Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
145/10.9GCVM.G1
Relator: ANA TEIXEIRA
Descritores: ARMA CAÇADEIRA
LICENÇA DE UTILIZAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/09/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I) O fundamento da perda regulada no artigo 109.º, do C. Penal, radica nas exigências, individuais e colectivas, de segurança e na perigosidade dos bens apreendidos, ou seja, nos riscos específicos e perigosidade do próprio objecto e não na perigosidade do agente do facto ilícito.
II) Quem não possui licença de uso e porte de arma é punido de forma diversa daquele que a detém mas com prazo de validade expirado.
III) Atenta a natureza administrativa e atentos os condicionalismos fixados no processo, conclui-se, por um lado, não ter aplicação a previsão estabelecida no citado artigo 109º,n.º1 do Código Penal e por outro, que a aquisição mortis causa é viável na medida em que se trata de arma que estava manifestada, estando apenas caducada a licença de uso e porte de arma.
IV) Só apenas decorridos 10 anos sem que haja reclamação da arma em causa é que será a mesma declarada perdida a favor do estado.
Decisão Texto Integral:
I - RELATÓRIO

1. Nos serviços do MP foi proferida decisão no sentido do arquivamento do inquérito, tendo os autos prosseguido tão só para que fosse dado destino aos objectos apreendidos.
Para o efeito foram os autos conclusos ao juiz de instrução com o esclarecimento de que a arma utilizada no suicídio tinha a licença já caducada desde Abril de 2007, constituindo a sua posse crime de detenção de arma proibida, não sendo susceptível de vir a ser licenciada pelos seus familiares.

Com tal informação conclui que a arma em causa deverá ser declarada perdida a favor do Estado, assim como as respectivas munições, ao abrigo do disposto no artigo 109º, nºs 1 e 2 do Código Penal e se determine a sua entrega.

2. Por decisão judicial veio a ser concluído que no caso dos autos não resulta verificada qualquer das situações previstas no artigo 109º.
Concluiu-se ainda que no caso dos autos a arma estava manifestada, estando apenas caducada a licença de uso e porte de arma, razão pela qual só decorridos 10 anos é que, caso não haja reclamação do bem, poderá ser declarada perdida a favor do estado, nos termos da lei 5/2006, de 23/2 no seu artigo 37º/6. Assim foi decidido que os autos deveriam aguardar o decurso do prazo.

3. Inconformado, o Ministério Público recorre, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões [fls.59 e seguintes]:
«(…)
CONCLUSÕES:
I
A decisão ora em recurso que não declarou a arma de caça e respectivas munições apreendidas nos autos perdidos a favor do Estado e determinou que as mesmas aguardassem o decurso do prazo de 10 anos para a sua reclamação, não tem fundamento legal, por violação do disposto no art. 109°, do Código Penal e errada interpretação dos artigos 37°, 28° e 29° da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção da Lei n" 17/2009, de 06 de Maio.
II
Com efeito, a arma era propriedade do malogrado Fernando Antunes de Sousa e terá sido por este utilizada no acto de suicídio.
III
Este era detentor de livrete da dita arma e de licença de uso e porte de arma que já havia caducado em 03-05-2007, ou seja, há mais de 180 dias, até à morte deste, que ocorreu em 17 de Maio de 2010.
IV
Nesta data, por terem decorrido mais de 180 dias, já não era legalmente admissível a renovação da licença de uso e porte, como decorre do disposto nos art°s 28° e 29°, n" 1, da citada Lei.
V
A transmissão mortis causa, nos termos do disposto no art. 37° da dita lei só seria possível se à data do falecimento do proprietário e titular da licença de uso e porte ainda não tivesse decorrido o referido prazo de 180 dias.
VII
À data do falecimento de Fernando S... tal prazo já estava há muito expirado, pelo que a detenção da arma por este constituía crime, ou seja, desde 04-10-2007.
VIII
Responsabilidade criminal esta que só não lhe foi imputada em virtude da sua morte, que extinguiu o procedimento.
IX
Pelo que seria racionalmente incompreensível e constituiria uma interpretação não conforme com o pensamento e unidade do sistema jurídico e seria uma solução desajustada (art. 9° do CC), interpretar o art. 37° da citada lei no sentido de se entender que, não obstante uma licença já ter caducado há mais de 180 dias, ainda é possível a renovação da dita licença pelos sucessores do seu titular, quando a este tal renovação já estava legalmente impossibilitada e a posse da dita arma constituía, ela própria, crime.
x
Assim, salvo melhor opinião, por se mostrarem verificados os pressupostos previsto no art. 109° do Código Penal, deve ser a dita arma e munições declaradas perdidas a favor do Estado e ser entregues à PSP, nos termos do disposto no art. 78°, nº 1, da citada lei.
Termos em que, nestes e nos melhores de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e provado e, em consequência, ser revogada a decisão que determinou que a arma de caça e munições apreendidas aguardem pelo prazo de 10 anos até serem reclamadas, devendo ser proferida decisão que determine que a arma e munições sejam declaradas perdidas a favor do Estado e entregues à PSP.
Assim fazendo V. Ex.as a costumada
Justiça!
(…)»

