Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | NAZARÉ SARAIVA | ||
Descritores: | PECULATO FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO CONCURSO DE INFRACÇÕES CONCURSO REAL DE INFRACÇÕES EXTINÇÃO DA RESPONSABILIDADE CRIMINAL ERRO SOBRE A ILICITUDE ILICITUDE | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 03/09/2009 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
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Sumário: | I – Comete o crime de peculato do art. 375 nº 1 do Cod. Penal o funcionário de uma delegação IGFSS que, com intuito de apropriação, deposita na sua conta pessoal um cheque que lhe foi entregue por um devedor daquele Instituto para que com o valor respectivo fossem pagas cotizações em dívida à Segurança Social. II – O crime consumou-se no momento em que o arguido, após alterar pelo seu próprio punho o nome do beneficiário (o IGFSS), logrou depositar o cheque na sua conta pessoal, por a respectiva instituição bancária se ter convencido de que era um portador legítimo. III – Não obsta à condenação penal a circunstância de apenas ter sido dado como provado que o arguido “sabia que todas as suas descritas condutas eram proibidas e punidas por lei”, sem se especificar que ele sabia que o direito penal (e não outros ramos do direito) proíbe o comportamento. IV – Não existe relação de especialidade, subsidiariedade, alternatividade ou consunção entre o crime de peculato e o crime de falsificação de documento, mesmo que este seja um meio de realização daquele. V – A indemnização do ofendido como causa da extinção da responsabilidade criminal prevista na norma do art. 206 nº 1 do Cod. Penal, por virtude da reparação integral dos prejuízos causados, só opera relativamente aos casos concretamente previstos naquela norma. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães: No 2º Juízo Criminal, do Tribunal Judicial da comarca de Braga, processo comum nº 864/05.1TABRG, foi o arguido Fernando S..., com os demais sinais dos autos, submetido a julgamento, tendo, a final, sido proferida sentença, constando do respectivo dispositivo o que se segue (transcrição): “Pelo exposto, julgo a pronúncia procedente por provada e, em consequência, decido: Condenar o arguido Fernando S..., como autor material de um crime de peculato, previsto e punido nos termos do art. 375.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão; Condenar o arguido, como autor material de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artº 256º nº 1 alínea a) e 3 do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão Em cúmulo jurídico, vai o arguido condenado na pena única de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, cuja execução se suspende por 18 (dezoito) meses.” *** Inconformado com a sentença, dela interpôs recurso o arguido, onde, em síntese, defende que:- «se impõe uma modificação da decisão de facto, porquanto nunca teve intuito apropriativo (inexistência de dolo, no que concerne ao crime de peculato, bem como inexistência do intuito prejudicativo ou beneficiativo no que tange ao crime de falsificação»; - in casu não se verifica um dos elementos objectivos do crime de peculato previsto no artigo 375º, nº 1, do CP, a saber, a ilicitude da apropriação, em proveito próprio ou de terceiro; - também «não se provou que o arguido tenha agido com conhecimento da ilicitude», porquanto no item 17) da sentença recorrida apenas consta provado «que as condutas do arguido eram proibidas e punidas por lei», não tendo o tribunal recorrido cuidado «de proceder a uma qualquer actividade probatória que lhe permitisse especificar se a conduta era proibida pela lei civil, disciplinar, contra-ordenacional, administrativa ou penal »; - «…não pode ser condenado pelo crime de falsificação, na medida em que essa actuação típica 8com eventual dolo necessário) está consumida pela eventual acção típica de peculato (com dolo final e directo) numa reacção de consumpção).»; - «…tendo o arguido procedido à restituição e reparação, integral, dos danos causados à lesada, Florinda S..., deve beneficiar …da extinção da responsabilidade criminal nos termos do…nº1 do art. 206 do Código Penal». *** Respondeu o Ministério Público, opinando no sentido de que deve ser julgado improcedente o recurso. *** Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido também do não provimento do recurso.*** Foi cumprido o artº 417º, nº 2 do CPP, tendo o arguido apresentado resposta. *** Colhidos os vistos legais, cumpre decidir: Decisão fáctica constante da sentença recorrida (transcrição): “FACTOS PROVADOS 1. O arguido Fernando S..., é advogado na comarca de Vila Nova de Famalicão, exercendo ainda a docência universitária e, nessa sua qualidade de jurista, foi nomeado, em regime de comissão de serviço, Director da Delegação de Braga do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social (IGFSS). 2. Na verdade, o arguido, entre 1 de Abril de 2001 e 31 de Março de 2003, desempenhou as funções inerentes a tal cargo e nomeação, no Centro Regional de Braga da Segurança Social. 3. No âmbito dessas funções, o arguido recebeu no seu gabinete, nas instalações da Segurança Social, em Fevereiro de 2002, em dia que não se conseguiu apurar com rigor, mas que se situa nas proximidades do dia 12.02.2002, a queixosa Florinda S..., acompanhada do seu contabilista, Adelino L..., para tratarem de assunto relacionado com dívidas à Segurança Social, 4. Dívidas essas que se traduziam em cotizações e contribuições devidas pela firma “T... Portugal, Lda.”, propriedade da queixosa Florinda S..., que exercia o cargo de gerente. 5. Após a necessária troca de informações, acerca de montantes em dívida e forma de pagamento, o arguido, aceitou ficar na posse de um cheque de € 20.000,00 pertencente àquela Florinda S... (cheque nº 0300000006 sobre o Banco S..., Agência de Braga com a data de 12.02.2002), 6. Cheque esse que se destinava a pagar as cotizações em dívida à Segurança Social (a dívida total era composta de cotizações e contribuições), para que dessa forma se obstasse à abertura do processo crime correspondente contra a “T... Portugal, Lda.”. 7. E tanto assim era, que o cheque foi endereçado ao I.G.F.S.S. (Instituto de gestão Financeira da Segurança Social), para que com ele, o arguido Fernando S... imputasse e pagasse as cotizações em dívida pela “T... Portugal, Lda.” à Segurança Social e prevenisse, desse modo, a abertura de um qualquer processo crime por tais factos, contra a citada empresa. 