Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | RICARDO SILVA | ||
| Descritores: | QUEIXA DESISTÊNCIA DA QUEIXA ACEITAÇÃO TÁCITA | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 04/08/2008 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
| Sumário: | I – A questão posta neste recurso é a de saber se a declaração feita pelo arguido, previamente à apresentação de qualquer declaração de desistência de queixa pelo ofendido, no sentido de não aceitar qualquer desistência de queixa que possa vir a ser apresentada ulteriormente, não poderá ser retractada a não ser por uma expressa declaração de aceitação de desistência de queixa. II – Dispõe o artº 51.°, nº 3, do C. P. Penal que: “Logo que tomar conhecimento da desistência, a autoridade judiciária competente para a homologação notifica o arguido para em cinco dias declarar, sem necessidade de fundamentação, se a ela se opõe. A falta de declaração equivale a não oposição. “ III – A leitura desta norma feita com uma preocupação exegética mínima, logo deixa perceber que o legislador enquadra sistematicamente a declaração de oposição à desistência de queixa, como um pressuposto da legitimidade do órgão próprio para a correspondente homologação, segundo o apertado “numerus clausus” que resulta do nº 2, do mesmo artigo 51º, em função da fase em que o processo se encontre: o MP, o juiz de instrução e o presidente do tribunal. IV – Temos assim que, conhecida a desistência, o mesmo o órgão que no momento detenha a legitimidade para tal, desencadeia o procedimento legalmente previsto para a homologação, nele incluído a notificação do arguido para declarar se se opõe à mesma, procedimento este que, portanto, não poderá acontecer antes, nem perante outra qualquer entidade. V – Assim sendo, não temos dúvidas em afirmar que a declaração sobre hipotéticas futuras desistências, prestadas “ex officio”, perante a GNR, não observa a legalidade, sem prejuízo de se aceitar que, a GNR, na pendência do inquérito, por competência delegada do MP, possa notificar o arguido para o indicado fim, ou tomar-lhe declarações sobre tal matéria, mas isso mediante o Impulso do MP e sob o seu controlo, perante uma concreta declaração de desistência de queixa. VI – É que, por demais o terá percebido o legislador, as declarações de repúdio de desistências de queixa, futuras e hipotéticas – com um objecto “incertus na” e “incertus quan” -, quando nada se sabe ainda sobre o andamento futuro do processo, tendem a não corresponder a qualquer vontade real e maduramente manifestada, aproximando-se com muito maior facilidade de meras bravatas ditadas pela circunstância. VII – Na verdade, acresce como razão do foro psicológico, que como a grande maioria dos potenciais arguidos comparece perante o órgão de policia criminal desacompanhado de defensor e sem qualquer preparação para perceber a complexidade técnica da situação que o processo envolve, tenderá a uma rotunda negativa, praticamente por reflexo, como atitude de defensiva prudência, com receio de que uma manifestação de não oposição possa, desde logo, ser entendida como a admissão da culpa. VIII – Assim entendemos que a declaração de não aceitação de possíveis desistências futuras, prestadas perante um órgão de polícia criminal, numa primeira abordagem à temática do processo, não pode ter qualquer valor processual, não fazendo pois sentido defender-se que não possa ser revogada por declaração tácita, tal como a expressamente prevista na parte final do artº 51.°, nº 3, do C. P. Penal. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães, I. 1. Em 2006/05/01, J... Pereira, queixou-se de que M... Silva, com os demais sinais dos autos, o agredira fisicamente, a murro, no nariz, acompanhando esta acção com a frase «Ainda não fica por aqui, hás-de (() “Ades”, no original!) levar mais», dando origem ao inquérito com o NUIPC 111/06.9GBCMN, que correu termos pelos Serviços do Ministério Público (MP) de Caminha. 2. No âmbito do referido processo, interrogado o denunciado, em 2006/06/27, este, além do mais, declarou que se opunha a uma eventual desistência de queixa. 3. Pelos factos correspondentes, veio o MP a deduzir, datada de 2006/10/12, acusação contra o dito Manuel da Silva, pela autoria material, em concurso efectivo, de um crime de ofensa à integridade física simples e de um crime de ameaça, p. e p., respectivamente, p. art.os 143.º, n.º 1, e 153.º, n.º 1, ambos do Código Penal (CP). 4. Em 2006/11/24, o queixoso José Pereira, ouvido em declarações no MP de Caminha declarou que desistia da queixa apresentada contra o arguido Manuel Rachão da Silva, não desejando contra o mesmo procedimento criminal. 5. Face ao que, em 2006/11/28, o magistrado do MP lavrou despacho em que, “atenta a posição do arguido” referida em I.2., determinou que os autos prosseguissem os seus trâmites. 6. Remetidos os autos para julgamento, em 2007/02/23, foi lavrado despacho judicial, no qual de determinou a notificação do arguido para vir aos autos informar se aceitava a desistência de queixa apresentada, com a cominação de, nada dizendo em dez dias, se presumir que a aceitava. 7. Tal despacho foi notificado ao defensor do arguido e a este, ambos por via postal simples com prova de depósito, tendo no primeiro caso a carta sido expedida em 2006/12/13 e, no segundo, em 2007/04/10. 