Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
486/10.5TBAMR.G1
Relator: CARVALHO GUERRA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/30/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. Para apurar da competência dos tribunais administrativos no que concerne às acções de responsabilidade civil extracontratual de pessoas colectivas de direito privado, há que verificar se a mesma está, ou não, sujeita ao regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, nos termos do art. 1º, nº 5 da Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro.
II. Os tribunais administrativos serão competentes para dirimir os litígios surgidos no âmbito das relações jurídicas públicas, devendo como tal considerar-se “aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.
III. Está neste caso a “REN – Redes Energéticas Nacionais, SGPS”, na qualidade de “concessionária da Rede Nacional de Transporte de Energia Eléctrica”, que implica o exercício de um poder público, que visa a instalação e a regular exploração das linhas de muito alta tensão, bens considerados de utilidade pública, actividade regulada por disposições de direito administrativo.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 486/10.5TBAMR.G1 – 1ª Secção.
Recorrentes: Alberto… e mulher,
Rosalina… .
Recorridos: “V…, SAe outros.
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Acordam na 1ª Secção Civil do Tribunal da Relação de Guimarães:
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Alberto… e mulher, Rosalina… propuseram a presente acção com processo comum e forma ordinária contra “V… , SA”, “E… , SA” e “REN – Redes Energéticas Nacionais, SGPS”, pedindo a condenação das Rés a reconhecerem os Autores como donos do prédio que identificam no artigo 1º da petição inicial e a pagarem-lhes a quantia de euros 144.827,00, acrescida de juros de mora à taxa legal vencidos e vincendos a contar da data da lesão até efectivo e integral pagamento, somando os já vencidos euros 16.463,72, a título de indemnização pelos danos provocados pela instalação da rede eléctrica nacional naquele terreno.
Na sua contestação e para além do mais, arguiu a Ré “REN – Redes Energéticas Nacionais, SGPS”, a incompetência do Tribunal Judicial da Comarca de Amares em razão da matéria para conhecer do objecto da causa, defendendo ser para tal competente os tribunais administrativos.
Notificados, responderam os Autores, pugnando pela competência do tribunal.
Foi então proferido despacho, que julgou o Tribunal Judicial de Amares incompetente em razão da matéria para os termos da acção e absolveu os Réus da instância.
É desta decisão que vem interposto o presente recurso pelos Autores, que concluem a sua alegação da seguinte forma:
- a presente acção foi proposta contra pessoas colectivas de direito privado e nela foram formulados dois pedidos, a saber: um pedido de reivindicação (condenar-se as rés a reconhecerem os autores como donos e legítimos possuidores do prédio identificado em 1. da petição) e um pedido de ressarcimento (condenar-se as rés, solidariamente, a pagarem aos autores a quantia de €144.827,00, a título de indemnização pelos danos (…);
- como causa de pedir, os Autores alegam que adquiriram e mantêm a propriedade do prédio identificado em 1. da petição inicial e que as rés (E… e V… ) ofenderam esse direito de propriedade, produzindo-lhes danos na sua esfera patrimonial;
- pelo exposto, atenta a qualidade das partes, a natureza do pedido e da causa de pedir, a competência para apreciar, julgar e decidir a presente acção pertence à ordem de jurisdição dos Tribunais Judiciais e não há jurisdição administrativa;
- o pedido principal – reconhecimento do direito de propriedade (acção de reivindicação – artigo 1311º do CC) – não constitui um litígio emergente das relações jurídicas administrativas e fiscais;
- de acordo com o disposto no nº 1 do artigo 1º do ETAF, “os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”;
- nenhum dos sujeitos processuais é pessoa colectiva de direito público e, do mesmo modo, nenhum deles actua munido de jus imperii, no exercício de um poder público, no exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público;
- a relação substantiva, que serve de causa de pedir à presente acção, assenta exclusivamente no âmbito do direito privado, sem afloramentos de jus imperium da parte de qualquer dos demandados;
- não está em causa a sindicância de eventuais actos de gestão pública dos Réus, mas tão somente a apreciação de um ilícito cível, reportado ao desrespeito pelo afirmado domínio dos Autores sobre um prédio, cumulado com pedido ressarcitório, este não imediatamente conexionado com normas administrativas;
- o thema decidendum não se subsume em nenhuma das alíneas do catálogo de competência específica da jurisdição administrativa, maxime nas alíneas g) e i) do nº 1 do artigo 4º do ETAF;
- as Rés são sociedades anónimas, que prosseguem fins de natureza privada e egoística e não interesses de ordem pública. Ou seja, são entes privados, que não actuam investidas de ius imperium;
- o que está em causa é a alegada violação do direito de propriedade dos Autores e a prática de actos exclusivamente de gestão privada pelas Rés (V… , S.A. e E… , S.A.);
- além disso, ninguém olvidará que não é aplicável ao caso dos autos o regime específico da responsabilidade do Estado e das demais entidades públicas, pelo que não tem aplicação aqui a al. i) do nº 1 do artigo 4º do ETAF;
- a douta sentença sob censura violou, entre outras, as normas dos artigos 212° n° 1 e 214° nº 3 da Constituição da República Portuguesa, artigo 66° do Código de Processo Civil, artigos 1° e 4.° do ETAF e artigo 1310º do C.C ..
Termos em que se deverá revogar a decisão recorrida.
A Ré “REN – Redes Energéticas Nacionais, SGPS” apresentou contra alegações em que defende a improcedência do recurso.
Cumpre-nos agora decidir.
