Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2686/06.3TBFAF.G1
Relator: RAQUEL REGO
Descritores: SIMULAÇÃO
PROVA TESTEMUNHAL
TESTEMUNHAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/14/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - É de permitir o recurso a testemunhas para a prova da simulação quando não for arguida pelos simuladores, ou seja, quando for invocada por terceiros.
II - Os herdeiros do simulador são terceiros quando visem satisfazer interesses específicos da sua posição de herdeiros que seriam afectados pela subsistência do acto simulado e, desta forma, estão arredados das limitações de prova a que ficam sujeitos os simuladores.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:


I – RELATÓRIO.

Aniceto V. F. S. intentou a presente acção declarativa com processo sumário contra Fernando E. F. S., José C. F. S. e Maria C. F. S. e marido Gilberto C. P., todos com os sinais dos autos, pedindo que seja reconhecido e declarado o direito de propriedade do autor ao estabelecimento comercial identificado na petição e que, em consequência, sejam os RR condenados a abster-se de praticar quaisquer actos lesivos e ofensivos do mesmo.
Alega que, por escritura pública datada de 22.03.1990, os seus pais lho trespassaram, tendo os demais filhos dos trespassantes, ora RR, prestado o necessário consentimento ao negócio, além de que já por usucapião o havia adquirido.
Termina referindo que o dito estabelecimento foi relacionado pelo R. José Cândido, cabeça de casal, no Processo de Inventário nº1365/05.3TBFAF, para partilha dos bens dos pais do A. e RR, tendo após reclamação apresentada, sido tal matéria remetida para os meios comuns, nos termos do artº 1350º do Código de Processo Civil; daí a origem da presente demanda.
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Contestaram os RR alegando que o negócio celebrado foi simulado e quem sempre foi dono e possuidor do estabelecimento foi o pai, Manuel Silva, enquanto foi vivo.
Que o dito Manuel foi acometido de um trombose, então iniciando o processo para obtenção da reforma por invalidez, tendo a Seg. Social confrontado o mesmo com a necessidade de cessar a sua actividade como empresário em nome individual.
Assim, auscultados os seus filhos e esposa, celebrou o referido trespasse, negócio este simulado, não se tendo pretendido verdadeiramente operar a transmissão do estabelecimento, nem beneficiar o filho trespassário, o qual, contrariamente ao mencionado na escritura, não pagou nenhum preço, pretendendo agora o A. valer-se da mesma para obter uma vantagem patrimonial em prejuízo dos seus irmãos, aqui RR.
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Seguindo os autos os respectivos termos, foi proferido despacho saneador e, de seguida, procedeu-se à selecção da matéria de facto assente e à elaboração da base instrutória.
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Mantendo-se os pressupostos que presidiram à prolação do mesmo, realizou-se audiência de discussão e julgamento, vindo a ser proferida sentença que, julgando a acção totalmente improcedente, absolveu os RR dos pedidos deduzidos, declarando-se nulo, por simulado, o contrato de trespasse relatado nos autos.
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Inconformado, apelou o autor com, aliás mui doutas, alegações cujas conclusões, pela sua extensão, nos dispensamos de reproduzir mas onde, basicamente, diz ocorrer invalidade das respostas dadas aos quesitos por inadmissibilidade da prova testemunhal, com erro de direito e erro de julgamento, este por errada interpretação das provas produzidas.

Conclui pela procedência do recurso e revogação da decisão recorrida.
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Foram oferecidas contra-alegações pugnando pela manutenção do decidido.

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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO.

Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
A. Por escritura pública outorgada no Cartório Notarial de XPZ, a 22 de Março de 1990, Manuel S. e esposa Maria F. -como primeiros outorgantes- e o autor Aniceto - como segundo outorgante - declararam, além do mais, o seguinte:
- os primeiros que eram donos e possuidores de um estabelecimento industrial de alfaiataria e pronto-a-vestir, instalado no r/c do prédio urbano, sito na R. Combatentes da Grande Guerra, freguesia e concelho de Fafe, inscrito na matriz sob o artº 1665º, pelo qual é paga a renda anual de 104.880$00, sendo de 524.400$00 o valor das rendas de cinco anos;
- também os primeiros que, pela escritura, trespassavam o referido estabelecimento ao segundo, seu filho, pelo preço de seiscentos contos, trespasse esse no conjunto e complexo das respectivas instalações, móveis, utensílio, mercadorias e todos os demais elementos que integram o dito estabelecimento, designadamente, o de arrendatários do local;
- os primeiros, ainda, que têm como únicos filhos e presuntivos herdeiros legitimários, além do segundo outorgante, os seguintes filhos:
- Fernando Elói, casado com Cislaine G., José C. S. e Maria S.a, os quais deram o consentimento ao presente trespasse;
- o segundo que aceitava este contrato.
B. Manuel S. e Maria F. e o A. Aniceto , apesar das declarações referidas em A., não quiseram o trespasse do estabelecimento comercial aí identificado.
C. Fizeram tais declarações para que o Manuel S. recebesse a pensão de reforma por invalidez e, em simultâneo, continuasse a explorar o estabelecimento.

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O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do C. P. Civil);
Nos recursos apreciam-se questões e não razões;
Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
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Através do presente recurso impõe-se apreciar do acerto das respostas dadas aos quesitos 1º e 2º, por duas razões: a primeira é a da (in)admissibilidade de prova testemunhal sobre a matéria que versam; a segunda é a da adequação da produzida ao sentido conferido a tais respostas.
Vejamos, então.
Nos termos do artº 240º, nº1, do Código Civil, se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado.
Tal negócio é nulo, por força do nº2 do mesmo preceito.
Os recorridos invocaram que o trespasse em causa nos autos nunca foi realmente querido pelos respectivos outorgantes, visando apenas a obtenção de uma pensão social, ou seja, que o negócio era simulado.
Com base nessa arguição foram elaborados os quesitos 1º e 2º, onde se perguntava o seguinte:
1º - Manuel S. e Maria F. e o autor Aniceto, apesar das declarações referidas em –A-, não quiseram o trespasse do estabelecimento comercial aí identificado?
2º - Fizeram tais declarações para que o Manuel da Silva recebesse a pensão de reforma por invalidez e, em simultâneo, continuasse e explorar o estabelecimento?

