Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
444/11.2TBCBC.G1
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
RESPOSTAS AOS QUESITOS
EXCESSO
DECISÃO SURPRESA
CONFISSÃO
RETRATAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/22/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1. Há excesso de resposta do tribunal em matéria de facto quando o autor alega que vendeu um trator ao réu e se dá como provado que (no âmbito do mesmo contrato) o autor vendeu o trator a um terceiro determinado.
2. Não é uma decisão surpresa a que absolve o réu do pedido de pagamento de parte do preço de um trator, por faltar a prova de que foi o comprador, quando, tendo confessado na contestação que o comprou, depois se retratou validamente dessa confissão, ao abrigo do art.º 567º, nº 2, do Código de Processo Civil, com base em requerimento sobre o qual foi concedida à A. a possibilidade de se pronunciar e disse “nada ter a opor e prescinde de prazo”.
3. Conhecer de facto novo não se confunde com conhecer de questão nova.
4. O dever de pagar o preço de um bem comprado emerge da qualidade de comprador; não da qualidade de proprietário.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I.
T.., LDA.”, com sede no Lugar do.., Braga, instaurou ação declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário, contra A.., residente na.., Cabeceiras de Basto, alegando, no essencial, que, no exercício da sua atividade comercial, lhe vendeu um trator agrícola pelo preço de € 21.812,28, de que o R. apenas pagou € 16.495,28, estando em dívida o remanescente (€ 5.317,00) e que o mesmo, interpelado, se tem recusado a pagar. Aquando da última interpelação, o R. comunicou-lhe “que não lhe devia qualquer montante, pois o preço da aquisição já se encontrava pago”.
Àquele valor de capital acrescem os respetivos juros de mora, à taxa legal comercial variável.
E termina assim o seu articulado:
“Nestes termos e nos que doutamente são supridos por V. Ex.a, deve a presente acção ser julgada procedente, por provada, e por via dela:
- Ser o Réu condenado a pagar à Autora o montante de € 5.317,00 (cinco mil trezentos e dezassete euros), correspondente ao remanescente do preço da aquisição do tractor, acrescido dos respectivos juros legais de mora vencidos e vincendos, até efectivo e integral pagamento, computando-se os mesmos actualmente em € 4.771,41 € (quatro mil setecentos e setenta e um euros e quarenta e um cêntimos), perfazendo o total de € 10.088,41 (dez mil oitenta e oito euros e quarenta e um cêntimos).” (sic)
Citado, o R. contestou a ação, impugnando parcialmente a matéria alegada na petição inicial. Ali referiu que «na verdade, entre a A. e o R. foi celebrado um contrato, em Setembro de 2002, através do qual aquela vendeu a este o tractor “John Deer”, modelo 5319», em cujo pagamento recebeu um trator seminovo no valor atribuído de € 15.967,00 e cinco cheques de € 2.000,00 cada um, tendo efetuado o pagamento dos três primeiros, no montante de € 6.000,00 e, bem assim, embora com atraso, o pagamento dos dois últimos, no valor de € 4.000,00, em numerário e em prestações.
Concluiu que nada deve e defendeu que a ação fosse julgada improcedente.
A A. respondeu à contestação, reafirmando a alegada falta de pagamento. Fez notar que dos cinco cheques, no valor individual de € 2.000,00, nenhum teve boa cobrança, pelo que dos alegados € 10.000,00, apenas foi paga a quantia de € 4.683,00, estando em falta o valor pedido a título de capital.
Concluiu como na petição inicial, opondo-se à procedência da exceção do pagamento.
O tribunal proferiu despacho saneador tabelar e dispensou a audiência preliminar e a elaboração de base instrutória.
Instruída a causa, decorria a fase da audiência de julgamento, e tendo o R. prestado já depoimento de parte, veio o mesmo apresentar o requerimento de fl.s 124, com o seguinte teor:
«1- Aquando da citação dos presentes autos, entreguei toda a documentação ao meu genro, J..;
2- O meu genro foi quem tratou de tudo, tendo apenas assinado a procuração favor da Sociedade de Advogados;
3- O teor da contestação é da autoria ao meu genro, J...
4- Confrontado com o seu teor, constato que não é correcto, quanto à minha pessoa, o alegado sob os artigos 5º, 6º, 7º, 8º, 9º,10º,11º,12º e 13º daquela;
5- Pelo que pretendo que tal matéria seja retirada, uma vez que a mesma não foi aceite especificamente pela Autora, antes pelo contrário, como se retira do artigo 1º da resposta;
6- Na verdade, como resulta do meu depoimento de parte, corroborado pelo depoimento de parte do gerente da R., não celebrei qualquer negócio com a Ré, não lhe adquiri qualquer tractor e, por isso, nunca efectuei qualquer pagamento por conta do preço de tal tractor;
7- Pois, como foi afirmado pelo gerente da Ré [1] em depoimento de parte, quem celebrou o negócio melhor retratado nos autos foi o J..;». (sic)
O tribunal reservou para a resposta à matéria de facto o conhecimento do requerimento.
Encerrada a discussão da causa, o tribunal apresentou respostas, fundamentadas, em matéria de facto, que não foram objeto de reclamação.
Foi depois proferida sentença que culminou com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, decide-se julgar a presente acção totalmente improcedente e, em consequência, absolve-se o réu A.. do pedido.” (sic)

Inconformada, a A. apelou da sentença, com as seguintes CONCLUSÕES:
«1.ª O Tribunal da 1.ª Instância decidiu julgar a acção totalmente improcedente, absolvendo o réu do pedido, entendendo que o negócio jurídico foi celebrado com o Sr. J.., e não com o apelado.
2.ª Esta decisão é uma decisão-surpresa.
3.ª Por isso, a decisão caiu, nessa partem, no âmbito da cláusula geral sobre as nulidades processuais secundárias constantes do n.º 1 do artigo 201.º do C.P.C., nulidade aqui expressamente invocada com as consequências processuais que a declaração judicial da mesma trará.
4.ª Por nenhuma das partes os ter alegado, antes tendo alegado ambas factos diversos e, mais do que isso, até contrários – o que, por si só, torna inaplicável o n.º 3 do artigo 264.º e a alínea f) do n.º 2 do artigo 650.º do CPC – jamais os factos 2 e 6 poderiam ter sido dado como provados, senão em violação do estatuído na 1.ª parte do n.º 2 do artigo 264.º e no artigo 268.º do CPC, impondo-se que tais factos sejam suprimido da matéria tida por provada.
