Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
114815/16.8YIPRT.G1
Relator: PEDRO DAMIÃO E CUNHA
Descritores: TEMAS DA PROVA
SELEÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CONHECIMENTO DO MÉRITO DA CAUSA NO DESPACHO SANEADOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. A exemplo do que sucedia no anterior art. 511º do CPC, o juiz ao identificar o objecto do litígio e ao fixar os temas da prova (art. 596º do CPC) deve continuar a seleccionar para a matéria de facto (para os temas da prova), aquela que seja relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis de direito.

II. Nessa conformidade, o conhecimento do mérito da causa no despacho saneador só deve ter lugar quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito, não se devendo ter em vista apenas a visão partilhada pelo juiz da causa.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães.

I. RELATÓRIO.

Recorrente(s):- M. J.;

Recorrida:- Companhia de Seguros A, S. A. ;


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M. J. intentou o procedimento de injunção contra Companhia de Seguros A, SA., que se transmutou na presente acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergente de contrato, peticionando a condenação desta no pagamento da quantia de € 14.158,42, correspondente a capital, acrescido de €102,00 de taxa de justiça e de juros de mora vincendos até efectivo pagamento.
Para tanto, alegou que celebrou com a requerida um contrato de seguro do ramo automóvel referente a uma viatura da qual é proprietária com a matrícula LD, com a cobertura de danos próprios pelo capital de €14.667,00, com uma franquia de €293,34.
Mais alega que sem o seu consentimento ou conhecimento a sua filha menor apoderou-se das chaves da viatura, conduzindo-a na via pública sem habilitação legal para o efeito, tendo entrado em despiste e embatendo contra um muro. Mercê do embate a viatura da autora ficou totalmente destruída, pretendendo ser indemnizada pela quantia de €14.158,42, correspondente ao valor da desvalorização do capital seguro deduzido da franquia.
Regularmente citada a requerida veio defender-se por excepção dizendo que ao abrigo da cláusula 9º, nº1, b) das Condições Gerais do Contrato de Seguro estão excluídas das coberturas de seguro facultativo os sinistros em que o veículo seguro seja conduzido por pessoa que, para tanto, não esteja legalmente habilitada, para além de impugnar a dinâmica do acidente e o cálculo de desvalorização.
Em contraditório veio a autora alegar que não se verifica a exclusão do contrato, porquanto não autorizou nem teve conhecimento do acto da sua filha. Entende a autora que a cláusula de exclusão apenas funciona se a tivesse consciente e voluntariamente autorizado a sua filha a conduzir a viatura, o que não sucedeu.
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De seguida, foi proferido saneador sentença que constitui o objecto do presente Recurso, onde o Tribunal de 1ª Instância conclui com a seguinte decisão:
“VI. Dispositivo
Julgo procedente por provada a excepção peremptória invocada pela ré e em consequência absolvo-a do pedido formulado pela autora. “
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É justamente desta decisão que a Autora/Recorrente veio interpor o presente Recurso, concluindo as suas alegações da seguinte forma:
. Fez a sentença recorrida uma errada interpretação e aplicação da cláusula 9ª nº.1 b) das Condições Gerais constantes da Apólice junta aos autos por também errada interpretação dos arts. 236º e 238º do Código Civil;
. Com tal interpretação, violou a sentença recorrida a Directiva nº. 93/13/CEE de 05.04.1993;
Porém e se assim se não entender:
. Deverá tal alínea contratual considerar-se nula por violação das regras constantes dos arts. 5º e 6º da LCCG (DL. 446/85 de 25/10 c/as alterações posteriores);
. Bem como por clara contradição com o disposto nos arts. 227º e 334º do Código Civil;
. Violou, ainda, a sentença recorrida o disposto no artº. 15º, nº 2 do DL. 291/2007 de 21/8,

Pelo que deverá ser revogada, ordenando-se a continuação dos autos para prova dos factos alegados nos pontos 8º a 17º do requerimento de injunção e decidindo-se a final conforme prova a produzir.”
