| Decisão Texto Integral: | P. nº 895/2005
Acordam em audiência no Tribunal da Relação de Guimarães
Manuel C... foi submetido a julgamento no Círculo Judicial de Viana do Castelo e a final condenado: pela prática de dois crimes de difamação, na forma continuada, dos artigos 180º, 183º, nº 1, a), e 184º, do Código Penal, em duas penas de 8 meses de prisão; pela prática de seis crimes de difamação, na forma continuada, dos artigos 180º e 183º, nº 1, a), do mesmo código, em duas penas de 6 meses de prisão, numa pena de 5 meses de prisão e em três penas de 4 meses de prisão; e pela prática de um crime de difamação dos citados artigos 180º e 183º, nº1, a), na pena de 2 meses de prisão. Em cúmulo jurídico destas penas foi o arguido condenado na pena única de 2 anos de prisão.
O Colectivo julgou ainda parcialmente procedentes os pedidos de indemnização civil deduzidos e, em consequência, condenou o demandado Manuel C... a pagar as seguintes quantias, todas acrescidas de juros de mora, à taxa legal aplicável às obrigações civis, desde a presente data até integral pagamento: a António C..., a quantia de cinco mil euros; a Luís T..., a quantia de cinco mil euros; a José F... e mulher Maria F..., a quantia de seis mil euros; a Maria V..., a quantia de três mil euros; a Maria R..., a quantia de mil euros; a João C..., a quantia de mil e quinhentos euros; a Luís T..., a quantia de mil e quinhentos euros; e a Tomás R..., a quantia de mil euros.
Teve o Colectivo por comprovado que:
“Desde a segunda quinzena de Outubro de 2001 até Agosto de 2002, o arguido elaborou os folhetos que [no acórdão se reproduzem], neles dirigindo apodos aos assistentes, fazendo afirmações, escrevendo dizeres e inscrevendo imagens a eles se referindo, conforme se assinala nas reproduções que seguem, em relação aos assistentes António C... e Luís T..., a propósito de cada referência”.
“Nesses folhetos”, escreve-se no acórdão, “verificam-se, nomeadamente, as seguintes alusões concretas aos assistentes: — a José F...: no V, a última quadra da segunda coluna (da parte inferior da página); no X, as frases assinaladas com (F) e (G); no XIII, as quinze quadras sob a epígrafe “o drogado Fontes” e o que se segue a “nota do trombeteiro”; no XVII, as segunda e terceira quadras das duas colunas; no XIX, as duas primeiras quadras e a segunda, lado direito, do segundo rectângulo; — a Maria F...: no X, a frase marcada com (H); no XIII, sob a epígrafe “o drogado Fontes”, a terceira, quarta e quinta quadras da terceira coluna e as últimas quadras das primeira e segunda colunas; no XVII, as segunda e terceira quadras das duas colunas; no XIX, as duas primeiras quadras do segundo rectângulo; — a Maria V...: no VI, as afirmações na “lista” à frente do nome da assistente; no XI, a última frase do penúltimo parágrafo do texto principal; no XII, a referência na alínea (c) do ponto 1; no XIV, as duas quadras sob a epígrafe “A Revelação”; no XVIII, as referências ao lado da fotografia de um porco, e as afirmações nos dois rectângulos vizinhos; — a Maria R..., no V, a última quadra da terceira coluna (da parte inferior da página); — a João C...: no I, a quadra sob “O João C...”; no V, a segunda quadra da primeira coluna (da parte superior da página), e a última quadra da primeira coluna, na parte inferior do folheto; no VI, as afirmações na “lista” à frente do nome do assistente; — a Luís T..., no XVIII, a última quadra, na primeira coluna, segundo rectângulo;- — a Tomás R...: no I, a antepenúltima frase do segundo quadro; no II, o texto destacado que começa “faço isto com amor”; no IV, a primeira quadra da terceira coluna; no V, a segunda quadra da segunda coluna (parte superior da página); no XIII, a segunda quadra da segunda coluna (parte superior da página); no XVIII, a segunda quadra da primeira coluna; no XX, a segunda quadra da segunda coluna.