5.ª Tendo a apelante lançado mão da demanda para que lhe fosse paga determinada quantia, que discriminou, o Tribunal de 1.ª Instância atendeu favoravelmente a este argumento, reflectindo-o inclusive nos factos provados: «3. Do preço relativo à venda do tractor referido em 2., encontra--se pago o valor de €.16.495,28.» (Cfr. par. 5, da pág. 2 da sentença, negrito nosso.)
6.ª Este facto dado como provado entra em contradição com a decisão, pois, começando por reconhecer a existência da alegada dívida – e a alegada dívida não é senão a resultante do preço em falta do único contrato de compra e venda objecto dos autos (entre apelante e apelado) – acaba concluindo da inexistência dessa dívida (porque, afinal, não houve contrato nenhum entre apelante e apelado).
7.ª Está, pois, consubstanciada a nulidade da sentença fulminada pela alínea c) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC – aqui expressamente invocada.
8.ª O Tribunal a quo decidiu que o contrato de compra e venda do tractor em causa foi celebrado entre a autora e a testemunha (!!!) J...
9.ª Todavia, essa questão não fazia, nem faz, parte do objecto desta demanda.
10.ª Por isso, conhecendo de questão de que não podia tomar conhecimento, incorreu na nulidade sancionada pela 2.ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC.
11.ª De acordo com a M.ª Julgadora a quo, a apelante «instaurou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo sumário contra A..», acrescentando que «a autora conclui pedindo que condene o réu a pagar à autora a quantia € 5.317,00, acrescida dos respectivos juros de mora legais, vencidos e vincendos e até efectivo e integral pagamento».
12.ª Seguidamente, diz que «o réu, citado para contestar, confirma a existência do contrato de compra e venda do tractor, mas acrescenta que já procedeu ao pagamento integral da quantia em peticionada o que fez em cheque e em dinheiro, razão pela qual nada deve.»
13.ª Contudo, terminou decidindo que o contrato de compra e venda foi celebrado entre a apelante e o Sr. J.., pelo que o apelado não seria responsável pelo pagamento do remanescente do preço da aquisição do tractor.
14.ª Esta conclusão, para além de estar ancilosada (e muito!) nos termos da fundamentação recursória supra, não só não se baseia nos factos apurados na audiência de discussão e julgamento, nem nos factos dados como provados com base em suporte documental, como é frontalmente contrária a tais factos.
15.ª Um dos factos tidos como provados pelo M.º Juiz a quo, é o da resposta que o apelado deu à interpelação da apelante para pagamento do remanescente do preço da aquisição do tractor (5.º facto), onde expressa claramante: “recebi a sua carta datada de 21.06.2011 e não concordo com o seu teor, pois está tudo pago. Aliás, desde 2002 é a 1.ª vez que me interpelam para pagar uma coisa que há muito está paga”, é ilustrativo que o demandado não é alheio ao negócio jurídico em análise.
16.ª Quando inquirido pelo Mandatário da apelante sobre em nome de quem tinha sido celebrado o negócio, a testemunha (afinal transformada em parte, mas parte sem poder ser condenada??!!) J.. disse que tinha sido celebrado o negócio em nome do apelado, o que deve ser valorado neste recurso.
17.ª Além do mais, a propriedade do tractor encontra-se registada a favor do apelado e, de igual modo, também se encontra registada a favor da apelante uma reserva de propriedade sobre o bem (cfr. documento n.º 1, de que ora se requer admissão aos autos).18.ª Tal é uma prova e presunção legal da titularidade do direito de propriedade sobre o tractor e, consequentemente, da titularidade de direitos e obrigações relativos àquele (artigos 7.º do Código do Registo Predial, ex vi do artigo 29.º do DL n.º 54/75, de 12.02).
19.ª Uma dessas obrigações é pagar o remanescente do preço pela aquisição do tractor, como peticiona a autora e como o Tribunal a quo reconhece como facto provado: “3. Do preço relativo à venda do tractor referido em 2., encontra-se pago o valor de €.16.495,28.”
20.ª Ao decidir como o fez o Tribunal violou as disposições legais acima referidas e aquelas em que baseou a decisão de absolvição.» (sic)
Remata o recurso defendendo a revogação da sentença.
*
O R. respondeu em contra-alegações, apresentando também CONCLUSÕES:
«1- A apelante requereu a junção de 1 documento, porém, a necessidade de junção de documentos por via do julgamento efectuado, só se verifica, quando pela fundamentação da sentença ou pelo objecto da condenação, se torne necessário provar factos com cuja relevância a parte não poderia razoavelmente contar antes da decisão ser proferida, o que, manifestamente, se não verifica no caso vertente.
2- Por isso, a junção de tal documento não deve ser admitida, tanto mais que, como o próprio legal representante da A. refere em sede de depoimento de parte, esta já há muito tinha conhecimento que o tractor de matrícula ..-UF estava registado a favor do R. e com reserva de propriedade a seu favor, devendo, assim, ordenar-se o desentranhamento do documento junto, restituindo-o à apresentante (arts. 693.º-B e 543º nº 1 do C.P.Civil).
3- Voltando à análise dos autos, temos que a A. intentou a presente acção declarativa de condenação alegando, em síntese, que celebrou com o R. um contrato de compra e venda de um tractor e que o R. apenas pagou parte do preço, encontrando-se em dívida o valor de €5.317,00, acrescida dos respectivos juros de mora legais. O R., na contestação, confirma a existência do contrato de compra e venda do tractor, mas que já procedeu ao pagamento integral da quantia peticionada. E, em sede de resposta, a Ré impugnou por falso toda a matéria alegada na contestação.
4- Sucede que, em 31 de Maio de 2012, o R. deu entrada nos autos do requerimento de fls. 124, pedindo que seja retirada a matéria por si alegada nos arts. 5.º a 13.º da contestação, sendo certo que a A./apeante, notificada de tal requerimento, alegou nada ter a opor quanto à junção de tal requerimento, prescindindo do prazo de vista – cfr. acta de audiência de julgamento com a referência 799296.
