia Gonçalves 15 ed 2002.
O erro sobre a existência de um estado de coisas que, se existente, excluiria o dolo, podendo embora permitir a formulação de um juízo de censura por negligência, afasta a punição por crimes que seja essencialmente dolosos (ex. introdução em local vedado ao público, dano, usurpação de coisa móvel) -cf. Ac. STJ de 30/1/90 proc. 40.368/3ª.
No art. 16 nº 1 a falta de conhecimento deve ser imputada a uma falta de informação ou esclarecimento, assim censurável e conforma a tipo de censura por negligência.
No art. 17 estamos perante uma deficiência da própria consciência ético jurídica do agente que não lhe permite apreender correctamente os valores jurídico penais e por isso, quando censurável, conforma o especifico tipo de censura do dolo –cf. Fig Dias “Pressupostos da punição” pág. 73 in Simas Santos Leal Henriques In CPenal 2ed pág. 204.
Enquanto no erro sobre as circunstâncias de facto, faltando ao agente o conhecimento de circunstâncias tipicamente relevantes, a culpa e a censura fundam-se em falta de conhecimento, ao nível da consciência psicológica ou intencional, conhecimento indispensável para orientar o agente correctamente para o problema da ilicitude, no erro sobre a ilicitude, havendo conhecimento de todas as circunstâncias típicas, mas faltando a consciência da ilicitude, a culpa e a censura fundam-se em falta da própria consciência ética, na deficiente qualidade para apreender os valores que ao direito penal cumpre proteger e assim, em uma desconformidade da personalidade do agente com a suposta pela ordem jurídica.
Há censurabilidade de erro sobre a ilicitude quando o agente não actuou com o cuidado que uma pessoa portadora duma recta consciência ético-juridica teria, informando-se a esclarecendo-se convenientemente sobre a proibição legal.
O primeiro consiste num erro de conhecimento, intelectual. O segundo, num erro de valoração, erro moral -cf. Ac. TRC de 19/10/83 CJ IV 1983.
Ensina Prof. Eduardo Correia in Direito Criminal Almedina 1971 pág.s 389 e segs que o elemento intelectual do dolo se traduz na representação, por parte do agente, de todos aqueles elementos de facto que formam o tipo legal de crime e o erro sobre um elemento constitutivo de um tipo legal de crime exclui o dolo. Refere a título de exemplos que não actua dolosamente o agente que mata um homem à distância na convicção de que se trata de uma peça de caça, ou o agente que faz uma mulher grávida ingerir um abortivo, na convicção de que se trata de açúcar.
Dada relevância ao erro sobre a factualidade típica, há a respectiva exclusão do dolo e com ela a punição do agente quando a lei não prevê o crime a título de negligência pois faltando a representação do facto, a correspondente representação do desvalor do facto e da ameaça legal não aparece aos olhos do agente e portanto a conclusão de que ele actuou com dolo não tem um apoio.
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O Tribunal a quo, na sua sentença, fixou como provado que o arguido fora titular de carta de condução, mas com validade terminada em 30 de Outubro de 2006.
Tal não sabia. Não sabia que não estava habilitado a conduzir e que ao fazê-lo incorria na prática de crime.
Depois considerou que o arguido não sabia, mas devia saber. Que o erro se afigura censurável desde logo, atendendo à data de validade exibida no próprio título. A carta tinha lá no verso, 2006, o arguido deveria ter estado atento e verificar isso e a partir de 2006 ter regularizado a situação.
Embora não tenha referido expressamente qual o tipo de erro, porque o considerou erro censurável e logo passou a aplicar uma condenação por pena especialmente atenuada como previsto no art. 17 nº 1 e 2 do CPenal, conclui-se que configurou o erro como erro sobre a ilicitude.
Mal andou porém, pois no caso importa configurar erro sobre as circunstâncias de facto.
Provado que o arguido não sabia que a sua carta caducara e que conduzia sem habilitação legal e não-provado que soubesse que não podia conduzir, que a sua conduta era proibida por lei, temos “como que no reverso da moeda” que o arguido conduziu na convicção de que tinha a sua carta de condução válida, crente de que podia conduzir e não estava a praticar um crime, sendo que tinha conhecimento de que, caso não tivesse uma carta de condução válida, não poderia conduzir e estaria a praticar um crime. Assim é até porque resulta dos autos que foi o próprio arguido quem chamou a autoridade policial que o fiscalizou e que o arguido disse que quando teve conhecimento de que afinal a sua carta estava caducada, sentiu o mundo a cair-lhe em cima.
