Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1964/14.2T8GMR.G1
Relator: SANDRA MELO
Descritores: DANO BIOLÓGICO
PERDA DA CAPACIDADE AQUISITIVA
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS MORAIS
DUPLICAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/04/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:

1. O dano biológico traduz-se na afetação da capacidade funcional de uma pessoa, afirmada pela atribuição de um determinado grau de incapacidade físico-psíquica.

2. O dano biológico que implica esforços acrescidos para o exercício da profissão, mas não impede o lesado de exercer a sua atividade habitual, tem consequências na diminuição da rentabilidade do lesado no trabalho que exerce e tem necessariamente efeitos patrimoniais: seja na possibilidade deste lograr a obter outras fontes de rendimento, na reconversão profissional futura ou na progressão na carreira. Deve, pois, ser indemnizado no âmbito dos danos patrimoniais causados pelo evento.

3. Esta violação à integridade física e psíquica da pessoa envolve sempre uma vertente não patrimonial, pondo em causa bens pessoais imateriais, de personalidade, aliás com proteção constitucional, causadoras de sofrimento para o lesado, que também deve ser compensada.

4. Não se verifica duplicação da valoração do mesmo facto, quando se indemniza como dano patrimonial as consequências da afetação da capacidade para o trabalho causada por determinada lesão biológica e se compensa como dano não patrimonial o sofrimento consequência desse dano na pessoa do lesado.

5. Aos danos corporais contrapõem-se os danos materiais. Estes são os estragos provocados pelo acidente nas coisas do lesado.

6. O artigo 14º n.º 2 alínea e) do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto exclui da garantia do seguro obrigatório quaisquer danos materiais causados ao cônjuge do condutor do veículo responsável pelo acidente.

Decisão Texto Integral:
I. Relatório

Nestes autos de ação declarativa sob a forma de processo comum, figura como Autora e ora recorrente subordinada: M. F., casada, residente na rua de …, Viana do Castelo, contribuinte n.º …, beneficiária da Segurança Social n.º … figura como Ré e ora recorrente independente: COMPANHIA DE SEGUROS A, S. A., pessoa coletiva n.º …, com sede na Av. da …, Lisboa.
A Autora, na petição inicial, formulou os seguintes pedidos:
- que se condene a Ré a pagar á Autora a indemnização global líquida de € 23.352,48, acrescida de juros de mora vincendos, contados à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da propositura da ação até efetivo pagamento;
- que se condene a Ré a pagar á Autora a indemnização que vier a ser fixada ulteriormente ou quantificada em incidente de liquidação.
Para fundar a sua pretensão, alegou, em síntese, que ocorreu acidente de viação que causou lesões corporais várias na pessoa da Autora e sequelas e sofrimentos vários que se traduzem em danos de natureza não patrimonial, que devem computar-se em valor não inferior a 10.000,00 €.
Resultaram também para a Autora perda de rendimentos do seu trabalho, impossibilidade de realizar tarefas domésticas diárias, diminuição do seu rendimento de trabalho e ainda a necessidade de auxílio de colegas de trabalho para a execução de tarefas que deixou de ser capaz de executar, apresentando uma incapacidade parcial permanente de 10 pontos no mínimo e a necessidade de se submeter a mais tratamentos.
Invocou ainda vários danos patrimoniais.
A Ré apresentou contestação, impugnando os danos invocados pela Autora e afirmando que estão excluídos do âmbito da garantia do seguro os danos materiais sofridos por esta, porquanto esta era transportada no momento do acidente pelo seu marido, que conduzia o veículo responsável pelo acidente, sendo de aplicar a exceção prevista no artigo 14º nº 2 alínea e) do DL 291/2007.
Conclui pedindo que se julgue a ação de acordo com a prova que venha a ser produzida.

