Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
162/08.9GEVCT.G1
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: RECEPTAÇÃO
DOLO ESPECÍFICO
ERRO NOTÓRIO
REENVIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/06/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REENVIO DO PROCESSO PARA NOVO JULGAMENTO
Sumário: I)É elemento do tipo do crime de receptação que a coisa tenha sido “obtida por outrem mediante facto ilícito típico contra o património”. Exemplificando, se quem vender a coisa a tiver obtido através de contrabando, é seguro o uso de um meio ilícito, mas não há o cometimento de um crime de receptação, por o contrabando não ser um crime contra o património.
II) In casu, a acusação imputa ao arguido o facto de que ele “bem sabia que o referido objecto tinha sido retirado ao seu legítimo proprietário, contra a vontade deste…”. Porém, na sentença recorrida apenas se deu como provado que o arguido “sabia” que o telemóvel provinha “de uma situação ilícita”. E não foi considerado «não provado» que soubesse que tal “situação ilícita” resultava da prática de factos ilícitos contra o património.
III) Assim, ao não dar como «provado» nem como «não provado» o facto relativo ao referido dolo específico, a sentença recorrida padece do vício da al. a) do nº 2 do art. 410 do CPP.
IV) O vício em causa importa o reenvio do processo para novo julgamento (art. 426 nº 1 do CPP) retivamente à totalidade do processo, dado estar em causa um facto nuclear na aferição de todo o comportamento.
Decisão Texto Integral: Acórdam no Tribunal da Relação de Guimarães

No 1º Juízo Criminal de Viana do Castelo, em processo comum com intervenção do tribunal singular (Proc.nº 162/08.9GEVCT), foi condenado o arguido o arguido RICARDO C... como autor material de um (1) crime de receptação – p.p. pelo 231.º, n.º 1 CP –, na pena de 200 (duzentos) dias de multa à taxa diária de €10,00 (dez euros), num total de €2.000,00 (dois mil euros).
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O arguido RICARDO C... interpôs recurso desta sentença, suscitando as seguintes questões:
- impugna a decisão sobre a matéria de facto, visando que, alterada esta, seja decidida a sua absolvição;
- a existência de erro notório na apreciação da prova
- a violação do princípio in dúbio pró reo; e
- a medida concreta da pena para o caso de se manter a condenação pelo crime.
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A magistrada do MP junto do tribunal recorrido, respondeu defendendo a rejeição do recurso.
Nesta instância, o sr. procurador-geral adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência.
Cumpriu-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
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I – Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos (transcrição):
1. No dia 21JUL2008, após as 16.00h, na Rotunda junto ao E’Leclerc, em Darque, Viana do Castelo, o arguido foi abordado por um indivíduo, cuja identidade se não logrou apurar, o qual lhe pretendia vender um telemóvel de marca N95, propondo-lhe o preço de €250,00.
2. Negociando o preço, o arguido adquiriu o dito telemóvel por €100,00.
3. O dito telemóvel havia sido adquirido por Hugo F... em 20MAI2008 pela quantia de €669,00, e fora-lhe furtado, em estado de poucos dias de uso, como novo, uns dias depois.
4. O arguido, quando adquiriu o referido telemóvel a uma pessoa que não conhecia, que se lhe apresentou a negociar um telemóvel na rua, abordando-o para tal, descendo o preço do mesmo em 3/5, sabendo o valor do mesmo em novo e apresentando-se o telemóvel como novo, viu que o estava a adquirir por um preço muito inferior àquele que o mesmo valia, e que obtinha desse modo uma vantagem patrimonial, agindo com esse propósito e intenção.
5. Sabia o arguido que o telemóvel só lhe podia ser vendido nas referidas condições se proviesse de uma situação ilícita.
6. O arguido sabia que a sua conduta era contrária ao direito e punida por lei.
7. Não obstante, não deixou de actuar da forma descrita, agindo livre e conscientemente.
8. O telemóvel foi apreendido ao arguido e entregue ao seu proprietário, Hugo F....
9. O arguido é solteiro.
10. Não tem filhos.
11. Vive em casa dos pais.
12. Aufere €850,00 mês como desenhador.
13. Tem como habilitações literárias o 12.º ano.
14. Tem carro (BMW 320d – ano de 2002), pelo qual paga €250,00 mês de prestação.
15. Não tem antecedentes criminais.
16. Aceita substituição de pena por TFC.
17. Admitiu a prática dos factos, ainda que não de modo confessório.

