Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
10/13.8TABGC.G2
Relator: ALCINA RIBEIRO
Descritores: DECRETAMENTO DE MEDIDA TUTELAR
NULIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/11/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I) A declaração do Tribunal da Relação que «anula todo o processado a partir das alegações de julgamento» repõe os autos no momento imediatamente anterior à fase das alegações, destruindo os efeitos produzidos pelo Acórdão que, na sequência do julgamento foi proferido em primeira instância, designadamente o da fixação da competência material das Secções de Família e Menores para aplicar medidas tutelares educativas.

II - Isto não significa que aquela decisão final enferme do vício de inexistência, mas antes, que, tendo existido, foi posteriormente eliminada do processo, tudo se passando, como se não tivesse sido proferida, como se aquele acto não tivesse sido praticado.

III - Para efeitos da determinação da competência das Secções de Família e Menores, a que alude o artigo 28º e 29º, da Lei Tutelar Educativa não se poderá atender às decisões proferidas pela primeira instância, que, posteriormente vieram a ser anuladas pelo Tribunal da Relação.

Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

1. Nestes autos, por acórdão proferido em 15 de Setembro de 2015, foi aplicada a Cristina C., a medida tutelar educativa de internamento em Centro Educativo, em regime semi-aberto, pelo período de um ano e nove meses.

2. Desta decisão recorrem o Ministério Público e a jovem C…, defendendo a excessividade da medida tutelar educativa aplicada.

3. Nesta Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto suscita como questão prévia, o arquivamento dos autos, na medida em que a jovem completou 18 anos antes da última decisão proferida em primeira instância.

4. Colhidos os vistos legais, nada obsta ao conhecimento do recurso.

II – Questões a decidir

Antes de se conhecer a questão introduzida, nesta instância, pelos recorrentes – a excessividade da medida tutelar educativa – há que apreciar a questão prévia suscitada pelo Exmº Senhor Procurador Geral Adjunto e que consiste em saber, se, tendo a jovem C… atingido a maioridade antes da data da prolação do acórdão recorrido, mantinha a Secção Criminal da Instância Local de Bragança competência para lhe aplicar uma medida tutelar educativa.

III – Apreciando e decidindo

Antes de mais, cumpre esclarecer que, para efeitos da Lei Tutelar Educativa, a Secção Criminal da Instância Local de Bragança constitui-se, no caso, como Secção de Família e Menores [cf. artigos 29º, nº, 1 e 3, da Lei Tutelar Educativa (adiante designada por LTE), 124º, nº 5, da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto, que aprovou a Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) e 73º do Decreto Lei nº 49/2014, de 27 de Março, que aprovou o Regulamento à Lei 62/2013].

As Secções de Família e Menores têm competência para, entre outros e no que ao caso interessa, apreciar os factos qualificados como crime, praticados por menor, com idade compreendida entre os 12 e os 16 anos, com vista à aplicação de medida tutelar [artigo 28º, nº 1, al. c), da Lei Tutelar Educativa e 124º, nº 2, al. b) da Lei do Sistema Judiciário].

Esta competência cessa, quando o menor completar 18 anos antes da data da decisão em primeira instância [artigo 28º, nº 2, al. b) da LTE e 124º, nº 3, b), da LOSJ].

Neste caso, o processo não é iniciado ou, se o tiver sido, é arquivado (28º, nº 3, da LTE e 124º, nº 4, da LOSJ).

A possibilidade da secção de família e menores aplicar «uma medida ao menor, depois dele perfazer 16 anos e antes de completar 18 anos, por facto praticado antes dos 16 anos, justifica-se do ponto de vista dogmático e politico-legislativo. (…) “trata-se ainda de um cidadão menor e, como tal, sujeito à respectiva jurisdição: valem ainda, relativamente a ele, as finalidades que orientam o processo tutelar educativo, nomeadamente a educação da personalidade para o respeito pelas normas e valores jurídicos – intenção que já não valerá relativamente a cidadãos maiores, que já ninguém tem o direito de educar de forma coactiva. Por outro lado, excluir tal possibilidade, limitando a intervenção do tribunal de família e menores até ao momento em que o menor completasse os 16 anos, deixaria sem resposta graves carências de intervenção por parte do Estado. Pode dizer-se que, por força das demoras normais da investigação dos factos, identificação dos seus autores, e decurso do respectivo processo, dificilmente se conseguiria intervir junto de um menor que praticasse um facto ilícito típico – por mais grave que fosse – entre os 15 e os 16 anos de idade (…). Este “salvo- conduto” de não intervenção, não só desprotegeria em medida inadmissível os bens da comunidade, como também, deixando insatisfeitas as suas elementares (e legitimas) expectativas, poderia fazer perigar a paz social (…). O que acontece, pois – é importante fazer realçar este aspecto – é que, se entretanto, o menor completar 18 anos, a comunidade tem de suportar a eventual morosidade na aplicação da lei, face a uma realidade incontornável: o cidadão deixou de ser menor» (Anabela Rodrigues e António Carlos Duarte-Fonseca, in Comentário à Lei Tutelar Educativa, 2003, pág. 117).