Além dos supra referidos, o arguido elaborou e difundiu ainda outros folhetos, neles referindo (visando os assistentes José e Maria F...): “o trombeteiro desvia agora a conversa para o fontes latoeiro (...) esse ai esse o guarda da areia, saco de encher porrada da mulher, vaidoso perante o sogro, cordeiro perante os seus superiores, gabacholas perante o povo”; “o mecanico fontes, conhecido cornudoque parece muito mansinho pede a todos por tudo para dizerem que não bebe vinho (...) pensam que eu sou ótário a dizer que a filha não é minha vão ver quem assinou no notário levei minha mulher para testemunha”; “ai se se soubesse como foi feita a escritura (contaram) onde a oficina está a trabalhar quem falsificou a assinatura é por isso que o fontes o quer (trombeteiro) matar”; “sou mecanico experiente nunca serei latoeiro da junta serei presidente tirarei de lá o paneleiro pensa no que te digo amigo meu amigo desta luta farei um poliedesportivo apesar de minha mulher ser uma puta (...) latoeiro cornudo que vieste da correlhã ao esteves ela chupou tudo na viagem a fátima pela manhã”.
Noutro folheto, numa alegada conversa com a assistente Edite (mãe do assistente Luís T...), o arguido reproduziu o seguinte: - pois mas que acha do seu filho luis ? o das bananas ? - olhe sr. trombeteirozinho, ele aproveitou o que o jorginho ia estragar, assim sempre se aproveitou alguma coisa. -olhe querida amiga edite, mas ele roubou o ouro que era da agueda, a falecida esposa do roubado jorge. -é mentira sr. trombeteirozinho, diz a puta edite, é mentira, ele apenas os guardou senão perdiam-se, assim estão guardados e bem guardados. - ó amiga e querida edite, o povo fala que ele os vendeu em viana para iniciar as obras da casa, era muito ouro, muitas joias, muitos valores. - ai sr. trombeteirozinho, que infâmia, ele não vendeu, ai ele só hipotecou e depois como não pagou é que ficaram com tudo.
Ainda noutro folheto, e referindo-se ao assistente Luís T..., escreveu o arguido: “o luis bananeiro é um entretenimento roubou as joias da agueda falecida vendeu-as para pagar o casamento vendeu-as para pagar a comida”.
Elaborados os folhetos, o arguido, ou alguém a seu mando, dirigiu-os, por via postal ou através de depósito no receptáculo postal visado, a pessoas, estabelecimento comerciais e instituições, nomeadamente os seguintes (todos da freguesia de Vitorino das Donas, à excepção dos assinalados em contrário): - café “O engenho”, sito no lugar do Outeiro; - Junta de Freguesia de Vitorino das Donas, sita no lugar da Igreja; - Manuel Rodrigues Aguiar, residente no lugar do Forno; - café “O P...”, sito no lugar de Aldeia; - café “Par...”, sito na freguesia da Correlhã, Ponte de Lima; - José F...s, residente no lugar do Carvalhal; - “Casa Al...”, estabelecimento comercial sito no lugar de Godelas; - Luís T..., residente no lugar da Igreja; - café “G...”, sito na freguesia de Santa Maria de Geraz do Lima.
Divulgados os folhetos dessa forma, a eles teve acesso toda a comunidade de Vitorino das Donas, na qual circularam, aí sendo lidos e dados ao conhecimento.
Os assistentes António C... e Luís T... eram, à data dos factos, respectivamente presidente e secretário da Junta de Freguesia de Vitorino das Donas; foi visando tais cargos e o modo como por ambos eram exercidas essas funções que o arguido levou a cabo as condutas descritas, propalando nos folhetos o conteúdo já reproduzido.
Sempre que alude ao “Fontes”, o arguido quer referir-se ao assistente José F..., que tem uma oficina, é casado com a assistente Maria Inês, com quem esteve emigrado na Suíça, e que têm uma filha. Tais factos eram do conhecimento de todos os moradores de Vitorino das Donas, que facilmente associavam este casal às afirmações que a ele se referiam (e onde se identificava a assistente como “Inês Trombeteira”).
A assistente Maria é filha do assistente Tomás e o seu marido, já falecido, era conhecido por “Alonso”, factos de que toda a gente na freguesia era conhecedora.
