Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
827/11.8GAEPS.G1
Relator: PAULO FERNANDES DA SILVA
Descritores: APRESENTAÇÃO DE NOVOS MEIOS DE PROVA
OBTENÇÃO DE PROVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/04/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE
Sumário: I – O arrolamento de novas testemunhas durante a audiência de julgamento tem carácter excepcional e deve fundar-se na sua estrita necessidade, para melhor se apreciar e decidir a causa, e em circunstâncias supervenientes ocorridas. É ónus do requerente motivar tais necessidade e natureza superveniente.
II – De outro modo, estaria encontrada a forma de acrescer à prova anteriormente indicada nova prova, num indefinido devir, protelando-se o processo e defraudando-se as regras gerais de arrolamento de prova.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães: ---
I.
RELATÓRIO. ---
Nestes autos de processo comum, com julgamento em Tribunal Singular, do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Esposende, mostram-se deduzidos ---
· Um recurso intercalar e ---
· Um recurso da decisão final. ---
Assim. ---
DO RECURSO INTERCALAR. ---
Requerimento que motiva o primeiro despacho recorrido. ---
Após a 1.ª sessão de julgamento realizada em 22.05.2012, a Assistente Maria F... Cf. volume I, fls. 86. --- veio, em 30.05.2011, ---
«Nos termos do art. 340º do C.P.P., requerer a audição das testemunhas infra-indicadas, em virtude de possuir conhecimentos que se afiguram necessárias à descoberta da verdade e boa decisão da causa:
· Andreia P..., residente (…),
· Rosa C..., residente (…)» Cf. volume I, 145. ---. ---
Decisão recorrida. ----
Após audição do Ministério Público e do Arguido R..., relativamente àquele requerimento, na 2.ª sessão de julgamento efectuada em 05.06.2012, o Tribunal recorrido proferiu o seguinte: (transcrição) -
«Despacho
«Conforme estatuem as alíneas d) e f), do nº 3, do artigo 283º, do Código de Processo Penal, aplicável por remissão do nº 2 do artigo 284º, do mesmo diploma legal - no que concerne à matéria da acusação -, e como decorre do nº 3 do artigo 79º, desse diploma - quanto ao pedido de indemnização civil -, a prova é logo oferecida com o respectivo articulado.
O artigo 340º, nº 1, do Código do Processo Penal, não pode ter, na prática, o alcance de derrogar os normativos supra identificados e, como tal, permitir requerer meios de prova a todo o tempo, esvaziando-se, desta forma, todo o seu conteúdo.
O referido artigo 340º, nº 1, apenas permite a audição de testemunhas que pelo decurso da audiência de julgamento se considere que têm um conhecimento relevante para a matéria que se discute nos autos.
Da produção da prova até ao momento, não se alcança o conhecimento que tais testemunhas terão ou não da factualidade sob discussão.
Caso tenham conhecimento, deveriam ter sido logo indicadas pela assistente/demandante, o que não fez.
(…) Face ao exposto indefere-se o requerido.
Notifique» Cf. volume I, fls. 151 verso. ---. ---
Recurso intercalar em si. ----
Inconformado com o referido despacho, o arguido dele recorreu para este Tribunal, em 27.06.2012, quarta-feira, com pagamento de multa por apresentação no 2.º dia útil posterior ao prazo, concluindo a respectiva motivação nos seguintes termos: (transcrição) ---
«1. Com o devido respeito, não se nos afigura correcta a decisão ora posta em crise, quer no que respeita à apreciação da matéria de facto, quer no que concerne à aplicação de Direito.
2. Na fase de julgamento o Juiz não deve, como princípio, rejeitar um meio de prova que qualquer dos sujeitos processuais ofereceu e repute indispensável para a descoberta da verdade, a não ser que o requerido seja ilegal e ofensivo de normas processuais, ou manifestamente infundado, impertinente ou dilatório, sob pena de cercear a apreciação do mérito da pretensão deduzida com base na verdade material.
3. Tendo o Tribunal recorrido, indeferido diligências probatórias necessárias à descoberta da verdade, violou o disposto no n.º 1 do art. 340.° do CPP, cometendo, em consequência, a nulidade prevista no art. 120.°, n.°2, al. d), parte final, do mesmo normativo legal, cuja arguição tempestiva conduz à revogação da decisão recorrida e invalida os actos processuais subsequentes.
4. Com efeito, a assistente Maria F..., requereu junto do Tribunal a quo, através de requerimento datado de 30 de Maio de 2012, a audição de 2 testemunhas, em virtude de possuir conhecimentos que se afiguram necessárias à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, a folhas 145 dos autos.
5. Consequentemente, reaberta a audiência de julgamento, o Meritíssimo Juiz a quo, concedeu a palavra à Digna Magistrada do M.P., para, querendo pronunciar-se acerca do requerimento formulado pela assistente, a fls 145, que, no uso da palavra disse:
«Nada a opor quanto à audição das testemunhas....»
6. Sucede que, o Sr. Juiz a quo, proferiu despacho no dia 05 de Junho de 2012, indeferindo o supra-requerido, sustentando tal decisão no seguinte:
«Conforme estatuem as alíneas d) e f), do n° 3, do artigo 283°, do Código de Processo Penal, aplicável por remissão do n° 2, do artigo 284°, do mesmo diploma legal - no que concerne à matéria da acusação -, e como decorre do nº 3, do artigo 79°, desse diploma - quanto ao pedido de indemnização civil -, a prova é logo oferecida com o respectivo articulado.
O artigo 340º, n.º 1, do Código do Processo Penal, não pode ter, na prática, o alcance de derrogar os normativos supra identificados e, como tal, permitir requerer meios de prova a todo o tempo, esvaziando-se, desta forma, todo o seu conteúdo.
O referido artigo 340°, n° 1, apenas permite a audição de testemunhas que, pelo decurso da audiência de julgamento, se considere que têm um conhecimento relevante para a matéria que se discute nos autos.
Da produção da prova, até ao momento, não se alcança o conhecimento que tais testemunhas terão ou não da factualidade sob discussão.
Caso tenham conhecimento, deveriam ter sido logo indicadas pela assistente/demandante, o que não fez.»
7. Pelo indeferimento do requerimento para inquirição de testemunhas arroladas, que ora se recorre, vê a assistente o direito constitucional de garantia da sua defesa amputado.
8. A prova requerida encontra-se em respeito do preceituado no código de processo Penal e, ainda assim, foi indeferida.
9. No que concerne à prova testemunhal não estipula a lei um limite aos factos a que cada testemunha está adstrita a responder, pelo que, é entendimento que cada testemunha deporá sobre os factos dos quais tem conhecimento directo e que constituem objecto da prova.
10. Tendo sido omitida a prática de um acto determinante para o exame e a boa decisão da causa, verifica-se uma irregularidade que comina a nulidade do acto.
11. Normas Jurídicas Violadas: Artigo 340 n.° 1 do Código do Processo Penal.
12. Sentido em que deveriam ser interpretadas as normas indicadas pelo Tribunal que fundamentam o despacho de indeferimento.
13. Ficou assim impedida a assistente de produzir prova importante com vista à descoberta da verdade, prova esta admissível porquanto legal, processualmente cabível nos termos do art. 340.º do CPP.
14. Relativamente ao requerimento de prova, o mencionado princípio tem os limites fixados no n.° 3 do artigo 340º supra mencionado, onde se refere que os mesmos são «indeferidos se for notório que:
a) As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas;
b) O meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa;
c) O requerimento tem finalidade meramente dilatória.»
15. Dito numa outra formulação, o Juiz não deve, como princípio rejeitar um meio de prova que qualquer dos sujeitos processuais repute indispensável para a descoberta da verdade, a não ser que o requerido seja ilegal e ofensivo das normas processuais, ou manifestamente infundado, impertinente ou dilatório, sob pena de cercear a apreciação do mérito da pretensão deduzida [de acusação ou de defesa] com base na verdade material.
16. Posto isto, no condicionalismo descrito, tendo o Tribunal recorrido indeferido diligências probatórias necessárias à descoberta da verdade, violou o disposto no n.° 1 do artigo 340° do Código de Processo Penal, cometendo, em consequência, a nulidade prevista no artigo 120°, n.° 2, alínea d), parte final, do mesmo normativo legal.
17. A nulidade em causa, face ao disposto no artigo 122° do Código de Processo Penal, invalida os actos processuais posteriores ao momento em que a decisão por ela afectada foi proferida.