5- Pelo que, tal como refere o despacho de resposta à matéria de facto com a referencia 809521, já há muito transitado em julgado, a confissão feita pelo R. em sede de contestação não pode ser valorada uma vez que tal confissão foi retirada durante a audiência de julgamento – cfr. arts. 38.º, 490.º e 567.º, n.º 2 do CPC.
6- Na verdade, tal como refere o citado despacho, “o R. declarou que o tractor lhe fora oferecido pelo, então, genro, J.., desconhecendo os contornos do negócio, sendo que nunca teve qualquer relação contratual com a A. (foi um presente do genro e da filha). E por seu turno o legal representante da A., em depoimento de parte, também reconheceu que todo o negócio – condições, preço, forma e meios de pagamento – foi celebrado com J.., sendo que nunca houve qualquer contacto com o R., pois este nunca celebrou com a A. qualquer contrato”, sendo certo que, a presenta acção apenas foi intentada contra o R. pelo facto “de o tractor ter sido registado em nome do R., ainda que com reserva de propriedade a favor da A.”
7- Foi, portanto, com base em tais depoimentos de parte (art. 361.º) e, bem assim, nos documentos de fls. 92 e 93 e da prova por testemunhas, que a Mm.ª Juiz, deu como não provado que o alegado contrato de compra e venda foi celebrado entre a A. e o R. mas entre a A. e o J...
8- Donde a douta sentença apelada estar totalmente imune da nulidade prevista no art. 668.º, n.º 1, als. c) e d) do CPC.
9- Acresce que, o recurso que vise a impugnação da matéria de facto com base nos depoimentos gravados está subordinado às regras contidas no art. 685.º-B, n.º 1. al. b) e n.º2 do CPC, e a apelante não observou minimamente o formalismo ali consagrado, devendo, quanto a essa parte, o recurso ser liminarmente rejeitado.
10- Todavia, e sem prescindir, sempre se dirá que a apelante não tem qualquer razão nos fundamentos invocados no presente recurso, sendo certo que, para além de fazer tábua rasa do que o seu legal representante afirmou em sede de depoimento de parte, olvida-se, outrossim, que o ónus de prova da celebração do contrato de compra e venda com o R. estava a seu cargo.
11- Para além disso, resulta também evidente a confusão lavrada pela apelante quando confunde direito das coisas com direito das obrigações, pois que, uma coisa é a presunção da titularidade do direito de propriedade adveniente do registo, outra coisa, é o (in)cumprimento do contrato de compra e venda celebrado entre as partes…
12- Assim, e em suma, dir-se-á que foi com base na análise crítica e conjugada de todos os elementos de prova que a Mm.ª Juiz “a quo” fundou a sua convicção, donde não existir qualquer erro de julgamento conforme o invocado pela apelante mas de livre apreciação da prova da Mm.ª Juiz, nos termos do art.º 655.º do Código de Processo Civil, valoração esta que, só por si, desde que não enferme em erro ou se baseie em meio de prova ilegal ou não fundamentada, é insindicável por tribunal superior, prevalecendo aquele princípio da livre apreciação da prova e da imediação.
13- Donde não merecer a douta sentença apelada qualquer censura.» (sic)
Culmina as suas alegações defendendo a manutenção da sentença.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II.
As questões a decidir --- exceção feita para o que é do conhecimento oficioso --- estão delimitadas pelas conclusões da apelação da A., acima transcritas (cf. art.ºs 660º, nº 2, 684º e 685º-A, do Código de Processo Civil[2] , na redação que foi introduzida pelo Decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto).
Com efeito, importa decidir as seguintes questões:
1ª- Excesso nas respostas aos quesitos;
2ª- Questão nova e prolação de decisão surpresa;
3ª- Nulidade da sentença por contradição entre um facto provado e a decisão, nos termos do art.º 660º, nº 1, al. c), do Código de Processo Civil;
4ª- Nulidade da sentença por excesso de pronúncia, nos termos do art.º 660º, nº 1, al. d), última parte, do Código de Processo Civil;
5ª- Valoração do depoimento da testemunha J..;
6ª- No âmbito da aplicação do Direito, o contrato celebrado, a propriedade do trator adquirido à A. e a obrigação de pagar o remanescente do preço.
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III.
São os seguintes os factos considerados provados pelo tribunal a quo:
1. A autora é uma sociedade comercial que, por conta própria e com fim lucrativo, se dedica ao comércio de tratores agrícolas.
2. Em 24.09.2002, a autora, no âmbito da sua actividade comercial, vendeu a J.., um trator da marca “John Deere”, modelo 5310, pelo preço de €.21.812,28.
3. Do preço relativo à venda do trator referido em 2., encontra-se pago o valor de €.16.495,28.
4. A autora, em 21.06.2011, remeteu ao réu A.. carta registada com aviso de receção a pedir o pagamento da quantia de € 5.317,00 a título de valor remanescente da aquisição do trator referido em 2.
5. O réu A.. respondeu a essa carta dizendo que “recebi a sua carta datada de 21.06.2011 e não concordo com o seu teor, pois está tudo pago. Aliás, desde 2002 é a 1.ª vez que me interpelam para pagar uma coisa que há muito está paga.”.6. Para pagamento do trator “John Deere” foram entregues por J.. um trator usado de marca “Massifergusson”, anteriormente vendido pela autora a J.., e cinco cheques cujos valores não foi possível apurar.
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1ª questão: Excesso nas respostas aos quesitos
A apelante entende que jamais os factos provados identificados sob os itens 2 e 6 da sentença poderiam ter sido dados como provados por não terem sido alegados por qualquer das partes. Invoca a violação dos art.ºs 264º, 268º e 650º, nº 2, al. f).
É conhecida a importância do princípio do dispositivo, tradicionalmente, como um dos pilares fundamentais do processo civil, segundo o qual, cabe às partes o ónus da iniciativa processual, não só pela formulação do pedido, como também pela alegação da matéria de facto que, em cada caso, lhe sirva de fundamento.
Situando-nos na vertente do dever de alegar os factos que integram a causa de pedir ou a matéria de exceção que a defesa invoque, constitui regra processual que o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes nos respetivos articulados (art.ºs 264º, nºs 1 e 664º).
