Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | FERNANDO MONTERROSO | ||
| Descritores: | ABUSO DE CONFIANÇA APROPRIAÇÃO ILÍCITA INVERSÃO DE TÍTULO POSSE | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 01/11/2010 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
| Sumário: | I) No crime de abuso de confiança a apropriação incide sobre uma coisa entregue licitamente ao agente Não se exige um prévio acto formal e material de entrega do objecto, mas é necessário que o agente, no momento em que ocorre a inversão do título de posse, já possa dispor dele para o desencaminhar ou dissipar. II) Ora nada disto está configurado nos factos da acusação. Nos termos desta, a arguida usou as procurações que lhe foram outorgadas, para se apropriar de bens e dispor deles. Falta, de todo, o requisito da «entrega». Nenhum espaço temporal existe entre o momento em que a arguida Teresa detém os bens e aquele em que passa a comportar-se como proprietária. Aliás, não sendo, hipoteticamente, as procurações válidas elas nunca poderiam configurar a existência de uma entrega, ainda que mediata, dos bens a esta arguida. III) Não sendo os factos da acusação imputados à arguida Teresa P... subsumíveis à previsão do crime de abuso de confiança, tem também de decair a acusação quanto à arguida Maria P... a quem foi imputado um crime de receptação. É que, é requisito do crime de receptação que a coisa tenha sido obtida mediante facto ilícito típico contra o património — v. norma do n° 1 do art. 231 do Cod. Penal. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães No 2° Juízo Criminal de Viana do Castelo, em processo comum com intervenção do tribunal colectivo (Proc.n° 166/03.8TAVCT), foi proferido acórdão que: - absolveu a arguida TERESA P.... da prática do crime de abuso de confiança qualificado; - absolveu a arguida MARIA P... da prática do crime de receptação dolosa; e - absolveu as arguidas do pedido de indemnização civil contra elas deduzido pela assistente Vera M.... * A assistente Vera M... interpôs recurso deste acórdão suscitando as seguintes questões: - o julgamento é nulo por falta de gravação do depoimento duma testemunha; e subsidiariamente - impugnam a decisão sobre a matéria de facto, visando que "após a renovação da prova serem as argui-das condenadas nos crimes pronunciadas". * Respondendo, o magistrado do MP junto do tribunal recorrido e a arguida Teresa P... defenderam a improcedência do recurso. Na sua resposta a arguida Teresa suscita ainda a questão da falta de interesse em agir da recorrente, por, enquanto assistente, não ter deduzido acusação pelos factos acusados pelo Ministério Público, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial de factos. Nesta instância, a sra. procuradora-geral adjunta emitiu parecer no mesmo sentido. Cumpriu-se o disposto no art. 417 n° 2 do CPP. Colhidos os vistos, cumpre decidir. * I – No acórdão recorrido recorrida foram considerados provados os seguintes factos (transcrição):Em data concretamente não apurada, mas há mais de 40 anos, a arguida Teresa travou conhecimento com Magna V.... Nos últimos anos de vida de Magna V..., a arguida Teresa visitava-a, ajudava-a a levar as compras, ia à médica de família buscar as receitas, comprava-lhe os medicamentos, tratava-lhe da documentação e fazia-lhe companhia. A partir do quarto trimestre de 2001, altura em que Magna V... ficou acamada, e porque precisava de alguém para dela cuidar a tempo inteiro, a arguida Teresa, a pedido de Magna V..., contactou a arguida Maria para tal fim, por ser a pessoa que tinha tratado do pai de Magna V... até à morte dele, e que esta já conhecia. Maria aceitou tal incumbência, passando a pernoitar em casa de Magna V.... A data referida no parágrafo anterior, Magna V..., nascida a 6 de Setembro de 1930, solteira, sofria de esquizofrenia paranóide e de diabetes. Nos meses que se seguiram, as arguidas Teresa e Maria foram incrementando a sua relação com Magna V.... Por causa do apoio e atenção que a arguida Teresa prestou a Magna V... nos últimos anos de vida, esta tinha intenção de lhe deixar parte dos seus bens (dois apartamentos na Abelheira, Viana do Castelo, e os