Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | RICARDO SILVA | ||
Descritores: | ABERTURA DE INSTRUÇÃO FACTOS QUALIFICAÇÃO REJEIÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 05/04/2005 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
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Sumário: | I - O elemento subjectivo do tipo legal de crime infere-se, por presunções naturais, dos factos materiais correspondentes à acção objectivamente considerada, pelo que não é de rejeitar um requerimento para abertura de instrução que não tenha expressamente indicado os elementos subjectivos. II - Porém, o mesmo não sucede se tal requerimento é omisso relativamente à qualificação jurídica dos factos imputados ao agente, o que o faz incorrer em nulidade nos termos das disposições conjugadas dos artigos 287.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3, al. c, do C.P.P. e, por isso, devendo ser indeferido. III - No caso de a acusação do M.º P.º ser omissa quanto à qualificação jurídica dos factos também ela é rejeitada, por manifestamente infundada, nos termos do disposto no art. 311.º, n.os 2, al. a) e 3, al. c), do C. P. P. e mal se compreenderia, dada a subalternidade da posição do assistente face ao M.º P.º, que o requerimento deste gozasse de um tratamento menos exigente por parte do Juiz de instrução – mesmo que, lembremo-lo, legalmente cominado de nulidade – do que a acusação pública por parte do juiz do julgamento. IV - O indeferimento deve adoptar a forma de rejeição, nos termos do disposto no art. 287.º, n.º 3, do C. P. P., pois se está perante uma situação de impossibilidade legal da instrução, entendemos que este último conceito deve abranger não só os casos em que a lei diz que não há lugar à realização de instrução como aqueles, como os dos autos, em que a realização da mesma se mostre inviável, por falta de requisitos legais. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães. I 1. Teresa …, assistente nos autos e neles mais bem identificada, notificada do despacho de arquivamento do inquérito n.º 74/03.2GBFLG, do M.º P.º no Tribunal Judicial de Felgueiras, neste proferido em 2003/09/29, requereu, em 2003/10/20, a abertura de instrução. 2. No correspondente requerimento imputava aos arguidos M… e A…, igualmente identificados nos autos, em síntese, os seguintes factos: « - No dia 6 de Fevereiro de 2003, pelas 15 horas, o arguido M…, sem autorização da queixosa entrou num terreno anexo à residência de sua propriedade. « - Agarrou-a violentamente com a mão pelo peito direito e tentou deitar-lhe a mão nas partes baixas. « - A ofendida gritou por socorro tendo sido acudida por seu marido, enquanto o arguido se punha em fuga à sua aproximação. « - Por via dessa agressão a ofendida teve de receber tratamento no hospital de Felgueiras. « (...) « - No dia 13 de Fevereiro de 2003, cerca das 16,30 horas, a ofendida voltou a ser agredida pelo arguido que, em conjunto com A… lhe arremessaram várias pedras e paus. « - Sendo certo que muitas dessas pedras e paus atingiram a ofendida causando-lhe diversos ferimentos e hematomas, nomeadamente, nas costas, nos braços, nas pernas, no peito e na cabeça. « - Tendo sido tratada no hospital de Felgueiras, regressou a sua casa. « - No dia seguinte, a ofendida acordou com varias manchas negras espalhadas pelo corpo. « - Foi (...) aconselhada a dirigir-se às Urgências do Hospital da Misericórdia de Felgueiras. « - Onde foi observada por uma médica de serviço. « - Dali, foi enviada de ambulância para o Hospital Padre Américo-Vale Sousa, SA, Penafiel. « - Depois de ter sido ali assistida, foi enviada também de ambulância para o Hospital de S. João no Porto. « - Até à presente data, ainda continua em tratamento em França.» Não se esgotando nisto, o requerimento em referência traduz, no mais, a discordância da assistente quanto à posição assumida pelo M.º P.º , com indicação do que, no seu entender, são as provas que indiciam os factos participados e as omissões de diligências probatórias de que padece o inquérito. 