Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
622/14.2TBPTL.G1
Relator: MIGUEL BALDAIA MORAIS
Descritores: TRIBUNAL DE FAMÍLIA
TRIBUNAL DE MENORES
COMPETÊNCIA MATERIAL
ALIMENTOS A FILHOS MAIORES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/08/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I- RELATÓRIO


AA… intentou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra BB…, na qual conclui pedindo que este seja condenado a pagar-lhe, a título de pensão de alimentos, a quantia mensal de € 350,00, desde a proposição da ação e enquanto perdurar a sua situação de necessidade da mesma.
Para substanciar a sua pretensão de tutela jurisdicional alegou, em síntese, que o réu é o seu progenitor, possuindo capacidade económica para suportar a reclamada prestação alimentícia, sendo certo que a demandante apenas tem rendimentos resultantes de uma pensão de invalidez, réditos esses que, contudo, não são suficientes para satisfazer as suas despesas mensais, não tendo outros familiares, para além daquele, que lhe possam prestar alimentos.
Citado o réu apresentou contestação, na qual, desde logo, se defendeu por exceção dilatória, advogando que o tribunal carece de competência material para a apreciação da ação, posto que o pedido de alimentos terá de ser deduzido perante o conservador do registo civil.
Por decisão exarada a fls. 90, foi declarada a incompetência em razão da matéria do tribunal recorrido para a preparação e julgamento da presente ação, por se ter entendido que essa competência cabe à Secção de Família e Menores da Instância Central do Tribunal da Comarca de Viana do Castelo.

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Não se conformando com o assim decidido veio a autora interpor o presente recurso, o qual foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes

CONCLUSÕES:

A. O facto do caso sub judice versar sobre alimentos devidos a filhos maiores, não determina per se o seu enquadramento no disposto no artigo 123.º, n. º 1, al. e), da Lei da Organização dos Sistema Judiciário.

B. O artigo 123.º, n. º 1, al. e), da Lei da Organização dos Sistema Judiciário é expresso ao considerar apenas abrangidas no âmbito da competência dos tribunais de família e menores, as acções de alimentos devidos a menores e aos filhos maiores ou emancipados, a que se refere o art.º 1880.º do Código Civil.

C. Todas as demais acções pelas quais se pretenda a fixação de alimentos a maiores, são da competência genérica dos tribunais comuns, nos termos do disposto no artigos 64º do CPC, 40º e 80º da Lei da Organização do Sistema Judiciário.

D. O pedido e a causa de pedir, tal como resultam da petição inicial da Recorrente, permitem concluir, sem margem para dúvidas, estarmos perante uma ação de alimentos de filho maior, abrangida pelo escopo normativo do disposto no artigo 2009.º, n. º 1, al. c), do Código Civil.

E. Assim, compete aos tribunais comuns e, no caso concreto, ao Tribunal "a quo" o julgamento das ações de alimentos definitivos que não estejam abrangidas pelo artigo 1880.º do Código Civil, designadamente, de alimentos devidos a filhos maiores a que refere o artigo 2009.º, n. º 1, al. c), do Código Civil, por força da aplicação conjugada do disposto no artigo 64.º do NCPC e artigos 40.º e 80.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário.

F. Ao julgar-se materialmente incompetente, em razão da matéria, considerando competente, para o efeito, a Secção de Família e Menores da Instância Central do Tribunal de Comarca de Viana do Castelo, o Mmº Juiz a quo fez uma errada interpretação e aplicação do direito, violando, consequentemente, os artigos 64.º do NCPC e 40.º, 80.º e 123.º, n. º 1, al. e), da Lei da Organização do Sistema Judiciário.

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O réu, devidamente notificado, não apresentou contra-alegações.

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Após os vistos legais cumpre decidir.

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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Cód. Processo Civil.

Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante, a única questão a decidir é a de saber se o tribunal recorrido é, ou não, materialmente competente para preparar e julgar a presente ação.

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III- FUNDAMENTOS DE FACTO

Tem interesse para a decisão do presente recurso a seguinte factualidade:

1º- A Autora intentou na Secção de Competência Genérica da Instância Local de Ponte de Lima da Comarca de Viana do Castelo a presente ação contra o Réu, seu pai, pedindo a condenação deste a pagar-lhe, a título de prestação alimentícia, a quantia mensal de € 350,00, desde a proposição da ação e enquanto perdurar a sua situação de necessidade da mesma.