Este princípio, outrora quase intocável, foi objeto de várias limitações nas últimas reformas do processo civil em ordem a, cada vez mais, fazer prevalecer a verdade material sobre a formalidade, pela manifesta vontade do legislador de dar primazia ao direito das partes, ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quando necessário, através de uma intervenção mais ativa do juiz [3] pela realização do inquisitório. É o que resulta, designadamente, das reformas processuais levadas a cabo pelo Decreto-lei nº 329-A/95, de 12 de dezembro e pelo Decreto-lei nº 180/96, de 25 de setembro, no âmbito dos art.ºs 264º, 265º e 650º, nº 2, al. f) e nº 3 [4].
Reequacionando os princípios do dispositivo e da oficiosidade, o legislador explicou desde logo na nota preambular daquele primeiro decreto-lei reformador que “no que se refere à exacta definição da regra do dispositivo, estabelece-se que a sua vigência não preclude ao juiz a possibilidade de fundar a decisão não apenas nos factos alegados pelas partes mas também nos factos instrumentais que, mesmo por indagação oficiosa, lhes sirvam de base. E, muito em particular, consagra-se – em termos de claramente privilegiar a realização da verdade material – a atendibilidade na decisão de factos essenciais à procedência do pedido ou de excepção ou reconvenção que, embora insuficientemente alegados pela parte interessada, resultem da instrução e discussão da causa, desde que o interessado manifeste vontade de os aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o contraditório”.
A possibilidade conferida a ambas as partes de correção da matéria de facto alegada, com base no novo conteúdo do nº 2 e do nº 3 do art.º 264º por atuação oficiosa do juiz ou por sua iniciativa, representa um nítido avanço em comparação com o regime demasiado rígido que resultava do sistema anterior.
É assim que o referido nº 2 prevê actualmente a possibilidade de o juiz fundar a decisão, além do mais, na consideração, mesmo oficiosa, dos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa. E o subsequente nº 3 viabiliza a possibilidade de consideração na decisão de factos essenciais à procedência das pretensões formuladas ou das exceções deduzidas que sejam complemento ou concretização de outros que as partes hajam oportunamente alegado e resultem da discussão da causa, desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório.
Esta última norma insere-se ainda no princípio do dispositivo, por dever ser da parte a iniciativa de se aproveitar de facto novo essencial e representa a concessão de uma derradeira oportunidade de ampliação da matéria de facto. Porém, sempre sem prejuízo do princípio do contraditório, pois que, nesse caso, deve providenciar-se té ao encerramento da discussão pela ampliação da base instrutória da causa, facultando-se à parte contrária a defesa relativamente à nova factualidade, nomeadamente pela adição de novas provas, ao abrigo do art.º 650º, nº 2, f) e nº 3. Evita-se assim que a parte contrária não seja surpreendida com factos que não constavam alegados no processo.
Reentrando no caso concreto, foi dado como provado:
- Em 24.09.2002, a autora, no âmbito da sua actividade comercial, vendeu a J.., um tractor da marca “John Deere”, modelo 5310, pelo preço de €.21.812,28 (item 2º da sentença)
- Para pagamento do tractor “John Deere”, foram entregues por J.. um tractor usado de marca “Massifergusson”, anteriormente vendido pela autora a J.., e cinco cheques cujos valores não foi possível apurar (item 6º da sentença).
O primeiro facto resulta, alegadamente [5], da prova dos artigos 2º da petição inicial e 5º da contestação. Mas, na realidade, não está ali, nem em qualquer outra parte dos articulados da ação que o comprador do trator (novo) foi J... Tudo o mais consta do artigo 2º da petição inicial.
Quanto ao segundo facto, resulta, alegadamente[6] , da prova dos artigos 6º da contestação e 5º da resposta à contestação. Mas, na realidade, não está ali, nem em qualquer outra parte dos articulados da ação que foi J.. quem entregou à A. o trator usado (em pagamento do novo) e que a ele fora anteriormente vendido pela A. Tudo o mais consta alegado nos referidos artigos.
Admitindo que a novidade das referidas respostas tenha resultado da discussão da causa, a sua consideração só seria admissível se o R. tivesse manifestado vontade de dela e aproveitar, ao abrigo do nº 3 do art.º 264º e cumpridas as formalidades processuais inerentes ao contraditório, previstas no art.º 650º, nº 2, al. f), de modo a evitar uma decisão surpresa. Como o R. nada requereu nesta matéria e tais factos novos são muito mais do que um mero esclarecimento ou explicação [7] do conteúdo factual alegado nos articulados, extravasando claramente o seu âmbito, ao ponto se fazer substituir o alegado comprador por pessoa diversa na relação contratual subjacente ao pedido da ação, há que concluir pela existência de excesso relevante, devendo reduzir-se as respostas ao limite da matéria efetivamente alegada pelas partes, considerando o excesso como não escrito, por aplicação analógica do art.º 646º, nº 4[8].

Assim:
O item 2º dos factos provados passa a ter a seguinte redação:
2- Em 24.09.2002, a autora, no âmbito da sua atividade comercial, vendeu um trator da marca “John Deere”, modelo 5310, pelo preço de €.21.812,28.
O item 6º dos factos provados passa a ter a seguinte redação:
6- Para pagamento do trator “John Deere”, foram entregues um trator usado de marca “Massifergusson e cinco cheques (cujos valores não foi possível apurar).
Nesta medida se defere a questão em apreço.
*
2ª questão: O tribunal conheceu de questão nova e proferiu decisão surpresa
A apelante mostra-se surpreendida com o facto de o tribunal considerar que o R. não é devedor da A. por não ter celebrado com ela o contrato de compra e venda. Alega que se preparou para discutir o cumprimento do contrato por parte do R. e o tribunal proferiu decisão-surpresa ao decidir que o negócio não foi celebrado com o R., assim cometendo uma nulidade processual secundária que pode ser conhecida no âmbito do recurso.
Dispõe o art.º 3º, sob a epígrafe “necessidade do pedido e da contradição”:
1. O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.
2. Só nos casos excepcionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida.
3. O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
4. Às excepções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência preliminar ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final.»
Limitado, embora, pelo princípio do dispositivo, não podendo, em regra, ir além dos factos alegados pelas partes, a substanciação (ou consubstanciação) permite ao juiz definir livremente o direito aplicável aos factos que lhe é lícito conhecer, buscando e interpretando as normas jurídicas que entender pertinentes. Poderá ir buscar regras diferentes das invocadas pelas partes, atribuir-lhes sentido diferente do que estas lhes deram ou fazer derivar das regras de que as partes se serviram efeitos e consequências diversas das que estas tiraram[9] . O tribunal tem toda a liberdade de qualificar os factos e aplicar o Direito com independência, o que constitui, de resto, uma das essentialia da função jurisdicional (art.º 664º).