Elaborou-se despacho saneador, procedeu-se à produção de prova, realizou-se a audiência final e proferiu-se sentença.
Por esta, julgou-se a ação parcialmente procedente e condenou-se a Ré a pagar à Autora a quantia de € 6.908,50 (seis mil novecentos e oito euros e cinquenta cêntimos), acrescida de juros de mora legais que se vencerem, às taxas legal e supletivamente estabelecidas, a contar desde a citação da sentença até efetivo e integral pagamento.
Daquele montante, foi atribuído o valor de 3.000,00 € para a compensação da incapacidade de que a Autora passou a sofrer, que implica “esforços suplementares e que face a estes implicam uma repercussão direta sobre a capacidade de ganho da Autora em termos de autonomia e independência e atividades acrescidas (exercidas entre o trabalho e a habitação)”. Foi atribuído também o valor de 3.000,00 € para a compensação de danos não patrimoniais como as “dores, tratamentos, incapacidade parcial e permanente”. O restante valor da indemnização foi imputado a despesas medicamentosas, um par de óculos (este fixado no valor de 500,00 €) e perdas de vencimento durante o período de défice funcional temporário.

A Ré apelou,
concluindo e alegando, em síntese:

a) deve ser absolvida da parte do pedido correspondente ao valor de um par de óculos, fixado em 500,00 €, porquanto este dano, por ser material, está excluído da garantia do seguro nos termos do artigo 14º nº 2 alínea e) do DL 291/2007;
b) visto que se não demonstrou que a A sofrerá no futuro qualquer perda de rendimentos, mas sim que pode exercer a mesma profissão, ainda que com esforços acrescidos, não é previsível qualquer perda patrimonial futura; por não existir qualquer dano patrimonial futuro deve ser revogada a douta sentença na parte em que condenou a Ré a pagar à A a esse título a quantia de 3.000,00€, afastando-se indemnização do dano biológico na vertente patrimonial, mas mantendo-se a indemnização deste dano biológico na vertente não patrimonial, no montante fixado na sentença (também 3.000,00 €), caso não seja atribuída qualquer outra indemnização fundada no dano biológico.
c) caso assim não se entenda, a verba atribuída a título de indemnização autónoma pelo dano biológico sofrido pela A deve ser reduzida para o valor de 1.500,00€, valor que se alcança recorrendo, como auxiliar da equidade, aos seguintes critérios coadjuvantes: a tabelas financeiras de cálculo de danos patrimoniais que se repercutam no futuro, a valores atribuídos noutras decisões judiciais em casos análogos, a critérios estabelecidos nas portarias 377/2008 e 679/2009
d) Caso seja mantida a decisão na parte em que atribuiu uma indemnização autónoma por dano biológico (e ainda que esta venha a ser reduzida), a compensação arbitrada pelos danos não patrimoniais deve ser reduzida para 1.500,00€, tendo em conta não pode ser indemnizada duplamente pelo mesmo dano, tendo em conta que as lesões decorrentes do acidente consistiram apenas em traumatismo torácico e abdominal, sem internamento em Hospital, nem em instituição médica, com alta no dia da admissão (pouco mais de quatro horas depois de ter dado entrada na urgência), que a Autora não foi sujeita a qualquer intervenção cirúrgica, tendo o processo de cura passado, apenas, por repouso e medicação analgésica, a consolidação médico-legal foi obtida 41 dias após o acidente, o quantum doloris é de 3/7 e não existe dano estético e as sequelas de que a A ficou portador implicam, apenas, dores intermitentes na coluna cervical, com reduzido compromisso da mobilidade e sem lesões documentadas.

A Autora contra-alegou e interpôs recurso subordinado.
Concluiu e alegou, em síntese:

Deve ser fixada, em via de recurso, para ressarcimento do dano biológico, em virtude da incapacidade de que passou a padecer, quantia não inferior a 10.000,00 €, visto que o montante fixado é insuficiente.
Também deve ser fixada, para a compensação dos danos não patrimoniais sofridos, quantia não inferior a € 10.000,00, €, visto que o montante fixado é insuficiente.

Observaram-se os vistos.

