Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1888/04-2
Relator: ANÍBAL JERÓNIMO
Descritores: DIREITO DE SUPERFÍCIE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/09/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA RECORRIDA
Sumário: I - A faculdade de implantar e manter edifício próprio em chão alheio pode não implicar o exercício das regras sobre aces-são imobiliária, desde que se invoque o direito de superfície (arts. 1524.° e 1528.° do Código Civil).
II - O direito do superficiário sobre a obra ou as plantações não se configura como um direito real de gozo de coisa alheia, per-tencente ao proprietário do solo, tal como o usufruto, mas como um verdadeiro direito de domínio (ergo sobre coisa própria).
III - O direito de superfície é uma excepção ao princípio geral da propriedade que é a acessão, significando esta que o pro-prietário de uma coisa adquire o direito sobre aquilo que nessa coisa se veio a incorporar.
IV - O termo "obra" é mais amplo que a expressão "edifí-cio" e até do que o vocábulo "construção", mostrando que o direi-to de superfície pode ter por objecto não só os edifícios ou prédios urbanos (destinados a habitação, à instalação de um estabeleci-mento comercial, etc.), mas também outro tipo de construções (como pontes, diques, muros, etc.) e até de obras (como o banco numa igreja, as vigas do caminho de ferro, os carris ou os cabos dos eléctricos) que não sejam propriamente uma construção, no sentido usual do termo. Essencial é que a obra esteja material-mente unida ou ligada ao solo alheio.
V - O direito de superfície pode ser constituído por contra-to, testamento ou usucapião (art. 1528.° do Código Civil).
VI - No direito de superfície, não se coloca a questão da falta de autonomia da parcela e da necessidade de destaque, mes-mo que a parcela não confine com a via pública, visto o disposto no art. 1529.° - a constituição do direito de superfície importa a constituição das servidões necessárias ao uso e fruição da obra.
VII - O direito de superfície abrange, além do solo em ques-tão, os alicerces da obra e o logradouro da construção, tendo em conta o uso a que se destina.
VIII - Se o autor reivindicou o bem com base no direito de propriedade, o tribunal é livre de qualificar tal direito como "direito de superfície" - art. 661.° do C.P.C. .
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

"A", e mulher "B", residentes na ..., Viana do Castelo, vieram intentar a presente acção, com forma de processo ordinária, contra "C" e "D" e mulher pedindo que se declare que são donos do prédio urbano tal como o descrevem no seu articulado e que se condenem os réus a assim o reconhecerem e a absterem-se de praticar actos susceptíveis de violar a posse dos autores.
Para tanto alegam, em síntese, que desde há mais de 17 anos os segundos réus autorizaram os autores a levantar no prédio uma construção.
Acrescentam que desde a construção os autores vêm possuindo tal construção, de forma pública, pacífica e contínua, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja.
Finalizam dizendo que em inventário os réus não aceitam que a construção “oficina” seja dos autores e daí a necessidade de instauração da presente acção.
Os réus contestaram a presente acção defendendo-se por impugnação directa, e deduziram pedido reconvencional.
Os autores vieram responder ao pedido reconvencional, pedindo alteração do pedido inicial e a condenação dos réus como litigantes de má fé.
Na tréplica os réus mantiveram a posição já por eles assumida.
Terminam concluindo pela improcedência da acção.
Saneados e condensados os autos, foi respondida à matéria de facto e proferida decisão que julgou a presente acção procedente e improcedente o pedido reconvencional e, em consequência:
Declarou que os autores são donos do prédio que descrevem no artigo 5º e 6º do seu articulado inicial e que consta da matéria assente:
- uma construção destinada a oficina de carpintaria, com a superfície coberta de 72 m2, que confronta do nascente com Maria A... e do norte, sul e poente com o terreno de logradouro do prédio, fazendo-se o acesso a essa construção com o mesmo logradouro e que efectuada no prédio descrito em A) “Prédio composto por casa de habitação, de rés-do-chão, e terreno de logradouro, situado no lugar de ..., Rua ..., com 62 m2 quadrados de superfície coberta e 184 metros quadrados de logradouro, a confrontar do norte com estrada municipal e do sul, nascente e poente com Madalena M..., inscrito na matriz predial de santa Maria Maior sob o artigo ..." - certidão de fls. 133 e seguintes.
Condenou os réus a reconhecerem o supra descrito prédio e, bem assim, a absterem-se de praticar todos e quaisquer actos susceptíveis de perturbar, prejudicar ou violar a posse e o direito de propriedade dos autores.
No mais absolveu os réus do pedido reconvencional.
Inconformadas com esta decisão, apelaram a Ré e as Rés habilitadas, suas filhas, e nas alegações deduziram as seguintes:

CONCLUSÕES:
1- O Tribunal a quo nunca poderia julgar procedente o pedido dos agora recorridos baseado na acessão industrial imobiliária. Uma vez que pretendem os agora recorridos adquirir, mediante a acessão, apenas uma parcela de terreno tinham que ter alegado e depois provado o valor actualizado da dita parcela, à data da incorporação, o valor (também actualizado) da nova “unidade predial” (constituída pelo conjunto formado pela obra nova e pela parcela de terreno). E não tendo sido produzida a respectiva prova, é evidente que a sua pretensão tinha de improceder.
2- A fracção de terreno onde se encontra situada a oficina não podia, nem pode, ser objecto de um direito de propriedade distinto daquele que tem por objecto todo o prédio descrito na alínea A) da Especificação, e isto de acordo com o princípio da totalidade e com o princípio da especialidade ou da individualização.
3- A fracção ou parcela onde se encontra situada a oficina não podia, nem pode, ser objecto de um direito de propriedade distinto daquele que tem por objecto todo o prédio descrito na alínea A) da Especificação, uma vez que o dito prédio nunca foi loteado (cfr. art. 27, n.º 1 e 2 do Decreto Lei n.º 289/73; art. 53º do Dec-Lei 448/91 e art. 49º do Decreto-Lei n.º 177/2001 de 4 de Junho de 2001 actualmente em vigor). E a dita parcela do prédio nunca foi, nem podia ter sido, objecto de destaque (cfr. art. 6º Decreto-Lei n.º 177/2001 de 4 de Junho de 2001, tal como o anterior art. 5º do D.L. 448/91 de 29 de Novembro).
4- Consequentemente, nunca foi exercida sobre a dita parcela de terreno posse.
Uma vez que não há posse sobre coisas cuja propriedade não se possa adquirir.
Posse é o poder de facto que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (art. 1251º do Código Civil) e estes direitos só podem incidir sobre coisas autónomas e individualizadas, já não sobre partes de um todo mais vasto.
5- E não havendo posse é claro que não podia nem pode ser invocada a usucapião – a usucapião supõe posse e a posse, por sua vez, só existe sobre coisas autónomas.
6- Os tribunais cíveis ao analisarem a usucapião não podem desprezar a legislação sobre loteamentos, de modo a que esse regime não influencie a solução, ao invés, devem considerar o ordenamento jurídico como um todo harmónico em que cada solução passa pela análise de todos os ramos do direito, pois só assim evitarão verdadeiras fraudes à lei. De facto, só assim evitarão que através do instituto da usucapião se obtenha uma espécie de “legalização” de loteamentos e destaques clandestinos.
7- Consequentemente, o Tribunal não podia ter reconhecido aos agora recorridos o direito de propriedade com base na invocada usucapião e depois afirmar que por força da usucapião se virá a proceder ao destaque. Tal implica inverter os pressupostos lógico-jurídicos da usucapião e alterar a sua finalidade, uma vez que a usucapião não foi concebida pelo legislador como uma forma de individualizar ou autonomizar partes de coisas.
Assim sendo, o Tribunal a quo violou o art. 2.º, 4.º, 6º e 49º do Dec-Lei 177/2001 de 4 de Junho actualmente em vigor; o art. 2º, 3º, 5º e 53º do Dec-Lei 448/91 que vigorava ao tempo da invocação da usucapião; e o art. 1º e 27º do Dec-Lei de 6 de Junho que vigorava ao tempo da edificação da carpintaria. Bem como, os arts. 335, n.º 2, 408, n.º 2, 1251º e 1287º, todos, do Código Civil.