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A Recorrida presentou contra-alegações, onde pugna pela improcedência do Recurso.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
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No seguimento desta orientação, a Recorrente coloca as seguintes questões que importa apreciar:
1. Saber se o sinistro participado pela Autora à Ré está coberto pelo contrato de seguro que celebraram (nomeadamente, pela cláusula 9ª, al. b) do contrato celebrado);
1.1. Relevância do facto alegado na petição inicial “a filha da Autora, ao conduzir o veículo segurado na Ré, sem habilitação legal para conduzir, agiu sem o conhecimento e contra a vontade da sua mãe, aqui Autora”- com a consequência de, se se entender que é relevante, a decisão recorrida deverá ser revogada, ordenando-se a continuação dos autos para prova dos factos alegados nos pontos 8º a 17º do requerimento de injunção e decidindo-se a final conforme prova a produzir.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A decisão proferida em 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
Factos Provados
1. Em 11.01.2016 a requerente celebrou com a requerida um acordo designado por “contrato de seguro do ramo automóvel” respeitante à viatura, sua propriedade, matrícula LD, marca Hyundai, mod. 130 CW 1.6, titulado pela Apólice nº. 8736564 ......
2. Válido pelo prazo de 1 (um) ano e seguintes, com um prémio anual de € 386,39 e pago semestralmente.
3. Em 11.01.2016 a requerente procedeu ao pagamento da quantia de € 234,20 correspondente ao 1º. Semestre (recibo nº. …), pelo que o contrato ficou em vigor até 10.07.2016.
4. O contrato de seguro celebrado foi do modelo MOTORE EXECUTIVE – denominação exclusiva em uso da requerida – sendo os riscos contratados definidos pela responsabilidade civil obrigatória bem como as condições especiais 003, 004, 005, 052, 053, 054, 056, 058, 077 e 078.
5. À data da celebração do contrato, o capital seguro era de € 14.667,00, sujeito a uma tabela de desvalorização calculada nos termos do DL. 214/97 de 16/8 e com uma franquia de € 293,34.
6. Em de 20.02.2016 a filha da requerente colocou-se ao volante, accionou o motor de arranque e passou a conduzir o LD na EN.2 no sentido Vila Real-Chaves.
7. Por motivos que se desconhecem, no Lugar denominado …. (a cerca de 500 metros da sua residência), a condutora perdeu o controlo do LD, despistando-se e embatendo muro que delimita a via.
8. Do referido acidente resultou a destruição total da viatura conforme peritagem ordenada pela requerida e levada a cabo pela firma UC 021589... elaborado em 02.03.2016.
9. A condutora do veículo da autora, não dispunha de habilitação legal para conduzir.
10. Na cláusula 9º, nº1, b) das Condições Gerais do Contrato de Seguro estão excluídas das coberturas de seguro facultativo os sinistros em que o veículo seguro seja conduzido por pessoa que, para tanto, não esteja legalmente habilitada.
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B)- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Já se referiu em cima a questão que importa apreciar e decidir.
Insiste a Recorrente, com a dedução do presente Recurso, que o sinistro ocorrido se mostra incluído no âmbito de cobertura do seguro celebrado.
Para tanto, invoca os seguintes argumentos:
1.1. Relevância do facto alegado na petição inicial “a filha da Autora, ao conduzir o veículo segurado na Ré, sem habilitação legal para conduzir, agiu sem o conhecimento e contra a vontade da sua mãe, aqui Autora”;
1.2. Saber se, a fazer-se a interpretação que a decisão recorrida efectuou da cláusula 9ª, nº 2, al b) do contrato, tal cláusula contratual geral deve ser considerada nula (arts. 5º a 7º da LCCG), na medida em que restringe excessivamente a responsabilidade da seguradora;
1.3. No art. 15º, nº 2 do DL 291/2007 abrangem-se situações em que a viatura segurada foi furtada ou roubada e a seguradora não fica excluída de responsabilidade;
1.4. Todas as situações previstas na cláusula 9ª -excepto as das als. f), G), e h) - implicam uma intencionalidade consciente e desejada da parte do Segurador em assumir as condutas aí previstas (als. a), c), d), e); e se assim é, porque razão se havia de excluir de tal entendimento na situação contemplada na al. b)?;
1.5 É esta a interpretação mais conforme ao tomador do seguro/consumidor como determina a Directiva nº 93/13/CEE de 5.4.1993.