O assistente Luís T... tem um estabelecimento comercial de venda de fruta em Viana do Castelo, que era anteriormente de um indivíduo conhecido por “Jorge”.
Ao elaborar os folhetos, fazendo deles constar as expressões e imagens supra referenciadas, e pondo-os a circular do modo descrito, o arguido agiu com o propósito de os difundir pelo maior número de pessoas possível, tendo em vista ridicularizar, humilhar e envergonhar publicamente todos os assistentes, resultado que conseguiu.
O arguido agiu livre, voluntaria e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida por lei.
O arguido já foi industrial de construção civil, mas abandonou a actividade por acumulação de dívidas. Actualmente, o arguido aufere, como publicitário, a quantia de € 350,00 mensais; a mulher é doméstica e o casal tem uma filha de 12 anos, estudante.
À data dos factos, o arguido já tinha sido condenado, por cinco vezes, pela prática de crime de emissão de cheque sem provisão, sempre em penas de multa, que pagou.
Todos os assistentes se sentiram ofendidos na sua honra e consideração, além de desgostosos e revoltados, durante vários meses; viveram ansiedade e receio de novas publicações, o que perturbou a respectiva harmonia familiar e lhes trouxe insónias, e foi agravado pelo facto de o sucedido ter sido comentado nas comunidades vizinhas e na comunicação social, nacional e regional.
Agravaram os estados de espírito dos assistentes António C... e Luís T... a circunstância de se estar em período eleitoral, no que respeita ao primeiro, as referências feitas à sua filha, e quanto ao segundo, a carga pejorativa que a imputação de práticas homossexuais traz consigo numa freguesia rural.
Contribuiu ainda para o desgosto da assistente Maria o facto de o seu marido ter falecido pouco tempo antes da divulgação do folheto que a visava”.
Do decidido vem interposto recurso por Manuel C..., que nas “conclusões” diz o seguinte: (1) Não cometeu os crimes de que vem acusado. (2) O Tribunal a quo valorou provas indirectas, circunstanciais ou indiciárias sem que as mesmas estivessem acreditadas por provas de carácter directo. (3) A prova produzida em audiência encontra-se transcrita e denota claramente as contradições insanáveis entre os diversos assistentes e restantes testemunhas no que concerne ao assumir da culpabilidade do arguido. (4) Reconhece o Tribunal a quo a inexistência de quaisquer provas directas que permitissem a condenação a preceito do arguido pelo que a mesma prova que foi produzida não habilitava o Tribunal recorrido a dar como provado ter sido o arguido o autor dos crimes em causa. (5) A convicção da 1ª instância mostrou-se contrária às regras da experiência, da lógica e até dos conhecimentos científicos (parcos, por culpa da acusação) aduzidos nos autos; os elementos recolhidos em audiência, conjugados com as regras da experiência comum, não podiam permitir ao Colectivo concluir pela prática dos factos pelo arguido. (6) Não foi sequer equacionado o in dubio pro reo, apesar de não haver provas concretas / directas da prática dos factos pelo arguido, devendo infirmar-se assim que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido, (7) A prova testemunhal, subavaliada, impõe decisão diversa da recorrida, designadamente na medida em que não foi dada por nenhum declarante, assistente ou testemunha qualquer indicação peremptória da autoria do arguido nos crimes de que vem acusado. (8) A prova valorada pelo Tribunal, designadamente a relativa a sintaxe e grafologia, deverá ser renovada por ser instrumental e desprovida de valor imediato para a condenação de que o arguido foi alvo. (9) Ao não ser feita opção pela pena não privativa da liberdade, a pena de dois anos de prisão deveria ser suspensa na sua execução, tendo-se violado os artigos 50º, nº 1, e 70º do CP. (10) Este acórdão deverá ser substituído por outro onde, face à insuficiência da matéria de facto provada, e até pela nítida e grosseira contradição entre aspectos parcelares da mesma, se absolva o arguido dos crimes de que vem acusado. (11) Assim não se entendendo, deverá ser aplicada pena não privativa da liberdade ou ser a mesma suspensa.