18. Igualmente com tal despacho, o Tribunal "a quo" se exclui da sua obrigação processual de investigar autonomamente com vista à descoberta da verdade, podendo e devendo fazê-lo.
19. Violou assim o Tribunal "a quo" os artigos 124.°, 340.º, todos do CPP, e ainda o artigo 32.° da CRP, bem como, os princípios do contraditório, da investigação, da prova livre e da descoberta da verdade material, quando indeferiu a audição das testemunhas.
20. A decisão recorrida, parca na explicitação das razões que a determinam, estriba-se, fundamentalmente, em argumentos de forma.
Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente e provado, e, em consequência revogar o douto despacho que indeferiu a inquirição de testemunhas e declarar nulos os actos posteriores ao mesmo, determinando-se a sua substituição por outro, admitindo a audição de tais testemunhas.
(…) Assim farão Vossas Excelências como sempre Justiça» Cf. volume I, fls. 185 a 190 verso, 192 a 198 verso, 200 a 204 e 206. ---.
DO RECURSO DA DECISÃO FINAL. ---
Decisão recorrida. ---
Por sentença de 14.06.2012, depositada no mesmo dia, o Tribunal recorrido decidiu, além do mais, ---
«a) absolver o Arguido R... da prática, como autor material, na forma consumada, em concurso efectivo, real e heterogéneo, de um crime de coacção e de um crime de ofensa à integridade física simples, na pessoa da assistente Maria F..., p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 13°, 1° parte, 14°, n° 1, 26°, 3° proposição, 30º, n° 1, 77°, 143°, n° 1 e 154°, n° 1, todos do Código Penal;
(…)
c) julgar totalmente improcedente o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante Maria F... e, em consequência, absolver do pedido o demandado António R...» Cf. volume I, fls. 154 a 182. ---. ---
Do recurso para a Relação. ---
Inconformado com a referida decisão, o Arguido dela interpôs recurso para este Tribunal, em 03.09.2012, segunda-feira, concluindo as suas motivações nos seguintes termos: (transcrição) ---
«1. Com o devido respeito, não se nos afigura correcta a decisão ora posta em crise, quer no que respeita à apreciação da matéria de facto, quer no que concerne à aplicação de Direito.
2. O Tribunal a quo deveria ter condenado o arguido Arguido R... dos crimes que lhe são imputados, bem como, do pedido de indemnização cível.
3. O Tribunal a quo não teve em conta, a prova carreada nos autos e a prova testemunhal, que impunha decisão diversa, a condenação do arguido Arguido R....
4. As testemunhas Luís F... e Laetitia A... estiveram presentes no local onde se passaram os factos, revelaram conhecimento directo, provando que o arguido praticou o crime de coacção sobre a assistente e visionaram o arguido a agredir a assistente.
5. De salientar, a manifesta oposição entre os factos provados e a decisão proferida nestes autos, relativamente à absolvição do Arguido R..., pela prática do crime de coacção.
6. Vejamos, na fundamentação, provou-se os factos descritos nos items 3 e 4 dos Factos Provados.
7. Consequentemente, o Sr. Juíz a quo absolveu o Arguido R..., do crime de coacção, previsto no artigo 154°, n° 1, do CP, do qual vinha acusado.
8. Ora, o bem jurídico protegido pela incriminação das condutas previstas no artigo 153º, n° 1 do CP é a Liberdade de decisão e acção de outra pessoa.
9. Trata-se de um crime de perigo abstracto e de acção.
10. A ameaça é um anúncio de que se vai praticar um crime contra a vida ou a integridade física, liberdade pessoal ou autodeterminação sexual que constitui o quid da incriminação prevista no artigo 153°, n° 1 do CP.
11. O crime consuma-se quando a ameaça seja adequada a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação, não sendo necessário que se produza o resultado, nem que o agente tenha intencionalidade.
12. Por isso, basta que se adopte um comportamento ameaçador idóneo, mediante palavras ou gestos, susceptível de produzir o resultado típico que se pretende acautelar, não sendo, por isso mesmo, necessário que este se verifique.
13. O que importa é que a conduta do agente reúna certas características, de tal modo que, de acordo com as regras da experiência comum, possa ser tomada a sério pelo destinatário, independentemente deste ficar com medo ou inquietação ou prejudicado na sua liberdade de determinação.
14. De igual modo, é irrelevante a intenção do agente, bastando que a ameaça seja adequada a produzir, em abstracto, medo ou inquietação.
15. Impõem-se pois concluir que as mensagens enviadas pelo arguido à assistente têm objectivamente potencialidade para gerar o perigo pressuposto pela incriminação, tendo em conta as circunstâncias em que ocorreram.
16. Ora, para além da manifesta oposição entre os factos provados nos items 3 e 4, e a absolvição do arguido da prática do crime de coacção e a fundamentação da sentença é de uma escassez tal, que impede, de forma absoluta a que a recorrente se aperceba do processo lógico ou racional que esteve subjacente à decisão.
17. Desconhece-se a razão de ciência das testemunhas e por outro lado não se sabe porque as testemunhas revelaram parcialidade e grandes contradições e o depoimento prestado pela testemunha Amílcar se afigurou espontânea, descomprometida, imparcial, seguro, objectivo e verosímil.
18. Sendo certo que, a testemunha Amílcar I..., só presenciou factos, após a agressão praticada pelo arguido na pessoa da assistente.
19. Pelo que, o testemunho prestado pelo Amílcar não poderá ser relevante aos olhos do Julgador, em virtude da testemunha não visionar a referida agressão.
20. Ora, a sentença revela oposição dos factos provados e a referida decisão, assim como, insuficiência da motivação de facto, o que implica consequentemente a nulidade da sentença.
21. Nos termos do disposto no artigo 374º, nº 2, do CPP, "ao relatório segue-se a fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como, de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal".
22. Ora, isto significa que, para além das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, este tem de expressar o respectivo exame crítico das mesmas, o processo lógico e racional que foi seguido na apreciação das provas.
23. No dos autos o Mmo Juiz reduziu a fundamentação de facto aos seguintes parágrafos.
24. Quanto aos depoimentos das testemunhas o Tribunal considerou-os "pautados por grande parcialidade para com o arguido, tendo revelado grandes contradições quanto a forma como os factos se desenvolveram e terminaram."
25. Por outro lado, o Tribunal omitiu a explicitação das razões que o levaram a ficar na dúvida.
26. Tal fundamentação, impede, por forma absoluta a que a recorrente se aperceba do exame do processo lógico ou racional que esteve subjacente à decisão.
27. Desconhece-se a razão de ciência das testemunhas e por outro lado não se sabe porque foram pautadas de grande parcialidade.
28. A questão da nulidade da sentença nos termos dos artigos 374°, n° 2 e 379°, n° 1, al. a) do Código de Processo Penal, por falta de exame crítico das provas.
29. A sentença padece, deste modo, da nulidade prevista no artigo 379°, alínea a) do Código de Processo Penal, por inobservância do disposto no art. 374°, n° 2, do CPP - a qual gera nulidade apenas da sentença e não da audiência de julgamento (cfr artigo 122° e v.g. Acs do STJ de 6 de Março de 1991, proc. n° 40874, e de 11 de Fevereiro de 1992, BMJ n° 414, pág. 389).
30. Face à matéria de facto, a nosso ver assente, a condenação do arguido Arguido R... impunha-se.
Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente e provado, e, em consequência revogar a douta sentença e substituí-la por outra que condene o arguido Arguido R..., pela prática dos crimes que vinha acusado, bem como, na condenação do pedido de indemnização cível.
Assim farão Vossas Excelências como sempre Justiça» Cf. volume I, fls. 207 a 261 verso. ---. ---
Notificados dos referidos recursos, o Ministério Público nada disse quanto ao recurso intercalar e sustentou a manutenção da decisão final, ao passo que o Arguido contra-alegou intempestivamente quanto ao recurso intercalar e defendeu a improcedência do recurso da decisão final Cf. volume I, fls. 262, 263, 266 a 272 e 273 a 303 e 307 a 311. ---. ---
Neste Tribunal, na intervenção aludida no artigo 416.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Ministério Público foi de parecer que os recursos devem improceder Cf. volume I, fls. 317 a 322. ---. ---
Devidamente notificados daquele parecer, o Arguido nada disse, ao passo que a Assistente disse reiterar a posição já assumida Cf. volume I, fls. 323 a 326. ---. ---
Proferido despacho liminar, colhidos os vistos legais e efectuada a conferência, cumpre ora apreciar e decidir. ---
II.