3. Por despacho de 2004/01/09, o requerimento de abertura de instrução foi rejeitado. É o seguinte o teor do despacho de rejeição referido: « Inconformado com o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Pública, veio a assistente Teresa de Jesus Rodrigues Coelho requerer a abertura de instrução a fls. 129 e seguintes. « Cumpre proferir despacho liminar. « Estabelece o art.º 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal que "O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmssibilidade legal da instrução," « O tribunal é o competente. « A requerente tem legitimidade - cfr. o art.º 287.º, n.º 1, al.ª b), do Código de Processo Penal e fls. 64. « O requerimento apresentado é tempestivo - cfr. o art.º 113.º, n.º 3 e 9, do Código de Processo Penal e fls. 121, 122 e 126. « No tocante à questão de inadmissibilidade legal: « Compulsada que é a matéria de facto que a assistente imputa aos arguidos M… e A…, afigura-se-nos que o requerimento apresentado não é admissível. « Efectivamente, a assistente não descreve factos susceptíveis de integrar qualquer ilícito criminal dos arguidos, patente, de resto, na circunstância de a mesma afirmar que os mesmos deveriam ter sido acusados, mas não especificar o crime ou crimes pelos quais pretende a pronúncia destes. « Na verdade, a assistente limita-se a argumentar contra o arquivamento e a alegar que os arguidos teriam agredido e mesmo, nada especificando quanto ao elemento subjectivo de qualquer que fosse o tipo ou tipos legais pelos quais pretenderia a pronúncia dos arguidos. « Especificamente, a arguida não imputa qualquer dolo aos arguidos, já que não alega que os mesmos tenham agido de forma livre, voluntária e consciente, omitindo, pois, por completo qualquer imputação de factos integrantes do elemento cognitivo ou intelectual e do elemento volitivo ou emocional do dolo. « De igual forma não alega que os erguidos tenham violado qualquer dever de cuidado, omitindo uma conduto que lhes era exigível e possível, ou seja, não alega qualquer negligência por porte dos arguidos, nos alegadas agressões. « Falta, pois, a alegação de qualquer factualidade integrante do elemento subjectivo de qualquer tipo legal, qualquer que fosse aquele pelo qual a assistente requereu a abertura de instrução e pronúncia dos arguidos. « Ora, nos termos do disposto no art.º 309.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos no requerimento de abertura de instrução, prevendo o art.º 303.º do mesmo código as consequências da alteração não substancial e substancial dos factos descritos no requerimento de abertura de instrução constatado no decurso desta. « A este requerimento aplica-se, nos termos preceituados pelo n.º 2 do art.º 287º, do Código de Processo Penal, o previsto no n.º 3, al.as b) e c) do mesmo normativo. « Impõe-se, assim, ao assistente requerente da abertura de instrução (obviamente em caso de arquivamento) um especial cuidado no selecção dos factos pelos quais pretende ver os arguidos pronunciados, especificamente, tendo em vista a verificação dos elementos objectivos e subjectivos do tipo legal cujo prática imputa aos mesmos. « Em síntese: à assistente impunha-se proceder a uma imputação de factos - qual verdadeira acusação - aos arguidos, o que não fez, limitando-se a proceder a quais alegações de recurso, não podendo o tribunal substituir-se à assistente requerente de abertura de instrução nessa tarefa, sob pena de nulidade da decisão instrutória que pronuncie os arguidos, conforme supra exposto - cfr. a este propósito o Ac. RE de 14-04-1995, CJ, XX, 11, 280. « Face a estas deficiências, impõe-se a rejeição do requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade do mesmo (falta de objecto criminal imputado aos arguidos), não havendo lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento, conforme, de resto, jurisprudência quer do Tribunal Constitucional (cfr. o Ac. n.º 27/2001 - processo n.º 189/2000, D.R. - II Série de 23-03-2001, págs. 5265 e seguintes), quer das Relações - cfr. os Acs. RL de 08-10-2002 e 27-05-2003, ambos in www.dgsi.pt/jtrl. « Efectivamente, o convite ao aperfeiçoamento encontra-se previsto para o processo civil, processo de partes e interesses privados, enquanto no processo criminal nos movemos no domínio do interesse público, alicerçado numa estrutura acusatória (cfr. o n.