Vale isto para dizer, que, para efeitos de atribuição de competência das Secções de Família e Menores, em matéria tutelar educativa, existem dois limites objectivos inultrapassáveis: a) idade até aos 18 anos e b) a data da decisão do tribunal em primeira instância antes daquela.

A partir do momento em que o jovem completa 18 anos, as Secções de Família e Menores (primeira instância) deixam de ter competência para apreciar e decidir os factos qualificados como crimes que aquele tenha praticado, em idade compreendida entre os 12 e 16 anos, com vista à aplicação de uma medida tutelar educativa.

Os 18 anos constituem, assim, o limite temporal até ao qual é, ainda, possível decidir, em primeira instância, se deve ou não ser decretada uma medida tutelar educativa. Esta, uma vez aplicada, pode, ainda, ser executada até o jovem completar os 21 anos de idade (artigo 5º, da LTE).

Donde, a competência do tribunal a quo para apreciar os factos praticados por C…, quando tinha 14 anos de idade, com vista a aplicar-lhe uma medida tutelar educativa, cessou no dia 18 de Agosto de 2015, data em que completou 18 anos.

Nestes autos, a primeira instância realizou uma audiência de discussão e julgamento e proferiu três Acórdãos em que aplicou à recorrente a medida tutelar educativa de internamento em Centro Educativo, em regime semi-aberto.

O primeiro dos Acórdãos datado de 7 de Julho de 2014, foi impugnado quer pelo Ministério Público, quer por C…, tendo o recurso desta última sido julgado procedente pela Relação do Porto, «anulando-se todo o processado a partir das alegações de julgamento», a fim de se proceder à avaliação psicológica de C…, diligência obrigatória, nos termos do artigo 71º, nº 5, da Lei Tutelar Educativa».

Devolvidos os autos à primeira instância, pedido o relatório social com avaliação psicológica e sem que a audiência tivesse sido reaberta, foi proferido o segundo Acórdão que decretou a mesma medida de internamento em Centro Educativo, em 12 de Junho de 2015.

De novo inconformados com a excessividade da medida tutelar educativa, dela recorrem a jovem e o Ministério Público.

Subidos os autos a esta Relação, foi proferida a decisão fls. 1563 a 1566 que, reiterando «a anulação do processado a partir das alegações de julgamento», ordenou a reabertura da audiência, para integral cumprimento do anteriormente decidido pela Relação do Porto.

Regressados os autos à primeira instância, foi, então, reaberta a audiência de julgamento, finda a qual se prolatou o acórdão recorrido, em 15 de Setembro de 2015.

Deste iter processual, podemos concluir que, se as duas primeiras decisões são anteriores ao momento em que C… completou os 18 anos de idade, o mesmo não acontece com a decisão recorrida, que data 15 de Setembro de 2015, o que nos leva à questão de saber, qual das três decisões proferidas em primeira instância fixou a competência da Secção de Família de Menores de Bragança para aplicar à jovem a medida tutelar educativa.

Para esse efeito, não podem deixar de se apreciar os efeitos «da anulação do processado a partir das alegações de julgamento» decidida, por duas vezes, uma pelo Tribunal da Relação do Porto outra por esta instância, quanto à competência das Secções de Família e Menores de Bragança.

Registe-se, que as Relações não se limitaram a «anular» ou «declarar a nulidade» dos dois Acórdãos proferidos pelo Tribunal a quo, antes «anularam todo o processado a partir das alegações de julgamento», determinando a reabertura da audiência de discussão e julgamento.

