Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
276/12.0GCVCT.G1
Relator: MARIA LUÍSA ARANTES
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
PENA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/04/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: Decidindo-se a condenação do arguido na pena de 6 meses de prisão, afastada a adequação da suspensão da execução e da prestação de trabalho a favor da comunidade, deve a sentença, sob pena de nulidade, ponderar a possibilidade do arguido cumprir aqueles 6 seis meses de prisão em regime de permanência na habitação (art. 44 nº 1 do Cod. Penal), em regime de prisão por dias livres (art. 45 nº 1 do Cod. Penal), ou em regime de semidetenção (art. 46 nº 1 do Cod. Penal).
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:
I – RELATÓRIO
No processo comum (com intervenção do tribunal colectivo) n.º276/12.0GCVCT do 2ºJuizo Criminal do Tribunal Judicial de Viana do Castelo, por sentença proferida em 21/5/2013 e na mesma data depositada, o arguido Manuel S... foi condenado pela prática de um crime de furto simples, na forma tentada, p. e p. pelos arts.203.º, 23.º n.º2 e 73.º do C.Penal, na pena de seis meses de prisão efectiva.
Inconformado com a decisão condenatória, o arguido interpôs recurso, extraindo da respectiva motivação, as seguintes conclusões [transcrição]:
- O recorrente foi condenado pela prática de um crime de furto simples, na forma tentada p. e p. pelos art.s 203°,23°, n." 2 e 73°, ambos do CP, na pena de 6 meses de prisão.
- O Tribunal deu como provado no dia 28 de Junho de 2012, cerca das 22.00h, Maria V... saiu da residência para dar um pequeno passeio com o seu cão, momento que se cruzou com o ora arguido Manuel S....
-E que o arguido, após se ter cruzado com a ofendida e se ter apercebido que esta se ausentava da sua residência, dirigiu-se, à residência desta, com a intenção de retirar do seu interior os objectos móveis, bens e valores aí existentes e de conseguisse apoderar-se.
- Deu ainda como provado que o recorrente só não logrou concretizar os seus intentos uma vez que foi surpreendido pela ofendida no interior da sua residência.
- Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo julgou incorrectamente os factos, porquanto em relação aos mesmos não foi produzida prova.
- Ao contrário do que se pretende fazer crer existe uma enorme hesitação no depoimento da ofendida no que diz respeito à identificação da pessoa que encontrou dentro da sua residência.
- De facto, a ofendida não viu a face pessoa, pois a pessoa que encontrou dentro da sua casa, já se encontrava a sair pela janela, e por isso, nada vê concretamente além das pernas do indivíduo.
-Estando, apenas convicta de que o autor do furto foi o recorrente, pelo simples facto de se ter cruzado com o arguido momentos antes do ocorrido.
- A ofendida identifica o arguido pelo facto de estar calções e pelos chinelos.
- Ora, em pleno verão é bastante comum haver indivíduos naqueles trajes, sendo necessário indicar uma característica individualizante que determine com exactidão que permita identificar o arguido.
- Em contrário bastaria que alguém que não simpatizasse com determinada pessoa e o acusasse como autor de determinado crime.
- Felizmente, num Estado de Direito, são necessários factos concretos e não meras presunções para se condenar uma pessoa.
- Além do mais, o depoimento da ofendida e do seu filho Gabriel P..., não são de todo isentos. Pois,
- Apesar de terem afirmado não existir qualquer animosidade relativamente ao arguido, em determinada altura do seu depoimento a ofendida admite que já tinha havido desentendimentos com o arguido, designadamente uma agressão ao falecido filho da ofendida.
- No entanto, o Tribunal a quo considera, antes, como a versão dada, de forma credível e isenta, pela testemunha Maria V...", podendo ainda ler-se que as declarações do arguido não foram consideradas como relevantes "atenta a forma como o verbalizou".
- É notório que, a condenação do arguido por crimes da mesma natureza criou na mente do julgador um preconceito contrário ao princípio da presunção de inocência do arguido.
- Encontrando-se, deste modo, violado o princípio "in dúbio por reo", segundo o qual o Tribunal a quo deve decidir "sobre toda a matéria que não se veja afectada pela dúvida", de forma que, quanto aos factos duvidosos, o princípio da livre convicção não fornece, não pode fornecer qualquer critério decisório" – Christina Líbano Monteiro "Perigosidade de Inimputáveis ... ", p. 54.
- Ao contrário do que resulta da douta sentença recorrida o recorrente entende que a sanção aplicada é desadequada e desproporcional face aos factos, visto que as exigências de prevenção geral são normais.
- O furto simples na forma tentada (a ser considerado provado e imputado ao recorrente) ainda não é considerado assim tão alarmante na nossa sociedade, conforme se pretende fazer crer e por isso mostra-se adequada a pena de prisão suspensa.
- Conseguindo, deste modo, o Tribunal a quo alcançar a "estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada".
- Acresce que, não houve quaisquer prejuízos de natureza patrimonial causados à ofendida, e que por isso aquela nem sequer formulou pedido de indemnização civil. Assim,
- Atento o desvalor da sua conduta, o grau de ilicitude do recorrente é ligeiro e não de "média intensidade", conforme resulta da sentença condenatória.
- Não tendo voltado ao crime desde a última condenação, que ocorreu há mais de 7 meses.
- Atento o exposto, a pena de prisão suspensa é suficiente para afastar o recorrente da actividade criminosa.
O Ministério Público junto da 1ªinstância respondeu ao recurso, pugnando pela confirmação da sentença recorrida [fls.151 a 154].
Remetidos os autos ao Tribunal da Relação, o Exmo.Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em que se pronunciou pelo não provimento do recurso [fls.166 a 168].
Cumprido o disposto no art.417.º n.º2 do C.P.Penal, não foi apresentada resposta.
Colhidos os vistos legais, os autos foram submetidos à conferência.

