Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | JORGE TEIXEIRA | ||
Descritores: | DOAÇÃO MODAL ENCARGOS INOFICIOSIDADE | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 09/24/2015 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO CÍVEL | ||
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Sumário: | I- A doação modal é uma modalidade de doação que se caracteriza pela imposição ao donatário de uma obrigação ou de um ónus, acessório da liberalidade e que, sem ter a natureza de contraprestação, limita o seu valor.
II- Nesta doação a vontade das partes é sempre dirigida a um enriquecimento do receptor, embora diminuído na medida dos meios necessários para a execução do encargo, ou seja, a intenção de doar tem de exceder a de obrigar o outro a uma prestação, sendo, assim, o encargo assumido, um fim acessório. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.
I – RELATÓRIO.
Recorrente: AA. Recorrido: BB. Tribunal Judicial de Arcos de Valdevez, Instância Local – Secção Cível.
Nos presentes autos de inventário por óbito de CC e esposa DD, os interessados EE e FF, vieram nos termos do art. 1341º do CPC, reclamar das declarações de cabeça de casal, dado que a mesma não faz menção dos testamentos outorgados pelos de “cujus” a favor dos requerentes, das sua quotas disponíveis, bem como vieram reclamar da relação de bens, atendendo que o único bem imóvel relacionado foi objecto de doação, constando de tal escritura que “caso a presente doação venha a ser objecto de redução, ao falecimento dos doadores, estipulam o montante de seiscentos euros mensais sujeito a actualização, segundo cálculo oficial de desvalorização da moeda, o vencimento mensal que deverá ser pago aos donatários, pelos serviços prestados a eles doadores, com efeitos a partir desta data”. Nesta decorrência, e dado que os donatários prestaram assistência a qualquer hora do dia ou da noite, o acompanhamento dos falecidos e do seu filho, entretanto também falecido, fazendo o acompanhamento deles aos hospitais, centros de saúde e consultórios médicos, e ocupando-se dos funerais dos três, para o caso da haver redução da predita doação, haverá que relacionar-se a dívida resultantes dos encargos a que a escritura formaliza até ao decesso do doador CC. Notificado o cabeça de casal nos termos e para os efeitos do art. 1349º, nº1 do CPC, veio o mesmo por requerimento de fls. 64 e ss. responder à referida reclamação, a qual se dá aqui por integralmente reproduzida, concluindo que não assiste razão à reclamante no que toca ao relacionamento do passivo, uma vez, que estamos perante uma doação modal e não remuneratória. A cabeça de casal mais apresentou declarações complementares onde faz menção aos testamentos deixados pelos inventariados – cfr. fls. 58.62 dos autos. Realizado o julgamento, foi proferido despacho que respondeu à matéria de facto controvertida, sendo proferida sentença que julgou totalmente procedente a reclamação deduzida pelos interessados EE e FF contra a relação de bens, determinando o aditamento à mesma a título de passivo o valor de 32.400,00 € a favor de EE e FF. Inconformados com tal decisão, apelam os herdeiros GG e HH, e, pugnando pela respectiva revogação, formula nas suas alegações as seguintes conclusões: “A. O princípio da intangibilidade da legítima, manifestado nos artigos 2163.º e 2159.º do CC, foi violado pelo Tribunal a quo, ao ter admitido que a hipotética dívida de serviços prestados e que ascende a € 32.400,00, de que são putativos credores os reclamantes EE e FF, não poderá circunscrever-se dentro da quota disponível dos inventariados doadores CC e DD, o que potencia a violação das quotas legitimárias dos ora recorrentes GG e HH, numa nova e eventual reclamação à relação de bens; B. ln Casu, como corolário daquele princípio, a aposição da cláusula de pagamento de serviços prestados no contrato formalizado na escritura de doação de fls. 31-34 não permite a interpretação (seja ela coeva à feitura do negócio ou no momento da partilha) de que, em caso de redução por inoficiosidade a processar-se nesta sede própria de inventário, para pagamento daqueles serviços se sacrifique, se necessário for, o quinhão dos herdeiros legitimários, ora recorrentes; C. Em caso de redução por inoficiosidade, nos termos do 2168.º do Código Civil, os credores de uma herança não podem satisfazer as suas dívidas pela excussão dos bens doados, uma vez que a redução das doações se processa em benefício exclusivo do herdeiro, não revertendo nunca tais bens para a herança, pelo que não podem ser utilizados para pagamento das dívidas da herança; D. O mecanismo previsto no artigo 2168.