OBJECTO DO RECURSO.
Atentas as indicadas conclusões apresentadas, sendo que é a tais conclusões que este Tribunal deve atender no presente recurso, definindo aquelas o objecto deste, sem prejuízo de questões de conhecimento oficioso, cumpre apreciar e decidir: ---
· Da pretendida inquirição de mais testemunhas (recurso intercalar); ---
· Da requerida anulação da decisão recorrida em razão de insuficiência de fundamentação; ---
· Do referido erro de julgamento; ---
· Da reclamada condenação do Arguido. ---
III.
A DECISÃO RECORRIDA – FACTOS E SUA MOTIVAÇÃO. ---
A decisão recorrida configura a factualidade provada e não provada, assim como a respectiva motivação, da seguinte forma: ---
«II. Fundamentação
II.1. Factos provados
Discutida a causa, com relevo para a decisão a proferir, resultou provada a seguinte matéria de facto:
1. O Arguido R... e a assistente Maria F... conheceram-se em momento que, em concreto, não foi possível apurar, mas anterior a Abril de 2011, tendo iniciado uma relação de amizade.
2. A assistente, à data, no exercício da sua profissão, entregava e levantava jornais, deslocando-se a livrarias, cafés e hotéis situados em Fão e Ofir.
3. No dia 01 de Julho de 2011, o arguido enviou à assistente, por correio electrónico, a seguinte mensagem: "pensa bem, eu sou humano e compreensivo; mas ao ultrapassares os limites, eu sei que fazer e não tenho medo das consequências. Eu aviso-te, estás a ultrapassar os limites e modera o tom, pois eu não tenho remorsos alguns, vou até às últimas".
4. No dia 16 de Julho de 2011, o arguido enviou à assistente, também por correio electrónico, a seguinte mensagem: "tenho 30 anos de tempo, mas a minha vingança virá e forte".
5. Do Certificado de Registo Criminal do Arguido R... nada consta.
Do pedido de indemnização civil
6. A assistente Maria F..., no dia 13 de Setembro de 2011, consultou um médico psiquiatra, tendo pago por essa consulta a quantia global de €65,00 (sessenta e cinco euros).
7. Nesse mesmo dia comprou 2 (dois) medicamentos, em concreto, "Paroxetina" e "Victan", pagando o montante total de €21,66 (vinte e um euros e sessenta e seis cêntimos).
Da contestação
8. A empregada doméstica do arguido é irmã da assistente Maria F....
9. No âmbito da relação referida sob o n° 1 o arguido entregou à assistente a quantia de €3.000,00 (três mil euros), afirmando aquele que este montante traduziu-se num empréstimo e afirmando esta última que tal montante radicou numa oferta.
10. O Arguido R... é tido junto das pessoas com quem convive como tratando-se de um indivíduo calmo, ponderado, equilibrado, respeitador e honesto, não sendo nem agressivo, nem conflituoso.
Provou-se, também, que:
11. O relacionamento entre o arguido e a assistente é, actualmente, pautado por hostilidade, estando-lhe subjacente, entre outro(s) motivo(s) que, em concreto, não foi possível apurar, a mencionada quantia de €3.000,00 (três mil euros).
Provou-se, ainda, que:
12. O Arguido R... é viúvo.
13. Encontra-se reformado, auferindo a título de reforma uma pensão que, em concreto, não se logrou apurar, por entender estar sujeita a sigilo.
14. Tem um filho com 43 (quarenta e três) anos de idade.
15. Reside em Portugal e na Holanda em casa própria.
16. É dono de um veículo automóvel, da marca e modelo "Volkswagen Golf", adquirido em 2009.
17. Possui como habilitações literárias uma licenciatura em electrotecnia.
*
11.2. Factos não provados
Não se provaram outros factos com relevo para a decisão da causa, designadamente:
a) que desde Abril de 2011 e até pelo menos Setembro de 2011, o Arguido R..., contra a vontade da assistente Maria F..., começasse a persegui-la para diversos locais e a importuná-la com o envio de várias mensagens através de telemóvel e por correio electrónico;
b) que o arguido, por diversas vezes, em dias não concretamente apurados, ocorridos nesse período de tempo, aproveitando as alturas em que a assistente, para entregar e levantar jornais no exercício da sua profissão, se deslocava a livrarias, cafés e hotéis situados em Fão e Ofir, abordasse a aludida Maria F..., e, utilizando a força física, a agarrasse e a abraçasse contra a sua vontade, forçando-a a suportar tais condutas enquanto procurava libertar-se;
c) que no dia 12 de Setembro de 2011, pelas 20 horas, numa estrada que liga a localidade de Fão à Apúlia, ao chegar ao cruzamento da Sra. da Bonança, o arguido, de forma súbita, ultrapassasse o veículo em que seguia a assistente e o atravessasse à sua frente, fazendo com que a mesma travasse bruscamente e tivesse que efectuar uma manobra para o contornar;
d) que no dia 16 de Setembro de 201, pelas 19 horas e 30 minutos, numa rua próxima do estabelecimento de café "F...", sito em Fão - Esposende, o arguido se dirigisse àquela Maria F... e, com bastante força, a agarrasse nos dois braços, ao mesmo tempo que lhe dizia: "dá-me a merda do telefone que eu sei que estás a ligar para a polícia";
e) que, nessa ocasião, e mediante a intervenção de Luís S...e de Läetitia A..., o Arguido R... dissesse que tinha uma arma no carro e que a iria buscar, fazendo com que abandonassem o local;
f) que, como consequência directa e necessária destas condutas do arguido, a assistente sofresse dores naquela zona do corpo e se visse forçada a suportar as suas acções, mormente as descritas em b) e d), pois receasse pela sua integridade física, ficando coarctada na sua liberdade de acção e decisão;
g) que as expressões referidas sob os n°s 3 e 4, dos factos provados, dirigidas pelo arguido à assistente naquele contexto concreto de violência e intimidação, fossem idóneas a causar nesta, como causaram, medo e inquietação e limitassem a sua liberdade de determinação, afectando a sua segurança e tranquilidade;
h) que o arguido soubesse que, ao agir da forma descrita, coarctava a liberdade de acção e decisão da assistente, o que quis que acontecesse, como aconteceu, actuando também com o propósito, concretizado, de a atemorizar e causar-lhe medo, bem como prejudicar a sua liberdade de determinação, atingindo, deste modo, a segurança e a tranquilidade da mencionada Maria F..., bem sabendo que a sua conduta era adequada a produzir esse efeito;
i) que o Arguido R... soubesse, ainda, que agarrava a assistente do modo descrito e agisse com o propósito, concretizado, de molestar o corpo e a saúde da mesma e de lhe provocar dores;
j) que além de inúmeras dores, a assistente, como consequência directa e necessária deste comportamento do arguido, ficasse com equimoses nos braços, bem como angustiada e sofrida;
k) que, como resultado das condutas do arguido, supra descritas, a assistente sentisse momentos de grande aflição, agonia, martírio e alteração do seu estado psicológico, transformando-se de pessoa alegre e comunicativa em pessoa triste, inibida, taciturna e muito assustada;
l) que, como consequência directa e necessária desta actuação do arguido, a assistente sentisse forte receio, medo, inquietação, temor permanente pela sua integridade física, honra e dignidade, vergonha, profundo desgosto e humilhação, vivendo em constante sobressalto, temendo andar sozinha na rua e ir sozinha para o trabalho, isolando-se em casa, não conseguindo enfrentar as pessoas "de frente", designadamente, o aludido Arguido R...;
m) que, em virtude desses comportamentos por parte do arguido, a assistente fosse sempre acompanhada pela filha e pelo amigo Luís S...quer para o trabalho, quer na rua, quer onde necessite de ir;
n) que tais comportamentos marcassem psicologicamente a assistente, para toda a vida;
o) que no meio onde vive a identificada Maria F... se comentasse o sucedido;
p) que, como resultado daqueles comportamentos por parte do arguido, a assistente recorresse à consulta de psiquiatria e à medicação, referidas sob os n°s 6 e 7, dos factos provados;
q) que no âmbito dessa consulta lhe fosse diagnosticada uma depressão nervosa;
r) que o arguido manifestasse uma personalidade quezilenta e agressiva;
s) que o arguido agisse livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
t) que a irmã da assistente pedisse ao arguido para ajudar esta última, pois estaria a passar por uma má fase, precisando que alguém lhe emprestasse dinheiro, sendo que o banco não o fazia por não ter crédito;
u) que o Arguido R..., no dia 21 de Abril de 2011, entregasse à assistente, a quantia de €3.000,00 (três mil euros), referida sob o n° 9, da factualidade provada;
v) que a assistente se comprometesse perante o arguido a restituir-lhe esta quantia até ao dia 21 de Junho de 2011;
w) que o arguido não tivesse na sua posse qualquer arma, nem branca, nem de fogo;
x) quaisquer outros factos para além dos descritos em sede de factualidade provada, que com os mesmos estejam em contradição ou que revelem interesse para a decisão a proferir.
