| Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães.
I. No inquérito nº 72/03 foram apresentados detidos no Tribunal Judicial de Braga, para interrogatório judicial, "A", "B", "C", "D", "E", "F" e "G". O despacho de fls. 277 e ss. mandou que os quatro primeiros aguardassem em prisão preventiva os ulteriores trâmites do processo, invocando-se os artigos 193º, 196º, 198º, 200º, 202º e 204º, alínea c), todos do Código de Processo Penal. No que à arguida "C" diz respeito, teve-se como indiciada a prática de um crime de tráfico de estupefacientes do artigo 21º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, e de um crime de receptação do artigo 231º do Código Penal; a mais disso, entendeu-se existir, em concreto, “um justo e sério receio de continuação da actividade criminosa”, relacionando-a com a “gravidade objectiva das infracções”, a sua “natureza e características”, bem como “o facto de todos os arguidos fazerem do tráfico de estupefacientes o seu principal modo de vida”; diz-se por último que “o tipo de crime de tráfico de estupefacientes é também susceptível de causar um certo alarme social”.
Do referido despacho interpõe recurso "C", que em resumo diz: (a) Os autos não revelam indícios da prática dos indicados crimes pela arguida, que de resto os repudia; (b) Se tais indícios constam dos autos não foi a arguida confrontada com os mesmos no decurso do seu interrogatório em especial com os que, de modo sumário, se invocam no despacho recorrido quer no que diz respeito à suposta prática dos crimes quer no que concerne ao alegado receio de continuação da actividade criminosa; (c) Do despacho não constam as menções referidas no artigo 374º, nº 2, pelo que está ferido de nulidade de falta de fundamentação.
Na resposta, o MP escreve que “são claros os indícios da actividade ilícita imputada à arguida, tráfico de estupefacientes”, e “manifestos e objectivos” os perigos de continuação da actividade delituosa e de perturbação do decurso e aquisição da prova, inexistindo qualquer nulidade “nas decisões em crise”, pelo que o recurso deverá improceder.
Nesta Relação, o Ex.mo Procurador Geral Adjunto analisa, uma a uma, as várias vertentes do recurso, concluindo pela improcedência.
Colhidos os “vistos” legais, cumpre apreciar e decidir.
II. Como antes se acentuou, o despacho agora impugnado envolve vários arguidos na prática de um crime de tráfico de estupefacientes do artigo 21º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, sem que todavia dele se retire a forma de comparticipação em que cada um terá operado. Por seu turno, como indiciados no crime de receptação do artigo 231º do Código Penal (mas sem que se esclareça se é na forma do nº 1 se na do nº 2, e sem que de receptação se volte a falar em seguida) o despacho apenas abrange os arguidos "A", "B", "C" e "D". Teve o despacho recorrido, logo à cabeça, por suficientemente indiciado, que a actividade do "A", “juntamente com a sua companheira "C" e a "B", “decorria numa residência do "A" no bairro social de Santa Tecla, em Braga, e ainda na actual residência do mesmo "A", na Rua ..., também em Braga”. “De facto”, acrescenta-se mais adiante, “resulta das escutas telefónicas e das diligências efectuadas com a PSP de Braga, que a droga é recebida na casa do "A", na Rua ..., onde é preparada por ele e pela esposa e depois, parte dela, é entregue à "B" que, por sua vez, a doseia para a vender directamente aos consumidores e, cada vez que se desloca a Santa Tecla (a "B") para vender, leva consigo apenas a quantidade necessária, ficando com o resto em sua casa”. Diz-se, ainda, sucessivamente: “Resulta ainda dos autos a identificação de diversos consumidores que foram interceptados pela PSP, no âmbito das vigilâncias acima referidas, e que detinham na altura da detenção estupefaciente adquirido momentos antes, quer ao arguido "A" quer à arguida "B". Refira-se em particular as declarações de fls. 3, 8, 16, 20, 24, 27, entre muitas outras que se encontram no inquérito. Resulta também das escutas telefónicas efectuadas que o "A" contactava com a "B" por diversas vezes para lhe perguntar a quantidade de estupefacientes que pretendia e para combinarem as entregas. Resulta também das escutas telefónicas que a arguida "C", companheira do "A", tem uma intervenção activa nesta actividade ilícita. Conforme consta dos autos, ao arguido "A" não lhe é conhecida qualquer actividade profissional, sendo certo que adquiriu o veículo 12-21-SB em Novembro de 2003, pelo preço de 15 mil euros, preço este que foi pago a pronto. Paga ainda mensalmente 120 euros no parque de estacionamento sito na Praça da Justiça, em Braga. O arguido "A" foi já condenado em 3 processos pelo crime de receptação como consta do seu certificado de fls. 292. À arguida "C", para além de não ser conhecida qualquer actividade profissional, tem em seu nome depósitos bancários a prazo no montante de 15350 euros referentes ao dia 21 de Novembro de 2003, 17050 euros referentes ao dia 21 de Dezembro de 2003, 16650 euros referentes ao dia 2 de Fevereiro de 2004. (…) Resulta das intercepções efectuadas e das vigilâncias da PSP que a arguida "E" e o arguido "D" procediam à venda de produtos estupefacientes aos arguidos "A", "B" e "C", sendo auxiliados no transporte e manuseamento dessa droga pelo genro e filha da "E",, Maria O... e "G", respectivamente. Tais entregas, efectuadas por estes, "G" e "F" tinham lugar na casa de Stª Tecla, pertença do "A", na casa da "B" ou na actual residência do "A" na Rua ...”.