II. Questões a decidir

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso e os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.
Da mesma forma, não está o tribunal ad quem obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, desde que prejudicadas pela solução dada ao litígio.

Neste caso, importa analisar para decidir:

1. se o valor dos óculos é um dano material e se está da excluído da garantia do seguro;
2. da valoração bipartida do dano biológico como dano patrimonial e como dano não patrimonial;
3. do valor indemnizatório a atribuir a esse dano e aos danos morais, com os limites impostos pelos recorrentes, que no total se fixam entre 3.000,00 € e 20.000,00 €;

III. Fundamentação de Facto

A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
1. No dia 29 de setembro de 2013, pelas 18:20 horas, na AE 7, ramo C – Nó de Calvos, no sentido Felgueiras-Guimarães, ao quilómetro 46,730, na freguesia de Gémeos, concelho de Guimarães, ocorreu um despiste em que foi interveniente o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula RZ e onde seguia como passageira, no lugar da frente, a Autora.
2. O veículo RZ, à data, era propriedade da sociedade “M. S., Lda.”, com sede no Lugar de …, Viana do Castelo e era conduzido, por J. G., casado com a Autora, seguindo ambos no veículo cedido pelo gerente da sociedade.
3. A proprietária havia transferido a responsabilidade civil por danos causados a terceiros para a Ré, através de contrato de seguro titulado pela apólice ….
4. O referido condutor seguia de forma distraída, com velocidade excessiva para o local, e ao descrever a curva para o lado esquerdo no ramal de acesso, perdeu o controlo do veículo, que infletiu para o lado direito e derrubou e destruiu o rail de proteção metálico do lado direito da via.
5. O veículo foi precipitar-se sobre os terrenos marginais da A7, situados a uma profundidade de 25 metros da via, onde acabou por se imobilizar, em posição invertida.
6. Como consequência direta e necessária do acidente resultou para a Autora traumatismo toráxico e hematomas na região toráxica.
7. A Autora foi transportada de ambulância para o Hospital, onde lhe foram prestados os primeiros socorros, efetuado exame radiológico ao tórax e prescritos analgésico e anti-inflamatório.
8. A Autora teve alta hospitalar no mesmo dia, pelas 24 horas, regressando à sua habitação, onde se manteve doente, combalida.
9. A Autora continuou em regime de consulta a ser seguida no Centro de Saúde, onde foi acompanhada pelo médico de família, que lhe prescreveu analgésicos e anti-inflamatórios e pomadas para aplicação tópica.
10. No momento do acidente a Autora sofreu de um enorme susto, receando pela própria vida.
11. As lesões determinaram um período de doença de 41 dias (entre 29/09/2013 e 8/11/2013), com défice funcional temporário total de 30 dias e parcial de 11 dias.
12. A Autora sofreu um quantum doloris de grau 3, numa escala ascendente de 1 a 7.
13. A Autora, como sequelas das lesões sofridas, apresenta dores intermitentes na coluna cervical, implicando medicação analgésica e/ou anti-inflamatória, com reduzido compromisso de mobilidade e sem lesões documentadas, tendo sido fixados 2 pontos de défice funcional permanente (fixável de 1 a 3).
14. A Autora necessita de maiores esforços na execução das tarefas inerentes à sua atividade de doméstica, nomeadamente de lavar a roupa, passar a ferro e todas as demais tarefas que exijam esforço na coluna.
15. A Autora necessita de maiores esforços na execução das tarefas inerentes à sua profissão de auxiliar dos serviços gerais, nomeadamente de lavar a roupa, passar a ferro e todas as demais tarefas que exijam esforço na coluna.
16. Estas sequelas causam à Autora profundo desgosto.
17. À data dos factos, a Autora exercia a profissão de Auxiliar de Serviços Gerais na Casa de Caridade, auferindo a quantia mensal de € 554,75, por mês, incluindo ordenado-base e subsídio de alimentação.
18. O exercício da sua profissão exige permanecer permanentemente de pé, na lavandaria, para lavagem e arrumação da roupa, ao longo das 8 horas de trabalho, com grande esforço do tronco, coluna e membros superiores.
19. A partir do acidente e em sequência das lesões sofridas a Autora passou a necessitar de mais tempo e esforço neste trabalho, contando com a ajuda das colegas de trabalho para execução de algumas tarefas.
20. A Autora exerce ainda atividades domésticas no agregado familiar constituído por ela própria, marido e uma filha, que se encontrava a estudar no 1.º ano da Universidade de Trás-os-Montes em Vila Real, confecionando refeições, lavava e passava a ferro, arrumava a habitação e todas as tarefas inerentes ao lar.
21. A Autora efetuou até à data despesas em consequência do acidente, com € 30 em medicamentos, € 72 em certidões e cópias com o processo.
22. A Autora viu inutilizada uma blusa, um par de sapatos que usava no acidente, uns óculos graduados e uma mala de viagem de cabedal, de montantes não concretamente apurados.
23. A Autora nasceu a 5 de abril de 1957.
24. A Autora recebeu subsídio de doença no período de alegada incapacidade temporária para o trabalho, no valor de, pelo menos, 378,30€, que lhe foram pagos pela Segurança Social.
25. Antes da ocorrência do sinistro, a Autora sofria de patologia da coluna cervical, com tratamentos médicos a cervicalgia crónica nos dias 08/10/2010, 29/11/2011 e 08/07/2013, com realização de tratamentos fisiátricos prescritos pelo médico de família a 03/03/2013.
26. Antes do acidente, a Autora sofria de perturbação de ansiedade, que motivaram queixas e tratamentos médicos e apresentava depressão reativa em fevereiro de 2013.