*
II.3. Motivação
A convicção deste tribunal sobre a matéria de facto provada formou-se com base na avaliação de todos os meios de prova produzidos e/ou analisados em audiência de julgamento (cfr. artigo 355°, do Código de Processo Penal), sempre no confronto com as regras gerais da experiência e da norma do artigo 127°, do Código de Processo Penal.
Antes de mais, importa sublinhar que quando está em causa a questão da apreciação da prova não pode deixar de dar-se a devida relevância à percepção que a oralidade e a imediação conferem ao julgador.
Na verdade, a convicção do tribunal é formada, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência das mesmas declarações e depoimentos (para maiores desenvolvimentos sobre a comunicação interpessoal, vide Ricci Bitti/Bruna Zani, A comunicação como processo social, Editorial Estampa, Lisboa, 1997).
O juiz deve ter uma atitude crítica de avaliação da credibilidade do depoimento não sendo uma mera caixa receptora de tudo o que a testemunha disser, sem indicar razão de ciência do seu pretenso saber (vide Acórdão de 17 de Janeiro de 1994, publicado na revista Sub Judice, n° 6-91).
A apreciação da prova, ao nível do julgamento de facto, há-de fundar-se numa valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos, por modo que se comunique e se imponha aos outros mas que não poderá deixar de ser enformada por uma convicção pessoal.
Obviamente que essa apreciação de prova está sujeita ao dever de fundamentação, desde logo, como decorrência do disposto no artigo 205°, n° 1, da Constituição da República Portuguesa, pelo que o princípio da livre apreciação das provas, previsto no artigo 127°, do Código de Processo Penal, não tem carácter arbitrário, nem se circunscreve a meras impressões criadas no espírito do julgador, estando antes vinculado às regras da experiência e da lógica comum, bem como às provas que não estão subtraídas a esse juízo, sendo imprescindível que este seja motivado.
Outro sistema, que não este, que tem consagração no já referido princípio da livre apreciação e convicção do julgador, que não admitisse este risco conflituaria com direitos fundamentais ou poderia conduzir a situações de verdadeira denegação de justiça.
Deste modo, a matéria de facto tida como provada resultou da análise da prova produzida em audiência de julgamento, tendo em conta os parâmetros vindos de referir.
No que concerne à factualidade vertida na acusação pública, a prova sustentou-se nas declarações do Arguido R..., nas declarações da assistente Maria F..., e no depoimento das testemunhas Luís S...- amigo da assistente -, Läetitia A... - filha da assistente -, Amílcar I... - dono do estabelecimento de café, denominado "F..." - e Maria F... - irmã da assistente e empregada doméstica do arguido.
A convicção do tribunal formou-se em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões, parcialidade, coincidências e mais inverosimilhanças que transpareceram em audiência daquelas declarações e depoimentos testemunhais.
Tais declarações e depoimentos, no seu conjunto, evidenciaram uma realidade que se teve por segura, a saber: o arguido, viúvo, iniciou uma relação de amizade com a assistente, que se foi desenvolvendo, saindo juntos, fazendo refeições; no âmbito dessa relação houve entregas de dinheiro por parte do arguido à assistente; esta relação, por não ter uma solidez suficiente na sua base - o arguido, viúvo, queria que se aprofundasse em termos mais íntimos, não sendo esse o propósito da assistente - acabou por desmoronar-se; finda a relação, o arguido pretende reaver o dinheiro que entregou à assistente por considerar que se tratou de um empréstimo; esta, por seu lado, considera que se tratou de uma oferta.
Em resumo, aos factos sob discussão nos autos está subjacente uma relação que fracassou na medida em que os envolvidos - o arguido e a assistente - tinham projectos diferentes.
Como a normalidade do acontecer o comprova à saciedade, a ruína desta relação agastou e azedou o relacionamento entre os aludidos António R... e Maria F....
Como também o comprovam copiosamente as regras da experiência corrente, em situações idênticas àquela que vem de retratar-se é por demais usual que surjam queixas de parte a parte, que se atribuam reciprocamente culpas e que se discuta em público aspectos eminentemente pessoais.
Não menos usual é o facto de cada um dos contendores interpretar a mesma realidade de maneira distinta, muitas das vezes exasperada, frequentemente vendo na atitude do outro uma postura de provocação, de desafio, até mesmo de insulto e de agressão.
Enfim, a ruptura de um relacionamento é, via de regra, agreste, trazendo à luz tudo aquilo que ficou por dizer, que se foi reprimindo.
A catarse faz-se através da libertação das emoções, dos sentimentos que se reprimiram.
Na generalidade das situações este processo libertador não é urbano, nem polido, antes instintivo, irreflectido, leviano e, por vezes, grosseiro, o que sucede porque os envolvidos, pura e simplesmente, perdem a perspectiva, a objectividade.
O caso em apreço nestes autos é, em nosso entender, um exemplo do que se vem de explanar.
O arguido nega os acontecimentos ocorridos nos dias 12 e 16 de Setembro de 2011, tal como descritos no libelo acusatório; a assistente, por seu turno, afirma que correspondem à realidade.
Quer um, quer outro, confirmam as mensagens enviadas nos dias 01 de Julho e 16 de Julho de 2011, dando-lhes, como seria previsível, interpretações distintas: onde um vê ameaça o outro vê uma tentativa de reaver o dinheiro que entregou.
Quer a identificada Maria F..., quer o mencionado António R... ofereceram, pois, a sua percepção, a sua leitura, a sua posição acerca dos factos que se discutem.
A versão que ambos sustentaram, no entender do tribunal, evidenciou-se clamorosamente subjectiva, parcial e comprometida.
Face ao exposto, nem um, nem outro foram merecedores de credibilidade.
No que concerne às testemunhas inquiridas, em concreto, Luís S...e Läetitia A..., não se revestiram das características de coerência, objectividade, lógica e seriedade necessárias para convencer o tribunal da correspondência do relato prestado com a realidade.
Ambas evidenciaram, de forma inteligível e mesmo palpável, estar implicadas nos factos que se discutem: a aludida Laetitia A..., sendo filha da assistente, acabou por tomar como suas as dores da mãe - o que é natural, diga-se; aquele Luís S..., apesar do esforço em demonstrar tratar-se de um mero e singelo amigo da mencionada Maria F..., na verdade, não convenceu o tribunal. É claramente mais do que um simples amigo, o que se revela não só pela sofreguidão que perpassou pelo depoimento que prestou, mas também por ter estado presente quer na 1ª quer na 2ª sessões de julgamento, sempre ao lado da assistente, a que acresce não ser despiciendo o que a este propósito deixou intuir a testemunha Maria F..., ao referir que costuma acompanhar a sua irmã a casa dos pais, sendo "próximos" um do outro.
O depoimento dos identificados Luís S... e Laetitia A... revelou-se não só selectivo e tendencioso, como também particularmente afoito e emotivo na defesa da posição sustentada.
Acresce, ainda, que a descrição dos acontecimentos em que afirmaram estar envolvidos mostrou-se contraditória.
Com efeito, no que concerne ao sucedido no dia 16 de Setembro de 2011, a testemunha Luís S... esclareceu que, encontrando-se no local acompanhado pela testemunha Laetitia A..., dentro de um veículo automóvel, observou o arguido aproximar-se da viatura onde estava a assistente, dizer-lhe para lhe entregar o telemóvel e depois agarrá-la pelos braços.