4. Na resposta, o Meritíssimo juiz, admite o recurso e pugna pela manutenção do decidido [fls. 72].
5. Nesta instância, o Exmo. procurador-geral-adjunto emitiu parecer no sentido de ser concedido total provimento ao recurso [fls.84 ].
6. Posteriormente a ter sido proferida decisão sumária veio a ter lugar pedido para que o processo seja levado a conferência.
7. Colhidos os vistos veio a mesma a ter lugar.

FUNDAMENTAÇÃO

8. Como sabemos, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente (art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª Ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. - cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª Ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do mesmo Código.
9. Face às conclusões apresentadas, que delimitam o objecto do recurso, importa decidir a seguinte questão:
· Se estão ou não verificados os pressupostos de que depende a declaração de perdimento a favor do Estado da arma de fogo apreendida e respectivos documentos, previstos no art. 109º do C. Penal;
· Se no presente caso pode ter aplicação a aquisição por sucessão mortis causa

No entender do recorrente que á data do óbito, apesar do dono da arma a ter devidamente manifestada e registada, encontrava-se a respectiva licença caducada, o que, no seu entender, implica ter a arma em causa caído no domínio do Estado e sem possibilidade de a mesma poder ser reclamada por familiares.

Cumpre analisar.

Da verificação dos pressupostos de que depende a declaração de perdimento a favor do Estado da arma de fogo apreendida e respectivos documentos

1. Dispõe-se no artigo 109.ª do Código Penal:

«1. São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.

2. O disposto no número anterior tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto.

3. Se a lei não fixar destino especial aos objectos perdidos nos termos dos números anteriores, pode o juiz ordenar que sejam total ou parcialmente destruídos ou postos fora do comércio»

Como muito bem salienta o MP, o fundamento da perda regulada no artigo 109.º radica nas exigências, individuais e colectivas, de segurança e na perigosidade dos bens apreendidos, ou seja, nos riscos específicos e perigosidade do próprio objecto e não na perigosidade do agente do facto ilícito (daí que não possa ser considerada uma medida de segurança) ou na culpa deste ou de terceiro (daí que não possa ser vista como uma pena acessória).

O objecto que se pretende seja declarado perdido a favor do Estado é uma espingarda de caça, que foi pertença do entretanto falecido.

Trata-se, obviamente, de uma arma de fogo e por isso, como qualquer arma de fogo, é um instrumento objectivamente perigoso, na perspectiva do cometimento de crimes. Mas não se pode ignorar que a própria lei, não obstante tais características objectivas, admite a detenção e uso pelos particulares, de armas de fogo, observadas que sejam certas condições que permitem a concessão da respectiva licença pela autoridade administrativa.

O proprietário da espingarda, detinha-a legalmente, uma vez que a mesma se encontra registada e manifestada e aquele era titular da respectiva licença de uso e porte de arma. Sucede que, tendo esta licença veio a caducar no dia 03 de Abril de 2007.

Sendo a licença de uso e porte de arma de natureza temporária, sujeita a prazo de validade, este, há muito que se encontrava expirado.