8- Refira-se, ainda, que a doutrina e a jurisprudência (incluída a do STJ) têm entendido, maioritariamente, que a acessão, não obstante se tratar de uma forma de aquisição originária – tal como a usucapião – só pode operar em relação a uma fracção de um prédio quando a dita fracção se encontre devidamente autonomizada e demarcada, a ponto de constituir uma unidade económica independente. Uma vez que o juiz não deve consolidar uma situação desconforme com as regras que condicionam o fraccionamento de prédios rústicos e regulam os loteamentos e destaques para fins de construção;
9- Sendo assim, e por tudo o anteriormente referido, não restam dúvidas que o mesmo deve ser afirmado quando em causa esteja a invocação da usucapião.
10- Sem prescindir do até agora afirmado, no caso em concreto, a invocação da usucapião nunca poderia conduzir à aquisição originária da propriedade da referida parcela de terreno, uma vez que não resultou provada a forma pela qual os agora recorridos “adquiriram” a eventual posse nem a data em que a “adquiriram”.
11- Ora, como é evidente, a determinação da forma de aquisição da eventual posse e a data exacta da mesma eram, absolutamente, indispensáveis nesta acção, uma vez que foi invocada a usucapião e era necessário contabilizar o tempo de posse relevante!...
12- O Tribunal a quo nem sequer se pronunciou sobre a questão de saber como foi adquirida a “eventual” posse, e quanto à data do início da posse limitou-se a fixar o ano de 1981, consequentemente, violou o art. 668, n.º 1, d) do Código de Processo Civil.
13- Não obstante, deve ser dado como ponto assente que os agora recorridos nunca adquiriram derivadamente a posse, em termos de direito de propriedade sobre a referida fracção, pois a aquisição derivada da posse, em termos de direito de propriedade, supõe um acto jurídico tendente à transmissão dessa posse.
E
14- Como resulta, claramente, do alegado e provado pelas partes (cfr., entre outros, art. 3 da P.I. e art. 10 da Réplica) Manuel d... e a sua mulher nunca celebraram um qualquer negócio com os agora recorridos, a título oneroso ou gratuito, válido ou inválido, através do qual tenham visado transmitir o direito de propriedade sobre a referida fracção de terreno. Consequentemente, nunca quiseram dispor (alienar ou onerar) de parte do seu terreno, ao contrário do afirmado, gratuitamente, na Sentença ora recorrida.
15- De acordo com os factos provados, Manuel d... e a sua mulher limitaram-se a consentir na construção sobre o seu terreno que queriam que continuasse a ser seu na totalidade.
16- Quando Manuel d... e a sua mulher autorizaram o levantamento da oficina no seu prédio, apenas quiseram significar que não fariam oposição, que não reagiriam contra os actos incompatíveis ou contrastantes com o seu direito.
17- Acresce que, foi Manuel d... quem, em 1984, solicitou a inscrição nas finanças da carpintaria e fê-lo em seu nome, praticando desta forma um acto que traduziu inequivocamente o exercício do seu direito de propriedade sobre a fracção onde havia sido edificada a oficina de carpintaria. (conforme resulta da certidão matricial junta aos autos a págs. 159 e 160, pelos próprios recorridos!!!).
18- Portanto, aquando da construção da oficina de carpintaria e até 1984 os agora recorridos aproveitaram-se simplesmente da tolerância do titular do direito, tendo assim actuado como meros detentores da parcela de terreno onde foi edificada a oficina (cfr. art. 1253º b) do Código Civil).