Por sua vez, a testemunha Laetitia A... asseverou que, encontrando-se acompanhada por aquele Luís S..., viu o arguido entrar na viatura da assistente, sendo que esta, nesse momento, saiu para o exterior e pediu-lhes ajuda pelo telemóvel dizendo "Venham até aqui, rápido, ele está aqui. Ele está dentro do carro e não quer sair. Eu tenho lá as chaves do carro". E prossegue: "Depois acabou por tirá-las. Depois nós dissemos para ela continuar a fazer o trabalho dela que ele eventualmente acabaria por sair se ela não estivesse dentro do carro. Como ele não saia nós dirigimo-nos lá e ele quando chegamos lá ele já tinha saído do carro e já estava a amarrá-la pelos pulsos. Ela estava com o telemóvel na mão porque estava a falar connosco e a exigir que lhe desse o telemóvel ( ... )".
O discurso destas testemunhas quanto à sequência dos acontecimentos ocorridos naquele dia 16 de Setembro de 2011 apresenta, pois, flagrantes contradições.
Por outro lado, o que relataram resulta parcialmente desmentido pelo depoimento prestado pela testemunha Amílcar I..., que se afigurou espontâneo, descomprometido, imparcial, seguro, objectivo e verosímil.
Esta testemunha, encontrando-se no interior do estabelecimento de café que explora, denominado "F...", apercebeu-se de uma altercação no exterior, junto a um minimercado. Aproximou-se do vidro do estabelecimento e pôde ver o arguido ser afastado pela filha da assistente, dizendo-lhe "não quero que tu fales com a minha mãe".
Nessa altura o arguido insistia em pretender falar com a mencionada Maria F....
Entretanto afastaram-se daquele local e foram para a rua onde estavam estacionados os respectivos veículos.
Ao dirigirem-se para as viaturas, observou o aludido Luís S...agarrar o mencionado António R... pelo braço e fazer-lhe um gesto de punho fechado.
A testemunha decidiu então dirigir-se para o exterior daquele estabelecimento para intervir caso fosse necessário.
Esclareceu que esta situação terá durado cerca de 3 (três) a 4 (quatro) minutos, afirmando nunca ter ouvido o arguido dizer nada que não fosse pretender falar com a assistente.
Pelos motivos que ficaram supra expostos, o tribunal não se tomou em consideração o que elucidaram as testemunhas Luís S...e Läetitia A....
Cumpre, neste momento, salientar, na sequência do que vem de referir-se, que a tarefa do julgador na decisão da matéria de facto está necessariamente condicionada pelos limites do conhecimento humano.
A vivência social e conhecimento da realidade, ainda que consubstanciando sempre uma certa margem de risco relativamente ao apuramento da verdade, mas com o qual se deve conviver, sempre temperam a decisão sem excessivos dramatismos e sem descurar os cuidados que necessariamente se impõem.
Como mencionamos supra, o julgador não é um mero colector de depoimentos, impondo-se-lhe que os avalie criticamente, que os submeta ao crivo da razão e ao filtro da lógica, valendo-se das regras gerais da experiência corrente, da sua vivência social e pessoal e do conhecimento da normalidade do acontecer.
A convicção do juiz forma-se livremente, podendo, neste juízo de verosimilhança acerca dos dados processualmente adquiridos, estribar-se nas máximas da experiência e nos parâmetros de normalidade que subjazem à generalidade dos acontecimentos (cfr. artigo 127°, do Código de Processo Penal).
Tudo para concluir que a prova produzida não permitiu ao tribunal alcançar uma conclusão segura e rigorosa quanto a toda a matéria constante da acusação pública.
Ora, não podemos esquecer que em processo penal vigoram determinados princípios relativos à prova, alguns deles constantes de regras da Constituição da República Portuguesa relativos a direitos, liberdades e garantias que gozam de aplicabilidade directa (cfr. n° 1, do artigo 18°), não carecendo de interposição legislativa para a sua efectivação, vigência e eficácia.
Nos termos do n° 2, do artigo 32°, da Lei Fundamental, todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prato compatível com as garantias de defesa.
Por sua vez, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de Dezembro de 1948, estatui, no n° 1, do artigo 11º que toda a pessoa acusada de um acto delituoso presume-se inocente até que a culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas (no mesmo sentido estabelece o artigo 6°, n° 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem de 1950, aprovada para ratificação pela Lei n°65/78, de 13 de Outubro, que qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada, assim como dispõe o artigo 14°, n°2, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos de 1976, aprovado para ratificação pela Lei n°29/78, de 12 de Junho, que qualquer pessoa acusada de infracção penal é de direito presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido legalmente estabelecida).
O princípio da presunção de inocência tem vários corolários. Por um lado isenta o arguido da prova da sua inocência, a qual aparece imposta ou ficcionada pela lei. Por outro lado, o arguido não é considerado como mero objecto processual ou meio de prova, mas sim sujeito processual com armas iguais às do acusador, o Ministério Público. Ainda, e por último, como corolário do princípio da presunção de inocência surge o princípio in dubio pro reo que se relaciona com o modo como o julgador penal deve valorar a prova feita e decidir com base nessa prova. Este procura responder ao problema da dúvida sobre o facto na apreciação do caso criminal (e não dúvida de direito, sobre o sentido da norma).
Nas palavras de Rui Patrício, o princípio in dubio pro reo parte da premissa de que o juiz não pode terminar o julgamento com um non liquet, ou seja, não pode abster-se de optar pela condenação ou pela absolvição, existindo uma obrigatoriedade de decisão, e determina que, na dúvida quanto ao sentido em que aponta a prova feita, o arguido seja absolvido (vide O princípio da presunção de inocência do arguido na fase do julgamento no actual processo penal português, p. 30).
Diferentemente do que se passa em processo civil, no processo penal compete, em último termo, ao juiz, oficiosamente, o dever de instruir e esclarecer o facto sujeito a julgamento.
No entanto, se o tribunal mesmo através da sua actividade probatória não lograr obter a certeza dos factos mas antes permanecer na dúvida, terá por princípio de decidir em desfavor da acusação, absolvendo o arguido por falta de prova (assim, Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, lições policopiadas, 1988-1989, p. 144).
Assim e à luz do princípio da investigação, compreende-se que, apesar de toda a prova produzida, os factos que não possam ser subtraídos à dúvida razoável do tribunal, também não possam ser considerados provados. E se aquele mesmo princípio obriga em último termo, o tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa desfavorecer a posição do arguido: um non liquet em questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido, uma vez que a sua presunção de inocência não foi "ilidida" (assim Figueiredo Dias, ob. cit.; no mesmo sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Volume 1, p. 83).
Se o julgador, através da prova produzida não ficar convencido sobre a existência dos pressupostos de facto e ainda assim condenar o arguido, estará a violar o princípio da culpa, o qual é fundamento e limite de aplicação de uma pena, nos termos do artigo 40º, do CP.
Por isso, Gomes Canotilho e Vital Moreira, consideram que os princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo constituem a dimensão jurídico-processual do princípio jurídico material da culpa concreta, como suporte axiológico-normativo da pena (Constituição da República Portuguesa Anotada, 1º Volume, p. 215).
A dúvida que fundamenta o princípio terá de ser insanável, razoável e objectivável, isto é, pressupõe que tenha sido desenvolvida toda uma actividade no sentido do esclarecimento do tribunal, sem que se tenha ultrapassado o estado de incerteza, tem de ser uma dúvida séria e argumentada, e por fim, é necessário que seja justificável.
Assim a dúvida insanável sobre factos desfavoráveis imputáveis ao arguido conduzirá a que se dêem como não provados.
Importa ainda frisar que o princípio in dubio pro reo também se relaciona com o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127°, do Código de Processo Penal, pois dúvida e convicção são indissociáveis, havendo quem o considere limite normativo deste (assim, Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de Inimputáveis e In Dubio Pro Reo, p. 51; no mesmo sentido, Rui Patrício, ob. cit.), ou seja, impede o julgador de tomar uma decisão segundo o seu critério, no que respeita aos factos duvidosos desfavoráveis ao arguido.
Por outro lado liga-se à questão da fundamentação das decisões, a qual constitui garantia integrante do próprio Estado de Direito democrático, traduzindo-se num factor de transparência da justiça. Se as decisões para se imporem, devem ser fundamentadas, a fundamentação só é verdadeiramente possível e convincente se o julgador estiver certo quanto à decisão relativa à questão de facto. Atendendo ao disposto no n° 5, do artigo 97º, e no n° 2, do artigo 374°, ambos do Código de Processo Penal, na fundamentação da decisão deve constar a enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Só a prova de todos os elementos constitutivos essenciais da infracção permite a punição.
