Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
108/11.7TBVLN.G1
Relator: JOSÉ MANUEL ARAÚJO DE BARROS
Descritores: COMPETÊNCIA
COMPETÊNCIA MATERIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/08/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: É a jurisdição administrativa a competente para o conhecimento de acção em que é formulado um pedido de indemnização baseado em responsabilidade civil extracontratual de entidade pública, ao que não obsta o facto de a acção ter sido simultaneamente intentada contra particulares com aquela solidariamente responsáveis.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães
I
RELATÓRIO
TÉRCIA J... e DANIELA M... intentaram a presente acção ordinária contra o MUNICÍPIO DE VALENÇA, M... - ENGENHARIA E CONSTRUÇÃO, S.A., e COMPANHIA DE SEGUROS F..., S.A, pedindo a condenação destes a reporem a situação existente antes de procederem a obras que levaram a efeito, pagar-lhes a quantia de 10.000, 00 €, acrescida de juros, por danos morais, e o primeiro réu ainda a retirar candeeiro de iluminação pública que colocou na fachada da casa das autoras, reparando esta.
Após contestação dos réus e réplica das autoras, foi proferido o despacho de fls 317 e sgs, que julgou verificada a excepção dilatória de incompetência em razão da matéria do tribunal, absolvendo os réus da instância.
Inconformadas, as autoras recorreram daquele despacho.
O réu Município de Valença contra-alegou.
O recurso foi admitido como sendo de apelação, a subir imediatamente e nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