certificados de aforro); Magna V... tinha ainda vontade de deixar a casa onde residia em Viana do Castelo à arguida Maria, que dela cuidava, e que a casa de Coimbra fosse vendida, e o produto da venda distribuído por instituições de caridade ao critério da arguida Teresa. Magna V... queria ainda que, depois da sua morte, a arguida Teresa entregasse à sua prima Vera e ao seu afilhado Francisco a quantia de 1 500 000$00 a cada um. Magna pediu à arguida Teresa que contactasse um advogado no sentido de elaborar os documentos que fossem necessários para que a arguida Teresa pudesse administrar os bens que lhe queria deixar e para, após a morte daquela, cumprir as suas outras vontades. Consultada uma advogada, a arguida Teresa foi informada de que Magna V... teria de assinar uma declaração onde constasse a sua vontade e de outorgar uma procuração a favor da arguida Teresa, conferindo-lhe poderes para fazer o que entendesse com os seus bens. Magna V... concordou com tal procedimento. Em 5 de Março de 2002, Magna V... assinou um documento sob a epígrafe "Declaração de Última Vontade", em que se refere "desejo que o destino dos meus bens seja o seguinte, pelo que, para o efeito, darei os necessários poderes, mediante procuração bastante à minha amiga TERESA P.... (...): A minha casa da Rua Nova de S. Bento n°19, desta cidade será para a minha empregada Maria P..., residente nesta cidade, em paga dos serviços que me tem prestado; A minha casa de Coimbra destina-se a ser vendida e o produto da sua venda a ser distribuído por instituições de caridade ao critério da minha amiga e procuradora; Todos os meus restantes bens, incluindo os meus apartamentos sitos na Rua Cirne de Castro e Rua Ramalho Ortigão, bem como os meus certificados de Aforro serão para a minha dita amiga TERESA P...., como penhor de toda a sua amizade e do apoio e carinho com que me tem tratado". Em 11 de Março de 2002, Magna V... assinou um documento sob a epígrafe "Declaração Complementar", em que se refere "tendo já determinado o destino dos meus bens, em complemento, determino que a minha procuradora, TERESA P.... (...), dê cumprimento aos seguintes encargos: PRIMEIRO: Entregar a quantia de MIL E QUINHENTOS CONTOS (7.481,97 euros) à minha prima Vera, residente no Porto. SEGUNDO: Entregar a quantia de mil e quinhentos contos (7.481,97 euros) ao meu afilhado FRANCISCO, residente no Brasil". No dia 27 de Junho de 2002, Magna V... foi internada de urgência no Hospital de Viana do Castelo, situação em que se manteve até 10 de Julho de 2002; na altura do internamento, Magna V... apresentava um quadro clínico de debilidade mental, com alterações do estado de consciência e desorientação no espaço, no tempo e na situação. No dia 25 de Julho de 2002, à tarde, a arguida Teresa, por intermédio de uma advogada, chamou a casa de Magna V..., sita na rua Nova de S. Bento, 19, Viana do Castelo, uma ajudante de notário, que exarou duas procurações. Numa, "a outorgante declarou que constitui procuradora TERESA P.... (...), a quem concede poderes para junto da «CGD, S.A. ", ou quaisquer bancos ou instituições bancárias, inclusive ao abrigo do sistema «poupança reforma», movimentar as suas contas, mesmo em caso de antecipação, podendo assinar cheques, recibos, ordens de pagamento, e tudo o que necessário se tornar aos indicados fins, e ainda para junto dos CTT — Correios de Portugal levantar certificados de Aforro, assinando, tudo o que necessário se tornar". Noutra, "a outorgante declarou que constitui procuradora TERESA P.... (...), a quem concede poderes para, pelo preço e condições que entender por convenientes, podendo fazer negócio consigo mesma prometer vender e vender quaisquer prédios urbanos de que é proprietária situados em Coimbra (Sé Nova), e na freguesia de Viana do Castelo (Santa Maria Maior), desta cidade e concelho, podento outorgar e assinar os respectivos contratos promessa e as competentes escrituras; para receber o respectivo preço e dar quitação; para na Conservatória de Registo Predial deste concelho requerer registos provisórios e definitivos, averbamentos e cancelamentos, podendo fazer declarações complementares; para na Repartição de