Houve respostas do MP e de Maria F.... em apoio da decisão recorrida, mas o Ex.mo Procurador Geral Adjunto nesta Relação tem a absolvição do arguido como inevitável, já que a valoração probatória efectuada pelo Tribunal a quo colide com as regras da experiência comum e da lógica.
Colhidos os “vistos” legais, procedeu-se à audiência a que se refere o artigo 423º do Código de Processo Penal, com observância do formalismo respectivo.
O acórdão recorrido reproduz uma série de folhetos onde detectou alusões concretas aos assistentes, tidas por difamatórias. O Colectivo, perante os elementos probatórios adquiridos, e não obstante ter o arguido Manuel C... negado a autoria dos factos, convenceu-se de que fora este quem elaborou os folhetos, fazendo deles constar as expressões e imagens que se referenciam, e os pôs a circular, agindo com o propósito de os difundir pelo maior número de pessoas possível, tendo em vista ridicularizar, humilhar e envergonhar publicamente todos os assistentes.
Para a concretização da autoria dos panfletos e da sua difusão, o Tribunal, perante as afirmações de inocência do arguido e a inexistência de provas directas, valeu-se da conjugação dos seguintes elementos:
“O facto de o arguido ter computador pessoal, e vários acessórios de informática (vide auto de busca de fls. 110), com software não original e cujo exame pericial (fls. 166 a 168) revelou ter o seu utilizador conhecimentos da matéria – necessário para elaborar os folhetos em causa –, e usar normalmente disquetes para o seu trabalho (o que propicia maior mobilidade para este, e dificulta a outrem a tarefa de as encontrar); ter o arguido em casa, na altura da busca, 33 selos de correio série A, comprados por junto, iguais aos apostos nos envelopes de fls. 24, 30, 31, 37, 39, 42 e 43, usados para enviar os folhetos; a circunstância de as pessoas que conheciam o arguido, nascido e criado em Vitorino das Donas – com destaque para Álvaro F..., do café “P...” – terem afirmado que o insucesso do arguido nos negócios fez dele uma pessoa revoltada com os outros (sentimento que perpassa nos folhetos), e que afirmava por diversas vezes (como também consta dos panfletos) não ter medo da Polícia Judiciária nem dos Tribunais; o facto de, em alguns folhetos, constarem alusões a acontecimentos em que o arguido participou (como a reunião de pais aludida no IX) ou a situações que tinham sido narrados ao arguido pelos envolvidos (como a estadia na Suíça dos assistentes José e Maria Inês Fonte), sendo que foi esta última que descreveu em audiência tais circunstâncias, rodeando-as de pormenores de tempo e espaço que reforçaram a sua credibilidade; ter o arguido organizado uma compilação dos panfletos que saíram e ter mandado fazer bonés, e mesmo usado um, com a frase “quem será o trombeteiro?” (factos de que era conhecedor, pelo menos, João R..., do café “G...”), reforçando uma atitude displicente em relação a um acontecimento que abalava a comunidade em geral”.
Para a determinação dessa autoria, no entanto, “foi fundamental”, na própria expressão dos julgadores, “a análise comparativa dos folhetos com os documentos dos autos que foram elaborados (e assinados) pelo arguido, quer no âmbito deste processo quer fora dele (fls. 16vº, 93, 139, 149, 153/154, 219/220, 224, 226, 382 e 895)”.
“Mesmo num exame superficial”, acrescenta-se, “vários aspectos são comuns a estes documentos e aos panfletos: o uso indiscriminado de maiúsculas e minúsculas (com predomínio daquelas), bem como de sublinhados e de letras a negro, a quase total ausência de acentos nas maiúsculas (erro que, como é sabido, o programa de processamento de texto não detecta automaticamente), a sequência palavra – espaço – vírgula – espaço – palavra (quando o comum é criar espaço apenas depois da vírgula), o uso de parênteses, reticências e vários pontos de admiração e exclamação, o emprego de espaço simples entre as linhas e a falta de pontuação correcta. Em termos de estilo de escrita, há grandes similitudes entre os folhetos e a carta aberta à população assinada pelo arguido (fls. 16vº), onde este não resiste a formular opiniões negativas sobre alguns dos visados pelo “trombeteiro”.