Por regra, as partes, representadas por profissionais forenses especializados, não estão dispensadas de conhecer o Direito e todas as soluções plausíveis para os factos que alegaram e foram submetidos ao crivo da prova.
Admitem-se, especialmente, situações em que, por existir uma alteração muito relevante do módulo jurídico em que assentou a articulação apresentada pelas partes, designadamente o pedido e a defesa, estruturados para uma determinada qualificação jurídica, a decisão possa comprometer a posição das partes e os direitos que, por via da ação ou da defesa, pretendem fazer valer. Nesses casos especiais, poderá falar-se da necessidade das partes se pronunciarem, evitando uma decisão-surpresa, contanto que a surpresa não resulte de negligência sua, muitas vez espelhada na violação do ónus que têm de tomar posição clara sobre todas as questões, sejam elas de direito ou de facto, suscitadas nos autos, e, nomeadamente, de reagir contra as nulidades ou irregularidades que considerem cometidas e entendam relevantes, na perspetiva da defesa dos interesses que fazem valer, vindo, depois, intempestivamente, reclamar o cumprimento da lei relativamente a atos a que estiveram presentes e/ou dos quais, agindo com a prudência normal, não poderiam deixar de se aperceber[10] .
No essencial, enquanto manifestação do princípio da proibição da indefesa e do princípio do contraditório, a proibição das decisões-surpresa visa evitar decisões baseadas em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes, de que é maior exemplo, no âmbito da aplicação do Direito, o conhecimento oficioso de questões novas. Estão em causa, nesses casos, soluções jurídicas inesperadas, por não terem sido objeto de discussão no processo e surgirem contra a corrente do processo, à revelia das posições jurídicas que cada uma das partes tomara, designadamente nos articulados.
Em matéria de Direito, não é decisão-surpresa a que, simplesmente, não foi suposta, ou não foi acalentada por qualquer das partes, quando tenham por base fundamentos legais que as partes tinham obrigação de prever, e o tribunal se substitui a elas selecionando, interpretando e aplicando as normas que tem por pertinentes para resolução das questões submetidas à sua apreciação, mantendo-se dentro da causa de pedir invocada.
A audição das partes será dispensada quando não possam alegar, de boa fé, desconhecimento das questões de direito ou de facto a decidir pelo juiz e das respetivas consequências. A interpretação do preceito não pode contribuir para o surgimento de mais um obstáculo à celeridade processual já de si afetada por outras circunstâncias ligadas ao processo ou a fatores externos [11].
Passemos à aplicação dos conceitos ao caso.
A A. instaurou a ação contra o R. A.. alegando que celebrou com ele um acordo pelo qual lhe vendeu um veículo trator para ele desenvolver a sua atividade agrícola. Contudo, este ainda não lhe pagou uma parte do preço da máquina. Pretende a sua condenação no pagamento da quantia em falta.
A ação é de cumprimento do contrato, de responsabilidade contratual, nos termos dos art.ºs 762º, 763º e 798º e seg.s e 874º e seg.s do Código Civil.
Nenhum autor pode ter a veleidade de presumir que a ação não será contestada pelo réu, podendo sê-lo em toda a dimensão dos factos alegados na petição inicial. O réu pode defender-se por impugnação, contradizendo os factos articulados na petição ou afirmando que esses factos não podem produzir o efeito jurídico pretendido pelo autor (art.º 487º, nºs 1 e 2, primeira parte).
No caso, estava o R. no pleno direito de, além do mais, negar a compra e venda do trator ou até aceitar que a A. o vendeu, mas não à sua pessoa, ou, apenas, que já pagou a totalidade do preço, para se livrar da condenação. Optou por aceitar a alegada celebração do contrato de compra e venda do trator entre A. e R., afirmando o pagamento total do preço, para concluir que nada deve.
Seria surpreendente --- errada mesmo --- a decisão que, perante a aceitação do contrato como celebrado entre A. e R., sem mais, absolvesse o último do pagamento de qualquer parte do preço, se o demandado não lograsse provar esse mesmo pagamento ou qualquer outra causa de extinção da obrigação. Mas não foi isso que aconteceu.
Estando a contestação subscrita por advogado mandatado pelo R., este, no dia 31.5.2012, no início da segunda sessão de audiência (cf. fl.s 124 e 125) --- estava ouvido apenas o R. e o representante legal da A., em depoimento de parte --- fez presente um requerimento pelo qual deixou bem claro que o teor da contestação é da autoria do seu genro, J.., não sendo correto, quanto à sua pessoa, o ali alegado sob os artigos 5º, 6º, 7º, 8º, 9º,10º, 11º, 12º e 13º. Declarou que pretende que tal matéria seja retirada por não ter sido aceite especificamente pela A. (antes pelo contrário, como se retira do artigo 1º da resposta [12]). Passou a explicitar naquele requerimento que não celebrou qualquer negócio com a R., que não lhe adquiriu qualquer trator e, por isso, também nunca efetuou qualquer pagamento por conta do respetivo preço. Acrescentou que quem celebrou o negócio retratado nos autos foi também o J...
Este requerimento chegou ao conhecimento da A. logo no dia da sua junção aos autos, no início da referida sessão de audiência, onde, tendo-lhe sido concedida a palavra para se pronunciar sobre o mesmo, declarou: “Quanto ao documento ora junto, nada temos a opor e prescindo de prazo” (sic).
Perante isto, o tribunal proferiu a seguinte decisão, sobre a qual não recaiu qualquer oposição da A.:
«Quanto ao requerimento apresentado pelo réu A.., oportunamente, em sede de resposta à matéria de facto nos pronunciaremos sobre o teor do mesmo.» (sic)
Cumprindo, o tribunal no despacho que fixou a matéria de facto, apreciou o valor jurídico da declaração contida no requerimento de fl.s 124, assim:
«…
Por outro lado, é de realçar que o réu, na contestação reconheceu ter celebrado um contrato de compra e venda de um tractor com a autora (ainda que identificasse um modelo diferente), mais alegando, todavia, o pagamento. Contudo, e após a prestação dos depoimentos de parte, o réu deu entrada nos autos do requerimento de fls. 124, pedindo que seja retirada a matéria por si alegada nos artigos 5.º a 13.º da contestação.