Finanças, Câmara Municipal, requerer, praticar e assinar tudo o que necessário se tornar aos indicados fins. Esta procuração é IRREVOGÁVEL, passada no interesse da mandatária, pelo que não poderá ser revogada sem o seu acordo, não caduca por morte, interdição ou inabilitação da mandante, (...)ficando a mandatária dispensada da prestação de contas". Tais procurações não foram assinadas por Magna V..., porquanto esta, dado o seu estado de saúde, não estava em condições de o fazer, tendo nelas sido aposta a respectiva impressão digital. Quer quando assinou as duas declarações supra referidas quer quando outorgou as procurações, Magna tinha plena consciência dos actos que praticava. Magna V... faleceu no dia 24 de Agosto de 2002. Depois, a arguida Teresa, utilizando as procurações referidas, fez as seguintes operações, sempre em 2002: - no dia 29 de Agosto, efectuou o resgate de certificados de aforro dos CTT em nome de Magna, no valor de € 8.520,27; - no dia 2 de Setembro, efectuou o resgate de certificados de aforro dos CTT em nome de Magna, no valor de € 118.249,23; - no dia 7 de Outubro, celebrou escritura pública de compra e venda a si própria de dois apartamentos sitos na Urbanização Quinta da Cruz das Barras, Abelheira, Viana do Castelo, tendo fixado o preço global de € 150.000,00; - no dia 17 de Outubro, procedeu à venda por escritura pública de uma casa de Magna V..., sita na Urbanização Quinta da Avenida, na avenida D. Afonso Henriques, Coimbra, onde declarou ter recebido € 99.759,58 do comprador; - no dia 23 de Outubro, procedeu à venda por escritura pública da casa de residência de Magna V..., tendo recebido € 124.695,00. A arguida Teresa fez seus os dinheiros recebidos do resgate dos certificados de aforro, os dois apartamentos na Abelheira e o dinheiro proveniente da venda da casa de Magna V.... Em data anterior mas próxima de 29 de Outubro de 2002, a arguida Teresa emitiu o cheque n.° 85314761, sacado sobre o MP, no valor de € 45.000,00, e entregou-o à arguida Maria para que a mesma fizesse seu o valor titulado, o que esta fez, utilizando-o para pagamento do sinal de um apartamento que pretendia adquirir. Em 30 de Outubro de 2002, a arguida Teresa transferiu para uma conta bancária que ela e a arguida Maria abriram no MP em nome do marido desta, a quantia de E 79.695,00, para que a arguida Maria a fizesse sua, como efectivamente fez. As quantias entregues pela arguida Teresa à arguida Maria foram retiradas do montante do qual a arguida Teresa se tinha previamente apropriado, respeitante à venda da casa de Magna V.... A arguida Maria quis receber da arguida Teresa os valores acima referidos. Aquela tinha conhecimento que era vontade de Magna V... que fosse a arguida Teresa a dispor dos seus bens após a morte daquela; recebeu da arguida Teresa o produto da venda da casa de Magna V... porque sabia ser a vontade desta, por a arguida ter cuidado do pai de Magna V... até à morte dele e, depois, da própria. A 20 de Novembro de 2002, a arguida Teresa entregou à assistente Vera, por si e na qualidade de gestora de negócios de FRANCISCO, a quantia de E 46.921,91 (em três cheques de € 24.939,94, € 7.481,97 e E 14.500,00), resultante do encargo que a falecida lhe confiou e para ajudar a custear uma intervenção cirúrgica a que FRANCISCO ia ser sujeito. A assistente levantou tais cheques no dia seguinte. A 2 de Outubro de 2002, no Cartório Notarial de Paredes, foi outorgada escritura de habilitação de herdeiros de Magna V..., donde consta serem seus únicos herdeiros quatro primos em primeiro grau: Maria M..., Vera M..., José V... e Duarte V.... A arguida Teresa tem uma pensão de reforma mensal de E 1.200,00, sendo a reforma do marido de cerca de E 370,00 por mês. A arguida Maria está desempregada e o marido, operário fabril, ganha o salário mínimo nacional. As arguidas não têm antecedentes criminais. A corroborar as declarações das arguidas Teresa e Maria (já de si perfeitamente críveis e coerentes, e nas quais perpassam alguma perplexidade pelo que lhes é imputado), quanto à relação daquelas com Magna V... e aos cuidados que lhes foram prestados por ambas, há a destacar: o depoimento da médica de