º do Código Civil visa precisamente comprimir os valores das liberalidades feitas em vida no quantum de valor necessário para salvaguardar a integralidade das quotas indisponíveis; E. No caso vertente, o Tribunal a quo, em face da inexistência de outros bens para satisfazer a hipotética dívida dos reclamantes herdeiros testamentários mas não legitimários, violou os artigos 2156.º, 2159.º e 2168.º do Código Civil, ao determinar o pagamento de dívidas à custa do valor o imóvel imputado ao activo da herança, operação esta que fere a intangibilidade da legítima dos ora recorrentes; F. Em caso de conflito de direitos entre herdeiro legitimário e donatário, prevalece a tutela do primeiro, mesmo que para esse efeito haja de reduzir-se, por inteiro, a doação realizada, para salvaguardar o quinhão do legitimário; G. O Tribunal a quo violou os artigos 940.º e 963.º do Código Civil, pois destronou o espírito de liberalidade subjacente à doação formalizada na escritura de fls. 31-34 dos autos, aportando ao negócio um pendor oneroso não consentido pela ratio legis daqueles artigos; H. A escritura de fls. 31-34 dos autos deve ser interpretada, sem mais, como formalizadora de uma doação modal, devendo-se-Ihe aplicar o respectivo regime, previsto nos artigos 940.º e 963.º e seg.; I. Subsidiariamente, mesmo que se venha a interpretar o negócio de 16-12-2005 como sendo de natureza mista, como o fez o Tribunal a quo (o que não se concede), o sentido e alcance do seu texto, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 238.º do Código Civil, evidencia à saciedade um pendor modal da doação feita, que é o âmago, a essência do negócio; J. Pelo que o regime jurídico único a ser a aplicado à escritura de fls. 31-34 é o da doação, sem qualquer cotejo com o regime da prestação de serviços, o que se alcançará com a aplicação da chamada teoria da absorção; K. O Tribunal a quo violou, assim, o disposto no artigo 238.º do Código Civil, ao ter feito prevalecer, na interpretação do texto negocial, um elemento meramente acessório ou secundário - cláusula que estipula o pagamento de € 600,00 mensais em caso de redução por inoficiosidade - que colide frontalmente com o regime da parte principal, fundamental ou preponderante do contrato, que é o concernente à doação modal; L. Não pode o Tribunal a quo, in casu, afirmar que se estaria a desvirtuar a vontade dos inventariados doadores se se circunscrevesse o valor da putativa dívida de € 32.400,00 dentro do valor da quota disponível, pois, mesmo que não houvesse testamento haveria que ser salvaguardada inexoravelmente a quota indisponível dos legitimários; M. A estipulação do encargo de prestação de cuidados de assistência aos doadores inventariados só pode ser entendida como uma limitação à atribuição patrimonial de € 67.985,24 de que foram beneficiários ambos os donatários; N. A pensar-se de outro modo, isto é, levando-se em apreço que a doação foi válida e eficaz e que terá supostamente de ser pago o valor dos serviços pela cifra de € 32.400,00, aí sim estar-se-á a desvirtuar o espírito de liberalidade associado à doação formalizada na escritura de fls. 31-34; O. A manter-se a decisão recorrida, conceder-se-á carácter de onerosidade à doação, ao arrepio da lei, fazendo com que (para além da atribuição patrimonial de € 67.985,24, que constitui a compensação inerente ao próprio valor do bem que foi doado e que se mantém na esfera dos donatários) se beneficiem os reclamantes EE e FF com um acrescento patrimonial de € 32.400,00, resultado que, não será despiciendo salientar, constituirá, em ultima ratio, um enriquecimento sem causa para os mesmos, de todo inadmissível; P. ln casu, os serviços prestados pelos donatários não podem ser pagos, pois, da parte destes, a prestação de cuidados de assistência que lhes coube não pode ser havida como verdadeira contraprestação relativamente à atribuição patrimonial que lhes foi feita pelos inventariados CC e DD, mas sim como uma limitação a essa atribuição”. * Os Apelados apresentaram contra alegações concluindo pela improcedência da apelação. * Colhidos os vistos, cumpre decidir. * II- Do objecto do recurso. Sabendo-se que o objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, as questões decidenda são, no caso, a seguinte: - Analisar da eventual inoficiosidade da doação efectuada. - Analisar da existência ou não de passivo a relacionar decorrente de eventual inoficiosidade da doação efectuada. * III- FUNDAMENTAÇÃO. Fundamentação de facto. A factualidade dada como provada e não provada na sentença recorrida é a seguinte: Factos Provados. 