A anulação, lê-se, a fls. 1566, abrange «as alegações de julgamento. Aliás, se a intenção fosse outra, o normal teria sido declarar apenas a nulidade da sentença».

Não se trata, pois, de uma nulidade de sentença com fundamento numa das causas previstas no artigo 111º, da LTE, mas antes de uma nulidade processual, que como se sabe, são realidades distintas, quer na natureza, quer no âmbito ou finalidade.

Em termos técnico-jurídicos, o conceito de validade corresponde a uma valoração positiva, no sentido de que determinado acto se encontra conforme o modelo normativo.

Já o conceito de invalidade, delimitado pela negativa, equivale a uma desconformidade entre o acto praticado ou omisso e o modelo legal que lhe subjaz, desconformidade essa violadora da ordem jurídica e por esta censurada.

A invalidade de um acto ou do processo ocorre, assim, quando os trâmites legais que os regulamentam são violados, podendo decorrer: a) da prática de um acto proibido; b) da prática de um acto permitido ou mesmo imposto por lei, mas sem observância das formalidades legais e c) de omissão de um acto previsto na lei.

É sabido que as consequências do acto inválido não são as mesmas para todos, variando conforme a gravidade e a natureza da violação. Os binómios validade/invalidade e eficácia/ineficácia não coincidem.

Verificada a invalidade de um acto, importa, depois, apreciar os efeitos produzidos, que poderão ser consolidados ou destruídos, conforme a causa seja ou não sanável.

A declaração de nulidade encerra em si, dois momentos: no primeiro a verificação da desconformidade entre a tramitação processual seguida e o seu modelo legal, num segundo a avaliação dos seus efeitos jurídicos.

Estes efeitos vêm previstos no artigo 122º, do Código de Processo Penal, ex vi artigo 128º, nº1, da Lei Tutelar Educativa, dispondo o seu nº 1:

«As nulidades tornam inválido o acto nulo em que se verificaram, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar».

«A declaração de nulidade tem como efeito a invalidade de todos os efeitos substantivos, processuais e materiais do acto nulo.

A dita declaração tem também o efeito invalidade derivada dos actos subsequentes ao acto nulo que tenham um nexo de dependência cronológica, lógica e valorativa com o acto nulo, de tal como que, na falta do acto prévio, os actos subsequentes não podem subsistir isoladamente» - Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, pág. 318.

A disciplina relativa aos efeitos de nulidade, lê-se em anotação de Henrique Gaspar, no Código de Processo Penal Comentado (2014), pág. 405 - «está construída na base do princípio do máximo aproveitamento possível dos actos do processo, expressamente inscrito no nº 3; a nulidade não contamina necessariamente todo o processo ou toda a sequência do processo posterior ao acto nulo, mas apenas o próprio acto nulo e «os que dele dependerem» e que a nulidade possa afectar. No regime está expressa uma necessária relação de casualidade e função do acto nulo e os efeitos ou consequências nos restantes actos do processo; a contaminação existe apenas e na medida em que, numa relação de causalidade processual, os actos posteriores dependam ou estejam directamente condicionados, na sua função e efeitos, pelo acto inválido».

Ou seja, a declaração de nulidade cometida no processo não invalida apenas o acto viciado, mas também, os que dele dependem. Trata-se de uma dependência real e efectiva e não, meramente, cronológica.

Daí, que, de acordo com os nº 2 e 3, do artigo 122º, do Código de Processo Penal, a declaração de nulidade deva determinar quais os actos que passam a considerar-se inválidos e ordenar, sempre que necessário e possível, a sua repetição, sendo que ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os actos que ainda puderem ser salvos por efeito daquela.