Como salienta o Cavaleiro Ferreira, o fim da prova é a demonstração da verdade dos factos; justificação da convicção sobre a sua existência, enquanto eles constituem pressuposto da aplicação da lei, uma vez que no processo penal são os factos que formam o fundamento da sentença, quer absolutória, quer condenatória, e determinam a graduação da responsabilidade (vide Curso de Processo Penal, Volume II, reimpressão, Lisboa, 1981, p.282 e 283).
Da análise crítica da prova produzida, já supra identificada, não foi possível ao tribunal chegar a uma conclusão segura e rigorosa de que o Arguido R... praticou (ou não praticou) os factos, nos termos constantes da acusação pública.
Perante tal cenário e sendo certo que em processo penal não merecem relevância palpites ou hipóteses, o tribunal não ousou sair do referido estado de dúvida insuperável, razão pela qual, os factos pertinentes constantes da acusação pública foram dados como não provados, atenta a inexistência de prova segura relativamente aos mesmos.
No que concerne ao pedido de indemnização civil deduzido, a convicção do tribunal assentou, exclusivamente, nos dados objectivos que se extraem dos documentos juntos a fls. 68-69, do p. p.
No que respeita às condições pessoais, familiares, profissionais, económicas e sociais do arguido, ante a inexistência de outros elementos, o tribunal atendeu às declarações do próprio, que, nesta parte, se afiguraram suficientemente consistentes e credíveis.
Quanto aos aspectos atinentes à personalidade do arguido, atendeu-se ao depoimento das testemunhas Amílcar I..., Elda C..., Vânia E... e Manuel V... que, convivendo com aquele, com maior ou menor proximidade, depuseram de modo que se afigurou sério e convincente.
A convicção deste tribunal quanto à ausência de antecedentes criminais do arguido alicerçou-se no respectivo Certificado de Registo Criminal, junto a fls. 113, do p. p.
A não demonstração dos factos não provados resultou, sempre sem prejuízo do exposto em sede de motivação dos factos provados, de, sobre os mesmos, não se ter logrado fazer prova (documental e/ou testemunhal), tendente a permitir concluir pela sua verificação, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127°, do Código de Processo Penal» Cf. volume I, fls. 155 a 169. ---. ---
IV.
FUNDAMENTAÇÃO. ---
1. Da pretendida inquirição de mais testemunhas. ---
No seu recurso intercalar a Recorrente pretende que sejam inquiridas duas novas testemunhas: Andreia P... e Rosa C.... ---
Para tal invocou o artigo 340.º do Código de Processo Penal, alegando tão-só que tais indicadas testemunhas têm «conhecimentos que se afiguram necessários à descoberta da verdade e boa decisão da causa». ---
Vejamos. ---
A requerida inquirição de novas testemunhas decorreu na fase de julgamento, após o início deste. ---
Nessa altura o arrolamento de novas testemunhas tem carácter excepcional e deve fundar-se, além do mais, na sua estrita necessidade e em circunstâncias supervenientemente ocorridos, sendo ónus do requerente motivar devidamente tal necessidade, bem como a apontada natureza superveniente. ---
Conforme decorre dos artigos 79.º, n.º 1, 283.º, n.º 3, alínea d), 287.º, n.º 2, e 315.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal, as testemunhas devem ser arroladas em fase anterior ao julgamento. ---
Daí que o arrolamento posterior assuma natureza excepcional, por dissentir da regra decorrente daqueles preceitos legais. ---
Mais, tal arrolamento posterior deve assentar na necessidade da inquirição requerida, o que sucede quando esta seja susceptível de contribuir para melhor apreciar e decidir da causa. ---
Atenta a apontada natureza excepcional do arrolamento posterior, este deve decorrer de circunstância superveniente, ocorrida em momento posterior àquele correspondente à apresentação normal da prova pelo sujeito processual no processo, pois só assim se justifica a sua apresentação após aquele momento. ---
«Há um momento processual próprio para requerer a produção de prova, mas a prova pode ser requerida para além desse momento se houver uma circunstância especial (a “superveniência”) que o justifique. Sendo assim, o requerimento da produção de meios de prova na audiência é fundado quando o requerente alegar e provar que os meios de prova ou de obtenção de prova só foram por si conhecidos depois do momento próprio para requerer a respectiva produção (…) ou surgiram depois desse momento (…) A alegação da superveniência constitui, afinal, um caso legal de justo impedimento para o requerimento tempestivo do sujeito processual» Cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª edição, página 878. ---. ---
Sob pena de ineptidão, a necessidade de inquirição de nova testemunha, bem como a circunstância superveniente que motiva aquela devem ser devidamente justificadas. ---
De outro modo, estaria encontrada a forma de acrescer à prova anteriormente indicada nova prova, num indefinido devir, protelando o processo e defraudando as indicadas regras processuais gerais de arrolamento da prova. ---
No caso vertente. ---
Trata-se manifestamente de um caso de arrolamento superveniente de testemunhas: a Assistente veio arrolar duas novas testemunhas no decurso do julgamento, entre duas sessões deste. ---
Limitou-se, contudo, a fundamentar tal arrolamento em termos genéricos: referiu «requerer a audição das testemunhas» em causa «em virtude de possuir conhecimentos que se afiguram necessários à descoberta da verdade e boa decisão da causa». ---
Ora, ao assim proceder, a Assistente nem justificou a natureza superveniente do arrolamento, nem a necessidade de inquirição das testemunhas arroladas supervenientemente. ---
Mesmo em sede de recurso, a Assistente nada esclarece na matéria. ---
Tal ineptidão justifica o respectivo indeferimento, conforme decidido pelo Tribunal recorrido. ---
Carece, assim, de qualquer sentido os apontados vícios da decisão recorrida. –
Nomeadamente, inexiste a apontada nulidade processual e mostram-se estritamente respeitados os devidos comandos constitucionais e legalmente aplicáveis, sendo certo que na nossa Lei Fundamental, relativamente ao ofendido, preceitua-se que ele «tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei» Cf. artigo 32.º, n.º 7, da Constituição da República Portuguesa. ---, o que se mostra absolutamente salvaguardado na situação vertente. ---
Improcede, pois, o recurso intercalar em causa. ---
2. Do alegado vício de insuficiência de fundamentação da decisão de facto. ---
Invocando o disposto nos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código de Processo Penal, a Recorrente alega, em suma, que a motivação da decisão de facto é insuficiente, na medida em que não explicita o «processo lógico ou racional que esteve subjacente» àquela decisão, nem explica «a razão de ciência das testemunhas», as «razões que levaram [o Tribunal] a ficar na dúvida» e a circunstância de entender que algumas testemunhas «revelaram parcialidade e grandes contradições», ao passo que o depoimento prestado pela testemunha Amílcar foi «espontâneo, descomprometido, imparcial, seguro, objectivo e verosímil». ---
Vejamos. ---
Nos termos dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal «é nula a sentença que não contiver» «a fundamentação», sendo que desta deve constar, além do mais, a «enumeração dos factos provados e não provados, bem como» «uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto (…), que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal». ---
Isto é, em sede de fundamentação das decisões de facto exige-se a indicação dos factos provados e não provados, bem como a explicitação dos motivos que justificaram tal indicação. ---
Os motivos «de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (…) nem os meios de prova (…) mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência (…). ---
A fundamentação ou motivação deve ser tal que, intraprocessualmente, permita aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via do recurso (…). ---
E extraprocessualmente, a fundamentação deve assegurar pelo conteúdo, um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais mas a própria sociedade» Cf. Marques Ferreira, Meios de prova, Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, 229 e 230. ---. ---
Na situação vertente. ---
Da leitura da decisão recorrida, decorre que esta indicou os factos provados e não provados, bem como explicitou o raciocínio lógico que conduziu a tal. ---
Naquele último domínio, desde logo aludiu pormenorizadamente aos diversos meios de prova, ---
- Uns de carácter pessoal (Arguido, Assistente e testemunhas Luís S..., Läetitia A..., Amílcar I..., Maria F..., Elda C..., Vânia E... e Manuel V...), ---
- Outros de natureza não pessoal (documentos de fls. 68-69 e 113 dos autos),
Após o que integrou tais elementos probatórios num juízo lógico e à luz das regras da experiência comum, o que permite intra e extraprocessualmente descortinar o raciocínio do Tribunal recorrido. ---
No essencial, o Tribunal recorrido entendeu que perante as declarações contraditórias do Arguido e da Assistente, bem como as contradições evidenciadas pelas testemunhas presenciais Luís S..., Läetitia A... e Amílcar I..., devidamente integradas no contexto da vida concreta das pessoas em causa e à luz das regras da experiência comum, não era possível conferir à factualidade típica dada como não provada a necessária certeza penalmente exigida, pelo que, em nome do princípio in dubio pro reo, assim importou considerar. ---
Nomeadamente, referiu em concreto as contradições evidenciadas por aquelas testemunhas Com efeito, consta da decisão recorrida que ---
«O depoimento dos identificados Luís S... e Laetitia A... (…) mostrou-se contraditória.