1. A Inventariada DD, faleceu no dia 4 de Junho de 2007, na freguesia de Aguiã, no Concelho de Arcos de Valdevez, no estado de casada em primeiras núpcias de ambos, e sob o regime da comunhão geral de bens, com o inventariado CC, deixando um único testamento, em que institui como herdeiros, da sua quota disponível, EE e FF, ambos residentes no Lugar de Souto Novo, freguesia de Aguiã, no Concelho de Arcos de Valdevez, com a obrigação dos herdeiros instituídos prestarem assistência, na saúde e na doença, após a morte dela, testadora, ao seu conjugue e ao filho de ambos II; 2. À data supra referida, deixou a Inventariada DD como sucessor o inventariado CC, seu conjugue, e II, único filho de ambos, à data de óbito da mãe no estado de divorciado; 3. II Lima faleceu no dia 22 de Novembro de 2008, na freguesia de Aguiã, no Concelho de Arcos de Valdevez, não tendo deixado testamento ou qualquer disposição de última vontade, nem tendo realizado, com o seu pai e ora inventariado CC, partilha judicial ou extrajudicial da herança da inventariada DD; 4. O A Inventariado CC, faleceu no dia 16 de Junho de 2010, na freguesia de Aguiã, no Concelho de Arcos de Valdevez, deixando um único testamento, em que institui como herdeiros, da sua quota disponível, EE e FF, ambos residentes no Lugar de Souto Novo, freguesia de Aguiã, no Concelho de Arcos de Valdevez, com a obrigação dos herdeiros instituídos prestarem assistência, na saúde e na doença, após a morte dela, testadora, ao seu conjugue e ao filho de ambos II; 5. São únicos herdeiros dos inventariados CC e DD, os seus netos – em representação do pré-falecido filho dos inventariados: a) GG, divorciada; b) HH, casado com JJ Lima, sob o regime da comunhão de adquiridos; 6. Os inventariados CC e DD, através de escritura pública de doação, celebrada no dia 16 de Dezembro de 2005 e outorgada no Cartório Notarial de Ponte da Barca, doaram a EE e FF, um prédio misto, composto por casa de rés-do-chão para a habitação e terra de cultivo, sito no lugar de Souto Novo, da freguesia de Aguiã, do Concelho de Arcos de Valdevez, descrito na Conservatória do Registo predial de Arcos de Valdevez sob o nº …, inscrito na respectiva matriz sob os artigos … urbano e … rústico, confrontando a norte e poente com caminho público, a nascente com Maria Pereira, a sul com André de Barros; 7. Da relação de bens apresentada pela cabeça de casal, junta a fls. 30, apenas consta a seguinte verba única: - Prédio misto, composto por casa de rés-do-chão para a habitação e terra de cultivo, sito no lugar de Souto Novo, da freguesia de Aguiã, do Concelho de Arcos de Valdevez, descrito na Conservatória do Registo predial de Arcos de Valdevez sob o nº …, inscrito na respectiva matriz sob os artigos … urbano e … rústico, confrontando a norte e poente com caminho público, a nascente com Maria Pereira, a sul com André de Barros, com valor patrimonial de 67.985,24€ 8. Da escritura de doação referida em 6., e junta aos autos a fls. 31-34, consta além do mais que: “Os donatários ficam com o encargo de lhes prestarem assistência, com saúde ou doença, cuidar da higiene e limpeza da habitação e vestuário, e prover, se necessário à sua alimentação, vestuário, medicamentos e outras despesas inerentes. Que, na hipótese do filho deles doadores II, divorciado, com eles residente, por força de doença, vier a carecer dos mesmos cuidados, atrás referidos impõe, também, aos donatários esse encargo. Caso a presente doação venha a ser objecto de redução, ao falecimento dos doadores, estipulam o montante de seiscentos euros mensais sujeito a actualização, segundo cálculo oficial de desvalorização da moeda, o vencimento mensal que deverá ser pago aos donatários, pelos serviços prestados a eles doadores, com efeitos a partir desta data”. 9. Os donatários EE e FF, desde o dia 16/12/2005, data em que foi outorgada a referida escritura de doação, até ao falecimento da inventariada DD em 04/06/2007, do inventariado CC em 16/06/2010, e do filho de ambos em 22/11/2008 sempre cumpriram os encargos constantes da referida escritura, identificados em 8. 10. O doador padecia de “hipertensão arterial, controlada, tendo sido submetido a cirurgia abdominal de urgência devido a diverticulose intestinal”, a doadora sofria de “diabetes tipo II”, e o filho padecia de um “distúrbio psiquiátrico na sequência de um traumatismo craniano”. 