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Delimitado como está o recurso pelas conclusões da alegação – artigos 684º, n.º 3 e 690º do Código de Processo Civil – a questão que se coloca a este tribunal é a de saber qual das jurisdições é a competente para conhecer da causa, se a comum ou a administrativa.
A competência do tribunal em razão da matéria afere-se sempre a partir da pretensão ou pedido deduzido pelo Autor – ver Acórdãos da Relação de Lisboa de 14/12/95, Colectânea de Jurisprudência, Ano XX, 1995, Tomo V, página 149 e do Tribunal de Conflitos, de 25/11/2010 (Processo 021/10).
No que aos tribunais comuns diz respeito, a competência em razão da matéria encontra-se fixada no artigo 66º do Código de Processo Civil, que dispõe: “As causas que não sejam atribuídas por lei a alguma jurisdição especial são da competência do tribunal comum”.
Estabelece-se, deste modo e em consonância, como não podia deixar de ser, com a Constituição da República Portuguesa, artigo 211º, n.º 1 – Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais – o princípio da competência jurisdicional residual dos tribunais comuns, no sentido de que a competência do foro comum se determina por exclusão dos outros.
O artigo 212º, n.º 3 da CRP estabelece que “compete aos tribunais administrativos (...) o julgamento das acções que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas (...)” e o artigo 1º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) que os tribunais de jurisdição administrativa são competentes para administrar a justiça nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas.
Por seu lado, o artigo 4º, n.º 1 deste diploma dispõe, na parte que nos interessa, que compete aos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
g) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício da função política e legislativa, nos termos da lei, bem como a resultante do funcionamento da administração da justiça;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos;
i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
Conforme se salienta no acórdão deste Tribunal de 02/07/2009, em www.dgsi.pt, “Constata-se, assim, ter o ETAF operado um alargamento da competência dos tribunais administrativos em matéria de responsabilidade civil das pessoas colectivas através de duas diferentes vias”.
Uniformizou o âmbito da jurisdição no que se refere à responsabilidade decorrente da actividade administrativa, passando a atribuir aos tribunais administrativos as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, sem atentar na clássica distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada - 1ª parte da citada alínea g).
E passou a incluir no âmbito da jurisdição administrativa a responsabilidade civil extracontratual de sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado [citada alínea i)]”.
Com a Reforma do Contencioso Administrativo alterou-se, no âmbito da responsabilidade extracontratual, o critério determinante da competência material entre jurisdição comum e jurisdição administrativa, que deixou de assentar na clássica distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada, passando a jurisdição administrativa a abranger, por um lado, todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado”.
E, por outro lado, passou a abarcar a responsabilidade extracontratual das pessoas colectivas de direito privado às quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público”.
Daqui decorre que, para determinar a competência dos tribunais administrativos no que concerne às acções de responsabilidade civil extracontratual de pessoa colectiva de direito privado, há que verificar, apenas e tão só, se a mesma está, ou não, sujeita ao regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, instituído pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro”.
O artigo 1º, nº 5 desta Lei estabelece que “As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”.
Temos, pois, que os tribunais administrativos serão competentes para dirimir os litígios surgidos no âmbito das relações jurídicas públicas, devendo como tal considerar-se “aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido” – José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 8ª edição, 57/58.
É o que sucede de uma maneira geral nos casos de concessões, em que as entidades privadas actuam em colaboração com a administração pública na execução de tarefas de interesse público, como acontece com a REN, na qualidade de “concessionária da Rede Nacional de Transporte de Energia Eléctrica” o que, como refere a Recorrida na sua alegação, implica o exercício “… de um poder público, que visa a instalação e a regular exploração das linhas de muito alta tensão, bens considerados de utilidade pública, actividade regulada por disposições de direito administrativo (Decreto-Lei n.º 29/2006, de 15 de Fevereiro, Decreto-Lei n.º 172/2006, de 23 de Agosto, Decreto-Lei n.º 168/99, de 18 de Maio de 1999, Decreto-Lei n.º 43.335, de 19 de Novembro de 1960 e Decreto-Lei n.º 26 852, de 30 de Julho de 1936)”.
E é fora de dúvidas que estamos perante uma acção de responsabilidade civil extracontratual deduzida contra as Rés, com vista a obter o pagamento de indemnização por danos emergentes da violação do seu direito de propriedade, funcionando o pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o prédio em questão, que nem sequer está em litígio, como meramente funcional em relação ao ressarcitório, pelo que se reconduz ao disposto no artigo 1º, n.º 5 do novo Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, pelo que a competência em razão da matéria para dela conhecer é dos tribunais administrativos.
Termos em que se acorda em negar provimento ao recurso e se confirma a decisão recorrida.
Custas pelos Apelantes.
Guimarães, 30 de Junho de 2011
Carlos Guerra


SUMÁRIO:
I. Para apurar da competência dos tribunais administrativos no que concerne às acções de responsabilidade civil extracontratual de pessoas colectivas de direito privado, há que verificar se a mesma está, ou não, sujeita ao regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, nos termos do art. 1º, nº 5 da Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro.
II. Os tribunais administrativos serão competentes para dirimir os litígios surgidos no âmbito das relações jurídicas públicas, devendo como tal considerar-se “aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.
III. Está neste caso a “REN – Redes Energéticas Nacionais, SGPS”, na qualidade de “concessionária da Rede Nacional de Transporte de Energia Eléctrica”, que implica o exercício de um poder público, que visa a instalação e a regular exploração das linhas de muito alta tensão, bens considerados de utilidade pública, actividade regulada por disposições de direito administrativo.