8. Sucede que, o arguido, no dia 14.02.2002, contrariamente às instruções que recebera da Florinda S... e tudo quanto com ela havia acordado, depositou em conta pessoal que tinha aberta no F... S.A., Agência de Vila Nova de Famalicão, o cheque com o nº 0300000006, no montante de € 20.000,00, sacado sobre o Banco S..., Braga, datado com o dia 12.02.2002 (já supra referido no ponto 5.). Mais se apurou que: 18. O arguido, que continua a exercer a profissão de advogado, que cumula com a docência universitária, é pessoa profissional e pessoalmente respeitada e com bom comportamento habitual. 19. É casado e tem dois filhos. 20. É delinquente primário. * FUNDAMENTAÇÃO FACTUAL Para a prova dos factos supra referidos, a convicção do tribunal formou-se, desde logo, com base nas declarações do próprio arguido, e sua conjugação com o teor dos documentos de fls. 3 a 90, 160-161 e 377 a 494 (todos devidamente examinados em audiência), bem como com as mais elementares regras da regras da experiência comum. Efectivamente, o arguido admitiu toda a factualidade supra descrita nos pontos 1 a 7, inclusive. Confessando também expressamente que no dia 14.02.2002, depositou em conta pessoal que tinha aberta no F... S.A., Agência de Vila Nova de Famalicão (a qual se destinava, designadamente, ao pagamento de despesas do seu escritório de advocacia, e onde tinha também dinheiro de outras proveniências), o cheque do montante de € 20.000,00 que lhe havia sido entregue pela Florinda S... (representante legal da “T..., Lda.”), para o que apôs com o seu punho, nesse título, por cima do endereço ao IGFSS, os dizeres “C... Salgado”. Mais declarou que, abandonou o cargo que desempenhava na Segurança Social em finais de Março de 2003, sem que tivesse reposto a quantia titulada pelo cheque a favor da sacadora desse título ou do I.G.F.S.S., situação que o arguido também admitiu manter-se ainda à data em que a Florinda S... tomou conhecimento que tinha um processo crime pendente por dívidas à Segurança Social (cotizações) em Abril de 2005 -, altura em que a mesma descobriu que tal se devia ao facto de o cheque que havia entregue ao arguido não ter sido utilizado para pagar essa dívida como haviam combinado. * FUNDAMENTAÇÃO:A impugnação da matéria de facto dada como provada: Defende o recorrente que a «ausência» dos factos que concretamente enuncia, «consubstancia manifesta insuficiência de matéria de facto provada que… permitiria, como permite, sustentar a falta de intenção de se apropriar de dinheiro e ou de prejudicar terceiro e ou obter beneficio ou proveito pessoal, assim, por via da inexistência dessa intenção, não se mostrar verificado um dos elementos constitutivos dos ilícitos criminais de que foi acusado e condenado – o elemento típico subjectivo de cada um desses ilícitos”. E os factos especificados pelo recorrente são os que se seguem (transcrição): «Facto 1- recebeu no seu gabinete, em 7.2.2002, a Florinda, acompanhada pelo contabilista Adelino L..., que lhe fez entrega de um requerimento, acompanhado de um cheque de 20.00,00 euros, post-datado para 13.2.2008 (seguramente que houve lapso do recorrente pois terá querido escrever 2002), solicitando-lhe que imputasse tal quantia ao pagamento das quotizações que a T... havia retido aos seus trabalhadores, desde 1995, afim de evitar a instauração do processo crime por abuso de consiança fiscal». «Facto 2- recusou tal pedido, inicialmente, por não poder satisfazê-lo na medida em que a dívida (total: quotizações e contribuições) já estava participada às finanças que era quem tinha a responsabilidade e os meios de cobrar as contribuições da segurança Social, por processos executivos instaurados antes de Setembro de 2001.» «Facto 3 - acabou, porém por aceitar tal cheque sob a “ameaça” de que se não o recebesse ele iria ser utilizado noutras dívidas que a T... tinha na altura». «Facto 4 - tal cheque vinha preenchido (post-datado para o dia 13.2.2002) e assinado pela Florinda, mas com o lugar de tomador…em branco.» «Facto 5 - exigiu que a Florinda preenchesse o cheque no espaço destinado ao tomador, indicando-lhe para apor a sigla I.G.F.S.S». «Facto 6 - aceitou o cheque no seu afã de angariar receita, concebendo-o como uma oportunidade de cobrar mais 20.000,00 para a segurança social». «Facto 7 - contra a aceitação desse cheque emitiu uma declaração de quitação que fez constar da fotocopia ao cheque tirado pela sua secretária, Eduarda, a seu pedido, tendo-a entregue à Florinda», «Facto 8- na posse do cheque, desde 7.2.2002, e analisada mais a frio a situação, tendo presente o que se passava nessa altura com as contas-correntes da Segurança Social que, em finais de 2001 passaram de regionais a nacionais, rapidamente chegou à conclusão que, como o sistema de contas se encontrava a funcionar na delegação de Braga, não lhe seria possível imputar o pagamento daquela quantia só à dívida por quotizações, pois se o entregasse ele iria ser imputado à dívida mais antiga existente na segurança social»- « Facto 9 - perante tal constatação – impossibilidade de imputar Sá à dívida de quotizações a quantia titulada pelo cheque – tentou entrar em contacto com a Florinda, a fim de lhe devolver o cheque, através do número de telefone constante do requerimento entregue na audiência de 7.2.2002, nº 253 611 802, mas sem alcançar sucesso» «Facto 10- na posse do cheque e sem qualquer meio de contactar a Florinda, para além do telefone indicado naquele requerimento, e tendo conhecimento directo da implementação que na altura estava em curso de um novo sistema informático de gestão de contribuintes (SGC), concebido e aplicado pela sociedade ACCENTURE, porque fazia parte do grupo de trabalho que estava encarregado de o pôr a funcionar, admitiu como certa a possibilidade de imputar o pagamento daquela quantia soa a título de quotizações, sem pagamento de contribuições, por altura do reinicio do ano judicial de 2002 (meados de Setembro). E porque!? porque, desde 2001, se previa que, com a implementação do novo Sistema de Gestão de Contribuintes, iria entrar em funcionamento um inter-face entre a secção de contas-correntes dos contribuintes e a secção de processo