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Vejamos se tem razão, começando pela apreciação do primeiro argumento apresentado.
Entendeu o Tribunal Recorrido que a cláusula 9ª, al. b) do contrato de seguro facultativo celebrado entre as partes abrange todas as situações em que os sinistros tenham sido provocados por condutor sem habilitação legal, independentemente deste ter sido autorizado pelo proprietário do veículo ou dessa circulação ser do conhecimento ou consentida por aquele.
Para tanto, após explanar as regras de interpretação dos contratos aplicáveis ao caso concreto, apresentou a seguinte argumentação que aqui se sintetiza:
- Se o legislador expressamente consagrou a possibilidade de desonerar a seguradora que satisfaz a indemnização da assunção dos riscos inerentes à condução sem habilitação legal (cfr. art. 27º, nº 1, d) do DL 291/2007), independentemente de o condutor estar autorizado a conduzir ou não pelo proprietário do veículo seguro, não se vê como justificar que a seguradora não pretendesse, no âmbito do seguro facultativo, assegurar o risco da condução sem habilitação legal, apenas nos casos em que o proprietário autoriza a condução.
- Tal interpretação não encontra suporte na interpretação literal da cláusula, nem numa interpretação conforme à unidade do sistema,
- E onera a seguradora com o pagamento de uma indemnização na sequência de um comportamento tipificado como crime.
Ora, em face desta argumentação, o Tribunal Recorrido logo concluiu que, sendo irrelevante apurar o conhecimento ou o consentimento da Autora para a filha poder circular com o veículo segurado, tinha que “… necessariamente que julgar procedente a excepção invocada pela Ré, considerando excluído do âmbito do contrato de seguro que celebrou com a autora as indemnizações decorrentes de acidentes provocados por condutor sem habilitação legal. “
A questão que separa as Partes- e o Recorrente da decisão proferida- contende, pois, com a interpretação da cláusula 9ª, nº 1, al. b) do contrato, nomeadamente no sentido de apurar se a referida cláusula exige que a condução sem habilitação legal, aí prevista como “causa de exclusão das garantias facultativas”, seja efectuada em situações em que o proprietário/segurado tenha autorizado, consentido, ou pelo menos, tido conhecimento que aquela circulação se fazia naquelas circunstâncias.
Ou, se pelo contrário, os requisitos da cláusula se preenchem com a mera constatação de que o sinistro ocorreu quando o veículo segurado era conduzido por pessoa que, para tanto, não estava legalmente habilitada (ou que se encontrava, temporária ou definitivamente, inibida de conduzir), independentemente desta condução se efectuar sem autorização, consentimento, conhecimento ou mesmo contra a vontade do proprietário/segurado.
Trata-se, pois, de uma questão que tem de ser decidida através da interpretação da cláusula em questão(1).
Vejamos, então, o teor integral da cláusula que aqui constitui o objecto da discussão:
-Cláusula 9ª, nº 1, al. b) das condições gerais do contrato
(Exclusões das garantias facultativas)
“Para além das exclusões constantes da cláusula 5ª, ficam igualmente excluídos das coberturas do seguro facultativo:
(…)
al. b) sinistros em que o veículo seguro era conduzido por pessoa que, para tanto, não estava legalmente habilitada ou que se encontre, temporária ou definitivamente, inibida de conduzir”.
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Como se referiu, a questão que é colocada ao presente Tribunal contende com o âmbito de cobertura do contrato de seguro celebrado.
Ou seja, do que se trata é de saber se o seguro contratado pela Autora junto da Ré abrange, no seu âmbito de cobertura, o sinistro aqui em discussão.
Já vimos a argumentação de cada uma das pates.
Não há dúvidas que o sinistro ocorreu quando o veículo segurado era conduzido por pessoa (a filha da Autora) que, para tanto, não estava legalmente habilitada.
Entendeu a sentença aqui posta em crise que só esse facto preenchia a al. b) do nº 1 da cláusula 9ª do contrato.