11. Tudo isto implicava, como implicou, a prestação de assistência por parte dos donatários da prestação de assistência a qualquer hora do dia ou noite, que aqueles nunca deixaram de realizar, o acompanhamento deles aos hospitais, centros de saúde e consultórios médicos, tendo até sido eles que se ocuparam dos funerais; 12. As despesas dos funerais foram reembolsadas pelo Instituto da Segurança Social; Fatos Não Provados. A) Os interessados EE e FF procediam à cobrança dos cheques de pensão da reforma dos doadores. Fundamentação de direito. A alicerçar a pretensão recursória que deduziram alegaram os Recorrentes, em síntese, que visando mecanismo previsto no artigo 2168.º do Código Civil comprimir os valores das liberalidades feitas em vida no quantum de valor necessário para salvaguardar a integralidade das quotas indisponíveis, o Tribunal a quo, em face da inexistência de outros bens para satisfazer a hipotética dívida dos reclamantes herdeiros testamentários mas não legitimários, ao determinar o pagamento de dívidas à custa do valor o imóvel imputado ao activo da herança, operação esta que fere a intangibilidade da legítima dos ora recorrentes, violou os artigos 2156.º, 2159.º e 2168.º do Código Civil.
Mais alega que, em caso de conflito de direitos entre herdeiro legitimário e donatário, prevalece a tutela do primeiro, mesmo que para esse efeito haja de reduzir-se, por inteiro, a doação realizada, para salvaguardar o quinhão do legitimário, razão pela qual o Tribunal a quo terá violado os artigos 940.º e 963.º do Código Civil, pois destronou o espírito de liberalidade subjacente à doação formalizada na escritura de fls. 31-34 dos autos, aportando ao negócio um pendor oneroso não consentido pela ratio legis daqueles artigos.
Em seu entender, a escritura de fls. 31-34 dos autos deve ser interpretada, sem mais, como formalizadora de uma doação modal, devendo-se-Ihe aplicar o respectivo regime, previsto nos artigos 940.º e 963.º e seg..
Todavia, mesmo que se venha a interpretar o negócio de 16-12-2005 como sendo de natureza mista, como o fez o Tribunal a quo (o que não se concede), o sentido e alcance do seu texto, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 238.º do Código Civil, evidencia à saciedade um pendor modal da doação feita, pelo que o regime jurídico único a ser a aplicado à escritura de fls. 31-34 é o da doação, sem qualquer cotejo com o regime da prestação de serviços.
O Tribunal a quo violou, assim, o disposto no artigo 238.º do Código Civil, ao ter feito prevalecer, na interpretação do texto negocial, um elemento meramente acessório ou secundário - cláusula que estipula o pagamento de € 600,00 mensais em caso de redução por inoficiosidade - que colide frontalmente com o regime da parte principal, fundamental ou preponderante do contrato, que é o concernente à doação modal, não se podendo, in casu, afirmar que se estaria a desvirtuar a vontade dos inventariados doadores se se circunscrevesse o valor da putativa dívida de € 32.400,00 dentro do valor da quota disponível, pois, mesmo que não houvesse testamento haveria que ser salvaguardada inexoravelmente a quota indisponível dos legitimários.
Assim sendo, a estipulação do encargo de prestação de cuidados de assistência aos doadores inventariados só pode ser entendida como uma limitação à atribuição patrimonial de € 67.985,24 de que foram beneficiários ambos os donatários, pois, a pensar-se de outro modo, isto é, levando-se em apreço que a doação foi válida e eficaz e que terá supostamente de ser pago o valor dos serviços pela cifra de € 32.400,00, estar-se-ia a desvirtuar o espírito de liberalidade associado à doação formalizada na escritura de fls. 31-34;
Como e em nosso entender correctamente se refere na decisão recorrida, o que está em causa nos presentes autos, e constitui também objecto da pretensão recursória deduzida, mais não é do que “aquilatar se a doação dos inventariados aos donatários EE e FF do prédio identificado em 6. deve ser reduzida, por inoficiosidade, e na positiva, qual a interpretação e sua relevância jurídica da cláusula da escritura de doação, da qual consta que: “caso a presente doação venha a ser objecto de redução, ao falecimento dos doadores, estipulam o montante de seiscentos euros mensais sujeito a actualização, segundo cálculo oficial de desvalorização da moeda, o vencimento mensal que deverá ser pago aos donatários, pelos serviços prestados a eles doadores, com efeitos a partir desta data”.