º 5 do art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa), a qual resultaria totalmente subvertida caso se admitisse esse convite ao aperfeiçoamento, ao que acresceria uma dilação (e, logo, também aqui, subversão) do prazo para requerer a abertura de instrução. « Defendendo a posição inversa à ora por nós propugnado, vide Souto Moura, in Jornadas de Direito Processual Penal, págs. 120 e seguintes. « Face à falta de alegação de factos que integrem os tipos legais que alega, importa, pois, concluir pela inadmissibilidade legal da instrução, por falta de objecto (suficiente) de mesma. « Em conformidade com o exposto e ao obrigo dos normas legais supra citadas, o tribunal decide: « Rejeitar o requerimento de abertura de instrução formulado pela assistente Teresa de Jesus Rodrigues Coelho.» 4. Inconformada com este despacho, a assistente Teresa veio dele interpor recurso. Rematou a motivação do seu recurso com a formulação das seguintes conclusões: « 1.ª - O douto despacho recorrido viola o preceituado no artigo 287.° do Código de Processo penal uma vez que faz uma incorrecta interpretação do preceituado no dito artigo. « 2.ª - Em vez de entender que se verifica inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do artigo 287.º, n.° 2, deveria declarar aberta a mesma. « Ou, caso assim se não entenda, « 3.ª - Deveria convidar a assistente a completá-la ou corrigi-la, uma vez que as normas de Processo Civil se aplicam ao processo criminal no caso de lacunas e desde que não contrariem as finalidades do mesmo (cfr. artigo 4.° do Código de Processo Penal). « 4.ª - Este convite em nada prejudica as garantias de defesa do arguido, que tem, durante a fase instrutória, todas essas garantias.» 5. Admitido o recurso, o Ministério Público apresentou resposta no sentido de lhe ser negado provimento. 6. Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto foi de parecer de que o recurso não merece provimento. 7. Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do C. P. P., o recorrente não respondeu. 8. Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo decidir. II Como se refere no douto despacho recorrido e não sofre contestação o requerimento de abertura de instrução não contém: - Os factos relativos ao elemento subjectivo do tipo legal de crime; estando em causa uma conduta dolosa, os factos relativos ao dolo e à consciência de ilicitude. - A qualificação jurídico-penal dos factos relatados, ou seja a subsunção destes à previsão de uma norma penal que estabeleça que a conduta que os mesmos conformam integra um tipo legal de crime, a que corresponde a aplicação de uma pena.. Na motivação do seu recurso, a recorrente acentua que o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a qualquer formalidade, que o Juiz de instrução não deve limitar-se ao material probatório da acusação e da defesa, cumprindo-lhe instruir autonomamente o facto e que, uma vez que, no caso de o arguido não fazer uma delimitação factual, mas ser manifesto o seu propósito de contrariar os factos da acusação, deve o juiz convidá-lo a completar o requerimento, deve dar-se igual oportunidade ao assistente, dada a sua função de fiscalização da legalidade da actuação do M.º P.º, que ficará prejudicada, em caso de se lhe a não dar, com base num mero formalismo, que nem é exigido pelo art.º 287.º, do C. P. P. Ora, é certo que a lei dispõe – art.º 287.º, n.º 2, do C. P. P. – que o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas ao mesmo tempo – mesmo número e artigo – exige que o mesmo contenha, em súmula, as razões de facto e de direito, de discordância relativamente à acusação ou à não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no art.º 283.º, n.º 3, als. b) e c). Dispondo por seu turno, o referido artigo, número e alíneas: « Artigo 283.