IV. Fundamentação de Direito

Coloca-se com relevância nestes autos a questão da valoração do dano que afetou a Autora na sua integridade física e psíquica e a valoração dos danos não patrimoniais.
1- Da exclusão da garantia do seguro do valor dos óculos.
Foi dado como provado que a Autora era casada com o condutor do veículo interveniente no despiste e que o sinistro ocorreu, porque este seguia de forma distraída e com velocidade que determinou a privação do controlo do veículo.
Assim, imputou-se ao condutor deste veículo a culpa na eclosão do acidente.
Quanto ao contrato de seguro pelo qual foi transferida para a Ré a responsabilidade civil pelos acidentes causados por danos causados a terceiro por aquele veículo, há que atender ao diploma que atualmente o regula.
O Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto , o qual fez a transposição da Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, que altera as Directivas n.os 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Directiva n.º 2000/26/CE fixa atualmente o regime do sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
Este estabelece, no artigo 14º n.º 2 alínea a) e e), além do mais e no que aqui releva, que se excluem da garantia do seguro quaisquer danos materiais causados ao cônjuge do condutor do veículo responsável pelo acidente.
Ao dano material contrapõe-se uma lesão corporal.
Assim, os danos corporais baseiam-se na ofensa que afeta a saúde física ou mental do lesado; estas têm consequências patrimoniais (repercutem-se diretamente no património do lesado) e consequências não patrimoniais (porque atingem bens do lesado que se não integram no seu património).
Aos danos corporais contrapõem-se os danos materiais. Estes são os estragos provocados pelo acidente nas coisas do lesado.
Ora, um par de óculos é nitidamente uma coisa, pelo que a sua danificação constituiu um dano material ocorrido no acidente.
O mesmo está excluído da garantia o seguro obrigatório, nos termos da supra citada norma, repetida na cláusula 5ª da apólice.
Há que excluir o seu valor (500,00 €) da indemnização atribuída.
*
2- Da valoração bipartida do dano biológico como dano patrimonial e como dano não patrimonial
Podem classificar-se os danos decorrentes de um evento ilícito segundo vários critérios.
Á firmada dicotomia danos patrimoniais / danos não patrimoniais (os primeiros atingindo diretamente a esfera patrimonial do lesado, ao contrário dos segundos), tem vindo a ter crescente importância a dicotomia lesões corporais e materiais (considerando-se as lesões corporais como ofensas à integridade física e saúde do lesado).
A estas distinções recorre, aliás, DL n.º 291/2007, de 21 de agosto que estabelece o regime do sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, mencionando, no artigo 4º, os “danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais ou materiais causados a terceiros”.
O dano biológico, originado numa lesão corporal, traduz-se na afetação da capacidade funcional de uma pessoa, declarada pela atribuição de um determinado grau de incapacidade físico-psíquica.
Têm sidos discutidos os critérios a utilizar para a fixação da indemnização desta diminuição da capacidade funcional da pessoa originada nas lesões corporais que sofreu.
Uns entendem que deve fixar-se uma indemnização autónoma para este dano, sem recorrer á classificação danos patrimoniais e não patrimoniais, outros que estes devem ser considerados apenas como danos patrimoniais e outros ainda que podem ser considerados, conforme os casos, no âmbito de um destes dois critérios, outra ainda que este pode determinar consequências patrimoniais e não patrimoniais.
No que concerne á consideração deste dano na sua vertente patrimonial, se o dano na saúde do lesado atinge imediatamente o seu património, por diminuir ou impedir totalmente o rendimento proveniente do seu trabalho, é clara a ressarcibilidade deste prejuízo, de valor diretamente económico.