19- Os recorridos não alegaram e, consequentemente, não lograram provar, como lhes competia, que após essa data (1984), tivessem adquirido a posse originariamente.
20- Acresce que, posteriormente a essa data, foi sempre Manuel d... e seus sucessores quem pagaram a respectiva contribuição autárquica e não os agora recorridos.
21- Sem prescindir do até agora afirmado quanto à qualificação dos actos praticados pelos agora recorridos, que consideramos terem sido sempre de mera detenção, cumpre referir que caso os agora recorridos, a partir de certa altura, tivessem praticado tais actos com animus possedendi nem por isso tal actuação poderia conduzir à invocação da usucapião, uma vez que seria impossível contabilizar o lapso de tempo de posse juridicamente relevante embora seja certo que tal lapso de tempo sempre teria sido inferior a quinze anos!...
Vejamos com mais pormenor:
22- A Meritíssima Juíza deu por provado que as obras de construção da oficina, identificada em D) da especificação, ocorreram no ano de 1981.
Acontece que os agora recorrentes, atempadamente, juntaram ao processo vários documentos que provam que a referida oficina não foi construída em 1981, nem sequer no primeiro trimestre de 1982!...
23- Tais documentos foram: o “croquis” que serviu de base à construção da oficina que foi efectuado, a 11/02/82, pelo Réu João M... (vide docs. ns. 5, 6, 7, 8 e 9); dois orçamentos da empresa Seixas ..., Lda., um com a data de 19/8/82 e o outro com a data de 9/2/83; um comprovativo de que o Sr. Manuel d... entregou a título de empréstimo Duzentos Mil escudos aos agora recorridos em 1 de Junho de 1984, para que estes fizessem face a alguns dos custos da construção da oficina de carpintaria (cfr. doc. n.10).
24- Tais documentos foram apresentados como prova, o seu conteúdo não foi impugnado e, consequentemente, deviam ter sido levados em consideração, pela Meritíssima Juíza, aquando da resposta ao quesito 1º.
25- A Meritíssima Juíza, aquando da resposta dada ao quesito 1.º, ou não levou em consideração os documentos juntos ao processo como elementos de prova e, muito menos, fundamentou convenientemente a resposta dada a este quesito, uma vez que não justificou por qualquer forma a prevalência dada aos depoimentos feitos exclusivamente pelas testemunhas dos agora recorridos, em detrimento da prova produzida por documentos apresentados pelos agora recorrentes e não impugnados pelos agora recorridos, para afirmar que as obras de construção da oficina ocorreram em 1981. (Vid. art.º 38.º e 567, n.º 2 do C.P.Civil)
26- Consequentemente, não obstante ter sido dado como provado, através da resposta dada ao quesito 5, que desde que foi feita a construção o autor instalou nela a sua oficina de carpintaria, não se pode aceitar que tal tenha ocorrido em 1981.
27- Acresce que, conforme se pôde comprovar através de documento enviado pela EDP ao Tribunal a quo, os agora recorridos apenas celebraram contrato com a EDP em Abril de 1982. E os próprios recorridos alegaram que o Autor não podia desenvolver a sua actividade profissional, na oficina de carpintaria, enquanto esta não tivesse electricidade!... (cfr. art. 17.º da P.I. e art.º 16 da Réplica).
28- Em face de todo o exposto, a Meritíssima Juíza não podia, coerentemente, ter afirmado que, desde 1981, os agora recorridos praticaram os actos descritos nos quesitos 4º a 7º com a intenção de exercerem os poderes correspondentes ao direito de propriedade sem oposição de quem quer que fosse!!
Desta forma o Tribunal a quo violou o art. 668, n.º 1, d) do Código de Processo Civil e os arts. o art. 1253, b), 1263º do Código Civil.
29- Consequentemente, do exposto resulta claro que mesmo quem entenda que houve posse por parte dos recorridos tem de reconhecer que o tempo de posse relevante é apenas o que decorreu entre a data da inversão do título de posse – que ficou por apurar mas, a ter ocorrido, terá sido em data posterior a 1984, data da inscrição nas finanças da oficina de carpintaria em nome de Manuel d... –, e a citação (em 5/12/1996) dos agora recorridos no processo de inventário, proposto por "C". (Citação esta que interrompeu a contagem do tempo de posse relevante para invocar a usucapião de acordo com o art. 1292.º e o art. 323.º do Código Civil).
30- Ou seja, mesmo quem entenda que houve posse por parte dos recorridos tem de reconhecer que a referida posse durou muito menos de quinze anos. Não podendo, consequentemente, fundamentar a aquisição com base na usucapião!...