família Maria B... (que foi chamada várias vezes ao domicílio da sua doente pela arguida Teresa), as declarações da própria assistente (que esteve no hospital a visitar a prima, lá encontrando as duas arguidas, e que viu estas na casa da prima, tendo confirmado os cuidados a esta prodigalizados pela arguida Maria, inclusiva toma de medicamentos), os depoimentos de Maria J... (vizinha de Magna), de Alberto P... (marido da arguida Teresa), de Gaspar P... (marido da arguida Augusta, que confirmou ser a arguida Teresa quem pagava o vencimento à sua mulher, enquanto esta cuidava de Magna V..., e que viveu em casa desta entre Janeiro e Agosto de 2002, com a mulher e a filha), de José S... e Laura S... (amigos de Magna V... e, ele, dos pais desta), de Maria E... (auxiliar de acção médica que, a pedido da arguida Teresa, visitou Magna V... no hospital por várias vezes, constatando a relação próxima entre ambas), de Maria C... (amiga de Magna V... a quem, numa visita em Novembro anterior ao óbito, esta se mostrou muito grata pela ajuda da arguida Teresa) e de Maria V... (que, a pedido da arguida Teresa, ia fazer massagens a Magna V..., já acamada, e a quem esta demonstrava grande afecto pela arguida Teresa). A relação próxima (e antiga) que ligava Magna V... à arguida Maria é também corroborada pelo teor de fls. 999/1000. No que respeita às doenças que afectavam Magna V..., foram relevantes os registos hospitalares de fls. 80 a 90, bem como os depoimentos dos clínicos que a atenderam (Maria R..., que a viu dois dias antes do óbito, quando Magna V... fazia insulina e tomava antibióticos, Augusta M... e Fernando G..., ambos de medicina interna, que a viram durante o internamento), tendo todos lido aqueles registos, já que não tinham memória concreta da doente. Ainda mais esclarecedor foi o depoimento da aludida médica de família de Magna V... que, embora não a tenha observado depois do internamento, subscreveu o atestado de fls. 1425, datado de 9 de Maio de 2002, que refere, além do mais, a existência de "períodos de lucidez prolongados". Todos estes clínicos, e também José PC... (que elaborou o relatório de fls. 1102 a 1114, apenas com base nos registos hospitalares e, segundo expressão do próprio, "por probabilidades", o que lhe retira qualquer valor probatório), não tiveram dúvidas em afirmar que, para o tipo de patologias que afectavam Magna V... é essencial a toma regular de medicação, com a qual se torna muito menor a hipótese de perda de lucidez. O referido nos dois parágrafos anteriores seria manifestamente insuficiente para concluir pela insanidade mental de Magna V... no momento da outorga das procurações; acresce que, a contrariar tal versão, esteve o depoimento sério, coerente e seguro de Elisabete C..., a ajudante de notário que se deslocou a casa daquela para a outorga das procurações (segundo minutas que lhe tinham sido fornecidas por advogada) e que não teve quaisquer dúvidas sobre a lucidez de Magna V... e da conformidade da sua vontade com o exarado nas procurações. Quanto ao teor destas, valeu o que consta de fls. 69 a 71 e 104 a 105A. Serviram ainda os documentos de fls. 711 a 722 (relatório de autópsia) e 798 a 800 (escritura de habilitação de herdeiros). No que respeita às disposições de Magna V... para depois da sua morte, e além dos documentos de fls. 970 e 971 (cujas assinaturas não diferem das constantes dos talões de levantamento de fls. 180, seus contemporâneos), valeram os depoimentos dos já referidos José e Laura S... (a quem, já depois do regresso do internamento, Magna V... confessou a sua tranquilidade, por estar "tudo seguro à Teresa"), os testemunhos supra referidos quanto à relação próxima entre Magna V... e a arguida Teresa (que tornam lógica a manifestação de vontade daquela, por gratidão), bem como a actuação da arguida Teresa após o óbito de Magna V..., precisamente concretizando a expressão de vontade desta, e não usando para outros fins, ou em seu proveito exclusivo, os bens e valores a que as procurações lhe davam acesso. Há ainda a realçar a circunstância de, quanto à assistente e a FRANCISCO, a arguida Teresa ter acabado por entregar mais do triplo do que a própria