Por aqui se vê que os julgadores se apoiaram unicamente em elementos indiciários, circunstância que, enquanto tal, é irrepreensível, por se não tratar de qualquer prova proibida, no sentido dado pelo artigo 125º do CPP, que tem por admissíveis as provas que não forem proibidas por lei. Na verdade, o indício, facto conhecido, permite a prova da existência ou da inexistência de um outro, não porque o representa, mas antes por força de um procedimento lógico de indução, precisa Jorge Gaspar. ( Jorge Gaspar, “Titularidade da investigação criminal e posição jurídica do arguido”, Revista do Ministério Público 2001, nº 88.) Segundo Pereira e Sousa, indício se diz a circunstância que tem conexão verosímil com o facto incerto de que se pretende a prova. Mas, mesmo quando se diz dele que é uma probatio levior, o indício não perde essa sua capacidade probatória.
A prova indiciária é, em grande medida, o resultado de uma elaboração científica. Uma boa parte dos factos que a compõem exige um juízo técnico científico. Ao criminalista compete a identificação dos indícios materiais desses factos: a criminalística é a arte e a ciência de descobrir, de analisar e de identificar os indícios. Para um espírito moderno, escreve Buquet ( Alain Buquet, Manuel de criminalistique moderne, PUF, 2001.), “a recolha da prova não poderia alhear-se da ciência; neste sentido, a criminalística faz um amplo apelo às técnicas e métodos das ciências experimentais e aplicadas. Multidisciplinar por essência, esta multiplicação de ciências e técnicas impõe uma grande especialização que contribui para a resolução de problemas cada vez mais complexos, num quadro definido e específico, de que fazem parte a antropometria, a dactiloscopia, a balística, a toxicologia, a identificação de manchas, vestígios e impressões diversos”. ( Veja-se também Pierre-Fernand Ceccaldi, La criminalistique, “Que-sais-je?”, 2ª ed., 1969, e “La Méthode et les méthodes dans le recherche scientifique de la preuve en Criminalistique”, extrait de la Revue de Science Criminelle et de Droit Pénal comparé, nº 1-1961.)
Todas estas considerações chamam a terreiro a circunstância de o legislador, reconhecendo que o julgador carece de conhecimentos especializados não jurídicos, indispensáveis à apreciação dos factos, ter previsto e disciplinado a intervenção de terceiros no esclarecimento dos pressupostos da apreciação da prova. A prova pericial, segundo o artigo 151º, tem lugar quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos. A imprecisão, a fragilidade e a relatividade que acompanham a prova testemunhal humana, amplamente demonstradas nos anais judiciários, conduziram a justiça, progressivamente, a adoptar testemunhos mais objectivos, como por ex., certas provas indiciárias que, como sustentava Locard, “se não dizem toda a verdade, ao menos dizem só a verdade”. A perícia, todavia, tal como aqui a entendemos, apresenta fronteiras duma amplitude generosa. Bastará atentarmos nos artigos 159º e 160º, que respeitam às categorias médico-legal, psiquiátrica e da personalidade (os respectivos exames podem ser deferidos a especialistas em criminologia, em psicologia, em sociologia, em psiquiatria ou em patologias sexuais), para concluirmos que a especialização técnica e científica não se reduz à actividade laboratorial. Ao lado das perícias químicas e toxicológicas, encontramos ainda outras, no domínio da contabilidade, do estudo do sangue, de poeiras, de documentos calcinados, de textos dactilografados, etc.
A nota típica mais destacada da prova pericial consiste em o perito não trazer ao tribunal apenas a perspectiva dos factos, mas em trazer também a apreciação ou valoração de factos ou apenas esta, escrevem A. Varela, M. Bezerra e Sampaio e Nora. ( A. Varela, M. Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., p. 376.) O juízo técnico, científico ou artístico presume-se, nos termos do nº 1 do artigo 163º, subtraído à livre apreciação do julgador, o que traduz uma excepção ao princípio da livre apreciação da prova, reconhecido no artigo 127º. Quer isto dizer, por um lado, que a natureza das conclusões dos peritos não admite uma livre apreciação da prova “segundo as regras da experiência comum”, pois então a ‘experiência’, como escreve Carlota Pizarro de Almeida ( Carlota Pizarro de Almeida, Modelos de inimputabilidade, p. 51.), teria de ser comum aos elementos com igual formação e conhecimentos. Significa, por outro lado, nas palavras do Prof. Figueiredo Dias, que o julgador, embora mantendo a inteira liberdade de apreciação da base de facto pressuposta pelo perito, no que respeita ao juízo científico a apreciação que possa levar a cabo há-de ser científica também e estará subtraída, em princípio, à competência do tribunal. Só assim se compreende que, nos termos do artigo 163º, nº 2, do CPP, sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência. Se o julgador acatar o juízo científico dos peritos nada terá que dizer, mas se dele divergir terá de fundamentar a sua divergência.