Pedem que seja dado provimento ao recurso e que se declare que o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o n.º 84 941 pertence, na sua totalidade, à herança de Manuel d....

Não houve contra alegações.

Colhidos os VISTOS, cumpre decidir.

FACTOS DADOS COMO PROVADOS

A) Está descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o n.º ..., a fls. ... do livro B-215, o seguinte prédio urbano:
“ Prédio composto por casa de habitação, de rés-do-chão, e terreno de logradouro, situado no lugar de ..., Rua ..., com 62 metros quadrados de superfície coberta e 184 metros quadrados de logradouro, a confrontar do norte com estrada municipal e do sul, nascente e poente com Madalena M..., inscrito na matriz predial de Santa Maria Maior sob o artigo ...” – certidão de fls. 133 e seguintes.
B) Tal prédio está inscrito na C.R.P. a favor de Manuel d..., casado em regime de comunhão geral de bens com a ré "C", pela inscrição n.º ..., a fls ... do livro G- 57 - certidão de fls. 133 e seguintes.
C) Manuel d... faleceu em 16-01-86 e sucederam-lhe como únicos herdeiros a viúva, a ré "C", e os filhos, a autora "B" e o réu "D" – certidão de fls. 49 e seguintes.
D) No prédio descrito em A) foi efectuada uma construção destinada a oficina de carpintaria, com a superfície coberta de 72m2, que confronta do nascente com Maria A... e do norte, sul e poente com o terreno de logradouro do prédio, fazendo-se o acesso a essa construção com o mesmo logradouro
E) Tal construção foi feita em vida de Manuel d... e mulher, com o acordo e autorização deles, e a oficina destinava-se a que o autor "A" aí viesse a exercer a sua profissão de carpinteiro, como efectivamente exerceu.
F) Na altura dessa construção, o prédio tinha o valor de 10.000.000$00.
1ºAs obras da construção referida em D) ocorreram no ano de 1981.
2º Os autores contribuíram com a maior parte das despesas, entregando dinheiro, tendo algum material sido oferecido.
4º Desde que foi feita aquela construção, as chaves da mesma sempre estiveram exclusivamente em poder dos autores.
5º O autor instalou nela a sua oficina de carpintaria e passou a desenvolver aí a sua actividade profissional.
6º A instalação do contador e fornecimento de electricidade desde a construção foram sempre pagos pelos autores.
7º Os autores levaram a efeito todas as obras de manutenção e reparação da referida construção.
8º Os actos descritos nos quesitos 4º a 7º foram praticados pelos autores à vista de toda a gente, com exclusão de outrem e sem a oposição de quem quer que fosse.
9º E com a intenção de exercerem os poderes correspondentes ao direito de propriedade.
14º A ré "C", por si e seus antecessores, há mais de 20 anos que vêm semeando e plantando legumes, flores e árvores e colhendo os respectivos frutos e procedendo a obras de restauro no prédio referido em A), à excepção da construção referida em D).
15º E fá-lo, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e na convicção de serem legítimos proprietários e de não lesarem os direitos de quem quer que fosse.

O DIREITO

Nos termos dos art.ºs 684º, n.º 3 e 690º, n.º 1 do C.P.C., as conclusões das alegações do recorrente fixam o objecto e âmbito do recurso, o que tem sido entendido, de uma maneira geral, pela Doutrina e pela Jurisprudência (CJ-Ac.- STJ- ano III- 1995, pág. 63; CJ- 1993, Tomo V- 107).

Da factualidade dada como provada resulta que os autores fizeram uma construção, mais concretamente uma oficina no prédio dos réus Manuel d... e mulher, com o acordo e autorização deles, e a oficina destinava-se a que o autor "A" aí viesse a exercer a sua profissão de carpinteiro, como efectivamente exerceu.
1º) As obras da construção referida em D) ocorreram no ano de 1981.
2º) Os autores contribuíram com a maior parte das despesas, entregando dinheiro, tendo algum material sido oferecido.
4º) Desde que foi feita aquela construção, as chaves da mesma sempre estiveram exclusivamente em poder dos autores.
5º) O autor instalou nela a sua oficina de carpintaria e passou a desenvolver aí a sua actividade profissional.
6º) A instalação do contador e fornecimento de electricidade desde a construção foram sempre pagos pelos autores.
7º) Os autores levaram a efeito todas as obras de manutenção e reparação da referida construção.
8º) Os actos descritos nos quesitos 4º a 7º foram praticados pelos autores à vista de toda a gente, com exclusão de outrem e sem a oposição de quem quer que fosse.
9º) E com a intenção de exercerem os poderes correspondentes ao direito de propriedade.

Mas primeiras conclusões, os apelantes levantam o problema da acção industrial imobiliária e da impossibilidade de aquisição mediante a invocação da usucapião, tendo em conta a falta de autonomia da parcela de terreno na qual foi edificada a oficina.
Por outro lado, para impedir a verificação do prazo de usucapião, pretendem a alteração da matéria de facto em relação à data em que ocorreu a construção da oficina.
De harmonia com o princípio da prova livre consagrado no art.º 655º do C.P.C., o tribunal aprecia livremente as provas e responde aos quesitos em sintonia com a convicção que tenha formado acerca de cada facto quesitado, salvo se a lei exigir para a existência ou prova do facto jurídico qualquer formalidade especial, caso em que esta formalidade não pode ser dispensada.
Decorre deste princípio o regime geral da imodificabilidade das respostas aos quesitos por parte da Relação, só sendo lícito alterar tais respostas nas hipóteses taxativamente enumeradas no n.º1 do art.º 712º do C.P.C.. Ora, no presente caso não ocorre nenhuma das hipóteses previstas nessa disposição legal.
Por um lado, dos autos não constam todos elementos de prova que serviram de base às respostas, pois sobre os quesitos foi ouvida prova testemunhal, cujos depoimentos não foram transcritos. Por outro lado, não está aqui em causa nenhum documento novo superveniente. Por fim, não existe no processo nenhum elemento ou documento que imponha resposta diversa a tais quesitos, por si só, suficiente para destruir a prova em que as respostas assentaram. Este último fundamento está relacionado com o valor legal da prova, exigindo-se que o valor dos elementos coligidos no processo não pudesse ser afastado pela prova produzida em julgamento.
Ao abrigo da al.ª b) do n.º 1 do art.º 712º do C.P.C., a alteração da respostas só é admissível quando haja no processo um meio de prova pleno, resultante do documento, confissão ou acordo das partes e esse meio de prova diga respeito a determinado facto sobre o qual o tribunal também se pronunciou em sentido divergente.
Ora, no processo não existe nenhum elemento deste tipo, sendo certo que os documentos apresentados, são documentos particulares, de livre apreciação do tribunal - art.º 376º do C.C..
Não é, pois, possível alterar as respostas aos quesitos 1º, 5º e 8º com base no disposto no n.º 1 do art.º 712º do C.P.C..