II – FUNDAMENTAÇÃO

Decisão recorrida

«A - Factos provados
Produzida a prova e discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos com interesse para a decisão final:
1. Maria V... reside na Rua L..., S... Viana do Castelo.
2. No dia 28 de Junho de 2012, cerca das 22.00h, Maria V... saiu da residência referida em 1) para dar um pequeno passeio com o seu cão, momento que se cruzou com o ora arguido Manuel S....
3. O arguido, após se ter cruzado com a ofendida e se ter apercebido que esta se ausentava da sua residência, dirigiu-se, decorridos alguns minutos, à residência desta e melhor id. em 1), com a intenção de retirar do seu interior os objectos móveis, bens e valores aí existentes e de que conseguisse apoderar-se.
4. Assim determinado, o arguido içou-se à altura da janela da casa de banho da residência melhor identificada em 1) e abriu, de modo não concretamente apurado, a mesma, penetrando, de seguida, no seu interior.
5. Sucede, porém, que a ofendida voltou logo a seguir à sua residência e, ao entrar na mesma, ouviu um barulho estranho, o que a alertou.
6. Assim desperta, a ofendida olhou em direcção da casa de banho e viu o indivíduo com quem se havia cruzado na rua, o ora arguido, a procurar fugir pela janela da casa de banho, o que acabou por conseguir.
7. O arguido Manuel A... só não logrou concretizar os seus intentos uma vez que foi surpreendido pela ofendida no interior da sua residência – e, portanto, por razões alheias à sua vontade – pondo-se em fuga do local.
8. O arguido agiu com intenção de fazer seus os bens e valores que se encontrassem no interior da residência sita na Rua L..., S... Viana do Castelo e que pudesse levar consigo, apesar de saber que os mesmos não lhe pertenciam e que nessa conformidade agia contra a vontade e sem autorização do respectivo dono, só não o logrando fazer por razões estranhas à sua vontade.
9. Mais quis o arguido, o que conseguiu, entrar sem qualquer autorização residência melhor identificada em 1) e que, ao faze-lo, agia contra a vontade do seu legítimo proprietário.
10. Sabia ser o arguido Manuel S... toda a sua conduta proibida e criminalmente punida.
Mais se provou que:
11. O Arguido é pescador e aufere, em média, mensalmente Euros 300,00.
12. Tem o 6º ano de escolaridade.
13. Está em tratamento à toxicodependência no CRI.
14. Vive em casa dos progenitores.
15. O Arguido foi condenado, por factos de 18 de Abril de 2008, por crime de furto qualificado, decisão de 2 de Fevereiro de 2010, transitada a 10 de Março de 2010, na pena de 5 meses de prisão suspensa por um ano, no âmbito do processo 204/08 do 1º Juízo Criminal do TJVC, que foi julgada extinta a 18 de Janeiro de 2012.
16. O Arguido foi condenado, por factos de 30 de Outubro de 2009, por crime de introdução em lugar vedado ao público, decisão transitada a 27 de Setembro de 2011, na pena de 30 dias de multa, à taxa diária de Euros 6,50, no âmbito do processo 21/09.8MAVCT, do 2º Juízo Criminal do TJVC, que foi julgada extinta a 17 de Outubro de 2011.
17. O Arguido foi condenado, por factos de 17 de Janeiro de 2010, por crime de roubo, decisão de 26 de Outubro de 2011, transitada a 15 de Novembro de 2011, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão suspensa por igual período, no âmbito do processo 570/09 do 2º Juízo Criminal do TJVC.
18. O Arguido foi condenado, por factos de 8 de Fevereiro de 2010, por crime de roubo qualificado, decisão de 17 de Maio de 2010, transitada a 11 de Junho de 2010, na pena de 5 anos de prisão suspensa por igual período, no âmbito do processo 82/10 do 2º Juízo Criminal do TJVC.
19. O Arguido foi condenado, por factos de 3 de Dezembro de 2008, por crime de furto qualificado, decisão de 7 de Janeiro de 2011, transitada a 7 de Fevereiro de 2011, na pena de 2 anos de prisão suspensa por igual período, no âmbito do processo 148/08 do 2º Juízo do TJPL.