FUNDAMENTAÇÃO
Conforme jurisprudência fixada pelo STJ “é oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no art. 410 nº 2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito” – ac. de 19-10-95, DR – Iª Série de 28-12-95.
É o que se decide neste acórdão, por se verificar o vício do art. 410 nº 1 al. a) do CPP. Este vício ocorre quando há omissão de pronúncia pelo tribunal relativamente a factos alegados por algum dos sujeitos processuais ou resultantes da discussão da causa, que sejam relevantes para a decisão. Ou seja, quando o tribunal não dá como «provado» nem como «não provado» algum facto necessário para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição.
Vejamos:
É elemento do tipo do crime de receptação que a coisa tenha sido “obtida por outrem mediante facto ilícito típico contra o património”. Não basta que a obtenção através um qualquer meio “ilícito” pelo autor do facto referencial. É necessário que a conduta deste “preencha o tipo de ilícito (objectivo e subjectivo) de um crime patrimonial. As concretas condições em que o facto referencial foi praticado (v.g., a identidade do agente e da vítima, o local e o modo de obtenção da coisa, etc.) são irrelevantes e, por isso não carecem de ser provadas. O mesmo se diga da concreta subsunção jurídica do facto (v.g. , é irrelevante determinar se o facto referencial constituiu um furto ou um abuso de confiança, desde que seja certo que integra necessariamente um desses crimes)” – Conimbricense, tomo II, pag. 479.
Exemplificando, se quem vender a coisa a tiver obtido através de contrabando, é seguro o uso de um meio ilícito, mas não há o cometimento de um crime de receptação, por o contrabando não ser um crime contra o património.
O arguido foi condenado pelo crime doloso do art. 231 nº 1 do Cod. Penal. Neste crime “exige-se um dolo específico relativamente à proveniência da coisa: é necessário que o agente saiba efectivamente que a coisa provém de um facto ilícito típico contra o património, pelo que a simples admissão dessa possibilidade, a título de dolo eventual, não é suficiente para o preenchimento do tipo subjectivo (podendo embora cair na previsão do nº 2)” – Conimbricense tomo II, pag. 494. “No nº 1, o receptador tem “ciência certa” de que a coisa provém de um facto ilícito típico contra o património, actuando com a intenção de obter vantagem da perpetuação de uma situação patrimonial antijurídica” – pag. 499.
Pois bem, na acusação imputou-se ao arguido Ricardo o facto de que ele “bem sabia que o referido objecto tinha sido retirado ao seu legítimo proprietário, contra a vontade deste…”. Não se alega que o arguido conhecia as circunstâncias exactas da subtracção (como se disse, isso é irrelevante), mas de forma inequívoca imputa-se-lhe a consciência de que o telemóvel tinha sido obtido “mediante facto ilícito típico contra o património”.
Porém, na sentença recorrida apenas se deu como provado que o arguido “sabia” que o telemóvel provinha “de uma situação ilícita” (facto nº 5). E não foi considerado «não provado» que soubesse que tal “situação ilícita” resultava da prática de factos ilícitos contra o património. Aliás, na sentença não há factos «não provados».
Ao não dar como «provado» nem como «não provado» o facto relativo ao referido dolo específico, a sentença recorrida padece do mencionado vício da al. a) do nº 2 do art. 410 do CPP.
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O vício em causa importa o reenvio do processo para novo julgamento (art. 426 nº 1 do CPP), que se determina relativamente à totalidade do processo, dado estar em causa um facto nuclear na aferição de todo o comportamento.
A decisão de reenvio prejudica o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.
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Só mais uma nota: a circunstância de ter sido feita a documentação das declarações prestadas oralmente na audiência, não obsta à constatação dos vícios do art. 410 nº 2 do CPP. Em caso de impugnação da matéria de facto, o tribunal da Relação nunca faz um novo julgamento, indicando, mediante a leitura das transcrições feitas, os factos que considera provados e não provados. O conhecimento do tribunal da relação está limitado aos factos «incorrectamente julgados» - cfr. art. 412 nº 3 al. a) do CPP. Havendo omissão de pronúncia, não se pode falar em factos incorrectamente julgados, mas apenas de factos relevantes que não foram objecto de qualquer decisão, o que é diferente.

DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães ordenam o reenvio do processo para novo julgamento.
Sem custas.