2º- Na petição inicial a Autora alegou, em súmula, que:

. Nasceu no dia 24 de outubro de 1953, sendo filha do réu (art. 1º da petição inicial);

. Atualmente não dispõe de meios de subsistência suficientes para prover o seu sustento, habitação e vestuário (art. 4º da petição inicial);

. Presentemente encontra-se absolutamente impossibilitada, por doença, de exercer a atividade profissional de cozinheira a que se dedicou ao longo da sua vida (arts. 7º, 8º e 9º da petição inicial);

. Aufere como único rendimento o montante mensal de € 303,23, a título de pensão por invalidez (art. 16º da petição inicial);

. além do réu, não tem outros familiares que lhe possam prestar alimentos (art. 21º da petição inicial).;

. O réu é proprietário de vários imóveis, possuindo uma situação económica desafogada (arts. 58º a 61º da petição inicial).

3º- Na decisão recorrida, convocando o disposto na al. e) do nº 1 do art. 123º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, foi o réu absolvido da instância, por se ter julgado o tribunal absolutamente incompetente para a preparação e julgamento da presente ação, tendo-se outrossim considerado em tal ato decisório que essa competência pertence à Secção de Família e Menores da Instância Central do Tribunal da Comarca de Viana do Castelo.

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IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO

Como é sabido, para que possa decidir-se sobre o mérito ou fundo da questão é imprescindível que o tribunal perante o qual a ação foi proposta seja competente, sendo que, por mor do disposto no nº 1 do art. 38º da Lei nº 62/2013, de 26.08 (Lei da Organização do Sistema Judiciário, doravante LOSJ), a competência fixa-se no momento em que a ação se propõe.

O requisito da competência resulta do facto de o poder jurisdicional ser repartido segundo diversos critérios, por numerosos tribunais. Cada um dos órgãos judiciários, por virtude da divisão operada a diferentes níveis, fica apenas com o poder de julgar num círculo limitado de ações e não em todas as ações que os interessados pretendam submeter à sua apreciação jurisdicional.

Tal como flui do art. 60º do Cód. Processo Civil, o regime da competência dos tribunais cíveis resulta da articulação de normas das leis de organização judiciária e de preceitos do Código de Processo Civil (CPC), sendo que, da concatenação do nº 2 desse normativo com o art. 37º da LOSJ, verifica-se que foram eleitos como fatores que determinam a repartição da competência, na ordem interna, a matéria, o valor da causa, a hierarquia judiciária e o território.

No que concerne concretamente à competência em razão da matéria, prescreve o art. 64º do CPC que “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” (previsão normativa que encontra correspondência no nº 1 do art. 40º da LOSJ), sendo que de acordo com a LOSJ (art. 81º), os tribunais judiciais agrupam-se em instâncias centrais e instâncias locais, compreendendo aquelas instâncias centrais as designadas secções de competência especializada - cível, criminal, de instrução criminal, de família e menores, de trabalho, de comércio e de execução - podendo ainda serem criadas secções de competência especializada mista. E, relativamente às instâncias locais incluem secções de competência genérica e secções de proximidade, podendo as secções de competência genérica desdobrarem-se em secções cíveis, secções criminais e secções de pequena criminalidade se e quando o volume ou a complexidade do serviço o justifiquem, deste modo se introduzindo, ao nível das instância locais, secções de competência especializada (art. 81.º, n.º 3 da LOSJ).

Do exposto emerge que no âmbito dos tribunais judiciais de 1ª instância, em sede de competência em razão da matéria, a ponderação a fazer decorre da existência de secções de competência especializada das instâncias centrais no confronto com as secções de competência genérica das instâncias locais, sendo que, em consonância com o estatuído no nº 2 do art. 40º da LOSJ, a competência material das secções das instâncias centrais é expressamente definida por lei, enquanto que, nos termos do disposto na al. a) do nº 1 do art. 130º do mesmo diploma legal, a competência das secções de competência genérica das instâncias locais assume caráter residual.

Por conseguinte, a regra geral a atender, que sobressai dos citados preceitos legais, é, assim, a de que a competência ratione materiae só deixa de pertencer às secções de competência genérica das instâncias locais se tal competência for especialmente atribuída pela LOSJ a certa e determinada secção de competência especializada das instâncias centrais.