8. As notificações atrás referidas não obtiveram qualquer resposta. 8. Em 2007/05/14, tendo-lhe sido aberta vista para efeito de se pronunciar quanto à desistência de queixa apresentada, o magistrado do MP opôs-se à homologação da desistência de queixa, ainda com fundamento, em síntese, na posição do denunciado referida em I.2. Mas não atacou a posição do juiz referida em I.6. 9. Em 2007/05/17, foi lavrado nos autos o, na parte que interessa, seguinte despacho judicial (() De que não existe, nos autos, como deveria, cópia dactilografada; cfr. o art. 699.º do Código de Processo Civil , aplicável ex vi do art.º 4.º do Código de Processo Penal ): « Entendemos que o facto de o arguido em sede de inquérito ter referido que se opunha a uma eventual desistência de queixa não o vincula até ao julgamento, ou seja, tal posição do arguido não é irretratável, sendo certo que o queixoso pode desistir da queixa, desde que não haja oposição deste, até à publicação da sentença de primeira instância (sendo certo que tal acontece com a leitura da mesma). 10. Inconformado com esta decisão, o MP interpôs recurso da mesma. Terminou a motivação de recurso que apresentou, com a formulação das seguintes conclusões: « 1. Os factos denunciados nos autos são susceptíveis de integrar a prática dos crimes de "Ofensa à integridade física" e Ameaça", previstos e punidos respectivamente pelos arts. 143°, n.° 1 e 153°, n.° 1, do C. Penal. Encerrou com o pedido de revogação do despacho recorrido e substituição do mesmo por outro que receba a acusação deduzida pelo Ministério Público e ordene a marcação de datas para a audiência de julgamento. 11. Em 2007/06/06, lavrou-se novo despacho judicial, dividido em duas decisões: – Uma, irregularmente precoce, de reparação parcial do recurso (() Figura de duvidosa admissibilidade, vista a instabilidade que insinua na definição do objecto do recurso. ). Nela se diz, com interesse: « Tendo em conta o disposto no artigo 414°, n.°4, do CPP, atento o recurso interposto pela Digna Magistrada do Ministério Público, decide-se reparar o despacho de fls. 67 e 67 verso, nos seguintes termos: – A outra, de admissão do recurso. 12. Cumprido o disposto no art.º 411.º, n.º 6, do CPP, não foi apresentada qualquer resposta. 13. Nesta instância o Ex.mo Procurador-geral-adjunto deu parecer no sentido do não provimento do recurso. 14. Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP), de novo não houve qualquer resposta. 15. Em exame preliminar foi determinado processar e julgar o recurso em obediência às normas processuais vigentes antes da entrada em vigor da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, em homenagem ao disposto no n.º 2, do art.º 5.º do Código de Processo Penal (CPP), na parte em que refere que a lei processual penal não se aplica aos processo iniciados anteriormente à sua vigência quando da sua aplicabilidade imediata possa resulta agravamento sensível da situação processual do arguido. E, colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, que se realizou com observância do formalismo legal, como a acta documenta, mantendo-se as alegações orais no âmbito das questões postas no recurso. II. 1. Atentas as conclusões da motivação do recurso, que, considerando o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do CPP, definem o seu objecto, o recurso é apenas, de direito e a única questão nele posta é a de saber se a declaração feita pelo arguido, previamente à apresentação de qualquer declaração de desistência de queixa pelo ofendido, de não aceitar qualquer desistência de queixa que possa vir a ser apresentada, não pode ser retractada senão por uma declaração de aceitação de desistência de queixa expressa. 2. Não percebemos com inteira claridade o que move o MP neste recurso, mas, à falta de melhor entendimento, tendemos para acreditar que é a defesa, intransigente, diga-se, do direito do arguido a ser julgado – malgré lui-même (() Com pedido de perdão pelo estrangeirismo, que, de modo um tanto livre, se pode traduzir por «mesmo contra a sua vontade». ). Vejamos, o que a lei exige é que, nos casos, como o que ora nos prende, em que desistência de queixa é admissível, uma vez apresentada esta, o arguido seja notificado para declarar se a ela se opõe. Assim, o art.º 51.º, n.º 3, do CPP dispõe o seguinte: Artigo 51.º (Homologação da desistência da queixa ou da acusação particular) (…) 3. Logo que tomar conhecimento da desistência, a autoridade judiciária competente para a homologação notifica o arguido para em cinco dias declarar, sem necessidade de fundamentação, se a ela se opõe, A falta de declaração equivale a não oposição. (…) A leitura da norma citada com uma preocupação exegética mínima, logo deixa perceber que o legislador foi, neste particular, mais cuidadoso e exigente, do que uma outra primeira leitura, mais ligeira e despreocupada deixa perceber. Assim, o legislador enquadra sistematicamente a declaração de oposição à desistência de queixa, como um pressuposto da legitimidade do órgão próprio para a correspondente homologação. Trata-se, portanto, de uma questão de legitimidade. E o mesmo legislador estabelece um numerus clausus – muito apertado, aliás. – na atribuição da legitimidade para a homologação em questão: só três órgãos detêm, assim, tal legitimidade, segundo a fase em que o processo se encontre: o MP, o juiz de instrução e o presidente do tribunal; n.