executivo, passando ser emitidas duas certidões de dívida de cada contribuinte devedor à Segurança –Social – uma certidão de dívida por quotizações, correspondente a 115 da taxa social única paga pelo trabalhador e retida pelo empregador, e uma certidão por dívida de contribuições, correspondente a 23,75% da taxa social única devida pelo empregador, sendo certo que, como decorre da lei, Sá dívida por quotizações é passível de constituir ilícito criminal». «Facto 11 - perante este quadro circunstancial, da possibilidade de esse inter-face estar operacional em Setembro de 2002, resolveu constituir-se como fiel depositário daquele cheque e respectiva quantia no pressuposto que, nessa data, com a emissão da certidão só da dívida de quotizações, satisfaria o pedido da T.../Florinda, evitando a instauração de processo crime e, simultaneamente, arrecadaria para os cofres da Segurança Social mais 20.000,00» «Facto 12 - materializando essa resolução, apôs pelo seu punho as expressões “C... Salgado” e depositou o cheque na sua conta pessoal aguardando pela entrada em funcionamento do sistema inter-face». «Facto 13 - sofreu, porém, uma contrariedade de monta, para a qual não contribuiu nem tinha modo de a impedir, qual seja a de em Abril de 2002 com a nomeação de um novo Governo, pelos responsáveis do Ministério da Segurança Social foi interrompido o curso da implementação do Sistema de Gestão de Contribuintes e o almejado funcionamento do inter-face, tendo por isso ficado pelo caminho a hipótese, prefigurada como certa, deste entrar em funcionamento em meados do mês de Setembro». « Facto 14 - Perante esta adversidade e eliminação prática da possibilidade de satisfazer o pedido da Florinda, admitiu o arguido, ainda, como possível, que aquelas fossem encontradas pelo Serviço de Fiscalização, na medida em que havia, na qualidade de director, emitido instruções e directivas para que os contribuintes em falta com os seus deveres com a Segurança Fiscal fossem objecto de acção fiscalizadora, começando essa intervenção por “atacar” os devedores de montantes globais (contribuições e quotizações) acima de 50.000 contos, passando aos devedores acima de 40 mil contos, aos acima de 30 mil contos, aos acima de 20 mil contos até aos acima de 10.000 contos, ou seja 40.879,79 euros (note-se que a T...-Trading, Lda devia mais do que este valor último.» «Facto 15- Tendo presente essas instruções, dadas aos serviços dependentes de si, confiou que, na medida em que a dívida total da T... era superior a 10 mil contos, os 49.879,79 euros, porquanto a mesma, em Fevereiro de 2002, ascendia a 63.257,97 euros (cfr. doc fls 386), a Florinda S..., legal representante daquela, seria “apanhada” pela fiscalização e nessa altura, dar-lhe-ia conta do sucedido, nomeadamente da impossibilidade de poder fazer o pagamento das quotizações como tinha sido por ela pedido para evitar o processo crime por abuso de confiança fiscal, e restituindo-lhe a quantia de 20.000,00 euros, como, aliás, acabou por acontecer. « Facto 16 - porém, já não assistiu durante o seu mandato ao sucesso das suas medidas de combate à evasão contributiva da segurança Social, no que à T.../Trading Florinda, diziam respeito, pois esta só veio a ser “apanhada “ pela fiscalização, em 18/07/2003, após o termo do seu mandato e cessação de funções em 31/03/2003, por via do inicio do procedimento nº 300603, de 2003.07.18. « Facto 17- dias antes de cessar funções, comunicou à sua secretária, Eduarda morais, que tinha “um dinheiro” para restituir à Florinda, solicitando-lhe que quando ela aparecesse lhe solicitasse o seu contacto telefónico afim de entrar em contacto com ela para lhe restituir esse dinheiro que tinha na sua posse». « Facto 18 - como previra, veio a ser contactado em Abril de 2005, pela sua ex-secretária, Eduarda Morais, informando-o que a Florinda havia sido “apanhada” pela fiscalização, tendo-se-lhe dirigido e a seu pedido fornecido o seu contacto telefónico. « Facto 19 - de posse do número de telefone da Florinda, contactou-a, restituindo-lhe a quantia de 20.000,00 euros acrescida de 30.000,00 euros, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos. «Facto 20 - enquanto director da delegação de Braga do IGFSS, recebeu contribuintes e recebeu cheques, para pagamento de dívidas à Segurança Social, de milhares de contos» « Facto 21 - a secção de processo executivo da delegação de Braga do IGFSS, durante o mandato do arguido, arrecadou 2 milhões e 800 mil euros de receita, somente ultrapassada pela sede (Lisboa)» «Facto 22 - a sede da T... Lda era na freguesia de Rio Tinto, concelho de Gondomar, não em Braga.» E para prova destes factos, o recorrente traz à colação excertos das suas declarações prestadas em audiência de julgamento, excertos dos depoimentos das testemunhas Eduarda Morais, Maria da Graça Ribeiro, José Faria, Laura Margarida, Abílio Pereira, Costa Araújo, documentos de fls 383 a 387, 377, 78, 81, 440 e ss, 417 e ss, 409, 415 e 416, 51 a 57, concluindo que a Relação «deve…proceder à alteração da matéria de facto provada que contenda com os factos supra indicados …, assim como, deverá alargar a amplitude dos factos provados, de forma a concluir, inequivocamente, pela inexistência de dolo, seja em relação ao crime de peculato, seja no que tange ao crime de falsificação». (negrito nosso). Vejamos… Para permitir que no recurso se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, a lei prevê a documentação das declarações prestadas oralmente na audiência – cfr. artºs 363º e 364º, ambos do Código de Processo Penal. Porém, no caso de pretender impugnar a matéria de facto, o recorrente deverá especificar, os concretos pontos de facto que considere incorrectamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida – cfr. artº 412º, nºs 1 e 3, als a) e b) do CPP. Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações de prova previstas na alínea b) daquele preceito, fazem-se por referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação (vd. nº 4 do mesmo preceito). E o que fez o recorrente? Conforme se alcança da motivação, e das conclusões formuladas, o recorrente não especifica os concretos factos provados que considera incorrectamente julgados. Ao invés, elenca um série de factos que pretende que esta Relação considere provados (afinal a versão não acolhida na sentença recorrida) e que depois proceda «à alteração da matéria de facto provada que contenda com os factos supra indicados …, assim como, deverá alargar a amplitude dos factos provados»… Ou seja, o recorrente não cumpriu claramente o ónus constante do artigo 412º, nº 3, al. a) do CPP, ao contrário do que sustenta na resposta ao parecer do Exmº Procurador-Geral Adjunto. Acresce que não há que proceder ao convite do recorrente para aperfeiçoar as conclusões formuladas no que concerne à mencionada falta de especificação, na medida em que tal deficiência já existe ao nível da motivação. Na verdade, a existência de um despacho de aperfeiçoamento, quando o vício seja da própria motivação, “equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, que não pode considerar-se no próprio direito ao recurso”, como se afirma no ac. do TC 259/02 de 18-6-02, publicado no DR – IIª Série de 13-12-02. Ainda assim, sempre se dirá o que se segue. O recurso sobre a matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, mas antes constitui um mero remédio para corrigir erros patentes de julgamento sobre tal matéria. Na verdade, como elucidativamente, se escreve no acórdão do STJ de 21/03/2003, proc. 02ª4324, relator Conselheiro Afonso Paiva, “ A admissibilidade da respectiva alteração (referência à matéria de facto) por parte do Tribunal da Relação, mesmo quando exista prova gravada, funcionará assim, apenas, nos casos para os quais não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação. Assim, por exemplo: a) apoiar-se a prova em depoimentos de testemunhas, quando a prova só pudesse ocorrer através de outro sistema de prova vinculada; b) apoiar-se exclusivamente em depoimento(s) de testemunha(s) que não depôs(useram ) à matéria em causa ou que teve(tiveram) expressão de sinal contrário daquele que foi considerado como provado. c) Apoiar-se a prova exclusivamente em depoimentos que não sejam minimamente consistentes, ou em elementos ou documentos referidos na fundamentação, que nada tenham a ver com o conteúdo das respostas dadas.” Ora, perseguindo o ensinamento vertido neste aresto, com o qual concordamos plenamente, é manifesto que a impugnação apresentada pelo recorrente sempre estaria votada ao fracasso, porquanto a respectiva argumentação assenta exclusivamente na sua discordância relativamente ao modo como o tribunal recorrido valorou os diversos meios de prova produzidos e examinados na audiência de julgamento, pretendendo que este tribunal, ao invés, adopte a sua própria leitura da prova. Porém, de nada vale ao recorrente insurgir-se contra a convicção do tribunal no sentido em que se formou, uma vez que não se detecta nenhuma violação ao princípio da livre apreciação da prova contido no artigo 127º do CPP, certo como é que não foram violadas quaisquer regras da experiência comum ou utilizados meios de prova proibidos. Com efeito, contrariamente ao que parece entender o recorrente, o julgador não é um mero depositário de declarações e de depoimentos. A ele cabe a espinhosa missão de apreciar, em obediência ao disposto no artº 127º do CPP, quais as declarações ou depoimentos que merecem credibilidade, e se o merecem na totalidade ou só em parte. Como aliás, já há muito ensinava o Prof. Enrico Altavilla “o interrogatório como qualquer testemunho está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras” – Psicologia Judiciária, vol. II, 3º ed. pág. 12. E por isso é claramente inconsistente a crítica do recorrente quando afirma que «o Julgamento do tribunal recorrido revela ter dois pesos e duas medidas: releva as declarações do arguido para incriminar e desconsidera as mesmas para desculpabilizar», ou ainda quando acrescenta que o tribunal recorrido «faz o mesmo raciocínio em relação às testemunhas de defesa que revelaram ter conhecimento de factos relevantes para a descoberta da verdade, desconsiderando os seus depoimentos porque, no entendimento da M. Juíza, demonstraram tendência para …desculpabilizar o arguido!...». Ademais, conforme decorre da fundamentação constante da sentença recorrida, o tribunal a quo, observando escrupulosamente o disposto no artº 374º, nº 2 do CPP, fornece os motivos porque é que não atribuiu credibilidade às declarações do arguido, designadamente na parte em que o mesmo declarou não ter sido sua intenção apropriar-se da quantia de 20.000, 00 euros, e bem assim, porque é que também a não atribuiu aos depoimentos das testemunhas de defesa. Atente-se nos seguintes excertos que se salientam a negrito: “(…) Não obstante a admissão de toda a factualidade acabada de sintetizar, o arguido afirma simultaneamente nunca ter tido intenção de se apoderar da quantia de € 20.000,00 titulada pelo cheque que lhe foi entregue ou de prejudicar quem quer que fosse, antes tendo actuado sempre com a exclusiva intenção de ajudar a Florinda S... e de cumprir aquilo que com ela tinha acordado. Contudo, nesta última parte, as declarações do arguido e de algumas das testemunhas de defesa (cujos depoimentos já a seguir se mencionarão) apresentam-se incongruentes e com contradições que lhes retiram a credibilidade. Senão vejamos: - Refere o arguido que, logo na altura em que a Florinda S... e seu contabilista falaram com ele, no circunstancialismo supra descrito nos pontos 3 a 5, tinha conhecimento e perfeita consciência de que não era nessa altura possível afectar aqueles € 20.000,00 ao pagamento das cotizações em dívida à Segurança Social, de forma a impedir a abertura do processo crime correspondente contra a “T... Portugal, Lda.”, pois a dívida desta empresa era composta de cotizações e contribuições, o que levaria a que o sistema então existente imputasse necessariamente o pagamento de quantias parciais sempre às dívidas mais antigas, independentemente da sua natureza e até inclusive de vontade em contrário, expressa pelo contribuinte devedor. Contudo, como nessa altura se procedia a grande remodelação do sistema de contas-correntes do serviço de gestão de contribuintes, o arguido disse ter conhecimento que, no máximo em Setembro/Outubro desse ano de 2002 (por força de alteração legislativa que nessa altura seria publicada), já poderia resolver o problema da Florinda S..., imputando aqueles € 20.000,00 apenas ao pagamento das cotizações devidas que davam origem a processo crime e não a outras dívidas