*
B - Factos não provados
Produzida a prova e discutida a causa, não resultaram provados os seguintes factos com interesse para a decisão final:
Inexistem.
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C – Convicção do Tribunal
Para considerar como provados ou não provados os factos acima enunciados o Tribunal fundou-se nos seguintes meios de prova:
Em parte muito limitada, nas declarações do Arguido;
No depoimento das testemunhas Maria V... (proprietária do imóvel a que alude a acusação e que presenciou os factos em análise) e Gabriel P... (filho da testemunha anterior que conhece o Arguido).
No auto de reconhecimento de fls. 53.
No certificado de registo criminal, junto a fls. 93 a 100.
2 - Análise crítica.
O arguido negou os factos de que vem acusado. Fê-lo, porém, sem convicção e a sua versão contraria, de forma flagrante, as regras da experiência bem como a versão dada, de forma credível e isenta, pela testemunha Maria V....
Na verdade, apresentou como justificação da “queixa” da ofendida o facto de não falar para um filho dela!?
A testemunha Maria V... relatou os factos de forma pormenorizada e objectiva. Esta, de forma segura e convincente, esclareceu em que contexto se cruzou com o Arguido – que conhece desde tenra idade, estando o mesmo relacionado com o consumo de estupefacientes –, na rua próximo da sua residência, que roupa trajava e que, mais tarde, já no interior da residência, mais precisamente na casa de banho, apanhou-o a fugir pela janela, não tendo a menor dúvida de que era o Arguido (pela roupa e conhecimento que tem do mesmo).
A testemunha Gabriel P... atestou que não existe qualquer animosidade relativamente ao Arguido e que o mesmo está relacionado com o consumo de estupefacientes.
Concluindo, atenta a prova produzida à luz das regras da experiência, entendemos que a acusação se mostra provada.
Efectivamente, a testemunha Maria V... mostrou isenção e objectividade de forma a merecer total credibilidade.
Pelo contrário, o Arguido limitou-se, sem convicção, a referir que não praticou os factos de que vem acusado e que a mesma imputação se ficou a dever a um facto que, salvo o devido respeito, não faz qualquer sentido (pelo menos, atenta a forma como o verbalizou). »

Apreciação
Nos termos do art.412.º n.º1 do C.P.Penal, o âmbito do recurso é delimitado pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso, como são os vícios da sentença previstos no art.410.º n.º2 do C.P.Penal.
Atentando nas conclusões do presente recurso, as questões trazidas à apreciação deste tribunal são as seguintes:
- impugnação da matéria de facto
- violação do princípio in dubio pro reo
-medida da pena