º 2, do artigo 51.º, citado. Temos, portanto, que, conhecida a desistência – n.º 2 do mesmo artigo – o órgão que no momento detenha a legitimidade para tal desencadeia o procedimento legalmente previsto para a homologação, nele incluído a notificação do arguido para declarar se se opõe à mesma. Não antes, nem por outra qualquer entidade. Assim sendo, não temos dúvidas em afirmar que a declaração sobre hipotéticas futuras desistências, prestadas ex officio, perante a GNR, não observam a legalidade. Não vamos ao ponto de afirmar que a GNR, na pendência do inquérito, por competência delegada do MP, não possa notificar o arguido para o indicado fim, ou tomar-lhe declarações sobre tal matéria, mas isso há-de ser feito mediante o impulso do MP e sob o seu controlo, perante uma concreta declaração de desistência de queixa. É que, por demais o terá percebido o legislador, declarações de repúdio de desistências de queixa, futuras e hipotéticas – com um objecto incertus an e incertus quan –, quando, como é o caso, nada se sabe sobre o andamento futuro do processo e sobre o desvanecimento ou o adensamento da ameaça que qualquer processo penal, em maior ou menor medida, representa, tendem a não corresponder a qualquer vontade real e maduramente manifestada, aproximando-se com muito maior facilidade de meras bravatas ditadas pela circunstância. Há, ainda, outra razão, do foro psicológico, que altera e corrompe a liberdade da formação da vontade e a adequada manifestação dessa mesma vontade. A grande maioria dos potenciais arguidos comparece perante o órgão de policia criminal – porque é perante este que, na grande maioria dos casos se comparece – desacompanhado de defensor e sem qualquer preparação para perceber a complexidade técnica da situação que o processo envolve; e tem consciência disso! A sua posição é, em consequência, de defensiva prudência. E quando, depois de terem sido confrontados com uma qualquer acusação, seja ela qual for, e de, em muitos caso a terem negado ou terem relegado para futuras ocasiões a tomada de uma posição sobre as imputações, se lhes pergunta se não se opõem a que aqueles que naquele momento os acusam venham, se vierem, um dia, a desistir da queixa, é natural que o primeiro lampejo de entendimento e o primeiro assomo de medo se condensem no pensamento de que manifestar não oposição corresponda a admitir a culpa. Daí a uma rotunda negativa, praticamente por reflexo, é um ai! Eis porque o legislador não quis e não contemplou a possibilidade de a homologação ou os preliminares dela terem lugar sem existir uma real desistência de queixa e porque rodeou de tantos cuidados o procedimento correspondente. Eis, também, porque entendemos que a declaração de não aceitação de possíveis desistências futuras, prestadas perante um órgão de polícia criminal, numa primeira abordagem à temática do processo, não podem ter qualquer valor processual. A praxe da sua prestação – por regra na formulação positiva – tem-se difundido e admitido porque se têm mostrado úteis para desbloquear alguns impasses processuais, quando não seja possível actualizá-las junto dos seus autores uma vez recebida a desistência de queixa e sempre que visivelmente correspondem ao melhor interesse actual do declarante, avaliado por um observador médio e desinteressado. Nesses casos é normal que não venham a ser postas em causa – como efectivamente não têm sido – permitindo um desenvolvimento processual a contento de todos. Não é o caso aqui. A declaração de não aceitação prestada perante a GNR no início do processo vai contra todo o interesse actual do arguido, tal como ele se desenha aos olhos de qualquer bom pai de família, Finalmente e como lucidamente refere o Ex.mo Pga nesta relação, ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus. É que a lei é clara quando afirma que «a falta de declaração equivale a não posição». Não se trata de estabelecer uma presunção – o legislador conhece o valor das palavras – mas uma equivalência entre a falta de declaração, após notificação para o efeito, e a declaração de não oposição. É o mesmo que se o legislador dissesse. O notificado para declarar se se opõe, tanto pode afirmar a sua não oposição pela declaração correspondente como pelo silêncio. Os dois valem o mesmo. Apenas a oposição tem de ser declarada expressamente. Assim sendo não faz qualquer sentido vir o MP defender que a declaração expressa anterior não pode (!!) ser revogada por declaração tácita. Isto é contrariar o sentido expresso e inequívoco da lei que atribui o mesmo valor às declarações expressa e tácita de aceitação da declaração de desistência de queixa. Por todo o exposto e sem necessidade de mais profundas indagações, o recurso tem de improceder. I Termos em que, Acordamos em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida, como a mesma se conforma depois do despacho de reparação parcial de 2007/06/06.
Não é devida tributação.
Guimarães, 2008/04/08 |