A sentença recorrida faz uma análise da aquisição originária e da aquisição derivada, referindo que “o direito de propriedade é um direito autónomo, independente do direito do proprietário anterior, bastando ao que a invoca demonstrar a existência de uma dessas formas de aquisição, na aquisição derivada tudo se passa de forma diferente. O direito do autor influi profundamente no direito do transmitente, pois os negócios jurídicos translativos, não criam a propriedade, apenas a transferem.
Porém, ao longo de todo o processo e mesmo no anterior acórdão da Relação do Porto não se fala no direito real que aqui está em causa e que resulta claramente dos factos dados como provados e está previsto no artº 1524º que nos diz:
“ O direito de superfície consiste na faculdade de construir ou manter, perpétua ou temporariamente, uma obra em terreno alheio…”
A faculdade de implantar e manter edifício próprio em chão alheio, sem aplicação das regras sobre acessão imobiliária, diz o artigo 1.° da lei 2030 de 22.06 de 1048, chama-se direito de superfície. E é com a configuração de um autêntico ius in re que, logicamente, o direito de superfície aparece incluído, dentro do Livro III do novo Código, na galeria limitada dos direitos das coisas.
Como se define o direito de superfície? Qual a sua natureza jurídica?
Para caracterizar com o devido rigor a posição complexa do super-ficiário, há que distinguir a dupla face em que se desdobra o direito de superfície.
Por um lado, o superficiário é, ou virá a ser, proprietário da obra ou plantação. É de um verdadeiro direito de propriedade, sujeito à respec-tiva disciplina, que se trata. Embora o artigo 1524.° o não diga expressis verbis, a natureza jurídica do vínculo que prende o superficiário à obra ou plantação resulta inequi-vocamente do disposto no artigo 1528.° Ao definir o princípio geral rela-tivo à sua constituição, este artigo diz, com efeito, que o direito de super-fície pode resultar da alienação da obra ou das árvores já existentes, separa-damente da propriedade do solo. No mesmo sentido cabe ainda invocar o disposto no artigo 24.°, 1, al. a), da Lei nº 2030, segundo o qual ao superficiário é assegurada a propriedade do edifício, enquanto o direito de superfície lhe pertencer.
Esta constituição de dois domínios separados, distintos ou paralelos, sobre o solo ou terreno, por um lado, e sobre a obra ou as árvores nele implantados, por outro, representa o termo de uma profunda revolução das concepções romanistas em matéria de propriedade imóvel.
Segundo o primitivo direito romano, tudo quanto se implantava sobre o solo pertencia ao dono deste. Por consequência, se alguém construísse sobre terreno alheio, a construção ficaria a pertencer ao pro-prietário deste terreno. A mesma ideia básica da ligação material do solo com as obras nele implantadas e da correlativa incindibilidade do respectivo domínio, assentes quer sobre a concepção romanista da superfícies solo cedit, quer sobre o princípio germânico de sentido oposto (solum cedit superficiei), vamos encontrar no regime da acessão imobiliária, fixado no Código napoleónico e naqueles diplomas que, como o Código português de 1867, sofreram a sua influência.
Em nenhum destes Códigos aparece o direito de superfície entre os direitos sobre as coisas. Onde ele aparece já regulado como tal é nos Códigos alemão, austríaco e suíço (Salis, La superfície, no Trattato de Vassavi, 1949, n.º 1) e, entre nós, primeiro na Lei n.º 2030 (arts. 21.º e segs.) e, agora, no Código Civil em vigor. E aparece, no que toca ao direito do superficiário sobre a obra ou as plantações, não como um simples direito (real) de gozo de coisa alheia (pertencente ao proprietário do solo), semelhante ao usufruto por exemplo, mas como um direito de domínio (ergo sobre coisa própria).
A outra face do estatuto real do superficiário é a que se refere ao direito deste em relação ao terreno ou solo, no qual ficam implantadas a obra ou as árvores que lhe pertencem.
Que espécie de direito é esse? Que relação liga o superficiário ao solo? A doutrina tem respondido de diversas formas a esta interrogação.
Para uns, a construção da obra ou a plantação das árvores envolveria a apropriação do solo correspondente, de tal sorte que o superficiário não teria dois direitos distintos, mas um direito único de pro-priedade, embora sobre duas coisas diferentes: a obra ou as árvores, de um lado: o solo ou terreno correspondente, do outro.