º « (Acusação pelo Ministério Público) « (,,,) « 3. A acusação contém sob pena de nulidade: « (...) « b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve, e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada. « c) A indicação das disposições legais aplicáveis. « (...)» Temos, assim, que se a lei não é exigente quanto à forma, não deixa de o ser quanto ao conteúdo, cominando com sanção de nulidade as faltas de tal natureza que se reconduzam à previsão às alíneas do artigo acabado de citar. Pelo que as referência a “formalidades especiais” não pode deixar de entender-se como dirigida às questões de pura forma do requerimento, como v. g. o uso de fórmulas rituais ou a dedução dos factos por artigos. Ora, o que falta no requerimento de instrução da assistente não pode classificar-se como “um mero formalismo”, a não ser na medida em que se entenda que todo o direito é convencional e todas as decisões jurídicas procedem do domínio de uma realidade mediatizada pela intervenção normativa. Temos, assim, que o requerimento de instrução é omisso quanto a menções cuja falta a lei comina com a sanção de nulidade. Determinará esta falta a impossibilidade legal de abertura da instrução ou poderá ser suprida, durante esta, pelo Juiz de instrução, devendo abrir-se esta ? Parece-nos que a resposta não poderá ser uniforme, dependendo do tipo e da gravidade das deficiências apresentadas pelo requerimento para instrução: Assim, v.g., se não há nesse requerimento qualquer concretização dos factos e dos seus autores, pretendendo-se o prosseguimento, em instrução, de um inquérito inconcludente contra incertos, afigura-se-nos que a instrução é inadmissível, por falta de objecto (() Cfr. José Souto Moura, «Inquérito e Instrução», Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Livraria Almedina, Coimbra 1988, a págs. 120 a 122; e o Acórdão da Relação do Porto de 2002/04/24, proferido no processo 1007/01, 8.ª secção, com o seguinte sumário: «Deve ser indeferido por inadmissibilidade legal (n.º 3, do art.º 287.º do Código de Processo Penal) o requerimento de abertura de instrução em que o requerente, assistente, não identifica o arguido, omite a indicação dos factos e não indica qualquer disposição legal, pelo que tal requerimento carece de objecto».). Mas se, como no caso dos autos, estamos perante omissões que não excluem a percepção de um sentido nos conteúdos vertidos no requerimento, exprimindo estes uma realidade comummente apreendida como delituosa ? Poderá o Juiz de instrução a coberto da iniciativa oficiosa que a lei lhe reserva, suprir tais deficiências ? Dispõe o art.º 288.º, n.º 4 do Código de Processo Penal que «O juiz investiga autonomamente o caso submetido em instrução tendo-se em conta a indicação, constante do requerimento de abertura de instrução, a que se refere o n.º 2 ao artigo anterior». Assim, o Juiz está relativamente vinculado ao requerimento de instrução, mas não o está absolutamente. Tem autonomia para produzir prova por iniciativa oficiosa, como decorre do art. 288.º, n. 4, citado e, também do disposto no art.º 291.º, n.º 1, do C. P. P., na parte que dispõe que os actos de instrução se efectuam pela ordem que o juiz reputar mais conveniente, praticando ou ordenando o juiz oficiosamente aqueles que considerar úteis, sem prejuízo da possibilidade de reclamação. Quando a instrução leve a resultados diversos dos enunciados no requerimento de instrução duas soluções avultam ante o juiz de instrução, ambas compreendidas na previsão dos n.os 1 e 3 do artigo 303.º, do CPP. que, nessa parte, dispõe: « Artigo 303.° « (Alteração dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução) « 1. Se dos actos de instrução ou do debate instrutório resultar altera-ção dos factos descritos na acusação do Ministério Público ou do assis-tente, ou no requerimento para abertura da instrução, o juiz, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao defensor, interroga o arguido sobre ela sempre que possível e concede-lhe, a requerimento, um prazo para preparação da defesa não superior a oito dias, com o consequente adiamento do debate, se necessário. « (...) « 3. Se dos actos de instrução ou do debate instrutório resultar fun-dada suspeita da verificação de factos que representem uma altera-ção substancial da acusação ou do requerimento para abertura da instrução, o Ministério Público abre obrigatoriamente inquérito quanto a eles.» Ou seja, se dos actos de instrução resultar alteração não substancial dos factos, proceder-se-á nos termos do n.