A questão é mais sensível quando não é tão direta essa repercussão no património.
Quanto á possibilidade de consideração das consequências do dano biológico, na vertente patrimonial, mesmo nestes casos em que não há uma repercussão direta e imediata no vencimento do lesado, é claro o Acórdão do STJ de 20-05-2010, no processo 103/2002.L1.S1, de rel. Lopes do Rego): “pelo menos para quem não está irremediavelmente afastado do ciclo laboral, a perda relevante de capacidades funcionais – embora não imediatamente reflectida nos rendimentos salariais auferidos na profissão exercida – constitui uma verdadeira «capitis deminutio» do lesado num mercado laboral em permanente mutação e turbulência, condicionando-lhe, de forma relevante e substancial, as possibilidades de mudança ou reconversão de emprego e o leque de oportunidades profissionais à sua disposição, constituindo, deste modo, fonte actual de possíveis e futuros lucros cessantes, a compensar como verdadeiros danos patrimoniais.”
Acórdão que continua nos seguintes termos: “Para além disto, terão naturalmente de ser ponderados e ressarcidos os danos não patrimoniais, decorrentes da degradação do padrão de vida da lesada, quer nos aspectos não directamente associados ao exercício da profissão, quer da notoriamente maior penosidade que este passou a representar para a lesada, como forma de, contornando as sequelas incapacitantes, lograr manter o mesmo nível de produtividade e de rendimento auferido.”
Não é de exigir uma efetiva perda de rendimentos decorrente da incapacidade permanente para que se reconheça ao lesado o direito a indemnização pelo dano biológico.
A diminuição da rentabilidade de uma pessoa no trabalho que exerce (e que é capaz de exercer) tem necessariamente consequências patrimoniais, seja na possibilidade de vir a obter outras fontes de rendimento, na progressão na carreira e na reconversão profissional futura.
Desta forma, dá-se “Igual relevância, enquanto dano patrimonial, do designado dano biológico perspetivado como perda de aptidão ou capacidade laboral (agravamento do esforço no exercício da atividade) independentemente da perda de retribuição (dano emergente)… No dano biológico, considerado dano autónomo, está em causa a perda de aptidão ou capacidade laboral. A penosidade em si parece configurar dano moral. Mas essa penosidade implicando perda de capacidade de ganho, resulte esta de uma perda de oportunidades de trabalho e/ou de um desempenho mais difícil, justifica um cálculo de natureza patrimonial pois ocorre sempre um prejuízo quando, pela incapacidade, tem de se trabalhar mais para realizar o mesmo..” cf intervenção de Salazar Casanova a 27 de outubro de 2016 no Colóquio Sobre o Código Civil, disponível em stj.pt/ficheiros/coloquios.
(Nestes sentidos vai muita jurisprudência: cf. Acs do STJ de 03/21/2013, no processo 565/10.9TBPVL.S1, rel. Salazar Casanova, Ac STJ de 05/19/2009, no processo 298/06.0TBSJM.S1, rel. Fonseca Ramos e os citados no muito esclarecedor Ac do STJ de 12/11/2012 no processo 269/06.7 GARMR.E1.S1, rel. Isabel Pais Martins, indicando de forma detalhada as várias posições: os Ac. STJ de 19/5/2009 no processo 298/06.0TBSJM.S1, rel. Fonseca Ramos, Ac. STJ de 4/10/2007 no processo 07B2957, rel. Salvador da Costa, Ac. STJ de 6/5/99 no processo 99B222, rel. Ferreira de Almeida).
Dúvidas não há, tal como aliás defendem ambos os recorrentes, que estes esforços acrescidos e dores, devem ser indemnizados no âmbito dos danos não patrimoniais, por violarem bens pessoais imateriais, aliás com proteção constitucional.
A recorrente põe em causa a valoração das consequências dos danos provenientes da lesão do corpo da Autora, simultaneamente como dano patrimonial, na perda da sua capacidade de ganho, no âmbito da sua vida laboral, e como dano não patrimonial, no âmbito da maior dificuldade sofrida pela Autora na utilização do seu corpo, pelas dores sofridas na coluna vertebral (dores e dificuldades acrescidas sentidas quando o está a usar para fins pessoais, assim como quando o está a usar no seu trabalho).