Com efeito, no que concerne ao sucedido no dia 16 de Setembro de 2011, a testemunha Luís S... esclareceu que, encontrando-se no local acompanhado pela testemunha Laetitia A..., dentro de um veículo automóvel, observou o arguido aproximar-se da viatura onde estava a assistente, dizer-lhe para lhe entregar o telemóvel e depois agarrá-la pelos braços.
Por sua vez, a testemunha Laetitia A... asseverou que, encontrando-se acompanhada por aquele Luís S..., viu o arguido entrar na viatura da assistente, sendo que esta, nesse momento, saiu para o exterior e pediu-lhes ajuda pelo telemóvel dizendo "Venham até aqui, rápido, ele está aqui. Ele está dentro do carro e não quer sair. Eu tenho lá as chaves do carro". E prossegue: "Depois acabou por tirá-las. Depois nós dissemos para ela continuar a fazer o trabalho dela que ele eventualmente acabaria por sair se ela não estivesse dentro do carro. Como ele não saia nós dirigimo-nos lá e ele quando chegamos lá ele já tinha saído do carro e já estava a amarrá-la pelos pulsos. Ela estava com o telemóvel na mão porque estava a falar connosco e a exigir que lhe desse o telemóvel ( ... )".
O discurso destas testemunhas quanto à sequência dos acontecimentos ocorridos naquele dia 16 de Setembro de 2011 apresenta, pois, flagrantes contradições.
Por outro lado, o que relataram resulta parcialmente desmentido pelo depoimento prestado pela testemunha Amílcar I..., que se afigurou espontâneo, descomprometido, imparcial, seguro, objectivo e verosímil.
Esta testemunha, encontrando-se no interior do estabelecimento de café que explora, denominado "F...", apercebeu-se de uma altercação no exterior, junto a um minimercado. Aproximou-se do vidro do estabelecimento e pôde ver o arguido ser afastado pela filha da assistente, dizendo-lhe "não quero que tu fales com a minha mãe".
Nessa altura o arguido insistia em pretender falar com a mencionada Maria F....
Entretanto afastaram-se daquele local e foram para a rua onde estavam estacionados os respectivos veículos.
Ao dirigirem-se para as viaturas, observou o aludido Luís S...agarrar o mencionado António R... pelo braço e fazer-lhe um gesto de punho fechado.
A testemunha decidiu então dirigir-se para o exterior daquele estabelecimento para intervir caso fosse necessário.
Esclareceu que esta situação terá durado cerca de 3 (três) a 4 (quatro) minutos, afirmando nunca ter ouvido o arguido dizer nada que não fosse pretender falar com a assistente». ---. ---
Ou seja, ao contrário do que alega a Recorrente, o Tribunal recorrido motivou a factualidade que deu como provada e como não provada. ---
Pode discordar-se do entendimento tido pelo Tribunal recorrido. ---
Pode até entender-se que o mesmo poderia ser melhor explicitado. ---
Não pode é dizer-se que o Tribunal recorrido não motivou a decisão de facto em termos suficientes, sendo que saber se a prova produzida permite a decisão de facto tomada pelo Tribunal recorrido é aspecto que releva em sede de erro de julgamento, questão a apreciar de seguida. ---
Improcede, assim, a pretensão da Recorrente na matéria. ---
2. Do alegado erro de julgamento. ---
Segundo o artigo 428.º do Código de Processo Penal, «as relações conhecem de facto e de direito». ---
Tal constitui uma concretização da garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto - reapreciação por um Tribunal superior das questões relativas à ilicitude e à culpabilidade. ---
O recurso em matéria de facto não constitui, contudo, uma reapreciação total pelo Tribunal de recurso do complexo de elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida. ---
Diversamente, apenas poderá ter como objecto uma reapreciação autónoma do Tribunal de recurso sobre a razoabilidade da decisão tomada pelo Tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base, para tanto, da avaliação das provas que, na indicação do recorrente, imponham decisão diversa da recorrida ou determinado a renovação das provas nos pontos em que entenda que deve haver renovação da prova Cf. Acórdão do Venerando Supremo Tribunal de Justiça de 20.01.2010, Processo n.º 149/07.9JELSB.E1.S1 - 3.ª Secção, relatado pelo Senhor Conselheiro Henriques Gaspar, in www.stj.pt/jurisprudencia/sumáriosdeacórdãos /secção criminal. ---. ---
Por isso, nos termos do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas», indicando «concretamente as passagens em que se funda a impugnação». ---
Explicitando tal norma, o acórdão do Venerando Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Março de 2012 fixou jurisprudência no sentido de que «visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações» Publicado no Diário da República n.º 77, de 18.04.2012. ---. ---
O recurso não é, pois, um novo julgamento, em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes é um remédio jurídico destinado a colmatar erros que devem ser identificados e individualizados, com menção das provas que os evidenciam e indicação concreta, por referência à acta, das passagens em que se funda a impugnação Cf. Acórdão do Venerando Supremo Tribunal de Justiça de 26.02.2009, Processo n.º 3270/08 - 5.ª Secção, relatado pelo Senhor Conselheiro Rodrigues da Costa, in www.stj.pt/jurisprudencia/ sumáriosdeacórdãos /secção criminal. ---. ---
Ao apreciar-se o processo de formação da convicção do julgador não pode ignorar-se que a apreciação da prova obedece ao disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, ou seja, fora as excepções relativas a prova legal, assenta na livre convicção do julgador e nas regras da experiência, não podendo também esquecer-se o que a imediação em 1.ª instância dá e o julgamento da Relação não permite. Basta pensar, naquilo que, em matéria de valorização de testemunhos pessoais, deriva de reacções do próprio ou de outros, de hesitações, pausas, gestos, expressões faciais, enfim, das particularidades de todo um evento que é impossível reproduzir Cf. Acórdãos do Venerando Supremo Tribunal de Justiça de 23.04.2009, Processo n.º 114/09 - 5.ª Secção, e de 29.10.2009, Processo n.º 273/05.2PEGDM.S1 - 5.ª Secção, ambos relatados pelo Senhor Conselheiro Souto Moura, in www.stj.pt/jurisprudencia/sumáriosdeacórdãos /secção criminal. ---. ---
O Tribunal da Relação só pode/deve determinar uma alteração da matéria de facto assente quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão Cf. Acórdãos do Venerando Supremo Tribunal de Justiça de 15.07.2009, Processo n.º 103/09 - 3.ª Secção, 10.03.2010, Processo n.º 112/08.2GACDV.L1.S1 - 3.ª Secção, e 25.03.2010, Processo n.º 427/08.0TBSTB.E1.S1 - 3.ª Secção, relatados pelo Senhor Conselheiro Raul Borges, in www.stj.pt/jurisprudencia/sumáriosdeacórdãos /secção criminal. ---. ---
In casu. ---
A Recorrente põe em causa a apreciação da prova feita pelo Tribunal recorrido, tecendo as suas próprias considerações quanto à prova produzida a partir, em grande parte, de alegações genéricas, sem apontar elementos concretos que ponham em causa o processo lógico que motivou a factualidade indicada pelo Tribunal recorrido. ---
Nessa medida cinge-se a expor a sua versão dos factos e a contrapor a sua ponderação da prova produzida à ponderação tomada na matéria pelo Tribunal recorrido, o que se configura inócuo em termos de impugnação da matéria factual em sede de recurso.