º 1 do artigo citado e se resultar alteração substancial, nos termos do n.º 3, do mesmo artigo. Por isso, entendemos não ser aplicável à hipótese de o requerimento de instrução conter factos naturalísticos apenas suficientes para apontar no sentido da possível prática de um crime por pessoa determinada – mas insuficientes para definir o facto normativo correspondente – a conclusão de que se impõe a rejeição do requerimento de abertura de instrução em que faltem factos, por, visto o disposto no art.º 309.º do C. P., o Tribunal não poder pronunciar por “outros factos” – que seriam, necessariamente, substancialmente diferentes – sob pena de nulidade (() Que é, no essencial, a posição adoptada no Acórdão da Relação do Porto de 23/05/2001, proferido no processo n.º 362/01, da 1.ª secção, citado no douto parecer do Ex.mo Procurador Geral Adjunto,). Tal conclusão implica as permissas: 1- de que aquisição de novos factos implicaria uma alteração substancial dos anteriormente participados; 2- De que a instrução desemboca necessariamente numa decisão instrutória de pronúncia ou de não pronúncia. Estas permissas, como vimos, não são verdadeiras. No caso concreto, a assistente acusa, em termos breves, os arguidos de a terem agredido causando-lhe lesões físicas. Tudo, no modo como as acções estão descritas aponta no sentido de ela se referir a acções voluntárias e nada faz presumir que os arguidos – a terem praticado os factos – não tenham tido consciência da ilicitude dos mesmos, porque se trata de factos cuja ilicitude é de imediata compreensão para um homem médio, por os conceitos envolvidos serem pertença comum, desde sempre. Ora, como se referiu no Acórdão da Relação do Porto de 83/02/23, in BMJ 324, pág. 620 (() Cfr. Manuel de Oliveira Leal-Henriques/Manuel José Carrilho de Simas Santos, Código Penal Anotado, 3.ª Edição, 1.º volume, Parte Geral, Editora Rei dos Livros, 2002, pág. 218 ): « Dado que o dolo pertence à vida interior de cada um e é, portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode, de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência;» Ou., como se afirmou no Ac. do S. T. J. de 97/09/25, processo n.º 479/97 (() Ibidem, pég. 223.): « Os elementos subjectivos do crime pertencem à vida íntima e interior do agente. Contudo, é possível captar a sua existência através e mediante factualidade material que os possa inferir ou permita divisar, ainda que por meio de presunções ligadas ao principio da normalidade ou às regras da experiência comum.» Assim, o elemento subjectivo do tipo legal de crime infere-se, por presunções naturais, dos factos materiais correspondentes à acção objectivamente considerada. Entendemos, por isso, quando relacionamos os factos relativos ao elemento objectivo da infracção – que, estes, constam do requerimento para abertura da instrução – com os factos referentes ao elemento subjectivo – estes, omissos no mesmo requerimento – que nos movemos no âmbito do mesmo acontecimento histórico, do mesmo “pedaço de vida”, cultural e jurídica de um sujeito (() Cfr. Frederico Isasca, Alteração Substancial Dos Factos E Sua Relevância No Processo Penal Português, Livraria Almedina, Coimbra 1992, pág. 93.). Por isso, a ser de proceder ao aditamento, no termo da instrução, dos factos relativos à liberdade de actuação, ao dolo e à consciência da ilicitude, com vista à sua inclusão na pronúncia, situarmo-nos-íamos no âmbito de uma alteração não substancial dos factos integrantes do “tema” definido do requerimento para abertura de instrução, legalmente admitida nos termos já referidos supra. Pelo que não é de rejeitar o requerimento em causa, no caso referido. Porém, no caso que nos ocupa, o requerimento para abertura da instrução é, ainda, omisso relativamente à qualificação jurídica dos factos imputados ao agente. O que o faz incorrer em nulidade nos termos das disposições conjugadas dos artigos 287.