Nessa sequência, por considerar que “o Tribunal dispõe já de todos os elementos necessários à apreciação da excepção alegada pela Requerida”, o Tribunal Recorrido proferiu a decisão que aqui constitui o objecto do presente Recurso.
No entanto, como refere a Recorrente, a verdade é que a Autora havia alegado que a sua filha, ao conduzir o veículo de sua propriedade, segurado na Ré, sem habilitação legal para conduzir, agiu sem o conhecimento e contra a sua vontade (da Autora).
Com efeito, nos itens 12 a 14 da matéria de facto constante da petição inicial, a Autora alegou o seguinte:
“(item 12) Após ter sido alertada que a menor sua filha havia sofrido um acidente quando conduzia a sua (da Requerente) viatura (LD), alega que a conduta daquela foi efectuada…) sem conhecimento da Requerente e sabendo mesmo que actuava contra a sua vontade caso tivesse conhecimento das intenções; a menor sua filha apoderou-se das chaves da viatura que subtraiu da carteira da Requerente, sem que esta se tivesse apercebido (item 13) e … passou a conduzir o LD na EN nº 2 no sentido Vila Real-Chaves (item 14)
Ora, conforme resulta da fundamentação da sentença proferida, o Tribunal Recorrido entendeu, numa interpretação própria da referida cláusula, que, para esse efeito, era irrelevante apurar esta factualidade, pois que “…não se vê como justificar que a seguradora não pretendesse, no âmbito do seguro facultativo, assegurar o risco da condução sem habilitação legal, apenas nos casos em que o proprietário autoriza a condução…”.
Aqui chegados, a primeira questão que se coloca é, pois, a de saber se a opção do Tribunal Recorrido em proferir, desde já, decisão de mérito é correcta, tendo em conta os elementos factuais e probatórios que o processo dispunha no momento em que foi proferida a decisão.
Como é sabido, nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 595º do CPC, o despacho saneador destina-se a “conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória”.
Tal acontecerá (i) quando toda a matéria de facto se encontre provada por confissão expressa ou tácita, por acordo ou por documentos, (ii) quando seja indiferente, para qualquer das soluções plausíveis, a prova dos factos que permanecem controvertidos, e (iii) quando todos os factos controvertidos careçam de prova documental (2).
Ora, o Tribunal Recorrido, para fundamentar a sua opção de, desde logo, em sede de despacho saneador, proferir decisão de mérito, mencionou, de uma forma genérica, que: “…“o Tribunal dispõe já de todos os elementos necessários à apreciação da excepção alegada pela Requerida…”.
Subjacente a este entendimento parece estar a ideia do Tribunal Recorrido- desenvolvida na fundamentação de Direito- de que a aludida factualidade alegada pela Autora seria irrelevante para a decisão do mérito da causa e, nesse sentido, seria inútil a produção de prova sobre essa factualidade controvertida.
Assim, consegue-se atingir que o que levou o Tribunal Recorrido a considerar que “o estado dos autos permitia decidir de mérito no despacho saneador” foi a seguinte situação:
- Quanto aos factos provados: o facto de toda a matéria de facto se encontrar provada por acordo ou pelos documentos juntos aos autos.
- e quanto aos demais factos (nomeadamente, os alegados pela Autora nos itens 12 a 14 da petição inicial- ou, de uma forma mais alargada, de acordo com o defendido pela Recorrente, itens 8 a 17º): o facto de ser indiferente, para qualquer das soluções plausíveis de Direito, a prova dos factos que permanecem controvertidos.
Ora, se são estes os fundamentos que permitiram ao Tribunal Recorrido optar pela decisão de mérito, em sede de despacho saneador, importa verificar se efectivamente o Tribunal Recorrido podia, “em face dos elementos constantes dos autos” agora concretizados, efectuar o julgamento de facto que realizou, tendo em conta os meios de prova já produzidos (acordo e prova documental), e sem necessidade que fossem produzidos os demais meios de prova oferecidos (ou que viessem a ser oferecidos) pelas partes.
Avança-se já que o nosso entendimento é que não.