Como escrevia o Prof. Eduardo Correia, não é sustentável a ideia da absoluta liberdade na apreciação pelo juiz da prova pericial. ( Eduardo Correia, “Les Preuves en droit pénal portugais”, RDES 1967, ano XIV, nºs 1-2.)
Nos autos há relatórios periciais reveladores de análises lofoscópicas nos chamados panfletos, mas inconcludentes. E há a perícia ao material informático apreendido ao arguido, de que o acórdão recorrido aproveitou a informação quanto a ter o seu utilizador “conhecimentos da matéria”. Conhecimentos “necessário[s] para elaborar os folhetos em causa”, concluiu ainda o Colectivo, sem no entanto justificar minimamente esse seu convencimento.
Quanto à (“fundamental”) análise comparativa dos folhetos com os documentos dos autos que foram elaborados e assinados pelo arguido, quer no âmbito deste processo quer fora dele, o Tribunal prescindiu do juízo científico ou técnico de terceiros. Reconheceu que “mesmo num exame superficial”, vários aspectos são comuns a estes documentos e aos panfletos. E apontou em termos genéricos, por exemplo, para o uso indiscriminado de maiúsculas e minúsculas (com predomínio daquelas), bem como de sublinhados e de letras a negro. Foi ainda mais longe, identificou alguns casos particulares, que em seu entender reforçam a conclusão da autoria: “a forma de abreviar a localidades…”; “o uso de onomatopeias para expressar gargalhadas…”; “o emprego despropositado da barra transversal…”; “a reiteração de erros ortográficos…”; “a referência ao autor na terceira pessoa do singular…”; e “o uso da nota, quer a fls. 895 quer no XIII e no XIX”.
O recorrente ataca um tal procedimento, crendo que se impunham “exaustivos exames periciais, laboratoriais e todos os necessários aos meios informáticos utilizados na elaboração dos panfletos”.
Ao Ministério Público na 1ª instância, por sua vez, credita-se o mérito de ter examinado de forma exaustiva as diversas questões levantadas no recurso. Quanto à comparação “entre os pasquins e outras cartas e requerimentos assinados pelo arguido”, foi o ilustre Magistrado de opinião que a análise efectuada pelo próprio Colectivo a nível de ortografia, morfologia, sintaxe e composição gráfica de textos “requer apenas conhecimentos de que o julgador se encontra dotado”. Em seu entender, “tal análise revela-se tanto mais simples quanto se reporta a textos com um elevado número de particularidades de escrita e de composição gráfica, muitas das quais completamente inusitadas, que ressaltam à vista de todos quantos sobre aqueles documentos se debrucem”.
Isto disse o MP, em resposta à motivação de recurso do arguido.
Mas o Tribunal calou qualquer explicação, dessa ou de outra natureza.
O Colectivo, a quem cabia proceder ao exame crítico das provas e não somente enumerá-las, não chega a fornecer-nos uma explicação simples das razões que o levaram a prescindir do concurso de terceiros para a análise dos textos a que por sua conta deitou mão. A nós parece-nos que uma tal explicação, bem como a de se bastar o assunto com uma análise “superficial”, seria um excelente elemento a integrar no ‘exame crítico’ da prova. Ainda assim concordamos que se o Colectivo se abalançou sozinho à análise dos textos é porque se sentiu com forças, ou seja, dotado dos conhecimentos técnicos e científicos, para tanto. Nessa tarefa contou até com o apoio incondicional do MP. Indo mais longe, pode-se inclusivamente observar, seguindo o exemplo da jurisprudência alemã, que o concurso do perito só se justifica em “casos de especiais dificuldades”. ( A informação é prestada por Ulrich Eisenberg, Beweisrecht der StPO, 4ª ed., 2002, p.595.) O que tudo seria de molde a deixar-nos confortados com as escolhas e as opções realizadas.