Ora, a confissão nos articulados, feita pelo Mandatário, vincula a parte, ainda que a parte contrária não tenha aceite especificadamente e só pode ser retirada até ao encerramento da discussão em 1.ª instância – atendendo ao disposto nos arts. 356.º, n.º 1, primeira parte do Código Civil e arts. 38.º, 490.º e 567.º, n.º 2 do Código de Processo Civil).
Posto isto temos que o réu, na contestação, reconheceu ter celebrado um contrato de compra e venda de um tractor com a autora, confissão essa que vem retirar durante a audiência de julgamento, razão pela qual não se pode valorar tal confissão feita na contestação.» (sic)
Na verdade, assim acontece. O princípio da irretratabilidade [13] da confissão judicial ou extrajudicial sofre exceções. Releva aqui a que resulta do art.º 567º, nº 2, segundo o qual “… as confissões expressas de factos, feitas nos articulados, podem ser retiradas, enquanto a parte contrária as não tiver aceitado especificadamente”.
Como ensina Alberto dos Reis[14] , “quando a parte queira obstar a que o confitente retire a confissão, tem de dizer especificadamente: Aceita-se a confissão feita no artigo (tal) da contestação, da réplica ou da tréplica”.
O que o R. fez foi uma retratação da confissão [15]. Fê-la com identificação dos factos e num momento em que a A. os não a tinha aceitado especificadamente[16], pelo que é relevante e operante, nos termos do art.º 567.º, nº 2 [17].
A A. conheceu o teor do requerimento de retratação no momento da sua apresentação, em audiência, ficando em condições de avaliar as suas implicações e consequências jurídicas. Pronunciou-se sobre ele. Foi nessas circunstâncias que declarou nada opor e prescindir de qualquer prazo para se pronunciar sobre a declaração do R. Nada requereu porque não quis. Aceitou, sem mais, a continuação da audiência quando o requerimento foi admitido pelo tribunal, ciente que ficou --- porque o tribunal o referiu --- de que, oportunamente, no momento da apreciação das provas, o tribunal faria a devida valoração jurídica.
Neste condicionalismo, é legítimo afirmar que só por negligência própria a A. não ficaria ciente de que teria que passar a contar com a necessidade de provar que o contrato de compra e venda do trator foi celebrado entre ela e o R., tal como alegara sob o artigo 2º da petição inicial. Nenhuma parte avisada e cautelosa, perante aquela declaração e o disposto no art.º 567º, nº 2, deixaria de acautelar a prova daquela relação contratual, por ter deixado ou, pelo menos, por poder deixar de valer a confissão do R. e ser a prova de tal relacionamento um facto cujo ónus da prova pertence ao autor --- e fora por ela alegado --- (art.º 342º, nº 1, do Código Civil).
Aliás, os elementos disponíveis nos autos apontam mesmo no sentido de que a A. compreendeu o sentido da declaração de retratação e tentou demonstrar que foi ao R. que vendeu o trator. Isso mesmo transparece bem da indicação que fez de todas as suas testemunhas à matéria do quesito 2º da petição inicial --- de onde resulta a relação contratual --- (cf. ata da segunda sessão de audiência de julgamento) e da fundamentação das respostas dadas pelo tribunal em matéria de facto, onde está bem patente o enorme esforço produzido em audiência na mira de demonstrar que foi o R. (e não o seu genro ou qualquer outra pessoa) que comprou o trator à demandante.
Verdadeiramente, a única surpresa que a decisão causou à A. foi ter considerado provado que o trator foi vendido a J.. e que foi este que entregou à A. um trator usado em pagamento, por extravasar o âmbito da matéria alegada pelas partes. Mas tais factos já foram retirados na apreciação da questão recursória anterior, reduzindo-se a eficácia da prova aos limites da matéria alegada.
E não se diga que o tribunal, ao aplicar o Direito, conheceu de questão nova, pois que se limitou a conhecer da responsabilidade contratual do R., a questão colocada na ação.
Neste enfiamento, improcede a questão da violação do princípio do contraditório e da violação da indefesa.
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3ª questão: Nulidade da sentença por contradição entre um facto provado e a decisão, nos termos do art.º 660º, nº 1, al. c), do Código de Processo Civil
Dispõe aquele dispositivo processual que a sentença é nula quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão”.
Constitui causa de nulidade da sentença --- extensível aos próprios despachos (qualquer decisão, seja qual for a forma que assuma) --- a oposição entre os fundamentos e a decisão (art.ºs 666º, nº 3 e 668º, nº 1, al. c)). Trata-se de um vício lógico que compromete a decisão desde logo na sua construção. A decisão perde a sua justificação ao apoiar-se ostensivamente numa base que, na realidade, não a sustenta. Os fundamentos dela constantes conduziriam, logicamente, não ao resultado expresso e querido pelo juiz subscritor, mas a um resultado oposto ou, pelo menos, bastante diferente, de tal modo que a decisão não é um ato considerado racionalmente sustentado; antes revela uma distorção do raciocínio lógico que se impõe entre as premissas de facto e de direito e a conclusão. A fundamentação há-de apontar num sentido enquanto o segmento decisório segue caminho oposto ou, pelo menos, uma direção claramente diferente.
A nulidade da oposição entre os fundamentos e a decisão está relacionada, por um lado, com a obrigação imposta pelos art.ºs 158° e 659°, n.ºs 2 e 3, de fundamentar as decisões e, por outro, pelo facto de a sentença dever constituir um silogismo lógico-jurídico, em que a decisão deverá ser a consequência ou conclusão lógica da norma legal (premissa maior) com os factos (premissa menor). Não se verifica a oposição geradora desta nulidade se o julgador errou na subsunção que fez dos factos à norma jurídica aplicável ou se, porventura, errou na indagação de tal norma ou na sua interpretação. Assim, a circunstância de o juiz ter eventualmente extraído ilações e explanado o seu raciocínio, com argumentos e razões não sustentadas nos factos provados não é problema de nulidade de sentença.
A recorrente manifesta não compreender como é que o tribunal dá como provado que “do preço relativo à venda do tractor referido em 2., encontra-se pago o valor de €16.495,28” e conclui pela inexistência do negócio. Mostra estranheza pelo que diz ser a produção de efeitos negociais sem que tenha havido negócio.