Na verdade, entende-se que o conhecimento do mérito da causa, total ou parcialmente, só deve ter lugar quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito e não tendo em vista apenas a partilhada pelo juiz da causa (3).
Assim, a exemplo do que sucedia no anterior art. 511º do CPC, o juiz, ao identificar o objecto do litígio e ao fixar os temas da prova (art. 596º do CPC), deve (continuar a) seleccionar para a matéria de facto (para os temas da prova), aquela que seja relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis de direito.
Nesta conformidade, “…o conhecimento imediato do mérito só se realiza no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito: ao despacho saneador não cabe antecipar qualquer solução jurídica e, muito menos, desconsiderar quaisquer factos que sejam relevantes segundo outros enquadramentos possíveis do objecto da acção. De maneira que se os elementos fornecidos pelo processo não justificarem essa antecipação, o processo deve prosseguir para a fase da instrução, realizando-se a apreciação do mérito na sentença final” (4).
Na verdade, “… quando o juiz coloca a si próprio a questão de saber se tem, efectivamente, condições para conhecer do mérito da causa, no despacho saneador, o mais frequente é ser duvidoso o sentido da resposta. Quer dizer, poucos serão os processos em que, na fase intermédia, o juiz pode, claramente, concluir que todos os factos alegados estão provados ou não provados… Por outro lado, esta dificuldade é agravada pela perspectiva de a questão de direito poder ter mais do que uma solução, implicando que o relevo dos referidos factos (ainda que controvertidos) varie em função desta ou daquela solução jurídica…” (5).
Assim, por uma questão de cautela, e para esse efeito, o Juiz deverá usar um critério objectivo, isto é, tomando como referência indicadores que não se cinjam à sua própria convicção acerca da solução jurídica do problema (6).
Ora, no caso dos autos, não obstante serem controvertidos entre as partes (não estarem provados por acordo) os factos relativos às circunstâncias em que a filha da Autora actuou (com ou sem autorização, consentimento ou conhecimento da Autora), entendeu o Tribunal Recorrido, apelando a uma interpretação própria do clausulado do contrato (nomeadamente, da cl. 9ª, nº 1, al b) das condições gerais e do regime jurídico aplicável) que o processo continha já todos os elementos necessários a proferir uma decisão de mérito conscienciosa.
Sucede que se nos afigura que o Tribunal Recorrido não podia, desde já, proferir tal decisão, porque desconsiderou o aludido comando legal de se dever atender à necessidade de ponderar a factualidade de acordo com (todas) as soluções igualmente plausíveis da questão de direito.
Com efeito, tendo em conta o aludido critério de atender às várias soluções plausíveis de Direito, impõe-se, no caso concreto, que a decisão a proferir, em sede de mérito, deva aguardar a produção dos meios de prova oferecidos ou que venham a ser produzidos pelas partes, seja em sede da fase instrutória do processo, seja em sede da Audiência Final, no que concerne à aludida factualidade alegada pela Autora e que ainda se mostra controvertida.
Na verdade, o conhecimento imediato do mérito só se realiza no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito.
Assim, como se disse atrás, ao despacho saneador não cabe antecipar qualquer solução jurídica e, muito menos, desconsiderar quaisquer factos que sejam relevantes segundo outros enquadramentos jurídicos possíveis do objecto da acção.
Ora, salvo o devido respeito pela solução jurídica apresentada na decisão recorrida (e reconhecendo-se o esforço interpretativo realizado), a verdade é que se julga que é de aceitar que outras soluções jurídicas igualmente plausíveis da questão de direito que aqui se pretende resolver podem aqui ser configuradas.
Com efeito, para tanto, basta considerar o que, em circunstâncias fácticas iguais (à alegação da Autora) e interpretando cláusula contratual com o mesmo teor da aqui interpretada, foi decidido no recente ac. da RP de 8.5.2017 (7).
Na verdade, aí ficou decidido justamente que:
“…Não opera a cláusula de exclusão prevista em contrato de seguro na qual se estabelece que “ficam igualmente excluídas das coberturas do seguro facultativo os sinistros em que o veículo seguro seja conduzido por pessoa que, para tanto, não esteja legalmente habilitada ou que se encontre, temporária ou definitivamente, inibida de conduzir” quando o sinistro tenha sido provocado por condutor que, apesar de não ter a necessária habilitação legal, o faça contra a vontade do respectivo proprietário ou detentor.”