Magna V... tinha determinado (fls. 397 e 260)! Serviram ainda, para os actos praticados pela arguida Teresa, os seguintes elementos documentais: as escrituras públicas de fls. 51 a 60 e 739 a 743, a cópia do cheque de fls. 100 (passado pelo comprador Francisco F..., que o mesmo e a sua mulher Laurinda F...confirmaram em audiência, bem como Jorge C..., o solicitador que tratou da respectiva escritura), as informações bancárias de fls. 119, 206 a 208 e 259 (quanto ao mesmo cheque), os resgates dos certificados de aforro (fls. 135 a 137, 163 a 170) e o depósito dos respectivos valores (fls. 266) e os pagamentos feitos à arguida Maria (fls. 259 e 275). Para a situação pessoal das arguidas, valeram as suas declarações. Serviram ainda os certificados de registo criminal de fls. 920 a 921. Inexistiu prova, quer nos extractos bancários da arguida Teresa quer nos de Óscar Correia (fls. 413 a 561), do pagamento do preço do apartamento de Coimbra, ou do respectivo recheio (que ninguém referiu). De escassa relevância se mostrou o depoimento de Maria Amélia Silva, por apenas ter passado o certificado de óbito de Magna V.... As declarações da assistente mostraram-se eivadas de despeito e raiva pelas arguidas, tornando compreensível a repulsa manifestada por Magna V... em relação àquela e aos seus outros familiares (referida, pelo menos, pelas testemunhas Gaspar P..., Elisabete C..., José e Laura S..., e Maria V...). Aliás, é demonstrativo dos interesses (monetários) que a motivam não só a circunstância de ter depositado os cheques entregues pela arguida Teresa no dia seguinte a tê-los recebido, como a circunstância de apenas ter vindo apresentar queixa crime cerca de três meses depois, sob a capa de um interesse afectivo pela sua prima que não logrou provar ter demonstrado em vida, nomeadamente dela cuidando, como o fizeram as arguidas. O depoimento do marido da assistente, Ademar M..., mostrou-se exagerado, bem como do o seu filho José MM (quanto à frequência quinzenal das visitas à prima, que mais ninguém confirmou) e, o do primeiro, pouco crível (quando disse não conhecer a arguida Teresa). FUNDAMENTAÇÃO 1 – A admissibilidade do recurso da assistente Na sua resposta a arguida Teresa P... defende que o assistente só tem legitimidade para recorrer quando tiver também deduzido acusação pelos factos acusados pelo Ministério Público, por parte deles, ou por outros que não importem uma alteração substancial dos factos. No caso, não tendo a assistente deduzido acusação, não se pode considerar que o acórdão absolutório foi proferido contra ela. Não a teria afectado uma vez que, em termos penais, não contrariou a posição processual por si assumida. Pese embora já ter sido assim decidido nesta Relação de Guimarães, não se concorda com tal posição. A solução está no art. 69 do CPP. Não podem ser assistentes todas as pessoas afectadas pelo crime, mas apenas os titulares dos interesses que a lei especialmente visou proteger com a incriminação – cfr. art. 68 n° 1 al. a) do CPP. O nosso processo penal confere aos assistentes o estatuto de colaboradores do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo – art. 69 n° 1. Porém, tal subordinação cessa nos casos previstos na lei, em que o assistente pode, independentemente da vontade do MP, actuar autonomamente. Entre esses casos estão os das três alíneas do n° 2 do art. 69 do CPP. Aí se prevê, numa alínea – a b) – a possibilidade do assistente deduzir acusação independente da do MP; e noutra – a c) – a faculdade de interpor recurso das decisões que o afectem, mesmo que o MP o não tenha feito. Não existe qualquer relação de dependência entre estas duas faculdades. Se fosse esse o escopo do legislador, a redacção da alínea c) seria certamente diferente. Por exemplo: "Caso deduza acusação, interpor recurso das decisões que o afectem...". Não deve o intérprete distinguir onde o legislador nenhuma diferença viu. É certo que, quando o assistente apenas intervém em momentos mais adiantados do processo, não pode pretender influenciar o que já foi processado. Tem de aceitar o processo no estado em que o encontrar (art. 68 n° 3). Mas, a partir daí, a lei não distingue entre assistentes de "primeira" e de "segunda". A todos confere igual o direito ao recurso, desde que a decisão tenha sido contra eles proferida (art. 401 n° 1 al. b) do CPP). Deverá considerar-se que foi proferida "contra" o assistente a sentença que não reconheceu terem sido violados "os interesses especialmente protegi-do com a incriminação" a que alude a norma do já referido art. 68 n° 1 al. a) do CPP. Improcede, pois, esta questão prévia. 