«A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode (…) assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão» Cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 184/2004, de 24.11.2004, que transcreve na matéria acórdão da Relação de Coimbra, in www.tribunalconstitucional.pt. ---. ---
Debalde se encontra na decisão recorrida erros de julgamento no processo de formação da convicção do Tribunal recorrido que imponham decisão da matéria de facto diversa da por ele tomada. ---
De todo o modo. ---
A recorrente não indica os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados nos termos do indicado n.º 3, alínea a), do artigo 412.º do Código de Processo Penal, quer na motivação, quer nas respectivas conclusões, o que obsta a que se convide ao aperfeiçoamento do recurso, conforme n.º 3 do artigo 417.º do mesmo Código, sob pena de se conferir à Recorrente um alargamento infundado do prazo de interposição do recurso No sentido da constitucionalidade de uma tal interpretação veja-se o Acórdão n.º 140/04 do Tribunal Constitucional, Processo n.º 565/03, 2.ª Secção, de 10.03.2004, relatado pelo senhor Conselheiro Mota Pinto, publicado no DR, II, de 17.04.2004, páginas 6013/6020: não julga inconstitucional a norma do artigo 412º, n.ºs 3, alínea b), e 4, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, da especificação nele exigida tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente tenha sido dada oportunidade de suprir tais deficiências. ---. ---
Ouvidas as declarações do arguido e da assistente, bem como os depoimentos das testemunhas Luís S..., Läetitia A... e Amílcar I... são manifestas as contradições das mesmas, conforme referido na decisão recorrida. ---
Arguido e Assistente tiveram versões antagónicas: aquele negou o cometimento dos factos dados como não provados pelo Tribunal recorrido Cf. nomeadamente 9:20 a 9:29 minutos, 16:32 a 16:42 minutos, 18:05 a 19:06 minutos, 16:32 a 16:42 minutos, 20:20 a 20:50 minutos, 21:10 a 21:23 minutos, 21:49 a 22:10 minutos, 25:12 a 22:47 minutos e 36:02 a 38:46 minutos das suas declarações. ---, ao passo que esta afirmou-os Cf. designadamente 2:30 a 3:30 minutos, 5:22 a 6:15 minutos, 6:20 a 6:40 minutos, 17:43 a 18:30 minutos e 32:48 a 32:57 minutos das suas declarações. ---. ---
Reportando-se a sucedido em Setembro de 2011, as testemunhas Luís S...e Läetitia A... aludiram a circunstância concretas diversas: enquanto aquele deu a entender que o Arguido abordou a Assistente na via pública, a testemunha Läetitia A... disse que o Arguido começou por entrar dentro do veículo da Assistente Cf. nomeadamente 1:10 a 3:59 minutos do depoimento da testemunha Luís S...e 2:56 a 4:24 minutos, bem como 28:50 a 37:15 minutos do depoimento da testemunha Läetitia A.... ---. ---
Naquele primeiro sentido pronunciou-se igualmente a Assistente Cf. designadamente 3:09 a 3:30 minutos das suas declarações. ----. ---
Por outro lado, relativamente aos mesmos factos, ao contrário do que aludiram aquelas duas testemunhas, a testemunha Amílcar I... referiu que não se apercebeu que o Arguido tenha agredido ou ameaçado a Assistente, tendo antes presenciado condutas impróprias por parte das testemunhas Luís S...e Läetitia A... Cf. nomeadamente 1:54 a 5:10 minutos do respectivo depoimento. ---. ---
A simples audição daquelas duas últimas referidas testemunhas revela o carácter parcial dos seus depoimentos: ao longo dos seus depoimentos descortina-se um claro propósito para assegurar o Tribunal de que a Assistente é imaculada e vítima do Arguido. ---
Tal postura contrata com a da testemunha Amílcar I... que aludindo às personalidades do Arguido e da Assistente em nada os desabonou, procurando retratar os factos de uma forma absolutamente objectiva. ---
Neste contexto, afigura-se justifica a posição adoptada pelo Tribunal recorrido na decisão de facto: perante as contradições decorrentes da prova pessoal produzida, a apontada postura tendencial das testemunhas Luís S...e Läetitia A..., na falta de outros elementos probatórios, fica-se num estado de dúvida insanável tal que, por aplicação do princípio in dubio pro reo, em nome da certeza que a justiça criminal impõe, urge dar como não provada a factualidade referida pelo Tribunal recorrido. ---
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Nestes termos, não merecendo qualquer reparo a decisão recorrida no ora em causa, tem-se por definitivamente fixada a matéria factual constante da decisão recorrida, improcedendo, pois, a pretensão da Recorrente na matéria. ---
4. Da reclamada condenação do Arguido. ---
Entende a Assistente que a factualidade apurada integra o cometimento pelo Arguido de um crime de coacção/ameaça, pelo que o mesmo deve ser criminal e civilmente condenado. ---
Apreciemos. ---
O Arguido foi acusado pelo cometimento de um crime de coacção, previsto e punido pelo artigo 154.º, n.º 1, do Código Penal Cf. volume I, fls. 39. ---. ---
Nos termos daquele preceito legal, comete tal ilícito criminal «quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade». ---
O bem jurídico protegido pela incriminação «é a liberdade de decisão e acção de outra pessoa». ---
Além do mais, importa que a violência ou a ameaça sejam adequadas ao resultado do constrangimento, sendo que neste juízo de adequação «devem ser ponderadas, por um lado, as características físicas e psíquicas da pessoa da vítima do constrangimento e do agente do crime e, por outro lado, as competências técnicas da vítima para resistir». ---
A consumação do crime de coacção em causa pressupõe que o ofendido se comece «a comportar como o agente quer», pratique a acção ou omissão pretendida pelo agente ou suporte a actividade por este querida Cf. Paulo Pinto Albuquerque, Comentário ao Código Penal, 2008, página 415, 417 e 418. ---. ---
Nos termos do n.º 2 do referido artigo 154.º do Código Penal, «a tentativa é punível»: neste caso, o resultado do constrangimento não sucede minimamente, havendo, pois, violência ou ameaça adequadas ao resultado de constrangimento e inexistência daquele resultado. ---
O crime de ameaças encontra-se previsto no artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal. ---
Nos termos daquela disposição legal comete o crime de ameaças «quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade». ---
Também aqui, o bem jurídico protegido pela incriminação é a liberdade de decisão e acção de outra pessoa. ---
Além do mais, a ameaça perpetrada deve ser adequada a provocar medo ou inquietação no ofendido ou a prejudicar a liberdade deste. ---
Na situação vertente, atenta a factualidade apurada, é manifesta a inverificação de tais ilícitos criminais. ---
Nomeadamente, da factualidade indicada sob os n.ºs 2 e 3 Deu-se aí como provado que: ---
«3. No dia 01 de Julho de 2011, o arguido enviou à assistente, por correio electrónico, a seguinte mensagem: "pensa bem, eu sou humano e compreensivo; mas ao ultrapassares os limites, eu sei que fazer e não tenho medo das consequências. Eu aviso-te, estás a ultrapassar os limites e modera o tom, pois eu não tenho remorsos alguns, vou até às últimas".
4. No dia 16 de Julho de 2011, o arguido enviou à assistente, também por correio electrónico, a seguinte mensagem: "tenho 30 anos de tempo, mas a minha vingança virá e forte"». ---, nem se vislumbra que tenha havido um constrangimento da Assistente, nem se descortina que o Arguido tenha ameaçado aquela com um mal importante, nomeadamente com a prática de crime penalmente relevante no caso, apto a afectar a liberdade de decisão ou acção desta. ---
De todo o modo, sendo tais ilícitos criminais dolosos, da matéria de facto provada não resulta o dolo. ---
Tanto basta para concluir que o Arguido não cometeu qualquer dos indicados ilícitos criminais, pelo que a sua absolvição quer na parte crime, quer no ponto de vista civil, configura-se um imperativo, tal como decidido pelo Tribunal recorrido.
Improcede, assim, o recurso interposto pela Assistente da decisão final. ---
V.
DECISÃO. ---
Pelo exposto, julgam-se improcedentes os recursos apresentados pela Assistente nos presentes autos e, em consequência, mantêm-se integralmente as decisões recorridas. ---
Custas pelo Assistente, fixando-se em 3 (três) UC a taxa de justiça relativa ao recurso intercalar e em 4 (quatro) UC a taxa de justiça relativa ao recurso da decisão final. ---
Notifique. ---
Guimarães, 4 de Fevereiro de 2013