Tal conclusão decorre das seguintes considerações:
“Isto posto (referindo-se à antecedente explanação das regras de interpretação do contrato), tendo em conta o contexto da mencionada cláusula e o fim prosseguido pela mesma, na sua economia o respectivo sentido não pode deixar de ser o de que a exclusão nela prevista apenas opera quando o sinistro seja provocado “por pessoa que, para tanto, não esteja legalmente habilitada ou que se encontre, temporária ou definitivamente, inibida de conduzir” e que, apesar disso, conduzia o veículo seguro com autorização do respectivo proprietário. Portanto, o que releva para efeito da exclusão em causa é que o veículo esteja (ou não) sob o domínio ou direcção efectiva do respectivo proprietário ou detentor.
Tal cláusula tem, assim, por escopo incentivar o proprietário ou detentor do veículo seguro a uma prudência mínima na forma como o veículo é utilizado, designadamente não permitindo que o mesmo seja conduzido por alguém que não disponha de licença legal para o efeito.
Coerentemente correlacionadas entre si e interpretadas como as interpretaria um “declaratário normal” – pelo critério objectivo que a lei consagra (art. 236º, nº 1 do Cód. Civil) – impõe-se a conclusão de que não pode ser convocada a mencionada cláusula de exclusão se o veículo, no momento em que ocorreu o sinistro, era utilizado abusivamente por pessoa não autorizada a fazê-lo pelo respectivo proprietário ou detentor (8); de contrário, ficaria praticamente despida de conteúdo a cobertura facultativa prevista na condição especial 005.
Consequentemente, nas situações em que o sinistro seja provocado por pessoa sem a necessária habilitação legal para conduzir que tenha utilizado o veículo sem autorização do respectivo proprietário ou detentor, naturalmente não se justifica a exclusão, na justa medida em que o veículo deixou de estar sob o seu poder de facto, domínio ou direcção.
Este é, pois, o sentido que melhor é comportado pelas cláusulas contratuais que definem o âmbito objectivo do seguro contratado e, portanto, aquele que deve valer em consonância com os referidos critérios hermenêuticos (e que tem arrimo no texto da apólice, o que, por conseguinte, releva para os efeitos do disposto no art. 238º do Cód. Civil, dado estarmos em presença de negócio formal) (…)
Com efeito, perante o tecido fáctico apurado (v.g. pontos nºs 11 [no qual se considerou provado que “o condutor não o autorizou a conduzir o veículo”] e 20 [no qual se deu como demonstrado que “o veículo era conduzido por aquele G… contra a vontade do condutor e proprietário do veículo sinistrado”], ao invés do entendimento sufragado pela apelante, não pode deixar de se concordar com a decisão recorrida quando afirma que, in abstracto, esse substrato factual seria passível de preencher os elementos típicos do crime de furto de uso de veículo previsto e punível pelo art. 208º do Código Penal (e assim permitindo fazer despoletar a cobertura facultativa contemplada na referida condição especial 005, dado que a perda total do veículo teve na sua génese esse furtum usus).
De facto, de acordo com a respectiva previsão normativa, pratica o furto de uso de veículo quem utilizar automóvel sem autorização de quem de direito, sendo que, como bem sublinha FARIA COSTA (9) a intenção pertence ao mundo interior do agente, a qual se revela por factos objectivos - se o agente, contra a vontade do legítimo dono do veículo, o priva do seu gozo passando a utilizá-lo como bem entende, não pode deixar de se considerar demonstrada a intenção de fazer uso do mesmo em proveito próprio.”
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Aqui chegados, e conforme decorre do exposto, no caso concreto, tendo em conta que outras soluções jurídicas igualmente plausíveis da questão de direito poderão aqui ser configuradas (como se deu exemplo) e que, para essas outras soluções, a matéria de facto alegada pela Autora nos itens 12 a 14 poderá ser relevante (ou de uma forma mais alargada, os itens 8 a 17 da petição inicial), impõe-se ainda que seja enunciado um ou mais temas da prova respeitante ao apuramento da aludida factualidade, já que se trata de matéria de facto controvertida.