O Tribunal a quo respondeu “Provado” a ambos.
No respectivo despacho, após longa dissertação teórica sobre a admissibilidade de prova testemunhal em casos desta natureza, entendeu aquele que se verificava um princípio de prova por escrito que justificava e possibilitava a prova testemunhal.
Assim, fundamentou as respostas dadas nos documentos juntos (entrevista a um jornal e cheques) e nos depoimentos testemunhais prestados em audiência, designadamente de Maria Zulmira, Alda Castro e Anita Costa.
De acordo com o artº 394° do Código Civil, "É inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artºs 373° a 379°, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores” (nº1).
"A proibição do número anterior aplica-se ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocados pelos simuladores" (nº2).
Dispõe, ainda, o nº3 daquele normativo que estas restrições não são aplicáveis a terceiros.
Assim, é de permitir o recurso a testemunhas para a prova da simulação quando não for arguida pelos simuladores, ou seja, quando for invocada por terceiros, excepção que se justifica pela dificuldade que teriam terceiros de obter documentos probatórios das convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo do documento ou do acordo simulatório (Código Civil Anotado, P.Lima, vol.I, pag.320), ou, nas palavras de Carvalho Fernandes, pela circunstância de os terceiros não terem na sua disponibilidade a existência de prova documental (Estudos Sobre a Simulação, pag.85).
E quem é, então, terceiro, conceito que se mostra fundamental para efeitos de saber se alguém está, ou não, abrangido pelas limitações de prova dos nºs 1 e 2 do citado artº 394º?
O STJ, em geral, tem considerado que, terceiro, para efeitos de arguição da nulidade de negócio simulado, é aquele que não interveio no acordo simulatório, nem representa por sucessão quem nele participou (a título de exemplo, veja-se o acórdão de 10.04.2003, itij), questão de acutilante importância nos autos, uma vez que a lide se desenrola precisamente entre herdeiros legitimários de um dos simuladores.
Manuel de Andrade (Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol.2º, pag.198, Coimbra 1972) considera «terceiros, para efeitos de simulação, quaisquer pessoas que não sejam os simuladores, nem os seus herdeiros (ou legatários), a menos que (quanto a estes) se trate de herdeiros legitimários que venham impugnar o negócio simulado para defender as suas legítimas».
Sabendo-se que os herdeiros de alguém sucedem globalmente na precisa situação jurídica de natureza não pessoal que tinha o autor da herança, faz, à partida, sentido que lhe sejam aplicáveis as restrições de prova que impendiam sobre o simulador.
Mas se, em geral, quanto ao acto simulado, os herdeiros são colocados na posição do simulador a que sucedem, não é excluir que possam ser tratados como terceiros quando visem satisfazer interesses específicos da sua posição de herdeiros que seriam afectados pela subsistência de tal acto – C. Fernandes, obra citada, pag.98 – e, desta forma, arredá-los das limitações de prova a que ficam sujeitos os simuladores.
«É, sem dúvida, como terceiro que após a morte do autor da simulação, actua o herdeiro legitimário que, por exemplo, pretende demonstrar que certo acto de compra e venda praticado pelo seu progenitor encobre, na realidade, uma doação» - idem, pag.99.
«No caso de falecimento de um ou de ambos os simuladores, em princípio, a simples lógica jurídica imporia que, enquanto sucessores, deveriam assumir a mesma posição dos simuladores a quem sucediam. No entanto, este regime era fonte de injustiça, enquanto a simulação tivesse sido feita para prejudicar na sucessão esses mesmos herdeiros.
Por tal motivo, o nº2 do artº 242º do CC veio permitir a invocação da simulação pelos herdeiros legitimários quando ainda em vida do autor da sucessão pretendam agir contra negócios por eles simuladamente feitos com o intuito de os prejudicar. Isto significa que, mesmo após a abertura da herança, têm, obviamente, os herdeiros legitimários, legitimidade para invocar a nulidade de negócios simulados que se traduzam em prejuízo da respectiva legítima, ainda que não com esse intuito» STJ, aresto de 04.05.2010, itij.
Do mesmo modo se escreveu no acórdão de 25.11.92: «os herdeiros ou legatários do simulador, prejudicados com o negócio simulado, ao pedirem a sua anulação, defendem como terceiros a quota hereditária ou o legado. Trata-se, pois, da defesa de um direito próprio, que não lhes foi transmitido directamente pelo autor da herança.
Portanto, nestes casos, têm a qualidade de terceiros, para os efeitos previstos no mencionado nº3 do artigo 394º do Código Civil.
Traduzem exemplarmente esta orientação os acórdãos deste Supremo Tribunal de 18 de Fevereiro de 1966 (in Boletim n. 154, pagina 343) e de 11 de Junho de 1981 (in Boletim do Ministério da Justiça n. 308, página 210)».
Ao invés do alegado pelo apelante, os RR não intervieram na escritura pública de trespasse, apenas dela constando que foram apresentados quatro consentimentos para o mesmo.
E nem se diga que ao darem o seu consentimento para o impugnado negócio deixaram de revestir a qualidade de terceiros, porquanto, além de nele não intervirem, foi exactamente para um trespasse que alegam não ter ocorrido que a respectiva anuência foi obtida, situação que, de resto, nunca lhes conferiria a qualidade de simuladores.
Portanto e em conclusão, enquanto herdeiros legitimários do simulador e eventuais prejudicados com o relatado trespasse, os RR apresentam-se como terceiros e podem usar de quaisquer meios de prova com vista à demonstração da alegada simulação.
Consequentemente, fica prejudicada a apreciação da existência, ou não, de um princípio de prova escrita que permita o recurso à prova testemunhal.