E, efectivamente, para se esclarecer se o montante apurado deverá ser relacionado como encargo/divida da herança, em ordem a apurar se a doação efectuada necessitará ser ou não reduzida e em que termos, teremos que começar por apurar a natureza da doação em questão.
Ora, da escritura de doação junta aos autos a fls. 31 a 34, e com relevância para a presente decisão, consta, designadamente o seguinte: “Os donatários ficam com o encargo de lhes prestarem assistência, com saúde ou doença, cuidar da higiene e limpeza da habitação e vestuário, e prover, se necessário à sua alimentação, vestuário, medicamentos e outras despesas inerentes. Que, na hipótese do filho deles doadores II, divorciado, com eles residente, por força de doença, vier a carecer dos mesmos cuidados, atrás referidos impõe, também, aos donatários esse encargo. Caso a presente doação venha a ser objecto de redução, ao falecimento dos doadores, estipulam o montante de seiscentos euros mensais sujeito a actualização, segundo cálculo oficial de desvalorização da moeda, o vencimento mensal que deverá ser pago aos donatários, pelos serviços prestados a eles doadores, com efeitos a partir desta data”.
Na sua acepção legal, a doação aparece definida como sendo o “contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente” (artº940º Código Civil), entendendo-se por cláusula modal “a determinação do doador que impõe ao donatário um ónus ou encargo”, sendo que, como se realça na decisão recorrida, enquanto “nos contratos onerosos, as prestações que incumbem às partes constituem as suas prestações correspectivas – são partes integrantes e obrigatórias do negócio realizado –, nos contratos gratuitos, os encargos (modo) impostos ao beneficiário, sendo meras cláusulas acessórias, funcionam como simples limitações ou restrições à prestação do disponente (liberalidade) e não como seu correspectivo (…). Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, C. Civil Anotado”, Vol. II, 4ª Ed., pags. 268/269.
Assim, e como salienta, Vaz Serra, a doação modal, que também designa de doação onerosa, reveste uma natureza de doação mista, em que, através do modo, o donatário é obrigado a uma prestação, tratando-se de uma cláusula acessória da doação: “O negócio é um só, a doação, cujo objecto é atribuído, não pura e simplesmente, mas sub modo”. Cfr. Vaz Serra; B.M.J., nº 91, pgs. 83 a 102.
E com a doação modal, como também aí se salienta, não se confunde a doação remuneratória pois que, enquanto nesta se visa compensar os serviços já prestados, na primeira o doador atribui o benefício patrimonial para que o donatário preste (futuramente) certos serviços.
Estas cláusulas modais, onde o beneficiário assume determinadas obrigações, são, assim, cláusulas acessórias típicas dos negócios gratuitos, divergindo o seu regime consoante seja estabelecida em testamento ou doação, sendo que o art. 963º do C. Civil prevê expressamente que as doações podem ser oneradas com encargos conquanto o donatário não seja obrigado a cumprir os encargos senão dentro dos limites do valor da coisa ou do direito doado.
Precisamente, a doação modal é uma modalidade de doação que se caracteriza pela imposição ao donatário de uma obrigação ou de um ónus, acessório da liberalidade e que, sem ter a natureza de contraprestação, limita o seu valor.
Como se conclui na decisão recorrida, nas doações modais - “oneradas com encargos” (artº 963º) - “tem a vontade das partes de ser dirigida sempre a um enriquecimento do receptor, embora diminuído na medida dos meios necessários para a execução do encargo; a intenção de doar tem de exceder a de obrigar o outro a uma prestação; a execução do encargo só pode ser fim acessório”. Cfr. Larenz, citado pelo Prof. Vaz Serra, no Bol. M.J., 75-271.
Ou seja, para existir doação com encargos necessário se revela que, apesar da realização do encargo, o destinatário ainda receba um benefício que represente um valor superior àquele que se obrigou a despender em consequência do encargo.