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3, al. c, do C.P.P. Não dispõe a lei que a nulidade seja de conhecimento oficioso e, portanto, se a sequência dos actos do processo fosse de outra natureza, tudo se resumiria a esperar a arguição ou não da nulidade pelos intervenientes processuais com legitimidade para tal, para conforme o caso, daí retirar a respectiva consequência. Porém, o primeiro acto subsequente à interposição do requerimento é o da sua apreciação, com vista à abertura ou não da instrução. Não sendo a nulidade de conhecimento oficioso não tem o Juiz de declará-la. Mas, no exame a que procederá, terá de ter me contra a sua existência, com vista a, em função das consequência que lhe estejam ligadas, viabilizar ou não a instrução. - Se o Juiz nada diz e abre a instrução, uma de duas: ou o arguido vem a arguir a nulidade ou não. Se o faz, há que conhecer dela e declarar o acto nulo, o que não pode deixar de levar ao arquivamento dos autos, dada a improrrogabilidade do prazo para deduzir o requerimento para abertura de instrução, que se configura como uma das manifestações do direito de defesa do arguido, e a consequente impossibilidade de repetição do acto anulado. Isto em conformidade com o disposto nos artigos 287.º, n.º 1, e 122.º, n.º 2, ambos do C. P. P. Se o não faz a instrução aberta nestas condições apresenta-se como um processo objecto jurídico indefinido, Contra a vontade da lei expressa no art.º 283.º, n.º 3, al. c), do C. P. P. Isto, sendo certo que a lei não dá ao Juiz, nesta fase do processo nenhuma capacidade de intervenção na qualificação jurídica dos factos, ao contrário do que acontece na fase de julgamento, mediante o disposto no art. 358.º, n.º 3, do C. P. P. Será caso de aplicação analógica desta norma à fase da instrução ? Pensamos que não. A lei configura a intervenção do assistente, principalmente, como a de um colaborador do M.º P.º, conforme o disposto no art.º 69.º, n.º 1, do C. P. P. Visando o requerimento para abertura de instrução substituir-se à acusação do M.º P.º, ainda que sujeito à comprovação judicial através da instrução. Não havendo dúvidas quanto à função de estabilização da vinculação temática do tribunal, que exerce a qualificação jurídica dos factos imputados ao agente e, como tal, à essencialidade de tal qualificação estar definida na abertura da instrução, como baliza material do interesse e direito do arguido a organizar a sua defesa. Ora, no caso de a acusação do M.º P.º ser omissa quanto à qualificação jurídica dos factos é a mesma rejeitada, por manifestamente infundada, nos termos do disposto no art. 311.º, n.os 2, al. a) e 3, al. c), do C. P. P. Mal se compreenderia, dada a subalternidade da posição do assistente face ao M.º P.º, que o requerimento deste gozasse de um tratamento menos exigente por parte do Juiz de instrução – mesmo que, lembremo-lo, legalmente cominado de nulidade – do que a acusação pública por parte do juiz do julgamento. Não podemos esquecer-nos, ainda, de que o requerimento para abertura de instrução é uma tomada de posição contrária à do M.º P.º. Sendo o M.º P.º, como é, o titular da acção penal e tendo tomado posição nos autos no sentido da não dedução de acusação, não se compreenderia que a lei não rodeasse a faculdade que confere ao assistente de ir contra esta tomada de posição de exigências de grande rigor na sua formulação, sob pena de, não o fazendo, fragilizar a posição institucional do M.º P.º, deixando-o ao sabor de todo o tipo de desagrados e discordâncias. Realce-se, por fim, que o assistente, para o ser, tem de estar devidamente representado por advogado e, por isso, tais exigências de rigor jurídico são não só pertinentes como ajustadas ao meio técnico de que o assistente dispõe para se manifestar. Não temos, face ao exposto, dúvidas de que um requerimento de instrução de que não consta a qualificação jurídica dos factos é inepto para desencadear uma instrução e, por isso, deve ser indeferido. Tal indeferimento deve adoptar a forma de rejeição, nos termos do disposto no art. 287.º, n.