Esta concepção não se coaduna com a própria noção do artigo 1524.°, que se alude à faculdade de construir ou manter uma obra em terreno alheio, ou de nele (terreno alheio) fazer ou manter plantações. E o mesmo se diga, mutatis mutandis, em relação à variante considerada no artigo 1526.°
Além disso, diz-se no artigo 1528.° que o direito de superfície pode resultar da alienação de obra ou árvores já existentes, separadamente da propriedade do solo. Também nesta forma de constituição, a proprie-dade do terreno fica, segundo o texto explícito da lei, em mãos diferentes das do dono da obra ou das árvores (superficiário).
Por sua vez, o artigo 1534.° refere-se ao direito de superfície e ao direito de propriedade do solo, para regular a sua transmissibilidade, como sendo dois direitos distintos. A mesma separação é pressuposta no artigo 1541.°, que trata da sorte dos direitos reais constituídos sobre a superfície e o solo, no caso de extinção do direito de superfície. Na alínea a) do n.°1 do artigo 688.°, prevê-se que o direito de superfície seja objecto possível da hipoteca, daqui se concluindo que este direito não se confunde com a propriedade (quer da obra, quer do solo, quer de uma e outro em conjunto); de contrário, bastaria a menção dos prédios rústicos e urbanos.
Não é, por conseguinte, a propriedade do solo (permanecendo nas mãos do antigo titular) que serve para justificar o direito de construir ou de manter a obra (em terreno alheio).
“O direito de superfície entendido como figura complexa é um direito real menor pelo qual se efectua parcelamento jurídico de um prédio, pela derrogação do princípio da acessão, de modo que o titular desse direito tem «faculdade de construir ou manter, perpétua ou temporariamente, uma obra em terreno alheio ou de nele fazer plantações»” (Armindo Ribeiro Mendes - O Direito de Superfície, em R.O.A., 1972, 1, 41)
O direito de superfície é, no fundo, uma excepção ao princípio geral da propriedade que é a acessão. Esta significa que o proprietário de uma coisa, adquire o direito sobre aquilo que nessa coisa se veio a incorporar.
O artº 1524º aponta inequivocamente, como elemento fundamental (típico, específico) da superfície, a relação do superficiário com o solo. É esse, de facto, não só o aspecto essencial, mas o elemento irredutível da superfície, visto a propriedade superficiária não existir enquanto a obra não se constrói, mas tornando-se um direito autónomo logo que a obra esteja concluída.
O termo “obra” é mais amplo que a expressão “edifício” e até do que o vocábulo “construção”, mostrando que o direito de superfície pode ter por objecto não só os edifícios ou prédios urbanos (destinados a habitação, à instalação de qualquer estabelecimento comercial, etc…) mas também outros tipos de construções (como pontes, diques, muros, etc…) e até de obras (como o banco numa igreja, as vigas de caminho de ferro, os carris ou os cabos dos eléctricos) que não sejam propriamente uma construção no sentido usual do termo. Essencial é que a obra esteja materialmente unida ou ligada ao solo alheio.
No direito de superfície a construção é uma propriedade que não abrange o solo, incidindo o direito do superficiário sobre a obra e o do fundeiro sobre o solo.
Os requisitos referidos são exactamente os que se verificam na obra construída pelos Autores, não se levantando aqui qualquer problema de acessão imobiliária.
Estipula o artº 1528º que o direito de superfície pode ser constituído por contrato, testamento ou usucapião. Esta última forma de constituir o direito de superfície tem por base o decurso do lapso de tempo que efectivamente foi dado como provado. Daqui não resultam dúvidas que o direito de superfície dos Autores se constituiu por usucapião, sendo irrelevantes quaisquer outras considerações quanto à forma como foi financiada a obra e quem colaborou na mesma.
Nos termos do artº 661º nº1 do C.P.C., o juiz não pode condenar em objecto diverso do que lhe foi pedido, mas esta norma tem uma interpretação flexível no sentido do tribunal corrigir o pedido quando este traduza mera qualificação jurídica sem alteração do teor substantivo. Assim sendo, embora esta Relação mantenha a condenação dos Réus, tal condenação terá em conta a nova qualificação jurídica do direito dos Autores.