1ªquestão: Na tese recursiva a prova produzida é insuficiente para a condenação do arguido pelo crime de furto, na forma tentada. Em abono da sua tese, o recorrente faz a transcrição parcial das declarações do arguido e dos depoimentos das testemunhas Maria V... e Gabriel P....
É consabido que a matéria de facto pode ser impugnada por duas formas: invocando os vícios do art. 410.º n.º2 do C.P.Penal, a designada “revista alargada” ou através da impugnação ampla da matéria de facto, nos termos do art. 412º nº3 e 4 do mesmo diploma.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410º, os quais têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos estranhos àquela, para a fundamentar.
No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise da prova produzida em audiência, mas dentro dos limites do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art.412.º do C.P.Penal.
Tendo sido documentadas, mediante gravação, as declarações prestadas em audiência de julgamento, o tribunal da 2ªinstância pode conhecer amplamente da decisão de facto, uma vez cumprido o disposto no supra citado art.412.º n.ºs 3 e 4 do C.P.Penal
Dispõe o art.412.º n.º3 do C.P.Penal «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente provados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.»
E o n.º4 do mesmo dispositivo estabelece «Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º2 do art.364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação
O recurso de facto para a relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; ao invés, os recursos, em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros manifestos de julgamento, os quais devem ser indicados com menção das provas que os evidenciam. Por isso, o art.412.º n.º3 al.b) do C.P.Penal refere «As provas que impõem decisão diversa da recorrida» e não as que permitiriam uma decisão diversa. O recorrente tem de demonstrar que as provas a que alude impõem decisão diversa da recorrida, não bastando que as provas sejam compatíveis com a decisão que o recorrente gostaria de ter visto acolhida pelo tribunal. Há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem mais do que uma solução. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, ela é inatacável pois foi proferida de acordo com o princípio da livre apreciação – art.127.º do C.P.Penal.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova que está deferido ao tribunal da primeira instância, que beneficia da imediação e da oralidade, sendo que na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também factores não materializados e que são imperceptíveis na gravação de um depoimento, como a linguagem gestual.
O Tribunal da Relação só pode/deve determinar uma alteração da matéria de facto assente quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão – v., a este propósito, Ac. STJ de 15/07/2009, Proc. n.º 103/09 – 3.ª Secção, Ac.STJ de 10/3/2010, Proc.n.º 112/08.2GACDV.L1.S1, 3.ª Secção, relatados pelo Conselheiro Raul Borges, disponíveis in www.stj.pt/jurisprudência/sumáriosdeacórdãos /secção criminal.
No caso em apreço, verifica-se que nem na motivação nem nas conclusões, o recorrente deu cumprimento ao ónus de especificação previsto nos n.º3 e 4 do art.412.º, não discriminando relativamente a cada um dos factos que considera incorrectamente julgado as concretas passagens em que se funda a impugnação e que impõem uma decisão diversa da recorrida. Limitou-se antes a impugnar a factualidade assente quanto à autoria dos factos através da credibilidade que o tribunal a quo conferiu ao depoimento da ofendida em detrimento das declarações do arguido, que negou a prática dos factos, fazendo transcrição parcial de depoimentos.
Uma vez que a recorrente não deu cumprimento ao ónus de impugnação especificada, nem nas conclusões, nem na motivação de recurso, improcede a impugnação ampla da matéria de facto De salientar que não havia que endereçar ao recorrente convite para aperfeiçoamento quanto a tal questão, pois isso traduzir-se-ia na concessão de novo prazo para recorrer, o que não está compreendido no próprio direito ao recurso [v.Ac. do Tribunal Constitucional nº140/2004, de 10/03/2004, in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordãos).
Mas ainda que não existisse o obstáculo de falta de cumprimento do ónus de especificação, sempre a pretensão do recorrente não procederia, pois o seu objectivo é que a Relação não atribua credibilidade ao depoimento da ofendida quando é peremptória em afirmar que reconheceu o arguido e consequentemente proceda a um novo julgamento, criando a sua própria a convicção.
Como já supra referido, o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não se destina a que o tribunal ad quem proceda a novo julgamento, mas tão-só a alterar a matéria de facto quando esta se encontra em absoluta desconformidade com a prova produzida.
Não cumprido o ónus da especificação nos termos do art.412.º n.º3 e 4.º do C.P.Penal, a apreciação da matéria de facto tem de se cingir aos vícios do art.410.º n.º2 do C.P.Penal, vícios de conhecimento oficioso.
Dispõe o art.410.º nº2 do C.P.Penal: «Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.»
O vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão verifica-se quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação (e da medida desta) ou de absolvição.
O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ocorre quando há uma incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através do texto da decisão recorrida, entre os factos provados, entre factos provados e não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Existe erro notório na apreciação da prova quando, analisada a decisão recorrida na sua globalidade e sem recurso a elementos extrínsecos, resulta de forma inequívoca que o tribunal fez uma apreciação ilógica da prova, em patente oposição às regras básicas da experiência comum, ou seja, sempre que para a generalidade das pessoas seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo tribunal. Trata-se de um erro ostensivo, que é detectado pelo homem médio.
Comecemos por apreciar o erro notório na apreciação da prova.
Através da indicação das provas que serviram para formar a convicção do julgador e do seu exame crítico, o tribunal ad quem verifica se o tribunal a quo seguiu ou não um processo lógico e racional na apreciação da prova.