2 — A nulidade do julgamento por falta de gravação do depoimento do dr. José PC... A fls. 1592 está um requerimento da assistente Vera M..., dirigido ao juiz do tribunal Judicial de Viana do Castelo, com o seguinte conteúdo: "Vem juntar recurso e Invocar a nulidade de julgamento. Nos termos e fundamentos seguintes: 1 — Não consta das gravações o testemunho do dr. José PC.... 2 — Tal testemunho é fundamental, na perspectiva do assistente, 3 — Essa falta é causa de nulidade do julgamento e consequentemente do douto acórdão, nulidade que expressamente se invoca. Nesses termos (...) requer que seja declarada a nulidade do julgamento, com as legais consequências". Trata-se de requerimento dirigido ao sr. juiz de primeira instância que foi por ele apreciado e decidido. Na realidade, a fls. 1676 foi proferido um despacho em que se determinou à secção de processos que "certifique se o depoimento da testemunha José PC é audível"; logo após, a fls. 1677, está a informação de que o depoimento é audível; e, finalmente, a fls. 1678 está o seguinte despacho que se transcreve: "Da invocada nulidade: Considerando a informação supra não se verifica a alegada nulidade". Este despacho foi notificado à recorrente em 30-10-09, com a notificação da admissão do recurso do acórdão (fls. 1680), não tendo sido interposto recurso dele. Não está aqui em causa sindicar a credibilidade que o colectivo deu às declarações desta médica. Se fizesse isso, a Relação estaria a cair na tentação de fazer um novo julgamento, quando a sua função não é essa, mas apenas a detectar a existência de vícios na decisão sobre a matéria de facto. Como se viu, o colectivo não pôs em causa a credibilidade do depoimento da médica Maria B.... Não lhe indicou qualquer fragilidade, considerando-o, por exemplo, um testemunho falso, fruto de fantasia, incoerente ou insensato. Pelo contrário, no início da fundamentação do acórdão recorrido, escreveu-se que é um dos depoimentos que "há a destacar"; e, mais à frente, na frase citada, considerou-se tal depoimento "ainda mais esclarecedor" do que o dos outros médicos. Porém, ouvindo-se tudo o que esta testemunha disse, constata-se que ela, apesar da barragem de perguntas que lhe foi feita, foi inabalável na formulação do juízo de que após o internamento (ocorrido em 27 de Junho de 2002) a Magna V... não esteve capaz para outorgar as referidas procurações. É verdadeiramente impressionante o que esta médica disse sobre a natureza das doenças da Magna V..., a evolução do seu estado clínico e a falta de possibilidades de recuperação. Mais: confrontada, em 14-4-09, com o teor do documento de fls. 1425, datado de 9 de Maio de 2002, que refere a existência de "períodos de lucidez prolongados", foi inequívoca a reportar o conteúdo do documento à data em que foi feito (anterior às procurações) e em declarar: "simplesmente, o quadro agravou-se". Perguntada, logo a seguir, se a Magda V... apresentava um quadro que não lhe permitiria outorgar procurações, respondeu com um esclarecedor: "não, nunca, jamais na vida" (minuto 3,20 da gravação). Finalmente, esta testemunha, ao contrário do que se escreveu na fundamentação do acórdão, nunca afirmou que não observou a sua doente depois do internamento. Não foi peremptória a afirmar tal facto, mas as suas declarações foram nesse sentido. Veja-se o minuto 3,40 e ss do depoimento de 14-4-09, em que fala sobre esse pormenor. "Ela já não falou para mim". Está convencida que foi posterior ao internamento, porque "estava medicada com insulina". Também nesta parte o conteúdo da fundamentação é fonte de alguma perplexidade. * Porém, põe-se uma questão prévia à alteração da matéria de facto, que é a de saber se os factos vertidos na acusação de fls. 748 e