Entendemos, como se viu, que o dano biológico não é um terceiro género, face á classificação dos danos como patrimoniais e não patrimoniais, mas uma outra categorização, fundada no facto que o origina.
Tem sido a corrente maioritária na jurisprudência portuguesa que os critérios e valores previstos na Portaria n.º 377/2008, de 26-05, a que alude o Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, se destinam tão só a servir de orientação aos lesados no âmbito dos procedimentos obrigatórios para a regularização dos sinistros rodoviários como se esclarece no seu preâmbulo, não vinculando o julgador, embora sejam de ponderar, nomeadamente face á unidade do sistema jurídico.
Tem interesse, pois, confirmar que neste diploma se afirma que deve ser considerada indemnizável autonomamente a incapacidade permanente que exija esforços acrescidos no desempenho da atividade profissional habitual do lesado.
No artigo 3º alínea b), sob a epigrafe “Danos indemnizáveis em caso de outros danos corporais” esta Portaria dispõe que “São indemnizáveis ao lesado, em caso de outro tipo de dano corporal: o dano pela ofensa à integridade física e psíquica (dano biológico), de que resulte ou não perda da capacidade de ganho, determinado segundo a Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil e no artigo Artigo 4.º alínea 2), sob a epigrafe “Danos morais complementares” dispõe que “ Além dos direitos indemnizatórios previstos no artigo anterior, o lesado tem ainda direito a ser indemnizado por danos morais complementares, autonomamente, nos termos previstos no anexo I da presente portaria, nas seguintes situações…quando resulte para o lesado uma incapacidade permanente que lhe exija esforços acrescidos no desempenho da sua actividade profissional habitual.
Assim, atenta a multiplicidade de vertentes em que se estende a vida humana, nomeadamente a profissional, a par de outras, entende-se premente considerar-se que a privação da inteira capacidade biológica de uma pessoa para o exercício da sua capacidade produtiva, se traduz também numa perda patrimonial, embora não imediata, e como tal deve ser indemnizada, visto que tal incapacidade implica um esforço acrescido, consumidor de recursos do lesado (finitos por natureza), que, não sendo esse esforço necessário, poderiam ser canalisados para atividade produtiva, simultânea ou subsequente.
A conceção de danos não patrimoniais consagrada no artigo 496º, n.º 1, do Código Civil, é extensa, cabendo nela um vasto leque de situações, como as dores físicas, os desgostos morais, os vexames, a perda de prestígio ou de reputação, o dano estético que, sendo insuscetíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização.
Do exposto, resulta que se entende que não se verifica qualquer duplicação da valoração do mesmo facto quando na sentença recorrida se valorou, por um lado e autonomamente, a afetação da capacidade para o trabalho, e de outro se atendeu, em sede de “outros danos não patrimoniais” à “incapacidade parcial e permanente” da Autora; na primeira parte a sentença considerou as consequências patrimoniais que resultam da repercussão da menor capacidade de trabalho, na possibilidade da Autora continuar a obter rendimentos em função dessa aptidão; na segunda avaliou o sofrimento (a dor, o custo) que a Autora padece e padeceu com a dificuldade acrescida no desenvolvimento de determinadas atividades e o desgosto dali adveniente, o que na sentença se fez, aliás, considerando as também dores e tratamentos.
São aliás, patentes, neste sentido o já citado acórdão do STJ de 20-05-2010, no processo 103/2002.L1.S1 (rel. Lopes do Rego) e Acórdão Tribunal da Relação de Lisboa de 16-01-2014 no processo 9347/11.0 T2SNT.L1-6: “a IPP, embora sem prova de repercussão na perda de capacidade aquisitiva, constitui um dano patrimonial, sem esquecer a vertente não patrimonial que do mesmo facto decorre.", entre outros.