Analisando a sentença recorrida, o raciocínio explanado na motivação da matéria de facto pelo tribunal a quo é coerente e está de acordo com as regras da experiência: a ofendida identificou o arguido como a pessoa que encontrou no interior da sua casa, pois conhecia-o há já vários anos e reconheceu a roupa que vestia, sendo que pouco antes se tinha cruzado com o mesmo nas imediações da sua casa. Ao invés, o arguido limitou-se a negar os factos, invocando a queixa apresentada pela ofendida como tendo origem num desentendimento que em tempos teve com um filho desta, o que é pouco consistente.
No caso em apreço, não decorre da fundamentação constante da sentença uma análise ilógica da prova produzida, violadora das regras da experiência comum e como tal não se verifica o vício do erro notório na apreciação da prova.
Tão-pouco se detectam os vícios previstos nas alíneas a) e b) do n.º2 do art.410.º do C.P.Penal, pelo que se considera definitivamente fixada a factualidade dada como provada.
2ª questão: violação do princípio in dubio pro reo
Este princípio, enquanto corolário da presunção de inocência do arguido até ao trânsito em julgado da sentença condenatória consagrada no art. 32.º, n.º2 da CRP, pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor do arguido.
A sua violação só ocorre quando do texto da decisão recorrida decorre que o tribunal ficou na dúvida em relação a qualquer facto e, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido. Mas a dúvida é a dúvida que o tribunal teve ou que se impunha segundo as regras da experiência, não a dúvida que o recorrente acha que o tribunal deveria ter tido por existirem versões de sinal contrário.
In casu, a fundamentação da decisão impugnada não revela qualquer dúvida do tribunal a quo quanto aos factos que julgou assentes, explicando de forma coerente e de acordo com as regras da experiência o iter formativo da sua convicção. Perante duas versões distintas, a do arguido e a da ofendida, deu credibilidade a esta última, explicando em que base assentou o seu raciocínio, o qual está de acordo com a normalidade do acontecer.
E alegação do recorrente no sentido de que o tribunal a quo foi influenciado pelas anteriores condenações sofridas por crimes de da mesma natureza para atribuir a autoria dos factos ao arguido, é inócua por não ter qualquer sustentabilidade como resulta à saciedade do texto da sentença recorrida.
Em conformidade, soçobra também este fundamento do recurso.
3ªquestão: medida da pena
O recorrente não questiona a opção por uma pena de prisão, mas tão-só facto esta não ter sido suspensa na sua execução.
Dispõe o art.50.º n.º1 do C.Penal «O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às suas condições de vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime, às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada as finalidades da punição.»
Conforme se extrai deste dispositivo, são considerações de natureza exclusivamente preventiva, de prevenção geral e de prevenção especial, que justificam a opção pela suspensão da execução da pena de prisão.
Quanto à função a desempenhar por aquelas exigências preventivas, como refere Figueiredo Dias, in “ Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, pág.332/333, há que atribuir prevalência às considerações de prevenção especial, por serem sobretudo elas que justificam, em perspectiva político-criminal, todo o movimento de luta contra a pena de prisão. A prevenção geral surge sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização.
Formulado um juízo de prognose favorável no sentido de que o arguido não voltará a delinquir e ainda que são asseguradas as expectativas da comunidade no sentido da defesa do ordenamento jurídico deve ser decretada a suspensão da execução da pena.
No caso vertente, não obstante da matéria de facto provada constar que o arguido está em tratamento à toxicodependência no CRI – ponto 13 –, o certo é que o arguido praticou os factos pelos quais foi condenado nos presentes autos no período da suspensão da execução de três penas de prisão, por crimes de roubo e de furto qualificado, razão pela qual não se afigura possível fazer um juízo de prognose no sentido de que a mera ameaça da pena basta para a afastar da prática de novos ilícitos; as últimas condenações do arguido em penas de prisão suspensas na sua execução, não foram suficientes para o afastar da prática de novos crimes, pelo que se torna necessária a aplicação de uma pena de prisão efectiva em termos de prevenção especial. Por outro lado, a suspensão da execução da pena de prisão não garante as exigências mínimas de prevenção geral, porquanto geraria na comunidade um sentimento de que o ordenamento jurídico – penal não é devidamente salvaguardado ao suspender-se a execução de uma pena de prisão a um arguido que praticou o crime durante a suspensão de várias penas de prisão e por crime da mesma natureza e que revelou, assim, indiferença pelas condenações sofridas e pelas oportunidades que lhe foram dadas de se ressocializar.
Nesta conformidade, face às exigências de prevenção geral e especial, impõe-se que seja efectiva a pena de prisão em que o arguido foi condenado, não merecendo censura a sentença recorrida ao afastar a suspensão da execução da pena de prisão bem como a prestação de trabalho a favor da comunidade.
Assente que a pena deve ser de 6 meses de prisão, conforme fixada pelo tribunal a quo, surge uma outra questão, de conhecimento oficioso.
É que o tribunal recorrido, não ponderou, como lhe cabia, a possibilidade do arguido cumprir esses 6 meses de prisão em regime de permanência na habitação [art.44.º n.º1 al.a) do C.Penal], prisão por dias livres [art.45.º n.º1 do C.Penal] ou em regime de semidetenção [art.46.º n.º1 do C.Penal], ou seja, as chamadas penas de substituição em sentido impróprio, as quais são detentivas da liberdade, mas cuja execução não pressupõe a privação continuada da liberdade ou a privação de liberdade em meio prisional.
Afirmar que se torna necessário o cumprimento efectivo da pena de prisão, não significa que esse cumprimento não possa ter lugar em regime de semidetenção ou em prisão por dias livres ou em regime de permanência na habitação, pois estas penas de substituição são detentivas da liberdade e são, em abstracto, aplicáveis à pena de prisão em que o arguido foi condenado. [v., entre outros, Ac.R.Guimarães de 25/2/2009,proc.n.º93/08.2GAVLN.G1,18/5/2009, proc. n.º 318/07.1PBVCT.G1, Ac.R.Évora de 25/10/2011, proc. n.º358/08.3PAENT.E1, todos disponíveis in www.dgsi.pt]