mais antigas, mas que não passíveis de integrar responsabilidade criminal. Assim, e uma vez que a senhora lhe pediu muito para a ajudar a resolver o problema e, o Instituto de que era director tinha como objectivo arrecadar o maior número de quantias para os cofres do Estado- objectivo que o arguido tudo fazia para cumprir, incluindo flexibilizar e desburocratizar as cobranças -, acedeu em ficar na posse do cheque. Só que, a ser assim, logo resulta evidente a primeira e grande incongruência do depoimento do arguido, que é a inexistência de explicação plausível para que, logo após a entrega do cheque (nunca mais de 12 dias depois), o arguido, apondo pelo seu próprio punho, nesse mesmo título, e por cima do nome do tomador, que era: IGFSS, os dizeres “C... Salgado”, o tenha depositado numa sua conta pessoal. Aliás, instado em audiência a explicar esta incongruência, o arguido não conseguiu dar justificação plausível, tendo até a dada altura desabafado, que, de facto, esse tinha sido seu “grande erro” (expressão do próprio arguido). Ao que acresce ainda que o arguido declarou ter adquirido em 9 de Setembro de 2003 (ano e meio depois de depositar o montante numa conta pessoal) € 25.000,00 de obrigações do F... (cfr. documento de fls. 235), afirmando que nesse montante estavam incluídos os € 20.000,00 que a Florinda S... lhe entregou. Contudo, tais comportamentos indicam antes e de forma manifestamente objectiva, que o arguido fez seu e usou como bem entendeu o dinheiro em causa e nunca, como concluiu no seu depoimento, que o aplicou em obrigações do F... para que estivesse sempre disponível para o restituir à dona; (aliás, como é que o arguido pode garantir que as tais obrigações foram adquiridas com o dinheiro entregue pela Florinda S..., se nem o montante corresponde?) Acrescenta-se também que, quando perguntado pelo motivo porque acedeu a ficar com o cheque em causa nas circunstâncias já mencionadas, não tendo antes optado por esclarecer a Florinda S... e seu contabilista da alteração do sistema de contas correntes do serviço de gestão de contribuintes que previa que ocorresse em Setembro/Outubro desse ano, altura em que a própria ou o contabilista já poderiam então pagar só as cotizações em dívida, o arguido disse em audiência que foi o contabilista que lhe pediu para ficar com o cheque nas suas mãos, pois - a não ser assim -, a Florinda S... com toda a certeza o iria dissipar levianamente, perante o que o arguido, apesar de admitir não conhecer anteriormente essa Florinda, de forma ingénua (que não se coaduna com a sua formação académica, cargo que então exercia na Segurança Social e experiência profissional de advogado e docente universitário), declarou ter ficado sensibilizado e acedido ao pedido, porque “gosta de ajudar senhoras” (mais uma vez palavras do próprio arguido). Por outro lado, também não se compreende a justificação para o abandono das funções de Director da Delegação de Braga do IGFSS sem a restituição da quantia em causa à sua dona. É que, neste ponto, o arguido refere, singelamente, não ter conseguido contactar a Florinda S..., não obstante os grandes esforços que fez nesse sentido, para o que se socorreu até da ajuda de terceiros e da consulta da lista telefónica. Contudo, face às circunstâncias em que o arguido recebeu o cheque, o cargo que exercia e a sua própria formação académica e profissional (com habilitações e funções acima da média das que estão ao alcance do comum dos indivíduos), não é razoável supor que não tivesse ficado com contacto seguro da respectiva titular e até de não a ter alertado logo para a necessidade de eventual e futuro contacto. Mas, mesmo que, contra todas as regras de normalidade, assim não tivesse procedido, como é que não obteve ele o contacto da Florinda S..., se dos documentos de fls. 28, 31, 32 e 34 a 36 (examinados em audiência), resulta que ela era contribuinte e beneficiária da Segurança Social, recebendo subsídio de desemprego durante o ano de 2003, constando a sua residência actual dos ficheiros dessa instituição, elementos esses que facilmente lhe seriam fornecidos pelos competentes serviços da Segurança Social. Relativamente a esta questão, o arguido disse em audiência não ter tomado essa atitude por não querer dizer o motivo pelo qual necessitava de encontrar a dita senhora. Só que essa explicação, para além de revelar óbvio comprometimento quanto a toda a sua conduta no caso, nem sequer se compreende, pois o arguido, na qualidade de Director da Delegação de Braga do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, certamente que não necessitava de dar grandes explicações a quem quer que fosse, para pedir a informação em causa. Declarou também o arguido e ficou apurado, em conformidade com o teor do documento de fls. 106 (também examinado em audiência), que posteriormente, em 16.05.2005, ressarciu integralmente a Florinda S... dos prejuízos, mas tal circunstância não afasta de modo algum a prévia intenção de apropriação nem com esta se confunde. Passando agora à análise directa dos depoimentos das testemunhas, há que salientar o seguinte: A testemunha Adelino L..., técnico oficial de contas que acompanhou a Florinda S... à entrevista com o arguido e assistiu à entrega do cheque em causa nos autos, narrou pormenorizadamente tudo o que então se passou, frisando que nessa altura ficou clara e expressamente definido que o montante de € 20.000,00 titulado pelo referido cheque se destinava ao pagamento das cotizações devidas à Segurança Social pela sociedade representada pela Florinda S..., tendo resultado das palavras do arguido que esse problema ficava de imediato e logo ali sanado. Mencionando ainda esta testemunha, de forma muito sincera e espontânea, de molde a merecer credibilidade - e contrariamente ao declarado pelo arguido -, que nunca pediu ao arguido para aceitar ficar com o cheque em mão, por ter medo que a Florinda S... dissipasse o respectivo dinheiro, pedido esse que, das declarações desta testemunha resultou até não fazer qualquer sentido. As testemunhas Laura F... - técnica superior da Segurança Social, que trabalhou inclusive com o arguido no Instituto de Gestão Financeira – não demonstrou conhecimento directo do caso dos autos. Referiu contudo (tal como o arguido) que em Fevereiro de 2002 não era então possível afectar um montante