A contestação da recorrente começa por assentar na insusceptibilidade de a transcrição da gravação de uma (sic) conversa telefónica, “que lhe é atribuída e que nada tem a ver com o tráfico de estupefacientes”, e a existência de depósitos em contas bancárias de que é titular, “por si explicados de forma credível e consistente”, constituírem indícios suficientes da prática de qualquer tipo de crime.
A recorrente não alude às passagens que no despacho recorrido mantêm outros arguidos envolvidos em actividades de tráfico, mas afasta qualquer forma de comparticipação sua em práticas dessa natureza. Acontece que as duas residências dadas como locais de tráfico vêm aí conotadas mais precisamente com o arguido "A", de quem se diz que a "C" é “companheira”. Mas também se acrescenta, no que à da Rua ... diz respeito, que a droga é aí preparada por ele e “pela esposa”. Para chegar a esta conclusão, apoia-se o despacho recorrido nas escutas realizadas e nas contas bancárias encontradas em nome da arguida. Ora, a explicação desta, dizendo que as quantidades de dinheiro depositadas em 21 de Novembro de 2003, 21 de Dezembro do mesmo ano e 2 de Fevereiro de 2004 resultaram de economias não convence minimamente. E não convence porque se trata sempre de montantes elevados para períodos tão curtos, que nada têm a ver com uma actividade de tipo artesanal, doméstica, que a recorrente pretende ter desenvolvido. Por outro lado, e como bem nota o Ex.mo Procurador Geral Adjunto, são pelo menos oito os momentos telefónicos em que é interceptada a voz desta arguida. A este propósito, e como se lê na acta, durante o interrogatório judicial (fls. 263 e 264) a arguida foi “confrontada com (…) algumas das transcrições existentes nos autos”, o que logo desmente o afirmado no recurso de apenas ter sido posta perante “uma conversa telefónica que lhe é atribuída e que nada tem a ver com o tráfico de estupefacientes”. Não obstante a negativa da arguida, as suas explicações a respeito do dinheiro depositado e a resposta de que se não lembrava das conversas telefónicas com que foi confrontada, nada temos a censurar ao despacho recorrido quando nisso se apoia para dar como suficientemente indiciada a comparticipação da arguida em actividades de tráfico. Mesmo nesta fase, o julgador aprecia a prova segundo as regras da experiência e a sua livre convicção (artigo 127º do Código de Processo Penal). Pegando nestes critérios, não vemos como divergir da posição a que se chegou quanto à suficiência de indícios. A fundamentação oferecida mostra por sua vez, com suficiente nitidez, como chegou o Tribunal à convicção de estar a arguida "C" indiciariamente envolvida em actividades de tráfico, pelo que nesse âmbito o despacho recorrido não merece qualquer reparo, não se mostrando violador de qualquer preceito legal.