II
FUNDAMENTAÇÃO
1. PEÇAS PROCESSUAIS RELEVANTES
Conclusões das alegações de recurso das autoras
1. A competência de um tribunal determina-se pela forma como o Autor configura a acção, definida pela causa de pedir e o pedido.
2. A causa de pedir na presente acção consiste na existência de danos causados, na casa das Autoras, no decurso de obras realizadas no centro histórico de Valença, obras essas levadas a cabo por uma entidade de direito privado (empreiteiro) que, por sua vez, transferiu a sua responsabilidade civil para outra entidade de direito privado (companhia de seguros).
3. Discute-se no presente processo a relação causal entre o facto (obras) e os danos.
4. Nos termos do disposto no artigo 1º, n.º 1 do ETAF: “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.”
5. De acordo com o disposto no artigo 4.º, n.º 1, alínea g) do ETAF: “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;”
6. Os trabalhos executados pelo empreiteiro no âmbito de um contrato de empreitada de obras públicas obedecem às técnicas aplicáveis a qualquer contrato, de natureza pública ou privada, não se assumindo como actos de gestão pública.
7. A existência de um contrato de empreitada de obras públicas não implica que os actos ou omissões praticados na sua execução que lesem terceiros, emergentes de outros factos jurídicos, sejam considerados como actos de gestão pública.
8. À luz da alínea i) do artigo 4º do ETAF, “os tribunais administrativos só têm competência para apreciar acções em que se exerça a responsabilidade civil extracontratual de entidades privadas se for aplicável a estas o regime específico da responsabilidade do Estado e demais
pessoas colectivas de direito público.” – Acórdão do Tribunal de Conflitos de 17/05/2007, in www.dgsi.pt.
9. Na data em que foi celebrado o contrato administrativo de obras públicas e foram executadas as obras, pela segunda Ré, encontrava-se em vigor o DL. 48.051, de 21/11/1967 (regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público).
10. O regime estabelecido no DL 48051, de 21/11 aplica-se apenas a entidades, funcionários ou agente públicos e não às pessoas colectivas de direito privado.
11. No caso em apreço só está em causa a relação empreiteiro/particular, tendo as Autoras accionado também o dono da obra por entenderem que a responsabilidade entre eles era solidária, tratando-se, por isso, de um litisconsórcio voluntário passivo que jamais inquinaria, a natureza, estritamente privada, da única relação jurídica subjacente ao pedido formulado na acção, a relação empreiteiro/particular.
12. A sentença que considerou competente para a presente acção o tribunal administrativo e fiscal violou o disposto no artigo 4º, n.º 1, al. g) e i) do ETAF, bem como nos artigos 211º da C.R.P., artigo 18º da LOFTJ e artigo 66º do Código de Processo Civil.
13. Face ao exposto, o tribunal competente para a presente acção é o tribunal Judicial de Valença, pelo que deve ser revogada a sentença que julgou materialmente incompetente aquele tribunal e ser ordenado o prosseguimentos dos autos.
Nestes termos e melhores de direito deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a sentença que julgou materialmente incompetente o Tribunal Judicial de Valença, ordenando-se o prosseguimento dos autos.
Conclusões das contra-alegações de recurso do réu Município de Valença
I. Nos presentes autos discute-se da eventual responsabilidade civil extra-contratual do recorrido Município por alegados prejuízos sofridos pelas AA. E ora recorrentes na sequência da execução de um contrato de empreitada de obras públicas designado de “Requalificação Urbana do Centro Histórico de Valença — Renovação das Infra-estruturas de Saneamento Básico — Zona 2”, celebrado pelo Município na qualidade de dono da obra e pela M..., S.A., na qualidade de empreiteiro.
II. Estamos perante matéria integrada na responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas de direito público (DL. n.° 48.051, de 21.11.1967, à data em vigor), sendo certo que resulta expressamente da norma do art. 4.°/1/g) do ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), aprovado pela Lei n°. 13/2002, de 19.02, que compete exclusivamente
à jurisdição administrativa a apreciação e julgamento das questões em que haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público.
III. Está, pois, em causa matéria que se integra no âmbito da jurisdição administrativa, pelo que o recorrido Município apenas poderia ser demandado perante um Tribunal Administrativo e não um Tribunal Judicial, não merecendo, pois, a douta decisão recorrida qualquer reparo.
***
2. DISCUSSÃO
Questiona-se qual a jurisdição competente para a presente acção.
Defendem as recorrentes que essa competência deva ser atribuída aos tribunais comuns. Estribam-se essencialmente na consideração de que, nos termos do disposto na alínea i) do artigo 4º do ETAF, “os tribunais administrativos só têm competência para apreciar acções em que se exerça a responsabilidade civil extracontratual de entidades privadas se for aplicável a estas o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público”, jurisprudência que se colhe no acórdão do Tribunal de Conflitos de 17/05/2007 (Rui Botelho). In dgsi.pt. Sendo certo que, in casu, o núcleo da causa de pedir se situa na conduta de uma empresa privada, a segunda ré, da qual terão resultado danos para as autoras.
Não podemos, porém ignorar o que, a propósito, é aduzido na sentença recorrida, aí ilustrado com citação de Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2ª edição revista, 2007, Almedina, pág. 20-21. que ora se volta a enfatizar:
“Compete, assim, à jurisdição administrativa apreciar todas as questões de responsabilidade extracontratual dos órgãos da Administração Pública, independentemente da questão de saber se essa responsabilidade emerge de uma actuação de gestão pública ou de uma actuação de gestão privada: a
distinção deixa, pois, de ter relevância processual, para o efeito de determinar a jurisdição competente, que passa a ser, em qualquer caso, a jurisdição administrativa. Isto não significa, no entanto, que, no quadro normativo vigente, a distinção não conserve relevância substantiva. Com efeito, o ETAF não fez qualquer opção de natureza substantiva, dirigida a afastar a existência, no plano substantivo, de regimes diferenciados de responsabilidade da Administração, consoante essa responsabilidade decorre de actos de gestão pública ou de actos de gestão privada da Administração”.
Esta “personalização” da jurisdição administrativa, com nítida inflexão no sentido de a ela ser chamada a competência para o conhecimento de todas as questões em que sejam partes entes administrativos, além de para esse efeito tornar irrelevante a distinção entre actos de gestão pública ou privada, teve ainda reflexo no preceito do nº 7 do artigo 10º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos. O qual dispõe que «podem ser demandados particulares ou concessionários, no âmbito de relações jurídico-administrativas que os envolvam com entidades públicas ou com outros particulares».
Na senda do que se expõe, o trecho infra de recente acórdão do Tribunal de Conflitos de 20.09.2011 (Jorge de Sousa): In dgsi.pt.
“I - É competente o tribunal administrativo para o conhecimento de acção em que é formulado um pedido de indemnização baseado em responsabilidade civil extracontratual formulado contra entidade pública, em acção interposta na vigência do ETAF de 2002. II - O facto de o mesmo pedido ser formulado, solidariamente, contra uma entidade pública e uma empresa privada não é obstáculo à atribuição de competência para o conhecimento do litígio aos tribunais administrativos, pois, de harmonia com
o disposto no art. 10.º, n.º 7, do CPTA, entidades particulares podem ser demandadas conjuntamente com entidades públicas, nos processos do contencioso administrativo, quando a relação jurídica controvertida tiver natureza administrativa (o que determina a competência contenciosa dos tribunais administrativos) e a todas elas respeitar”. Jurisprudência que, com excepção do aresto em que as autoras se louvam, vem sendo seguida no Tribunal de Conflitos. Como nos acórdãos desse tribunal de 5.05.2010 (Moreira Camilo), de 4.11.2009 (Moreira Camilo), de 7.10.2009 (Jorge de Sousa) e de 28.11.2007 (Políbio Henriques). Todos in dgsi.pt.
III
DISPOSITIVO
Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso.
Custas pelas autoras - artigo 446º do Código de Processo Civil.

Notifique.

Guimarães, 8 de Novembro de 2011