Postas tais considerações, importa, pois, determinar se o tribunal a quo (enquanto secção de competência genérica da instância local) detém ou não competência em razão da matéria para preparar e julgar a presente ação.

Como tem sido enfatizado pela doutrina e jurisprudência pátrias Cfr., inter alia, TEIXEIRA DE SOUSA, A competência declarativa dos tribunais comuns, pág. 36 e seguintes; MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, pág. 88 e seguinte; LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, pág. 129; acórdãos do STJ de 9.12.99, CJ, Acórdãos do STJ, ano VII, tomo 3º, pág. 283 e de 18.06.2015, relatado por Silva Gonçalves (processo nº 13857/14.9T8PRT.P1.S1), disponível no sítio www.dgsi.pt., a apreciação de tal pressuposto processual (tal como os demais) é feita tendo por base a forma como o autor configura a sua ação, na sua dupla vertente do pedido e da causa de pedir, tendo-se ainda em conta as demais circunstâncias disponíveis pelo tribunal que relevem sobre a exata configuração da causa.

Em suma, para decidir qual das diversas normas definidoras dos critérios que presidem à distribuição do poder de julgar entre os diferentes tribunais deve olhar-se aos termos em que a ação foi posta – seja quanto aos seus elementos objetivos seja quanto aos seus elementos subjetivos. A competência do tribunal não depende, pois, de legitimidade das partes nem da procedência da ação. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor (compreendidos aí os respetivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão.

Por conseguinte, será em função do modo como a causa é delineada na petição inicial, e não pela controvérsia que venha a resultar da ação e da defesa, que a competência do tribunal se averigua.

In casu, considerando o substrato factual que a Autora alegou em suporte da concreta pretensão de tutela jurisdicional que aduziu nos presentes autos, pretende esta com a propositura da presente demanda obter a condenação do Réu, seu progenitor, no pagamento de uma pensão de alimentos, sem qualquer limitação temporal, em virtude de se encontrar presentemente em situação de incapacidade permanente de prover ao seu sustento.

Pese embora a materialidade assim alegada, facto é que o tribunal a quo decidiu declarar a sua incompetência material convocando a regra vertida na al. e) do nº 1 do art. 123º da LOSJ, nos termos da qual “compete (…) às secções de família e menores fixar os alimentos devidos a menores e aos filhos maiores ou emancipados a que se refere o artigo 1880º do Código Civil (…)”.

De acordo com o último normativo citado, “se no momento em que atingir a maioridade ou for emancipado o filho não houver completado a sua formação profissional, manter-se-á a obrigação a que se refere o artigo anterior [obrigação dos progenitores de prover ao sustento dos filhos e de assumir as despesas relativas à sua segurança, saúde e educação] na medida em que seja razoável exigir aos pais o seu cumprimento e pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete”.

Portanto, a obrigação prevista na disposição acabada de transcrever assume marcadamente caráter temporário e excecional, definido pelo “tempo necessário” para completar a formação profissional ou académica do alimentando, obedecendo a uma critério de razoabilidade – torna-se mister que, nas circunstâncias concretas, seja justo e sensato exigir dos pais a continuação da contribuição a favor do filho, agora maior Cfr., para maior desenvolvimento, REMÉDIO MARQUES, Algumas notas sobre alimentos (devidos a menores), 2ª edição, pág. 291 e 297, ressaltando que se trata de situação que, apesar da maioridade legal, continua a haver como que uma menoridade económica/financeira, porque o filho ainda não se encontra, do ponto de vista da formação técnica e profissional, com autonomia suficiente para angariar por si os meios de subsistência, para autonomamente prover ao seu sustento.

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Daí que, dada a sua assinalada ratio essendi, haverá, neste domínio, que proceder à destrinça entre a obrigação de alimentos com escopo educativo (a que se reporta o art. 1880º do Cód. Civil) e a obrigação geral de alimentos que os ascendentes devem aos descendentes (cuja consagração legal se mostra plasmada na al. c) do nº 1 do art. 2009º do Cód. Civil), a qual se pode manter para além da maioridade do filho e fora do condicionalismo visado pelo art. 1880º, isto é, rege para os casos em que o filho carece de alimentos não propriamente para a sua formação académica ou profissional mas antes para a sua própria subsistência.