Em razão de tudo exposto, de linear clareza se nos afigura resultar que a doação assumiu as características de uma doação modal já que os donatários ficaram obrigados a tratar dos doadores na saúde e na doença, fornecendo-lhe, qualquer desses casos, os meios necessários para tal, tendo os donatários declarado aceitar a doação com os encargos referidos.
Assente este aspecto, passemos então à interpretação do negócio jurídico em referência nos autos.
Como é sabido, a interpretação – hermenêutica – é a actividade destinada a apurar do sentido e alcance das declarações negociais, estando as suas regras estabelecidas nos artigos 236º e seguintes do Código Civil, dispondo-se no nº 1, deste preceito, como regra de hermenêutica negocial, a doutrina da impressão do destinatário, segundo a qual a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele. Releva assim como sentido da declaração o que seria considerado por uma pessoa normalmente sagaz, diligente e experiente em face dos termos da declaração e face a todas as circunstâncias conhecidas por ela (ou que devia conhecer).
Nessa busca do sentido e alcance decisivo da declaração deve atender-se a todos os coeficientes ou elementos que um declaratário normalmente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário, teria tomado em conta, devendo ainda ser considerados os interesses em jogo, a finalidade prosseguida pelo declarante, as negociações prévias, as precedentes relações negociais entre as partes, os hábitos dos declarantes, sendo mesmo de considerar também os modos de conduta por que durante ou posteriormente se prestou observância e deu execução ao declarado. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 2ª edição, pags. 448 e 449, citando Manuel de Andrade e Rui de Alarcão.
No que se refere aos negócios formais, rege ainda o artigo 238º, nos termos do qual, “não há sentido possível que não tenha no texto do preceito um mínimo de correspondência, a não ser que se trate de matéria relativamente à qual se não exija a forma prescrita na lei (n.º 2)”, ou seja, pode prevalecer um sentido que não tenha aquele mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expresso, se esse sentido, corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma se não opuserem a essa validade. Cfr. Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil, Anotado, Volume I, 3ª edição, pg. 224.
Revertendo agora à análise da situação em apreço, importa considerar que, como bem realça a decisão recorrida, resultou demonstrada a seguinte materialidade: - Consta da escritura de doação que “ Caso a presente doação venha a ser objecto de redução, ao falecimento dos doadores, estipulam o montante de seiscentos euros mensais sujeito a actualização, segundo cálculo oficial de desvalorização da moeda, o vencimento mensal que deverá ser pago aos donatários, pelos serviços prestados a eles doadores, com efeitos a partir desta data”. - Os donatários cuidaram desde a outorga da escritura de doação em 17 de Dezembro de 2005, não só dos inventariados mas também do filho destes, pais dos interessados GG e HH, prestando-lhes toda a assistência necessária até à data da morte de cada um, sendo que o último a falecer foi o inventariado CC a 16 de Junho de 2010, o que dá um total de cerca de 54 meses o que multiplicado por 600,00€ dá um total de 32.400,00€.
Ora, como se refere na decisão recorrida, também se nos afigura que “o valor de 600,00€, que os inventariados bem como os donatários “acordaram” e reputaram como justo para pagar os serviços prestados pelos donatários, se revela adequado, atendendo desde logo ao valor do salário mínimo mensal em 2010 para um trabalhador que era de 475,00€ e que os serviços prestados não tinham hora marcada, sendo a disponibilidade dos donatários de 24 hora por dia”.
Assim, inequívoco se nos afigura que, como se afirma na decisão recorrida, havendo uma doação modal, e prevendo-se simultaneamente que, uma vez verificada determinada situação (de inoficiosidade da doação), se teria de efectuar o pagamento aos donatários da aludida quantia mensal pelos serviços prestados até à morte de cada um dos donatários, se está perante um contrato misto, ou seja, em que há uma verdadeira concorrência de diversos fins típicos e de muitas causas relativas a contratos diferentes.
E, sendo o bem imóvel doado o único bem que integra o património dos inventariados, que tem o valor de 67.985,24 €, havendo herdeiros legitimários, sendo por isso evidente, a inoficiosidade da doação efectuada, como óbvia resulta a necessidade de se proceder à sua redução, até ao preenchimento da legítima, e logo e por decorrência, verificada se encontra a condição que, nos termos contratualmente definidos, determina que tenham de ser pagos os serviços prestados pelos donatários.