de dinheiro entregue por um contribuinte ao pagamento de cotizações em dívida à Segurança Social, para impedir a abertura do processo crime, se a dívida fosse composta de cotizações e contribuições, pois neste caso o sistema existente imputaria sempre o pagamento de quantias parciais às dívidas mais antigas, independentemente da sua natureza e até de vontade em contrário expressa pela devedor. Declarações estas que, neste ponto, divergiram das feitas pelas testemunhas Maria S..., Sandra A... e Maria R..., já supra identificadas, que declararam todas que o contribuinte sempre teve a possibilidade de, em qualquer altura, pagar parcialmente a dívida à Segurança Social, designadamente a respeitante a cotizações que poderiam dar origem a processo crime. Face a estas posições díspares, ficou o tribunal na dúvida sobre se efectivamente seria ou não possível a um contribuinte, na situação da representante legal da “T..., Lda.”, proceder ao pagamento daquela parte da sua dívida que dava origem a processo crime. Tal questão não assume contudo grande relevância, pois nos termos e pelas razões já supra mencionadas quando se referiram as incongruências das declarações do arguido, mesmo na hipótese de a versão do arguido se verificar, isso não explica o depósito do cheque entregue pela Florinda, feito pelo arguido, numa conta pessoal, logo a seguir à sua entrega e depois de alterar os dizeres nele inscritos no espaço destinado ao beneficiário do título. As testemunhas José A... (advogado e amigo do arguido), Ernesto S... (irmão do arguido e seu colega no mesmo escritório de advocacia) e Maria G... (advogada e colega de escritório de advocacia do arguido), declararam todas que em 2003, já depois de o arguido deixar o cargo de Director do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, lhes pediu ajuda para tentar localizar a representante legal da sociedade T..., Lda., tendo todos feito várias diligências nesse sentido, sem êxito. Por sua vez, a testemunha Maria M..., que foi secretária do arguido enquanto ele exerceu aquele cargo de Director do Instituto de Gestão Financeira, declarou também que o arguido, quando cessou as suas funções, lhe disse que a representante da T... o haveria de vir procurar e, quando tal acontecesse, devia ficar com o seu contacto e comunicar-lho logo, o que fez, quando ela apareceu, por ter tido conhecimento do processo crime instaurado contar a “T..., Lda.”. Mais referindo que era habitual o arguido atender contribuintes no seu gabinete, sendo a depoente quem marcava as respectivas entrevistas, fazia a ficha de atendimento e organizava o processo, o que também aconteceu no caso da representante da T..., Lda.” Não tendo contudo assistido à conversa entre o arguido, a representante da “T..., Lda.” e o seu contabilista, nem à entrega do cheque de € 20.000,00, embora tenha sido a depoente quem, a pedido do arguido, fez a cópia de fls. 377 (exibido em audiência), que é a montagem de dois documentos, sendo um o cheque em causa nos autos. Antes de continuar a analisar os depoimentos das restantes testemunhas, impõe-se fazer aqui a consideração de que as alegadas buscas infrutíferas do paradeiro da representante legal da “T..., Lda.”, a pedido do arguido (referidas por algumas testemunhas), surgem pouco credíveis, essencialmente no que toca à efectiva necessidade que o arguido tinha de pedir essa ajuda. Pois, como já supra se referiu, face às circunstâncias em que o arguido recebeu o cheque da representante daquela sociedade, o cargo que exercia e a sua própria formação académica e profissional, não é razoável supor que não tivesse ficado com contacto seguro da respectiva titular e até que não a tenha inclusive alertado logo para a necessidade de eventual e futuro contacto. Mas, mesmo que, contra todas as regras de normalidade, assim não tivesse sido, como é que não conseguiu ele descobrir o paradeiro da Florinda S..., se dos documentos de fls. 28, 31, 32 e 34 a 36 (examinados em audiência) resulta que a mesma era contribuinte e beneficiária da Segurança Social, recebendo subsídio de desemprego durante o ano de 2003, constando a sua residência actualizada dos ficheiros dessa instituição, elementos esses que facilmente seriam fornecidos ao arguido pelos competentes serviços da Segurança Social. Tanto mais a própria testemunha Laura F... - técnica superior da Segurança Social, que trabalhou inclusive com o arguido no Instituto de Gestão Financeira – , que embora se tenha deposto revelando tendência nítida para a desculpabilização do comportamento do arguido, afirmou a dada altura que a representante da “T.... Lda.”, atenta a sua qualidade de gerente dessa sociedade, era obrigada a descontar para a segurança social como independente, facto que o arguido, face à a sua formação e cargo que então desempenhava, não podia obviamente desconhecer. Sendo este mais um elemento para ponderar na estranha atitude do arguido, que refere andar desesperadamente à procura do paradeiro da Florinda S... e não tentar sequer obter tal informações na própria instituição onde trabalha e à qual, como também necessariamente também é do seu conhecimento (como advogado), até os tribunais frequentemente recorrem para obter a morada de cidadãos de quem se desconhece o paradeiro. Acrescente-se que a testemunha Abílio P... - que exerceu o mesmo cargo que o arguido: Director do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, mas em Vila Real -, referiu, tal como o arguido, que as instruções para o exercício dessas funções era fazer tudo o que fosse possível para recuperar a dívida que existia na Segurança Social, o que levava a que, quer esta testemunha, quer as outras pessoas que exerciam esse cargo noutras localidades, flexibilizassem e desburocratizassem os processos de cobrança, muitas vezes contactando directamente com os contribuintes, o que até aí não era usual. Contudo, esta testemunha, embora tivesse deposto de forma nitidamente parcial, no sentido de desculpabilizar o comportamento do arguido (o que foi manifesto em várias hesitações e por vezes incongruências ao longo do depoimento), acabou no entanto por afirmar que nunca recebeu nem poderia receber um cheque de um contribuinte, nas circunstâncias em que o arguido o recebeu da representante da “T..., Lda.”