A aludida distinção releva outrossim para efeitos adjetivos, já que enquanto o meio processual de concretização do direito a alimentos do filho maior a que alude o art. 1880º do Cód. Civil é o processo de jurisdição voluntária previsto no art. 989º do CPC, para as demais situações de alimentos reclamados a ascendente por filho maior, seguir-se-á antes a forma processual comum regulada nos arts. 552º e seguintes do mesmo diploma adjetivo.

Do exposto resulta que, à luz do disposto no citado art. 123º, nº 1 al. e) da LOSJ, a competência material da secção de família e menores para a preparação e julgamento de ações destinadas à fixação de alimentos a filho maior restringe-se tão-somente às situações reconduzíveis à previsão do artigo 1880º do Código Civil, ou seja nas situações em que este, a despeito de haver já atingido a maioridade, necessita ainda do auxílio e assistência dos progenitores, por não ter completado a sua formação profissional.

Todas as demais ações pelas quais se pretenda a fixação de alimentos a filho maior serão da competência da secção cível da instância central ou da secção de competência genérica da instância local, em função do valor do processo (cfr. arts. 117º, nº 1 al. a) e 130, nº 1 al. a) da LOSJ).

Ora, no caso vertente, não estamos em presença de uma ação de alimentos a filho maior com fundamento no art. 1880º do Cód. Civil, posto que, de acordo com a factualidade que alegou no articulado inicial, a autora não visa, através da presente ação, obter prestação alimentícia destinada a completar a sua formação académica, mas antes obter alimentos do seu progenitor em resultado de se encontrar presentemente desempregada e padecer de incapacidade física que obstaculiza que possa angariar o seu sustento, ancorando juridicamente tal pretensão no art. 2009º, nº 1 al. c) do mesmo Corpo de Leis.

Deste modo, contrariamente ao entendimento sufragado pelo Sr. Juiz a quo, a descrita situação fática não é passível de ser subsumida na fattispecie da al. e) do nº 1 do art. 123º da LOSJ, normativo esse que convocou para afirmar a incompetência ratione materiae do tribunal recorrido, atribuindo essa competência à secção de família e menores da Comarca de Viana do Castelo.

Como assim, encontrando-se excluída a competência da secção de família e menores para a preparação e julgamento da presente demanda, tendo em conta o valor da ação, tal competência, por mor do preceituado na al. a) do nº 1 do art. 130º da LOSJ, cabe a secção de competência genérica da instância local de Ponte de Lima da Comarca de Viana do Castelo Refira-se, neste ponto, que, conforme entendimento jurisprudencial corrente, o procedimento instituído pelo art. 5º, nº 1 al. a) do DL nº 272/2001, de 13.10 (que defere ao conservador do registo civil a competência para a tramitação do procedimento de alimentos a filhos maiores) só atribui competência às conservatórias do registo civil quando, relativamente a alimentos a filho maior, esteja em causa a situação prevista no art. 1880º do Cód. Civil, ou seja, quando o mesmo não tiver ainda completado a sua formação profissional, o que, como se notou, não ocorre no caso sub judice - cfr., neste sentido, acórdão da Relação de Lisboa de 14.12.2007, relatado por Graça Araújo (processo 10392/2007-6) e acórdão desta Relação de 17.09.2013, relatado por Rosa Tching (processo nº 1825/05.6TBFAF-D.G1), ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

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A presente apelação terá, pois, de proceder.

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SÍNTESE CONCLUSIVA


I- A competência material da secção de família e menores para a preparação e julgamento de ações destinadas à fixação de alimentos a filho maior restringe-se tão-somente às situações reconduzíveis à previsão do artigo 1880º do Código Civil, ou seja nas situações em que este, a despeito de haver já atingido a maioridade, necessita ainda do auxílio e assistência dos progenitores, por não ter completado a sua formação profissional.


II- Todas as demais ações pelas quais se pretenda a fixação de alimentos a filho maior, seguindo a forma de processo declarativo comum, serão da competência material da secção da instância central cível ou da secção de competência genérica, consoante o valor.

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V- DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente e, revogando a decisão recorrida, determinam a sua substituição por outra que assegure o prosseguimento dos autos.

Custas do recurso pela parte vencida a final.

Notifique.

Guimarães, 8.10.2015

Dr. Miguel Baldaia Morais

Dr. Jorge Martins Teixeira

Dr. Jorge Miguel Seabra