Não tem razão.
Na realidade, está provado que a A. vendeu o trator pelo preço e no dia por ela alegados. Mas não foi dado como provado que o comprador foi o R. Com efeito, o contrato existiu e o trator foi vendido pelo preço em causa (€ 21.812,28), de que até foi paga uma parte, no valor de € 16.495,28 (itens 2º e 3º dos factos provados).
O tribunal a quo não diz que não houve contrato. Nem poderia fazer tal afirmação, ante a demonstração de que o trator foi vendido. O que se refere na sentença é que não foi o R. a pessoa do comprador, no seguinte trecho: “Revertendo à situação em apreço, e atenta a factualidade supra dada por provada verifica-se que a autora não logrou provar que o contrato de compra e venda do tractor da marca “John Deere”, modelo 5310, pelo preço de €.21.812,28 tenha sido celebrado com o réu A.. (na verdade o que resultou provado conforme se constata dos factos provados em 2 e 6 é que o contrato de compra e venda foi celebrado como J..)”.
Por considerar o contrato não celebrado com o R., a sentença, coerentemente, absolveu-o do pedido condenatório de pagamento do remanescente do preço.
Como é por demais evidente, não está em causa qualquer viciação de raciocínio lógico entre os fundamentos e a decisão que ponha em causa a sua própria construção e valor enquanto ato decisório processual, mas, tão-só discordância da recorrente relativa à decisão.
Nesta decorrência, é evidente que não há qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão, sendo também improcedente a terceira questão da apelação.
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4ª questão: Nulidade da sentença por excesso de pronúncia, nos termos do art.º 660º, nº 1, al. d), última parte, do Código de Processo Civil
Nos termos daquele preceito legal, é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Esta norma está em correlação com o art.º 660º, nº 2, do mesmo código. O juiz tem que resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação. Além dessas só aprecia e decide aquelas cujo conhecimento a lei lhe imponha ou permita.
Efetivamente, como já observámos, o tribunal recorrido transpôs para a sentença, indevidamente, factos que não foram alegados. Excedeu os limites previstos no direito processual e, por isso, tais factos foram já considerados não escritos. A existir, a nulidade invocada estaria agora sanada.
Ainda assim, algo mais há a dizer.
Já Alberto dos Reis ensinava [18] que “uma coisa é tomar em consideração determinado facto, outra conhecer de questão de facto de que não podia tomar conhecimento; o facto material é um elemento para a solução da questão, mas não é a própria questão”. E mais adiante fez notar que a utilização de factos não quesitados nem articulados pode ser fundamento de recurso em que se peça a revogação do acórdão, mas não justifica a arguição da nulidade da decisão por excesso de pronúncia. Uma coisa é o erro de julgamento, por a sentença se ter socorrido de elementos de que o tribunal não podia socorrer-se, outra a nulidade de conhecer de questões de que o tribunal não podia tomar conhecimento.
Como resulta evidente da sentença agora questionada, a 1ª instância nada mais decidiu do que a questão colocada, objetivada pela causa de pedir e pelo pedido da ação: o incumprimento do contrato por parte R. Não houve excesso de pronúncia.
Questão a decidir também não é a argumentação utilizada pelas partes em defesa dos seus pontos de vista fáctico-jurídicos.
Termos em que não se pode concluir que o tribunal recorrido conheceu de qualquer questão de que não podia tomar conhecimento.
Não ocorre também aquele fundamento de nulidade da sentença, pelo que improcede também a 4ª questão.
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5ª questão: Valoração do depoimento da testemunha J..
Nesta parte, a apelante manifesta que a conclusão a que ao tribunal chegou de que o contrato de compra e venda foi celebrado entre ela e J.., não sendo o R. responsável pelo pagamento do remanescente do preço de aquisição do trator, além de não se basear nos factos apurados em audiência, é contrária a eles [19].
Defende a apelante que o depoimento daquela testemunha não foi levado em linha de conta na 1ª instância e que “caso o tribunal tivesse apreciado o conteúdo das declarações da testemunha e dali tivesse retirado o seu real conteúdo, teria que formular a sua decisão no sentido de responsabilizar o apelado pelo pagamento do preço do tractor”.
Enquanto prova testemunhal, o depoimento de J.. não releva por si só; antes constitui um dos meios de que o tribunal dispõe para, no uso da sua liberdade de julgamento, dar determinada matéria de facto como provada ou não provada, sempre com o concurso de outras provas, numa análise crítica e conjugada das mesmas (art.ºs 653º, nº 2 e 655º). Foi o que o tribunal fez na motivação das respostadas dadas em matéria de facto, de onde resulta de forma hialina que a prestação probatória daquela testemunha não foi esquecida (cf., além do mais, o parágrafo 5º da fl.s144 e a fl. 145).
Se a A. queria impugnar a decisão em matéria de facto teria que, obrigatoriamente, especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; e
b) Os concretos meio probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
Deveria ainda a apelante ter indicado com exatidão as passagens da gravação em que se fundaria, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respetiva transcrição.
Tais exigências jurídico-processuais são condição do conhecimento do recurso em matéria de facto. A A. não lhes deu cumprimento e a sanção é a rejeição do recurso nessa matéria (art.ºs 712º, nº 1, al. a) e 685º-B, nºs 1 e 2).
Não sendo possível ponderar a prestação probatória daquela testemunha fora do âmbito da impugnação da matéria de facto, falece também nesta parte o recurso de apelação.
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6ª- No âmbito da aplicação do Direito, o contrato celebrado, a propriedade do trator adquirido à A. e a obrigação de pagar o remanescente do preço
Por fim, a apelante entende que ,estando o trator registado em nome do R., constando até do registo uma reserva de propriedade sobre o mesmo bem, a favor da demandante, está provada, por presunção legal, que a propriedade do bem pertence ao recorrido e, consequentemente, a titularidade de direitos e obrigações a ele relativos.
Na sua perspetiva, por força daquela presunção, sendo o trator propriedade do apelado, deve ser ele o responsável pelo pagamento da parte do preço em falta, ou seja, a quantia peticionada a título de capital (€.5.317,00) e os juros de mora inerentes.