. Ora, em face das declarações do arguido, documentos juntos aos autos, depoimentos das testemunhas e da sua conjugação com as regras da experiência comum, dúvidas não restaram da prova de toda a factualidade apurada, designadamente também dos elementos subjectivos supra descritos nos pontos 12, 14, 15, 16 e 17 dos “Factos Provados”. Aliás e quanto a esta parte da matéria fáctica acrescenta-se que, como já resulta de toda a exposição acabada de efectuar, ponderou-se o iter criminis do arguido, ou seja, as suas acções objectivamente apuradas, apreciadas à luz de critérios de razoabilidade e bom senso e das regras de experiência comum, da qual se extrai a sua intenção, sendo certo que não foi produzida qualquer prova que pudesse ser considerada susceptível de contrariar tal entendimento. Mostrando-se aqui perfeitamente adequado e legítimo o recurso aos aludidos critérios de razoabilidade e bom senso e regras da experiência comum, uma vez que sendo o dolo um elemento da vida interior de cada um, é insusceptível de directa apreensão, só sendo possível de captar através do preenchimento dos elementos objectivos da infracção aliadas a presunções de normalidade e regras da experiência.” Como se vê o tribunal é transparente quanto às provas que determinaram a sua convicção. Analisou as provas, revelando o ponto de partida da sua ponderação e concretizando o ponto de chegada, assim asseverando a todos porque deu total valia a algumas delas e porque é que a deu parcialmente no tocante a outras, do mesmo passo que enuncia qual o substrato racional perseguido para ter formado convicção quanto à existência da facticidade que sustenta o elemento típico objectivo apropriação e daquela que sustenta o elemento subjectivo de ambos os crimes imputados ao arguido ( … e que o mesmo apelida de meros juízos conclusivos…). Por último, também não se detecta o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto no artigo 410º, nº 2, do CPP, uma vez que o tribunal recorrido investigou toda a facticidade alegada na acusação. * O alegado erro de subsunção dos factos provados ao tipo de crime de peculato p. p. pelo artº 375º, nº 1, do CPenal:Conforme decorre da motivação de recurso, o recorrente defende que in casu não se verifica um dos elementos objectivos do crime de peculato previsto no artigo 375º, nº 1 do CP, a saber, a ilicitude da apropriação, em proveito próprio ou de terceiro. Vejamos… Dispõe o citado artigo 375º, nº 1 do CP: “1- O funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções, é punido com pena de prisão de um a oito anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”. São assim elementos típicos do crime de peculato: - a qualidade de funcionário do agente; - a prática dos factos no exercício das suas funções; - a apropriação ilegítima, em proveito próprio ou de terceiro, - de dinheiro ou qualquer outra coisa móvel, pública ou particular; - que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse, ou lhe seja acessível em razão das suas funções; - que actue com a manifesta intenção de se apropriar do dinheiro ou qualquer outra coisa móvel, pública ou particular, bem sabendo que lhe não pertenciam, que actuava contra a vontade do dono e que a sua actuação era punida por lei. A propósito do elemento apropriação ilegítima escreve Conceição Ferreira da Cunha, in Comentário Conimbricense, tomo III, pág. 697/698: “ A conduta punida por este tipo legal consiste na apropriação ilegítima; por apropriação deve entender-se o acto de fazer seu o bem, agindo como se fosse seu proprietário e não mero possuidor; a apropriação é ilegítima desde logo porque não deriva de nenhum título aquisitivo da propriedade…». E a propósito do mesmo elemento típico objectivo, escreve o Prof. Figueiredo Dias: «A apropriação traduz-se sempre…precisamente na inversão do título de posse ou detenção (…): o agente, que recebera a coisa uti alieno, passa em momento posterior a comportar-se relativamente a ela – naturalmente, através de actos objectivamente idóneos e concludentes, nos termos gerais –uti dominus: é exactamente nesta realidade objectiva que se traduz a “inversão do título de posse ou detenção” e é nela que se traduz e se consuma a apropriação.» - vd. ob. cit. tomo II, pág. 103 E continua o mesmo Prof.: “ Sob que forma deva concretamente manifestar-se a apropriação, é em definitivo indiferente: necessário é apenas que, coo acima se disse, se revele por actos concludentes que o agente inverteu o título de posse e passou a comportar-se perante a coisa “como proprietário”. – vd. ob. cit. tomo II, pág. 104 E, por último, a propósito do elemento coisa móvel, importa ter presente, como ensina o mesmo Prof., que não obstante os créditos e quaisquer outros direitos não possam constituir objecto do crime de abuso de confiança, uma vez que não são coisas nem em sentido material, nem em sentido jurídico, já «podem evidentemente constituir objecto do crime de abuso de confiança os documentos em que aqueles créditos ou direitos se corporizam.» - vd. ob. cit. tomo II, pág. 98 Pois bem, presentes estes ensinamentos doutrinários, relembremos a facticidade provada: - O arguido, entre 1 de Abril de 2001 e 31 de Março de 2003, desempenhou as funções de Director da Delegação de Braga do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social (IGFSS). -No âmbito dessas funções, o arguido recebeu no seu gabinete, nas instalações da Segurança Social, em Fevereiro de 2002, em dia que não se conseguiu apurar com rigor, mas que se situa nas proximidades do dia 12.02.2002, a queixosa Florinda S..., acompanhada do seu contabilista, Adelino L..., para tratarem de assunto relacionado com dívidas à Segurança Social, dívidas essas que se traduziam em cotizações e contribuições devidas pela firma “T... Portugal, Lda.”, propriedade da queixosa Florinda S..., que exercia o cargo de gerente. - Após a necessária troca de informações, acerca de montantes em dívida e forma de pagamento, o arguido, aceitou ficar na posse de um cheque de € 20.000,00 pertencente àquela Florinda S... (cheque nº 0300000006 sobre o Banco S..., Agência de Braga com a data de 12.02.2002), - Cheque esse que se destinava a pagar as cotizações em dívida à Segurança Social (a dívida total era composta de cotizações e contribuições), para que dessa forma se obstasse à abertura do processo crime correspondente contra a “T... Portugal, Lda.”