Segunda questão:
Admitida que fica a produção de prova testemunhal, impõe-se analisar, nesse pressuposto, a segunda das pretensões deduzidas, ou seja, a reapreciação da prova, com vista a aquilatar do invocado erro de julgamento.
Desde logo tenha-se presente que no nosso sistema jurídico vigora o princípio da livre apreciação da prova, ínsito no artº 655º do Código de Processo Civil, o que significa que o julgador aprecia livremente as provas, decidindo segundo a sua prudente convicção, a menos que se verifique a situação específica do nº2 daquele preceito - prova tarifada – que aqui não ocorre, como acima se demonstrou.
E, nesta senda, o Tribunal a quo valorou os documentos juntos relativos aos cheques e à entrevista do simulador, que se mostram idóneos e consentâneos com as respostas dadas, na medida em que o pagamento regular de quantias similares feitas ao recorrente após o invocado trespasse adequam-se ao teor da entrevista do de cujus de que continuava a ser dono do negócio e pagava ao filho os arranjos por este feitos.
Do mesmo modo, valorou os depoimentos das testemunhas Maria Zulmira, Alda Castro e Anita Costa.
Ouvidos eles, também nós sufragamos as respostas dadas aos quesitos, pois que:
a) Zulmira, sendo conhecida da família e amiga de alguns, referiu que, numa festa de anos, o falecido disse que não passou o negócio para a filha por esta ser funcionária pública; então, pôs em nome do apelante, para obter a reforma por invalidez.
Quando aquele esteve internado, chamou a depoente (trabalhadora do hospital) por causa de um cheque para entregar ao filho, destinado a pagar a renda e então a testemunha disse ao autor para vir buscar tal título.
O falecido sempre dizia que pagava um salário ao recorrente.
b) Alda Castro, amiga e colega da ré Camila, cliente do de cujus, disse que o negócio só foi feito para obter a reforma por invalidez.
Que o trespassante chegou a aventar a hipótese de por o negócio em nome da Camila, o que não fez por esta ser funcionária pública.
Que o falecido continuou a estar e a dirigir o estabelecimento.
Que, em determinada ocasião, foi ao estabelecimento para que o recorrente lhe subisse umas calças compradas em Espanha; o falecido disse-lhe que o apelante só vinha ali fazer arranjos para ele próprio e que ele não estava para pagar luz para arranjos do filho.
Que quem pagava a renda sempre foi o falecido, que, aliás, pagava salário ao filho, aqui autor, tendo até havido desavenças por causa de um pedido de aumento.
Mesmo após o AVC continuava a ser o pai que cortava os fatos e o filho trabalhava com ele.
Que o cheque do salário do mês em que faleceu o pai foi já assinado pela filha Camila, por ser esta que podia movimentar a conta bancária.
c) Anita Costa, colega da Camila e conhecedora da família, referiu que o falecido estava reformado por invalidez e não podia continuar à frente do estabelecimento; como a Camila tinha de pedir autorização ao Ministéri para ficar com o estabelecimento, por ser funcionária pública, ficou em nome do autor.
Na altura ainda a cunhada de França era viva e a Camila contou, melindrada, que aquela não concordava com o trespasse com receio que o apelante se arvorasse em dono do negócio; porém, eles, como irmãos, achavam que isso não aconteceria.
Que o pai sempre foi quem passou todos os cheques.
A Camila chegou a dizer que o pai deveria pagar um pouco mais ao irmão que lá trabalhava.
Que reconhece a assinatura da Camila no cheque passado ao recorrente, na altura da morte do pai.
O Silva estava sempre no estabelecimento e era quem fazia os cortes dos fatos.
Estes depoimentos corroboram integralmente o que se colhe dos documentos supra mencionados, não se encontrando qualquer outra explicação para a continuada emissão de cheques do pai a favor do filho, nem o teor das declarações contidas na entrevista.
Já o mesmo não se passa quanto às demais testemunhas.
Veja-se, por exemplo, Daniel Freitas, amigo do de cujus, que referiu que desde 87 que aquele deixou de ser proprietário do estabelecimento; porém, não soube explicar de que é que passou a viver, rematando dizendo que o filho lhe devia dar “qualquer coisa” o que vai totalmente ao invés da emissão regular dos cheques.
Do mesmo modo, Carlos Ramos, amigo também daquele falecido, disse peremptoriamente que ele não era um homem de posses, vivendo apenas do seu trabalho, tendo apenas o rendimento da loja.
Que quem pagava a renda era o falecido, mas que agora é o Aniceto.
Que o filho é que tratava de tudo e repartia com o pai, mas não sabe quanto lhe dava.
Este depoimento é contrário, uma vez mais, à regular emissão de cheques do pai para o filho e descredibiliza a testemunha quanto ao conhecimento dos factos em apreciação.
Em conclusão, a prova produzida foi devidamente apreciada e valorada, não ocorrendo qualquer erro de julgamento. São de manter as respostas dadas aos quesitos.
Consequentemente, em face da factualidade provada, é de total acerto a decisão proferida, para a qual se remete ao abrigo do disposto no artº 713º, nº5, do Código de Processo Civil.
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III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.

Guimarães,