Efectivamente, concedendo a lei, quando se verifique a caducidade da licença, a possibilidade de renovação da mesma desde que o faça no prazo de 180 dias, pedindo para o efeito outra licença, tal prazo, não o fazendo, fica ultrapassado.

Face à previsão dos art°s. 86º e 99º-A da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na citada redacção, a indiciada conduta preenche o facto ilícito típico previsto naquelas normas, isto é, a detenção da espingarda de caça com a respectiva licença de uso e porte de arma caducada há mais de 180 dias constituiu o objecto, no caso concreto, daquele facto típico.

Porém, é certo que, face à previsão das referidas normas, a entrega, sem mais, da espingarda apreendida faria, instantaneamente, incorrer na prática do crime ali previsto e punido quem a solicitasse.

Mas daqui também decorre que será possível afirmar-se que não existe uma forte probabilidade de alguém vir a cometer o crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos art°s. 86º e 99º-A da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção da Lei nº 17/2009, de 6 de Maio, se for viável a legalização da detenção da espingarda, através da renovação da licença caducada ou da obtenção de nova licença, idêntica ou não, àquela, renovação ou obtenção que, necessariamente, terá que preceder a entrega da arma.

Competente para deferir ou indeferir, quer a renovação da licença caducada, quer o pedido de obtenção de nova licença é, como resulta do articulado da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção que supra se referiu, a autoridade administrativa, a Polícia de Segurança Pública (cfr., art. 12º, nº 1).

Por isso, afigura-se-nos como mais razoável, cientes inclusive que a aquisição por sucessão mortis causa de qualquer arma manifestada é permitida, tal como preceitua o artigo 37º,n.º1 da lei 5/2006, aguardar, sem prejuízo de depósito na PSP, o prazo de 10 anos, no decurso do qual os familiares, caso assim entendam possam reclamar o bem, sob pena de o mesmo ser declarado perdido a favor do Estado. Caso o façam dentro do referido prazo, assiste-lhes a possibilidade de junto da autoridade administrativa, tentarem obter a licença em falta.

Não somos alheios ao entendimento perfilhado pelo tribunal da Relação de Lisboa que no processo 4/09.2P5LSB-A.L1-5 partilha do mesmo ponto de vista do MP junto desta Relação. O mesmo versa a situação para quem, tendo o domínio da acção, não aproveita o prazo que a lei lhe confere para a renovação da concessão.

Todavia perfilhamos entendimento diverso.

O normativo do artigo 6º da lei 22/97, de 27.06 refere-se àqueles que detêm, usam, trazem consigo arma de fogo sem licença, não se referindo àqueles que, tendo licença, deixaram expirar o prazo de validade da sua licença. Tal constatação é importante realçar na medida em que traduz nítida intenção do legislador em não punir esta última situação.

De facto quem pura e simplesmente não detém licença não pode ser comparado a quem preenche todos os requisitos legais, apenas deixando a sua validade expirar.

Concluindo, quem pura e simplesmente não tem licença é punido de forma diversa daquele que a detém mas com prazo de validade expirado.

A licença é um acto administrativo que permite a alguém a prática de um acto ou o exercício de uma actividade relativamente proibidos. A licença permite o exercício de uma actividade relativamente proibida, sendo obrigatória se a autoridade está vinculada por lei e tem de passar a licença a todo aquele que a requeira e mostre as condições exigidas na mesma lei. O efeito mais importante da licença consiste em colocar aquele que dela beneficia sob a vigilância da polícia, uma vez que se atende às qualidades ou requisitos individuais do beneficiário.

Atenta a natureza administrativa e atentos os condicionalismos fixados no processo, de igual forma entendemos por um lado, não ter aplicação a previsão estabelecida pelo artigo 109º,n.º1 do Código Penal e por outro, que no caso em apreço a aquisição mortis causa é viável na medida em que se trata de arma que estava manifestada, estando apenas caducada a licença de uso e porte de arma. Só apenas decorridos 10 anos sem que haja reclamação da arma em causa é que será a mesma declarada perdida a favor do estado.

Improcede, deste modo, a pretensão manifestada pelo MP

III – DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos decide-se:

· Negar provimento ao recurso interposto pelo recorrente
Sem tributação
Guimarães, 09 de Janeiro de 2012