ss (para o qual remete o despacho de pronúncia – fls. 876 e ss) são susceptíveis de integrar os crimes por que as arguidas foram acusadas. A resposta é, diga-se desde já, negativa. Nuclear na acusação é a seguinte passagem, que se passa a transcrever: "No dia 27-06-2002, a referida Magna foi internada de urgência no Hospital de Viana do Castelo, situação que se manteve até ao dia 10-07-2002. Nessa altura aquela Magna apresentava um quadro clínico de debilidade mental, com alterações do estado de consciência e desorientação no espaço, no tempo e na situação. Não obstante, conhecendo perfeitamente o estado de saúde física e mental da referida Magna, e querendo aproveitar-se do mesmo, a arguida Teresa, utilizando a influência que entretanto conquistou sobre aquela, devidamente esclarecida por meio de consulta profissional de advocacia, com a ajuda da arguida Augusta que passara a pernoitar casa daquela, convenceu aquela a outorgar a seu favor uma procuração irrevogável, que lhe garantisse a possibilidade de dispor dos seus bens. Assim, no dia 25-07-2002, da parte da tarde, a arguida, por intermédio de profissional de advocacia, chamou ao domicílio da referida Magna, sito na R. Nova de S. Bento, número 19, Viana do Castelo, uma ajudante de notário, que exarou as procurações de fls. 105 e s e 107 e s (que aqui se dão por integralmente reproduzidas, fazendo parte do presente despacho e devendo acompanhar todas as notificações do mesmo). Tais procurações não foram assinadas pela entretanto falecida Magna V..., porquanto a mesma, dado o seu estado de saúde degradado, não estava em condições de o fazer". Nos termos da acusação, foi na posse dessas procurações que a arguida Teresa procedeu ao resgate dos certificados de aforro e outorgou as escrituras. Pois bem, a acusação, que deve ser uma peça em que se imputam factos de forma inequívoca e peremptória, fica-se pelas "meias palavras". Nunca afirma que o conteúdo das procurações não corresponde à real vontade da Magna V..., nomeadamente, porque quando ela as passou, não tinha condições psicológicas e mentais para formular uma manifestação válida de vontade. É certo que nela se alega que as procurações "não foram assinadas pela Magna V..., porquanto a mesma, dado o seu estado de saúde degradado, não estava em condições de o fazer". Mas isto nada significa de relevante. Pode alguém estar no gozo das suas faculdades mentais, perfeitamente capaz de, no momento do acto de passar uma procuração, manifestar validamente a sua vontade e, no entanto, não ter "condições de saúde" física que lhe permitam assinar com o seu próprio punho o documento. Aliás, é isso mesmo que é referido nas procurações que estão a fls. 105 e 107. Consta no final das duas: "Esta procuração foi lida à outorgante e à mesma explicado o seu conteúdo em voz alta na sua presença, não a assinando por declarar não o poder fazer". Se a ideia da acusação era alegar a incapacidade mental Magna V..., então, em vez de reproduzir o conteúdo das procurações, considerando tal conteúdo parte integrante da imputação, devia ter expressamente alegado a divergência entre a vontade declarada nas procurações e a vontade real (ou a inexistência dessa vontade). A frase transcrita pressupõe que a outorgante percebeu o que lhe foi explicado e que manifestou a sua concordância com o que ficava exarado. Não constando da acusação que o conteúdo das procurações não correspondia à vontade da Magna V..., nunca poderia esse facto ser considerado pelo julgador. É que, como é sabido, por força do princípio do acusatório (art. 32 n° 5 da CRP), o tribunal apenas pode julgar dentro dos limites que lhe são postos por uma acusação fundamentada e deduzida por um órgão diferenciado (o MP ou o juiz de instrução). É a acusação que define e fixa, perante o tribunal de julgamento, o objecto do processo. É ela que delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal e é nela que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade e da consunção do objecto do processo penal — v., entre outros, Figueiredo Dias, Lições de Direito Processual Penal, UC, ano 88/89, pag. 99 e ss. * Mas, mesmo que assim não fosse, sempre teria a