3 - Do valor indemnizatório a atribuir por estes danos
Assim, sendo lógica e juridicamente possível a subdivisão dos danos nos termos efetuados na sentença como critério para a atribuição da indemnização, cumpre avaliar da sua medida, nada obstando a que se siga a mesma metodologia.
Tem sempre, aqui, principal intervenção a equidade.
Mesmo a análise do dano na perspetiva essencialmente patrimonial, considerando que assenta em juízos de prognose, de simples probabilidade e o conjunto de variáveis que se deverão fazer intervir para projeção do mesmo num futuro mais ou menos longínquo, só pode, em última análise, ser obtida pela equidade.
Ainda que se faça uso da ideia corrente na jurisprudência de que a indemnização devida pelos danos futuros deve corresponder a um capital produtor de um rendimento que se extinga na data previsível da vida ativa da vítima e garanta as prestações periódicas equivalentes à respetiva perda de ganho, o valor aritmético que se obtenha, não pode deixar de se corrigir em função da equidade, por atenção a fatores não incluídos nesse cálculo (cfr. o acórdão do STJ de 15-04-2009, www.dgsi.pt/jstj.nsf/ proc. n.º 08P3704.
Atende-se aqui também a valores jurisprudenciais que têm vindo a ser estabelecidos, nomeadamente os referidos no Acórdão TRP de 05-05-2014 no processo 779/11.4TBPNF.P1, que menciona as seguintes decisões e indemnizações atribuídas:(1.º) Com uma incapacidade avaliável em 3 pontos, a um lesado com a idade de 40 anos foi fixada a indemnização por dano biológico em 8.000,00 €.(2.º) Com uma incapacidade avaliável em 5 pontos, a um lesado de 13 anos, fixou-se a indemnização de 15.000,00 €.(3.º) Com uma incapacidade também de 5 pontos, mereceu um lesado com 22 anos, a indemnização de 16.698,95 €. (4.º) Com a incapacidade de 8 pontos, a um lesado de 42 anos foi arbitrada a indemnização de 12.000,00 €.(5.º) Com igual incapacidade, de 8 pontos, a um lesado de 47 anos foi fixada a indemnização de 12.500,00 €.(6.º).
Neste caso, no que nesta comparação releva, importa a atentar no menor grau de incapacidade da Autora, na sua idade, superior à dos lesados supra mencionados, sendo que a mesma já sofria de patologia da coluna cervical, o que pesa na análise das consequências futuras desse dano.
No que toca á vertente patrimonial do dano biológico há que atentar, de mais relevante:
- na idade da Autora- 56 anos á data da alta clínica;
- à natureza e grau do défice funcional que passou a padecer: 2 pontos por referência a dores intermitentes na coluna cervical, sem lesões documentadas e com reduzido compromisso da mobilidade);
- nas características do trabalho que exercia e no seu vencimento: a Autora era Auxiliar de Serviços Gerais, trabalhando na lavandaria, ao longo de 8 horas, exercendo atividade que exigem esforço da coluna, como a lavagem e arrumação da roupa, auferindo a quantia de 554,75 € por mês;
- as dificuldades que a lesão causou para o exercício desse tipo de trabalho: Autora passou a necessitar de mais tempo e esforço para desenvolver esta atividade profissional, contando com a ajuda de colega sempre nalgumas tarefas;