Como refere João Correia - Contributo para a Análise da Inexistência e das Nulidades Processuais Penais, Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, 1999, pág. 126 a 128 - «este aproveitamento jurídico dos actos processuais penais imperfeitos, fundamentado, no essencial, por razões de segurança e economia processual, coloca duas questões importantes: por um lado, a determinação dos efeitos dos actos nulos no período compreendido entre a sua prática e a declaração de nulidade ou a ocorrência das causas de sanação; por outro, a sua escolha e modos de funcionamento»; apontando duas soluções, no que se refere ao hiato entre a prática do acto processual e a declaração de nulidade:

«Uma consiste em negar a produção de quaisquer efeitos jurídicos até ao momento em que sobrevenha a causa da sanação (…). Já se, em vez de ocorrer a causa de sanação do acto, este vier a ser declarado nulo, como não houve produção de efeitos jurídicos, não há necessidade de os destruir. A outra solução (…) consiste em atribuir ao acto imperfeito efeitos jurídicos semelhantes aos que produziria se não estivesse viciado (…) ou seja, enquanto não forem destruídos ou convalidados os actos imperfeitos integram uma fattispecie autónoma, caracterizada pela precariedade dos seus efeitos. Se ocorrer uma causa de sanação estes efeitos precários tornam-se definitivos, integrando uma fattispecie complexa, com carácter subsidiário, à qual são atribuídos os efeitos dos actos ab initio válidos. Se, pelo contrário, o acto for declarado nulo são eliminados com eficácia ex tunc , como se nunca tivessem acontecido».

No caso em apreço, as Relações do Porto e de Guimarães, verificada a omissão do relatório a que alude do artigo 71º, nº, 5, da LTE, declararam a nulidade dela decorrente, «anulando todo o processado a partir das alegações de julgamento», onde se incluem os dois primeiros Acórdãos proferidos pela primeira instância.

Esta declaração de nulidade, que repõe os autos no momento imediatamente anterior às alegações de julgamento, destruiu todos os efeitos produzidos pelos Acórdãos de 7 de Julho de 2014 e 12 de Junho de 2015, designadamente, o da fixação da competência da primeira instância para aplicar a medida tutelar educativa à jovem.

Tudo se passa, então, como se aquelas duas decisões não tivessem existido.

Com isto não queremos significar e não significa que aquelas decisões enfermam do vício de inexistência, onde, como afirma, João Conde Correia (ob. cit.), «(…) a anomalia é tão grande que o acto nem sequer é comparável com o seu esquema normativo, não alcançando aquele mínimo imprescindível para poder ser reconhecido como tal e ter vida jurídica. Nas nulidades absolutas o acto, ainda que imperfeito, é idóneo para produzir os efeitos jurídicos que a lei lhe atribui. Na inexistência jurídica o acto é inidóneo para a produção de quaisquer efeitos jurídicos, não os devendo, em caso algum produzir».

Por via da declaração de nulidade decretada pelos Tribunais da Relação do Porto e de Guimarães, os dois primeiros Acórdãos do tribunal a quo, foram, como que, eliminados do processo, tudo se passando, como se não tivessem sido proferidos, como se aqueles actos não tivessem sido praticados.

Em suma, para efeitos da determinação da competência das Secções de Família e Menores, a que alude o artigo 28º e 29º, da Lei Tutelar Educativa não se poderá atender às decisões proferidas pela primeira instância, anuladas pelos dois Tribunais da Relação.

Donde, a Secção de Família e Menores de Bragança só tinha competência material para apreciar os factos praticados pela jovem, com vista à aplicação da medida tutelar educativa, até ao dia 17 de Agosto de 2015.

Depois disso, e estando o processo iniciado, só poderia ter ordenado o seu arquivamento, nos termos do artigo 28º, nº 2, al. b) e nº 3, da LTE.

Ao ter apreciado os factos e decidido pela aplicação da medida tutelar educativa nos termos em que o fez - depois da jovem ter completado os 18 anos de idade – o tribunal recorrido ultrapassou os limites da sua competência legal.

Cometeu, por isso, a nulidade insanável prevista no artigo 119º, alínea e), do Código de Processo Penal, ex vi artigo 128º, da Lei Tutelar Educativa, que pode e deve ser conhecida nesta instância.

Consequentemente, é de declarar a nulidade de todos os actos praticados desde o dia 18 de Agosto de 2015 e de ordenar o arquivamento do processo.

IV - Decisão

Posto o que antecede, acordam os juízes da Secção Penal desta Relação, em declarar a nulidade de todos os actos praticados pela primeira instância, desde o dia 18 de Agosto de 2015, com o consequente arquivamento dos autos.

Sem tributação.

Guimarães, 11 de Janeiro de 2016

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(Alcina da Costa Ribeiro)

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(Luís Coimbra)