. - E tanto assim era, que o cheque foi endereçado ao I.G.F.S.S. (Instituto de gestão Financeira da Segurança Social), para que com ele, o arguido Fernando S... imputasse e pagasse as cotizações em dívida pela “T... Portugal, Lda.” à Segurança Social e prevenisse, desse modo, a abertura de um qualquer processo crime por tais factos, contra a citada empresa. Acontece, porém, que, o arguido, no dia 14.02.2002, contrariamente às instruções que recebera da Florinda S... e de tudo quanto com ela havia acordado, depositou o mencionado cheque na sua conta pessoal com o NIB 0076 000019140811101 73, que tinha aberta no F... S.A., Agência de Vila Nova de Famalicão, depois de nele ter aposto pelo seu punho, por cima do endereço ao IGFSS, os dizeres “C... Salgado”. - Situação que se manteve até ao mês de Abril de 2005, altura em que Florinda S... tomou conhecimento de que tinha um processo crime pendente por dívidas à Segurança Social (cotizações) e se apressou a inteirar-se de que assunto se tratava junto dos serviços respectivos. * A alegada relação de consunção entre o crime de falsificação e o crime de peculato:Defende o recorrente que «não pode ser condenado pelo crime de falsificação, na medida em que essa actuação típica (com eventual dolo necessário) está consumida pela eventual acção típica de peculato (com dolo final e directo) numa relação de consumpção).» Também aqui falece a razão ao recorrente. Vem definido no artigo 30º, nº 1, do Cód. Penal, que o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crimes efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente. Perfilha-se, pois, o chamado critério teleológico para distinguir ente unidade e pluralidade de infracções, atendendo-se assim ao número de tipos legais de crime efectivamente preenchidos pela conduta do agente, ou ao número de vezes que essa conduta preencheu o mesmo tipo de crime. Como ensina Eduardo Correia, «Pluralidade de crimes significa … pluralidade de valores jurídicos negados» - vd. Direito Criminal, II vol., Livraria Almedina 1971, pág. 200 Ter-se-á, pois, que atender, na indagação da unidade ou pluralidade de crimes perpetrados, não aos fins procurados pelo agente que as praticou mas antes aos fins visados pela incriminação das normas violadas. No crime de peculato a norma incriminadora protege o interesse do Estado e dos organismos públicos em que os seus funcionários e agentes sejam honestos. No crime de falsificação de documento o bem protegido é a segurança e a confiança do tráfico jurídico, especialmente o tráfico probatório, a verdade intrínseca do documento, a sua fá pública e a sua transmissibilidade. Como se vê, não há coincidência nos interesses protegidos. Por outro lado, não há qualquer disposição que ressalve o concurso do peculato com a falsificação (enquanto meio de realização daquele) do regime geral estatuído no citado artº 30º, nº 1, do CP. Por último, não se verifica entre tais crimes qualquer relação de especialidade, subsidiariedade, alternatividade ou consunção, nem se configurando nenhum dos crimes em relação ao outro como facto posterior não punível. Há, pois, concurso real em tais crimes, como foi decidido pelo tribunal a quo. * A alegada extinção da responsabilidade criminal nos termos do artigo 206º, nº 1, do CPenal, na redacção dada pela Lei nº 59/2007, de 04/09:Sustenta o recorrente que tendo «… procedido à restituição e reparação, integral, dos danos causados à lesada, Florinda S..., deve beneficiar …da extinção da responsabilidade criminal nos termos do … nº1 do art. 206 do Código Penal», aplicável «por aplicação directa, por interpretação extensiva ou, até, por analogia (in bonam partem), acomodada na interpretação a contrario do disposto no nº 3 do art. 1º do Código Penal.» Também nesta questão, falece a razão ao recorrente. Demonstrando… Dispõe o citado preceito, na redacção actualmente vigente: “ 1. Nos casos previstos nas alíneas a), b), e e) do nº 1 e na alínea a) do nº 2 do artigo 204º e no nº 4 do artigo 205º, extingue-se a responsabilidade criminal, mediante a concordância do ofendido e do arguido, sem dano ilegítimo de terceiro, até à publicação da sentença da 1ª instância, desde que tenha havido restituição da coisa furtada ou ilegitimamente apropriada ou reparação integral dos prejuízos causados». Decorre, assim, deste normativo que o regime nele previsto é aplicável em relação a certas alíneas do artigo 204º (furto qualificado) e ainda em relação ao crime de abuso de confiança (205º), desde que este crime não seja qualificado em função da especificidade do título de recebimento (vd. nº 5). O que significa que o crime de peculato previsto no artigo 375º do CPenal não faz parte da previsão do citado normativo. Por outro lado, o legislador não inseriu no artigo 375º do CPenal nenhuma cláusula de aplicação correspondente do artigo 206º, conforme o fez em relação a outros preceitos relativos a crimes patrimoniais (cf., por exemplo, artº 212º, nº 4, do CP). Acresce que o legislador, mesmo em relação a crimes patrimoniais, opta, nalguns deles, por inserir uma cláusula de aplicação correspondente do artigo 206º, sem excluir qualquer um dos seus números (cfr., por ex. artºs 212º, nº 4, 216º, nº 3, 217º, nº 4, todos do CP), enquanto que, noutros, já restringe a aplicação do citado nº 1 do artº 206º a determinados casos previstos no preceito (vd., por exemplo, artºs 213º, nº 4 e 218º, nº 4, ambos do CP). De resto, como já se referiu supra, mesmo no caso do crime de abuso de confiança, o legislador optou pela não aplicabilidade do regime previsto no nº 1 do artigo 206º quando o crime é qualificado em função da especificidade do título de recebimento. Ou seja, a não aplicabilidade do regime prevenido no nº 1 do artigo 206º do CP ao crime de peculato é claramente uma opção do legislador, o que aliás se compreende, em perspectiva político - criminal e dogmática, se tivermos presente que, neste crime, a norma incriminadora protege o interesse do Estado e dos organismos públicos em que os seus funcionários e agentes sejam honestos. * Decisão: Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em, negando provimento ao recurso, confirmar a sentença recorrida. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 (oito) UC. (Texto processado em computador e revisto pela primeira signatária – artº 94º, nº 2 do CPP) |