Ainda assim, cremos que o mesmo despacho, a que no recurso se apontam deficiências de vária ordem, não justifica de modo adequado a opção pela medida decretada. Ter-se-á presente, levando em conta o n.° 2 do artigo 18.° da Constituição da República, que os direitos, liberdades e garantias só podem ser restringidos “nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”. A lei, ao dispor sobre medidas de coacção, permite a imposição ao arguido da prisão preventiva, se o juiz considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, outras medidas, como a de obrigação de permanência na habitação ou a obrigação de apresentação periódica (artigos 201º, nº 1, e 198º, do Código de Processo Penal). A legitimação da medida tem naturalmente a ver com o interesse da boa administração da justiça, com expressão no artigo 202.°, n.° 2, da Constituição, porquanto “incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados”. Nesta linha de actuação, o artigo 202º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal, autoriza o juiz a impor ao arguido a prisão preventiva, quando houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a três anos, e se verificarem os requisitos gerais do artigo 204º.
Como o crime do artigo 21º do Decreto-Lei nº 15/93 é punido com pena de prisão cujo máximo é de 12 anos, por aí nenhuma contestação se nos afigura pertinente. Contudo, como se viu, o despacho recorrido contentou-se, para aplicação da medida coactiva extrema, com a existência dos indícios suficientes que apurou.
E isso não basta — como logo se advertiu no recurso.
Dir-se-ia, ainda assim, que o uso, no despacho impugnado, da expressão “indícios suficientes” só pode querer significar “fortes indícios”. Mas é um argumento que cai irremediavelmente pela base, desde logo, porque o significado dos “indícios suficientes” tem no Código uma extensão precisa e incontornável: consideram-se tais os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança (nº 2 do artigo 283º do Código de Processo Penal). Daqui se infere que os “fortes indícios” terão que corresponder a uma probabilidade elevada de ao sujeito, por força deles, vir a ser aplicada uma pena. Ora, contrariando um tal ponto de vista, o despacho recorrido, além de prosseguir constantemente na afirmação da suficiência dos indícios, usa a expressão de maneira indiferenciada e irrestrita tanto para a ora recorrente, que com base neles sujeitou a prisão preventiva, como para os outros que saíram em liberdade, simplesmente obrigados ao termo de identidade e às apresentações periódicas. E nem se insista em que tudo isso é devido a lapso, pois, vendo bem a promoção do MP que antecedeu o despacho em análise, já aí toda a situação era observada pela mesma óptica minimalista. No próprio despacho recorrido —e isto é particularmente sintomático— nenhuma palavra aparece a esclarecer o sentido de uma relação de probabilidade que se possa considerar adequada para caracterizar a indiciação exigida por lei (“fortes indícios”), nem no mesmo se contém uma concreta, rigorosa e inequívoca referência à alínea a) do nº 1 do artigo 202º.
A prisão preventiva não tem assim condições para subsistir, não tem a apoiá-la uma forte indiciação.
Não se nos objecte que esta Relação está em condições de se substituir ao despacho recorrido na busca e fixação de uma indiciação que, no actual estado da investigação, implicaria a “elevada probabilidade” de a recorrente vir a ser condenada pela prática de um crime de tráfico (e não pelo de receptação, que o despacho recorrido acabou por “abandonar”, ainda que mencionando-o de início), pois os recursos limitam-se, no sistema do Código, a provocar a reapreciação da decisão posta em crise, emitindo juízos de censura crítica. Seria claramente ilegítimo avançar com esse objectivo para a reformulação do despacho impugnado (supondo que para tanto existia matéria investigada), fazendo-o hipoteticamente ganhar forças, ao jeito de quem aplica uma dose vitamínica mais ou menos severa a um organismo depauperado e animicamente empobrecido.
Tem pois razão a recorrente, ainda que só parte da razão, não sendo o seu caso, ao menos neste momento, processualmente diferente do dos arguidos "F" e "G", pelo que se lhe aplicará igual medida, a cumular com o termo de identidade e residência, de obrigação de se apresentar semanalmente no OPC da área da sua residência (artigo 198º do Código de Processo Penal). Com efeito, não se contesta eficazmente no recurso o perigo, verificado no despacho recorrido, de continuação da actividade criminosa (artigo 204º, alínea c), do Código de Processo Penal), que também julgamos subsistir no caso concreto.
Nestes termos, acordam em conceder parcial provimento ao recurso de "C", substituindo-se a prisão preventiva decretada no despacho recorrido pela obrigação de apresentação, semanal, prevista no artigo 198º do Código de Processo Penal. As necessárias comunicações serão encargo da 1ª instância.
A cargo da recorrente fixa-se a taxa de justiça em 3 Ucs.
Passe mandados para imediata libertação da recorrente "C".
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