Neste concreto quadro, não se pode concluir que o agente haja conhecido o circunstancialismo fáctico em que actuou sem representar o carácter ilícito da sua conduta, assim incorrendo em erro de valoração, com falta de consciência da ilicitude devida a uma qualidade desvaliosa e jurídico-penalmente relevante da sua personalidade.
Antes se deve concluir que actuou em defeito de conhecimento acerca da sua real situação de condutor com carta caducada logo inválida, conhecendo que conduzir sem carta válida constituía um crime, assim incorrendo em erro intelectual, faltando-lhe, ao nível da sua consciência psicológica, o conhecimento de um elemento (caducidade da carta) que era necessário para a que a sua consciência moral estivesse na posse de todos os dados necessários para se colocar e resolver o problema da ilicitude, para representar da ilicitude do que fazia. Agiu com consciência ético jurídica recta, uma atitude geral de fidelidade ao Direito, só que frustrada por circunstâncias especiais que o fizeram errar. Orientou-se em circunstâncias supostas, e que a verificarem-se, confeririam licitude à sua conduta mas acabou por erro, por preencher pressupostos objectivos de um tipo de crime.
Aqui assim configurado um erro sobre as circunstâncias de facto (e não um erro sobre a ilicitude como aconteceu no Tribunal a quo), importa porém, aqui confirmar o juízo de censurabilidade sobre o erro.
O desconhecimento com que o arguido actua, deve-se a negligência sua, por não ter estado atento na verificação da data de validade da carta, necessidade de a ter já renovado. Não sabia que estava caducada, devia sabê-lo. Era-lhe exigível que soubesse pois as cartas de condução sempre referem de forma clara e inequívoca (e a sua, referia no verso), a sua data de validade. Tal facto é do conhecimento geral. Assim como é do conhecimento geral que existem idades pré-determinadas de obrigatoriedade de renovação de cartas de condução e que à medida que a idade avança (sobretudo a partir dos 50 e 60 anos de idade) menores são os períodos de validade dos documentos que habilitam a conduzir, tendo os titulares, que são os interessados em exercer a condução, que se manter atentos, procurar e receber informação, para se dirigirem aos serviços competentes para tratar da emissão/renovação dos mesmos, sendo certo que até são serviços que se pagam. Tendo “a antiga” 4ª classe, o arguido saberá ler, designadamente datas, como a data de validade da sua carta de condução e trabalhando em bomba de abastecimento de combustíveis de veículos, contactará regularmente com terceiros (patrão, colegas, fornecedores, condutores e outros cidadãos) necessariamente com a possibilidade de se manter informado e alerta quanto a assuntos relativos a veículos e condução dos mesmos.
Assim, no caso, configura-se uma ignorância, não da Lei (no sentido de que a condução com carta caducada, logo sem habilitação válida, é crime, pois o arguido tal conhecia), antes ignorância de que a carta já caducara, ignorância censurável ao arguido, na medida em que sobre si impendia obrigação de tal conhecer e até de daí tirar consequências como revalidar a carta caso tivesse interesse em continuar a conduzir.
Se a ignorância da Lei nunca pode ter eficácia excluídora da culpa, já supra se referiu que uma vez dada relevância ao erro sobre a factualidade típica, há a respectiva exclusão do dolo e pode haver a exclusão da punição do agente, quando a lei não preveja o crime a título de negligência. Faltando a representação do facto, a correspondente representação do desvalor do facto e da ameaça legal não aparece aos olhos do agente e portanto a conclusão de que ele actuou com dolo não tem um apoio.
No caso, a ignorância do arguido da ilicitude do facto que cometeu porque agiu em erro sobre um estado de coisas que, se existente, excluíria o dolo (habilitação com carta ainda válida) ---embora permita a formulação de um juízo de censura por negligência, já supra feito---, afasta a punição por crime doloso e não sendo o crime previsto no art. 3 nº 2 do Dl nº 2/98 de 3/1 expressamente previsto a título de negligência, o arguido não é punido -cf. conjugação dos arts. 16 nº 1 e 3 e 13 do CPenal já também supra analisados.
Uma vez inequivocamente provado nos autos que o arguido conduziu sem ter conhecimento da caducidade da sua carta de condução e consequente sua inabilitação para conduzir, a exclusão da sua punição não se configura intoleravelmente chocante.

DO DISPOSITIVO

Atento o exposto, os Juízes deste Tribunal acordam pela procedência do recurso interposto pelo arguido, absolvendo-o do crime imputado.

Sem custas.

Guimarães 9 de Janeiro de 2012