- o tempo provável da vida ativa da Autora, não coincidente necessariamente com a atual idade fixada para a reforma; quer pela mutabilidade desse critério (a idade exigida para a reforma tem vindo a ser aumentada), quer porque a Autora pode continuar a trabalhar, de forma remunerada, após atingir a reforma;
- Antes da ocorrência do sinistro, a Autora já sofria de patologia da coluna cervical.
Tudo ponderado, entende-se adequada a fixação da indemnização em 3.0000,00 € efetuada na sentença, posto que as dores e demais sofrimentos serão considerados, autonomamente, como o foram, também no âmbito do dano não patrimonial.
No que toca aos danos não patrimoniais, há que atentar, de mais relevante, além da idade da Autora, nos seguintes elementos da matéria de facto provada:
- a Autora temeu pela vida no momento do acidente, sofreu um período de doença de 41 dias, sendo 30 dias com défice temporal total, e o quantum doloris fixa-se no grau 3.
- as lesões causadas pelo acidente determinaram: reduzido compromisso da mobilidade, sem lesões documentadas, mas dores intermitentes na coluna cervical, implicando medicação analgésicos ou anti inflamatórios, com a fixação de 2 pontos de défice funcional permanente.
- para a execução de tarefas inerentes á sua atividade doméstica e profissional, que exijam esforços de coluna, como lavar roupa e passá-la a ferro, a Autora necessita de maior esforço.
Ora, sendo aqui já mais ampla a vertente dos danos a considerar, quer em extensão, quer temporalmente, abarcando todo o sofrimento de que a Autora padeceu e padecerá, durante toda a sua vida, por força das lesões na coluna, quer por força da sua atividade laboral, quer no âmbito da sua vida pessoal, e abarcando também o seu período de doença, tendo o quantum doloris sido fixado no grau 3, mas também a pré-existência de condição física com natureza semelhante á causada pelo acidente, a inexistência de qualquer internamento hospitalar, sequela grave, tratamento fisioterapêutico, dano estético (embora a Autora o refira nas suas alegações de recurso, este dano não se provou e não foi posta em causa a matéria de facto provada), não se justifica nem menor, nem maior valor indemnizatório que o fixado na sentença.
Não tendo sido interposto recurso quanto à condenação dos juros, nomeadamente relativamente à data do início da sua contagem, nada se aprecia quanto a esta matéria.

V. Decisão

Pelo exposto, acorda este Tribunal em julgar parcialmente procedente a apelação, alterando a sentença recorrida quanto ao capital em que a ré foi condenada a pagar à Autora, reduzindo-o para quantia global de € 6.378,00 (seis mil, trezentos e setenta e oito euros) euros, mantendo-se a restante condenação, no que toca aos juros.
Custas da ação e da apelação na proporção do decaimento (artigo 527º do Código de Processo Civil).
Guimarães, 4 de outubro de 2017

Sandra Melo
Mário Silva
Heitor Gonçalves