O problema da falta de autonomia da parcela e necessidade de destaque, levantado também nas alegações, e constante das conclusões 6ª a 8ª, não tem razão de ser e é resolvido através do artº 1529º do C.Civil, que determina que “a constituição do direito de superfície importa a constituição das servidões necessárias ao uso e fruição da obra”. Este princípio representa o simples corolário de uma ideia geral há muito assente entre os autores: o reconhecimento de um direito envolve a atribuição dos meios indispensáveis ao seu gozo normal. Feita a obra, o proprietário do solo terá, não só, de consentir na prática dos actos ligados ao uso e à fruição normal da obra, mas abster-se também dos actos que possam impedir ou tornar mais oneroso o exercício da propriedade superficiária, conforme explicitamente referem os artºs 1532º e 1533º. Diz este último que “o uso e a fruição do subsolo pertencem ao proprietário; este é, porém, responsável pelo prejuízo causado ao superficiário em consequência da exploração que dele quer fazer”. Assim, o direito de superfície pode abranger, além do solo em questão, os alicerces da obra, uma porção de terreno que sirva de logradouro à construção e ao exercício da actividade para a qual foi destinada.
Outro dos dispositivos legais que havemos de ter em conta é a transmissibilidade dos direitos estipulado no artº 1534º do C.Civil, ou seja, “o direito de superfície e o direito de propriedade do solo são transmissíveis por acto entre vivos ou por morte”, autonomamente.
Assim, no inventário por morte do Réu "D", não se pode transmitir o direito de superfície dos Autores com as inerentes servidões.
Tem interesse referir o artº 1536º nº1 al. d) para uma resolução do problema aqui posto, uma vez que o direito de superfície se extingue pela reunião na mesma pessoa do direito de superfície e do direito de propriedade, tendo em conta que a Autora é uma das herdeiras.
Em conclusão:
O direito real de superfície dos Autores, constituído em 1981, e pela forma referida nos factos 4º a 7º foi adquirido por usucapião – artº 1287º C.Civil.
O facto do imóvel dos Autores não ter confrontação com a via pública, não obriga, como se diz na decisão recorrida, ao destaque da parcela e do respectivo logradouro, mas sim à constituição da servidão de passagem para o exercício do seu direito (artº 1529º C.Civil).
O juiz não pode condenar em objecto diverso do que lhe foi pedido, mas o tribunal pode corrigir o pedido quando este traduza mera qualificação jurídica sem alteração do teor substantivo (artº 661º C.P.C.)
Quanto ao pedido reconvencional, também o mesmo está condicionado não pela questão do direito de propriedade referido na decisão recorrida, mas sim pelo direito autónomo do direito de superfície, que é um direito real com as características que acima referimos.
Por isso, o direito de propriedade referido no artº 1305ºdo C.Civil tem que ter em conta o direito de superfície acabado de descrever, não havendo confusão entre ambos.
Efectivamente, na propriedade o direito real incide sobre a totalidade da coisa que constitui o seu objecto, mas este, no caso dos autos, não abrange o direito real de superfície dos Autores, que é um direito autónomo.
Definidos estes dois direitos reais, não há que tratar da indemnização correspondente ao valor de obras efectuadas no imóvel em referência porquanto essas obras são o objecto do direito real de superfície reconhecido aos Autores.
Não colhem as conclusões relativas à acessão industrial imobiliária nem a relativas, quer à alteração da matéria de facto, quer ao reconhecimento da totalidade do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº .... porquanto este apenas pertence à herança de Manuel d... sem o direito de superfície da carpintaria construída pelos Autores em 1981 e que estes, dado o lapso de tempo decorrido, adquiriram por usucapião, bem como as respectivas servidões prediais para o exercício normal deste seu direito.

Nestes termos, acorda-se nesta Relação em revogar a sentença recorrida quanto à classificação jurídica do direito dos Autores, reconhecendo-se a estes o seu direito real de superfície sobre a carpintaria construída em 1981, com as respectivas servidões para o exercício normal daquele direito.

Custas pelos Apelantes.


GUIMARÃES, 9 de Fevereiro de 2005