º 3, do C. P. P. Não nos é indiferente a natureza taxativa das causas de rejeição: extemporaneidade do requerimento, incompetência do juiz ou impossibilidade legal da instrução. Mas entendemos que este último conceito deve abranger não só os casos em que a lei diz que não há lugar à realização de instrução como aqueles, como os dos autos, em que a realização da mesma se mostre inviável, por falta de requisitos legais. Uma última ponderação, dirigida à pretensão do requerente a ser-lhe dada a oportunidade de corrigir o requerimento de instrução, por forma a adequá-lo às exigências legais: Apoiando-nos no douto parecer do E,.mo Procurador–Geral Adjunto, dois argumentos avultam no sentido contrário ao pretendido pela assistente: – O de que o juiz não deve abandonar a equidistância em que se traduz o princípio da imparcialidade do tribunal, movimento que o convite dirigido ao assistente para correcção do requerimento para abertura da instrução implicaria (() Posição que promana do Acórdão da Relação de Évora proferido no processo n.º 2289/2000, assim citado no referido douto parecer.); – E o de que, como passamos a citar (() Cfr. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 27/2001, de 30/01/2001, in D.R., II, de 23/03/2001. ): « (...) importa reconhecer que a dimensão garantística do processo penal face à sua repercussão nos direitos e liberdades fundamentais do arguido, obsta, por um lado, a um entendimento de tal processo como um verdadeiro processo de partes e, por outro, não proporciona uma perspectiva de total simetria entre os direitos do arguido e do assistente no que se refere ao modos de concretização das garantias de acesso à justiça. « Ora, nos casos de não pronúncia de arguido e em que o Ministério Público se decidiu pelo arquivamento do inquérito, o direito de requerer a instrução que é reconhecido ao assistente — e que deve revestir a forma de uma verdadeira acusação — não pode deixar de contender com o direito de defesa do eventual acusado ou arguido no caso daquele não respeitar o prazo fixado na lei para a sua apresentação. « O estabelecimento de um prazo peremptório para requerer a abertura da instrução — prazo esse que, uma vez decorrido impossibilita a prática do acto — insere-se ainda no âmbito da efectivação plena do direito de defesa do arguido. E a possibilidade de, após a apresentação de um requerimento de abertura de instrução, que veio a ser julgado nulo, se poder ainda repetir, de novo, um tal requerimento para além do prazo legalmente fixado, é sem dúvida, violador das garantias de defesa do eventual arguido ou acusado. Com efeito, a admissibilidade de renovação do requerimento não permitiria que transitasse o despacho de não pronúncia, assim desaparecendo a garantia do arguido de que, por aqueles factos não seria de novo acusado. Ora, se o primeiro argumento é, ainda, discutível, atentos os vários lugares em que a lei reserva ao juiz a iniciativa de acções que – ainda que materialmente destinadas à busca da verdade material e, assim, em última análise, observantes do princípio da imparcialidade –, podem redundar numa vantagem imediata para um ou outro dos intervenientes processuais, o segundo afigura-se-nos de uma evidência indiscutível. Acresce que, como também já foi afirmado (() Cfr. o Acórdão da Realção de de 2003/97/10, proferido no processo n.º 890/03, 2.º Juízo.), « Em lado algum do C. P. Penal vêm reguladas as figuras da notificação para correcção e do convite ao aperfeiçoamento e nem elas resultam de lei subsidiária que seja aplicável às especificidades do processo penal, já que as regras do processo civil (aplicáveis ao pedido cível) têm razões de ser que não se conciliam com o processo penal « Se o legislador entendesse que em algumas situações se justificava as consagraria, em obediência a doutrina própria ou por ponderação de alguns princípios constitucionais, nomeadamente o da igualdade das partes.» Por todo o exposto não há que censurar a decisão recorrida, que rejeitou o requerimento para instrução da recorrente, devendo, em consequência, o recurso improceder. III Termos em que: Negamos provimento ao recurso confirmando a decisão recorrida. Condenamos a recorrente em 2 UC de taxa de Justiça. Guimarães, 04/05/05 |