Na verdade, como se refere na decisão recorrida, atendendo ao valor do único bem pertencente ao património dos inventariados e objecto de doação, e ao valor da legítima e da quota disponível, atendendo ao disposto no art. 2159º nº1 (quota disponível de 1/3 em relação à inventariada DD) e nº2 (quota disponível de ½ em relação ao inventariado CC) o valor total da quota disponível, efectuadas as diversas operações aritméticas seria de 33.992,61 €, ou seja, um valor quase consumido pelo valor dos encargos impostos pelos doadores - 32.400,00 €.
E, como também aí se menciona, compreende-se que os doadores tenham estipulado o pagamento deste valor no caso de inoficiosidade, pois que, se assim não fosse, e se entendesse a doação como pura contrapartida dos serviços prestados pelo donatário, então deixaria de existir uma verdadeira doação com encargos, uma vez que, para que a mesma se possa verificar, necessário se revela que, apesar do encargo, o donatário receba um benefício de valor superior ao que terá de despender para realizar o encargo.
Por isso, de todo evidente resulta que, entender a doação realizada como directa contrapartida ou pagamento dos serviços prestados, acarretaria, de facto, como inelutável consequência, não só o desvirtuamento da vontade inequivocamente expressa pelos doadores de doar o bem imóvel aos donatários e de lhes deixar a quota disponível, como, e, por outro lado, eliminaria a existência de uma verdadeira liberalidade ou doação, pois que, a contratualmente assim denominada, se se destinasse a pagar serviços, revestir-se-ia de uma natureza de contrapartida, de “necessidade” ou “dever”, a que não estaria uma subjacente nem concretizaria uma qualquer e verdadeira intenção de doar, cujo objecto foi atribuído sub modo, como de facto sucedeu.
E, em contrário do alegado pelos Recorrentes, não se nos afigura que a estipulação do encargo de prestação de cuidados de assistência aos doadores inventariados tenha de ser entendida como uma limitação à atribuição patrimonial de € 67.985,24 de que foram beneficiários ambos os donatários, pois que, e como afirmam, a considerar-se que a doação foi válida e eficaz, e que terá de ser pago o valor dos serviços pela cifra de € 32.400,00, estar-se-ia a desvirtuar o espírito de liberalidade associado à doação formalizada na escritura, concedendo-se-lhe um carácter de onerosidade à doação, em manifesta violação da lei.
É que, se por um lado, como a este propósito escrevem A. Varela e Pires de Lima, o artigo 963, do Código Civil, ao prescrever que as doações podem ser oneradas com encargos ”quer precisamente realçar o facto de a atribuição donativa não deixar de ser liberalidade pelo facto de o donatário assumir a obrigação de realizar certa prestação”, do que é legítimo inferir-se, por um lado, que o modo não é o correspectivo ou contraprestação da atribuição patrimonial proveniente do doador, Cfr. A. Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, Vol. II, 3ª ed., pg. 289. e, por outro, o entendimento de que a contraprestação global estipulada pelos serviços prestados pelos donatários deverá ser paga, é o que verdadeiramente assegura a subsistência do espírito de liberalidade inerente à doação, ao deixar bem claro que entre a doação e a prestação dos serviços não existe qualquer nexo de correspetividade.
Em respeito da intangibilidade das legítimas, as liberalidades podem ser revogadas por inoficiosidade - art. 2168º, ou, mais propriamente, podem ser reduzidas por inoficiosas, sejam quem forem os donatários, se envolverem prejuízo da legítima dos herdeiros legitimários do doador - art. 2169º - pela ordem estabelecida pelo art. 2173º, todos do C.Civil.
Mesmo que os bens doados sejam consumidos, alienados, onerados pelo donatário ou pereçam por sua culpa, atende-se ao valor que esses bens teriam na data da abertura da sucessão - art. 2109º, nº 2 do C.Civil.
Assim, incontroverso resulta que, enquanto a herança estiver impartilhada, os bens doados em vida do “De Cujus” são redutíveis a requerimento dos herdeiros legitimários ou dos seus sucessores, em tanto quanto for necessário para que a legítima seja preenchida - art. 2169º.
E no caso de conflito de interesses entre os donatários e os herdeiros legitimários prevalecem os destes últimos – que são, aliás, de interesse e ordem pública – pois sendo as doações, por sua natureza, contingentes ou precárias, os seus beneficiários sabem, ou devem saber, que os direitos por elas conferidos estão sujeitos à condição de não atingirem as legítimas dos herdeiros dos doadores. Cfr. Acórdão da Relação do Porto, de 14/12/89, B.M.J., Vol. 392, pg. 511.