Devem, pois, os presentes autos prosseguir os seus ulteriores termos processuais, com a elaboração do despacho destinado a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova (os já referidos que contendem com a matéria de facto constante dos pontos 12 a 14 da petição inicial e ainda os que o Tribunal Recorrido entender ser pertinente formular, tendo em conta o que se alega de uma forma mais alargada nos pontos 8 a 17), sendo de admitir que, havendo produção de prova sobre esses pontos da matéria de facto, se possa alcançar a almejada decisão conscienciosa da questão de mérito aqui precipitadamente decidida.
É, pois, nesse exacto ponto que, procedendo a apelação, e ficando prejudicado o conhecimento das demais questões nela suscitadas, deve ser revogada a sentença, com a consequência de, em 1ª Instância, dever retomar-se a fase de saneamento do processo, substituindo-se a decisão aqui revogada por decisão que atenda àquela matéria de facto que se considerou relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis para a questão de direito, à luz das posições assumidas nos articulados e do regime dos arts. 597º, 595º e 596º do CPC.
Assim, e pelo exposto, deve proceder a presente apelação, revogando-se a decisão impugnada, que deve ser substituída por outra que dê obediência ao acima exposto.
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III- DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em:
- Julgar procedente a presente apelação, e, em consequência, revogar a sentença recorrida que deve ser substituída por outra decisão que ordene o prosseguimento dos ulteriores termos processuais, retomando a fase do saneamento do processo, com a elaboração do despacho destinado a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova, em que se dê obediência ao acima exposto;
- Considerar prejudicado o conhecimento das demais questões enunciadas pela Recorrente.
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Custas pela Recorrida (artigo 527.º nº 1 do CPC);
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Guimarães, 11 de Julho de 2017

(Dr. Pedro Alexandre Damião e Cunha)

(Dra. Maria João Marques Pinto de Matos)


Consigna-se que a Exma. 2ª Adjunta votou em conformidade a decisão exarada supra, que só não assina por não se encontrar presente (art. 153º, nº 1, in fine, do C.P.C.).

(Dra. Rita Maria Pereira Romeira)

1. Sobre esta questão da interpretação do contrato de seguro o presente Relator já proferiu um Acórdão em 29.6.2017 (proc. 1013/16.6T8VRL.G1) onde explana as regras de interpretação aplicáveis neste âmbito do contrato de seguro.
2. Cf. com referência a idêntica norma do anterior Código de Processo Civil – artigo 511º, n.º1, al b) – ABRANTES GERALDES, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, II Volume, pág. 131-132.
3. Cf. Ac. da RL de 17/12/2001 publicado em www.dgsi.pt.
4. Ac da Relação de Coimbra de 2-07-2013 publicado em www.dgsi.pt.
5. Paulo Pimenta, in “Processo civil declarativo”, págs. 256/7.
6. Paulo Pimenta, in “Processo civil declarativo”, págs. 257; cfr. Lebre de Freitas, in “A acção declarativa comum à luz do CPC de 2013”, pág. 186.
7. (relator: Miguel Baldaia), in dgsi.pt;
8. “ Nota 6 do citado Acórdão: Veja-se, a este propósito, o lugar paralelo estabelecido no nº 1 do art. 503º do Cód. Civil, em que somente se responsabiliza o proprietário ou detentor enquanto tiver a direcção efectiva do veículo causador do dano e o veículo estiver a ser utilizado no seu próprio interesse. Deixando de ter essa direcção efectiva deixa outrossim de poder ser responsabilizado pelas consequências advenientes de eventual acidente provocado pelo condutor desse veículo automóvel.”
“ Nota 8 do Acórdão citado: In Direito Penal Especial, pág. 77; em análogo sentido, inter alia, acórdão desta Relação de 11.11.87 (CJ, ano XII, tomo 5º, pág. 231) e acórdão da Relação de Coimbra de 23.09.2009 (processo nº 171/01.GCPBL.C1), acessível em www.dgsi.pt.