O tribunal a quo não podia deixar de apreciar a sua aplicação, pois sendo abstractamente possível a opção por mais do que uma pena de substituição, o tribunal tem de fundamentar a sua não aplicação.

Por outro lado, o facto de o arguido não se ter pronunciado em termos de dar ou não consentimento às modalidades de cumprimento da pena em regime de permanência na habitação (art.º 44.º, n.º 1) ou de semidetenção (art.º 46.º, n.º 1) não é impeditivo de que as mesmas tenham de ser equacionadas na sentença, sendo que o Sr.Juiz devia colher e consignar em acta a vontade do arguido a respeita dessa possibilidade; se não o fez terá de reabrir a audiência para esse único efeito.

Não tendo a sentença recorrida ponderado a aplicação aos 6 meses de prisão em que condenou o arguido do disposto nos art. 44.º, n.º 1 al. a), 45.º e 46.º do C.Penal, deixou o tribunal de se pronunciar sobre questão que devia apreciar, pelo que é nula, tão-só nessa parte, a decisão [art.379.°, n.º 1 al. c), do C.P.Penal].

Para além das questões suscitadas nas conclusões dos recursos, o tribunal ad quem deve ex officio conhecer, além do mais, das nulidades de sentença, decorrendo tal entendimento do n.º 2 do art. 379.º do C.P.Penal, que dispõe que essas nulidades devem ser arguidas ou conhecidas em recurso [neste sentido v., entre outros, Ac STJ de 2.02.2005, CJ STJ I/p. 189, Ac STJ de 16.11.05, CJ STJ T. III/p 210 e de 11.01.06, CJ STJ I/p. 160].

III – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes na secção criminal do Tribunal da Relação de Guimarães, em declarar a nulidade da sentença apenas na parte em que há omissão de pronuncia quanto à aplicação, ou não, do disposto nos art. 44.º, n.º 1 al. a), 45.º e 46.º do C.Penal, devendo ser proferida nova sentença, se possível pelo mesmo tribunal, em que se supra tal nulidade, após, se necessário, a reabertura da audiência para colher e consignar em acta a vontade do arguido a respeito de consentir na possibilidade de cumprimento da pena no regime de permanência na habitação ou de semidetenção a que se referem os art.º 44.º, n.º 1 al.a) e 46.º do C.Penal.

Sem custas.

Guimaraães, 4/11/2013