Qualificando a lei como inoficiosas as liberalidades, entre vivos ou por morte, que atinjam a quota legítima dos herdeiros legitimários, havendo lugar à redução, a lei estabelece no artigo 2174º do Código Civil distinção entre bens doados divisíveis e indivisíveis.
Sendo indivisíveis, os bens doados ficam para o herdeiro legitimário se a redução exceder metade do seu valor, recebendo o donatário o correspondente à parte restante em dinheiro; caso a redução não exceda metade do valor dos bens doados, estes ficam para o donatário (nºs 1 e 2).
E foi, provavelmente, o pleno conhecimento e consciência desta incontornável realidade, ou seja, da possibilidade de a doação do valor integral do prédio poder ofender a legítima, que terá levado os doadores a estipularem o pagamento em espécie dos serviços prestados pelos donatários de modo a assegurar que os mesmos receberiam uma contrapartida ou compensação adequada e justa pela prestação desses serviços, o que se lhes afigurou poder concretizar, ou por efeito da doação integral do valor do bem, que, a operar-se, concretizaria a intenção liberatória e originaria um enriquecimento dos donatários, ou, na eventualidade de a mesma vir a ter se ser reduzida por inoficiosidade, para preenchimento da legitima, e, portanto, de os donatários não poderem vir a ficar com a totalidade do valor desse bem, e apenas nessa situação, através do pagamento de uma remuneração mensal de 600,00 €, que de algum modo pode ser considerada, embora não em termos de rigorosa equivalência, como compensatória dessa redução, ou dito de outro modo, como forma de manter o carácter liberatório da doação efectuada, fazendo com que a ela, mesmo nessa situação (de redução), continue a redundar num beneficio para os donatários, o que apenas assim será se o valor do bem doado exceder de modo manifesto o valor dos encargos.
Como supra se referiu, alegam ainda os Recorrentes que, visando o mecanismo previsto no artigo 2168.º do Código Civil precisamente comprimir os valores das liberalidades feitas em vida no quantum de valor necessário para salvaguardar a integralidade das quotas indisponíveis, o Tribunal a quo, em face da inexistência de outros bens para satisfazer a hipotética dívida dos reclamantes herdeiros testamentários mas não legitimários, ao determinar o pagamento de dívidas à custa do valor o imóvel imputado ao activo da herança, operação esta que fere a intangibilidade da legítima dos ora recorrentes, violou os artigos 2156.º, 2159.º e 2168.º do Código Civil.
Ora de harmonia com o disposto no artigo 2162, nº 1, do C. Civil, “Para o cálculo da legítima, deve atender-se ao valor dos bens existentes no património do autor da sucessão à data da sua morte, ao valor dos bens doados, às despesas sujeitas a colação e às dívidas da herança”.
Assim, em conformidade com o que se dispões em tal preceito, o cálculo da legítima, e logo e consequentemente, da quota disponível, é feito somando-se o valor de todos os bens que o autor da herança tiver deixado, feita a dedução das dívidas da herança e juntando-se à soma restante o valor dos que o falecido tenha doado, sendo a quota disponível calculada em relação à soma total.
Destarte, como evidente resulta que o Tribunal a quo, na inexistência de outros bens, ao determinar o pagamento de dívidas à custa do valor do imóvel imputado ao activo da herança, não violou os aludidos preceito, uma vez que, só após a imputação das dívidas da herança no respectivo património, nos termos acabados de referir, será possível proceder à determinação do valor da quota disponível, e, consequentemente, da própria legítima.
Improcede, assim, e na íntegra, a presente apelação, com a consequente manutenção da decisão recorrida.
Sumário - art. 663º, nº 7 do C.P.C.. I- A doação modal é uma modalidade de doação que se caracteriza pela imposição ao donatário de uma obrigação ou de um ónus, acessório da liberalidade e que, sem ter a natureza de contraprestação, limita o seu valor. II- Nesta doação a vontade das partes é sempre dirigida a um enriquecimento do receptor, embora diminuído na medida dos meios necessários para a execução do encargo, ou seja, a intenção de doar tem de exceder a de obrigar o outro a uma prestação, sendo, assim, o encargo assumido, um fim acessório.
IV- DECISÃO. Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pelos Apelantes.
Guimarães, 24/09/2015. Jorge Teixeira Jorge Seabra José Amaral |