A presunção de titularidade que resulta do registo predial (art.º 7º do Código do registo Predial), aplicável aos automóveis por força do art.º 29º do Decreto-lei nº 54/75, de 12 de fevereiro, não se pode confundir com direitos e obrigações creditícios emergentes de contratos. Uma coisa são os direitos reais, outra bem diferente são os direitos e obrigações de base contratual, dali emergentes para as partes com base na sua negociação.
A relação negocial em causa --- independentemente da identidade da pessoa do adquirente --- integra os elementos típicos do contrato de compra e venda e constitui a causa da obrigação de pagamento da parte do preço relativo ao bem fornecido pela A. (art.ºs 874º e seg.s do Código Civil).
Pela ação, desde logo nos termos da petição inicial, a A. vendedora abstrai-se --- e bem --- da propriedade do trator, dado que apenas exige o cumprimento de uma obrigação contratual de quem, na sua alegação, foi o seu efetivo comprador, ou melhor, aquele que, na relação com ela estabelecida, concluindo o contrato, declarou comprar o trator.
A compra e venda tem como efeitos essenciais a transmissão da propriedade das coisas ou da titularidade do direito (natureza real do contrato), a obrigação de a entregar ao adquirente e, correspetivamente (já que se trata de um negócio jurídico sinalagmático), a obrigação do comprador de pagar o seu preço (natureza obrigacional do contrato) --- art.º 879º do Código Civil.
Os efeitos obrigacionais produzidos pelo contrato limitam-se às partes (princípio tradicional da relatividade), sendo que aquelas são apenas os originários contraentes e os seus sucessores.
O contrato só produz eficácia em relação a terceiros nos casos e nos termos especialmente previstos na lei (art.º 406º, nº 2, do Código Civil) [20] .
Por regra --- exceção feita par a constituição de obrigações de garantia e de assunção de dívida alheia por terceiro --- é do comprador, enquanto parte na relação contratual de compra e venda (e não daquele que em cada momento for o proprietário da coisa) que o vendedor pode exigir o pagamento do preço do bem ou do direito vendido. O facto de a propriedade do veículo se encontrar registada a favor do R., nos termos do documento junto com as alegações de recurso, só por si, não chega para concluir que foi ele que o adquiriu à A. E, na realidade, a recorrente não impugnou a decisão proferida em matéria de facto, designadamente a negação de que a compra foi levada a cabo pelo demandado.
Como era da A. o ónus da prova dos factos constitutivos do seu direito (art.º 342º, nº 1, do Código Civil), sempre teria que demonstrar, além do mais, que foi ao R. que vendeu o trator ou que, por qualquer outra causa relevante, era dele a obrigação de o pagar. Não tendo feito essa prova, não há fundamento para a condenação do demandado.
Por conseguinte, a ação tinha que improceder, sendo agora de julgar improcedente a apelação da A.
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SUMÁRIO (art.º 713º, nº 7, do Código de Processo Civil):
1. Há excesso de resposta do tribunal em matéria de facto quando o autor alega que vendeu um trator ao réu e se dá como provado que (no âmbito do mesmo contrato) o autor vendeu o trator a um terceiro determinado.
2. Não é uma decisão surpresa a que absolve o réu do pedido de pagamento de parte do preço de um trator, por faltar a prova de que foi o comprador, quando, tendo confessado na contestação que o comprou, depois se retratou validamente dessa confissão, ao abrigo do art.º 567º, nº 2, do Código de Processo Civil, com base em requerimento sobre o qual foi concedida à A. a possibilidade de se pronunciar e disse “nada ter a opor e prescinde de prazo”.
3. Conhecer de facto novo não se confunde com conhecer de questão nova.
4. O dever de pagar o preço de um bem comprado emerge da qualidade de comprador; não da qualidade de proprietário.
V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas da apelação pela A. apelante.
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Guimarães, 22 de janeiro de 2013
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[1] Quis dizer-se “autora”.
[2] Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem.
[3] Acórdão da Relação de Coimbra de 9.3.2004, proc. nº 4070/03, in www.dgsi.pt.
[4] Neste sentido, acórdão da Relação de Guimarães de 4.10.2007, Colectânea de Jurisprudência, T. IV, pág. 294.
[5] Cf. despacho de respostas em matéria de facto.
[6] Cf. despacho de respostas em matéria de facto.
[7] Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5.7.1994, BMJ 439/479, acórdão da Relação de Lisboa de 6.7.2006, proc. 4031/2006-8, acórdão da Relação de Coimbra de 23.1.2007, proc. 26/2002.C1, in www.dgsi.pt,
[8] Cf. citado acórdão da Relação de Lisboa de 6.7.2006. Pode entender-se, em alternativa, que se trata de uma nulidade processual secundária, determinante daquele mesmo efeito, caso tenha relevância para decisão a causa --- art.º 201º, nº 1 (neste sentido, o citado acórdão da Relação de Guimarães de 4.10.2007).
[9] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Fevereiro de 2010, Colectânea de Jurisprudência do Supremo I, p. 64.
[10] Cf. Abílio Neto, Código de Processo Civil anotado, 21ª edição, 2009, pág. 69 (anotação ao art.º 3º).
[11] A. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, I Volume, Almedina, 2010, 2ª edição, pág. 80 e nota 109.
[12] Na resposta, a A. apelida de falso tudo quanto o R. alegou sob os artigos 1º a 13º da contestação.
[13] Ainda que a parte contrária não tenha aceitado a confissão, esta não pode, em regra, ser retratada ou retirada.
[14] Código de Processo Civil anotado, vol. IV, pág. 113.
[15] Não uma mera retificação da confissão.
[16] Alberto dos Reis parece entender que a confissão pode ser retirada ou retificada até ao termo da discussão a matéria de facto em 1ª instância (cf. Código de Processo Civil anotado, vol. IV, pág.s 112 e seg.s, Comentário ao Código de Processo Civil anotado, vol. I, pág. 51). V.d. também José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum à Luz do Código Revisto, Coimbra 2010, pág. 238 e nota 28.
[17] O art.º 38º vale para as relações entre o mandante e o mandatário.
[18] Código de Processo Civil anotado, vol. V, pág. 145.
[19] Parece-nos algo confusa esta afirmação, por tanto se referir a conclusão do tribunal em matéria de facto (na 1ª parte) como em matéria de Direito (na 2ª parte).
[20] Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, Coimbra, 3.ª edição, pág.s 59 a 61.
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Filipe Caroço
António Santos
Figueiredo de Almeida