Há, no entanto, alguns elementos perturbadores que não podem simplesmente ser ignorados ou passados por alto. É que o Tribunal, se por uma lado se abalançou, por sua conta e risco, a um juízo que, por sua natureza, só pode ser cientifico ou técnico, por outro aplicou-lhe apenas e só critérios próprios da livre apreciação, que são critérios de extracção normativa. Perante os elementos indiciários i), ii), iii) …, que teve por existentes, o Colectivo formulou um juízo quanto à questão da autoria, aparentemente para além de qualquer dúvida razoável, mas sem nos ter elucidado do iter de formação lógica da prova, dos passos que para tanto seguiu e dos critérios com que nisso se empenhou. Ora, se não se duvida que a convicção dos julgadores é um elemento preponderante no sistema de livre apreciação das provas, mesmo que estas sejam simplesmente indiciárias, também não nos resta a mínima dúvida de que já não se pode dispensar um método de busca ou de controlo da verdade, do mesmo modo que o critério da evidência não pode dispensar o cientista do seu rigor técnico: não basta encontrar uma solução, é preciso também prová-la. ( Servimo-nos uma vez mais da lição do Prof. Ceccaldi, La criminalistique, pág. 8.) Deste modo, importaria levar à motivação da decisão, como condição da sua validade, a valoração das provas na verificação do facto, seguindo o itinerário lógico dum exame racional e de uma apreciação crítica dos elementos de prova. É assim que a prova passa da crença subjectiva ao conhecimento verdadeiro, objectivo, imparcial, controlável e comunicável (que é como quem diz: “partilhável”).
Ora, a prova jurídica e a prova científica não se confundem — apenas se sobrepõem. O perito é alguém que põe à disposição do juiz um meio de prova que leva consigo um parecer motivado. No caso, o Colectivo confundiu a prova científica com a prova jurídica; mesmo quando tratou de comparar os escritos só utilizou os critérios próprios desta última, quer dizer: os fornecidos pelo artigo 127º do CPP, partindo logo da sua análise dos textos para formar a sua livre convicção. Mas como já tivemos ocasião de observar a natureza das conclusões periciais não admite uma livre apreciação da prova ‘segundo as regras da experiência comum’, e só em critérios destes se terá baseado o Tribunal recorrido. O perito contribui com elementos científicos, do juiz espera-se a ponderação dos elementos normativos que a questão concreta suscita.
Encurtando razões, o Colectivo, no presente caso, encontrou uma solução mas na identificação dos índices materiais do facto que teve por válidos, quer dizer, na arte e na ciência de descobrir e de analisar esses indícios, não demonstra ter-se substituído criteriosamente à perícia, seguindo as técnicas e os métodos que lhe são próprios, e avalizando-os com recurso a juízos científicos e técnicos com que, valha a verdade, em parte alguma do acórdão conseguimos deparar.
Ao cabo das contas, um juízo técnico ou científico nem sequer foi valorado ou apreciado pelo Tribunal, com prejuízo do disposto nos artigos 151º, 152º, nº 1, 163º, e 374º, nº 2, do CPP.
Neste contexto, a 1ª instância incorreu em erro notório na apreciação da prova porque ao pronunciar-se sobre a atribuição dos factos ao recorrente prescindiu de um juízo ditado por critérios próprios da prova científica ou técnica, ainda que, para sua convicção, numa análise superficial fique a ideia de que utilizou elementos dessa mesma proveniência.
Nestes termos, acordam em oficiosamente decretar o reenvio do processo para novo julgamento, de acordo com o disposto nos artigos 410º, nº 2, alínea c), e 426º, nº 1, do CPP, mas só no que respeita à autoria dos panfletos identificados no acórdão de 18 de Janeiro de 2005, de forma, nomeadamente, a que sejam cumpridos os mandamentos jurídicos relativos à formação e apreciação da prova pericial.
Não são devidas custas.
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