acusação que naufragar, porque os factos não seriam passíveis de integrar a prática do imputado crime de abuso de confiança. Vejamos: Comete este crime "quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo de propriedade..." – art. 205 n° 1 do Cod. Penal. Restringindo a norma o objecto do crime a "coisas móveis", estão, naturalmente, afastados do âmbito da incriminação os comportamentos da arguida Teresa P... com vista à apropriação ou à venda dos bens imóveis. Restariam, pois, os casos dos dois resgates de Certificados de Aforro e da venda do recheio da casa situada na avenida Afonso Henriques de Coimbra. Porém, quanto a estes, falta o elemento dos bens terem sido "entregues" à arguida Teresa P... "a título não translativo de propriedade". Nem toda a apropriação ilícita de um bem móvel importa a prática de um crime de «abuso de confiança». No art. 205 n° 1 do Cod. Penal tipifica-se este crime de uma forma sintética e clara, por recurso à noção de inversão do título de posse. Convém, pois, embora de forma sucinta, que nos reportemos aos conceitos de "posse" e de "inversão do título de posse" plasmados no nosso direito civil. "Posse" é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direi-to de propriedade ou de outro direito real – art. 1251 do Cod. Civil. Ela caracteriza-se por dois elementos essenciais, geralmente designados por "corpus" e "animus". O primeiro elemento, de natureza objectiva, consiste na actuação de facto correspondente ao exercício do direito, ou seja, na fruição normal e completa das utilidades que uma coisa pode prestar. O elemento subjectivo, por sua vez, traduz-se na intenção de fruir a coisa em nome e no interesse próprios. Assim, só existe "posse" quando do adquirente desta se possa dizer que procedeu em tudo como um proprietário. Daqui se vê que o "detentor" da coisa pode usa-la e frui-la, de modo pleno, sem ter a posse. Será assim sempre que ele não acompanhar a fruição com a intenção – o "animus" – de ser o proprietário. O "animus" nem sempre acompanha o "corpus" - nunca o acompanha nos casos de detenção em nome alheio. Ora, a "inversão do título de posse" é um acto característico do detentor em nome alheio. Ela dá-se "por oposição do detentor contra aquele em cujo nome possuía" – art. 1265 do Cod. Civil. Isto é, o mero detentor, em determinado momento (o da oposição), passa a actuar como se tivesse sobre a coisa o direito real que, até então, considerava pertencente a outrem. No crime de abuso de confiança a apropriação incide sobre uma coisa entregue licitamente ao agente – ac. do STJ de 23-6-93, citado em anotação do por Maia Gonçalves. Não se exige um prévio acto formal e material de entrega do objecto, mas é necessário que o agente, no momento em que ocorre a inversão do título de posse, já possa dispor dele para o desencaminhar ou dissipar. Nada disto está configurado nos factos da acusação. Nos termos desta, a arguida Teresa usou as procurações para se apropriar dos bens e dispor deles, o que é diferente. Falta, de todo, o requisito da «entrega». Nenhum espaço temporal existe entre o momento em que a arguida Teresa detém os bens e aquele em que passa a comportar-se como proprietária. Aliás, não sendo, hipoteticamente, as procurações válidas elas nunca poderiam configurar a existência de uma entrega, ainda que mediata, dos bens a esta arguida. Não sendo os factos da acusação imputados à arguida Teresa P... subsumíveis à previsão do crime de abuso de confiança, tem também de decair a acusação quanto à arguida Maria P... a quem foi imputado um crime de receptação. É que, é requisito do crime de receptação que a coisa tenha sido obtida mediante facto ilícito típico contra o património – v. norma do n° 1 do art. 231 do Cod. Penal. Isto é, mediante um facto objectivamente qualificado na lei como crime contra o património. No caso, não havendo crime de abuso de confiança, não é possível configurar o crime de receptação. Tem, pois, de ser negado provimento ao recurso, embora por razões distintas do acórdão recorrido. DECISÃO Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães negam provimento ao recurso. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs. |