Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
568/08.3TBAVV.G1
Relator: CARVALHO GUERRA
Descritores: EXAME CRÍTICO DAS PROVAS
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
ABUSO DE DIREITO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/13/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1. Na fundamentação de facto da sentença o juiz terá de tomar em consideração não só os factos que o julgador da matéria de facto deu como provados em função da sua livre apreciação das provas oferecidas, mas ainda outros que se lhe impõem independentemente desta, mas por força da lei, quais sejam os admitidos por acordo, os provados por documento ou por confissão reduzida a escrito e é em relação a estes que o artigo 659º, n.º 3 do Código de Processo Civil lhe impõe que faça o exame crítico das respectivas provas.
2. Para que possa funcionar o comando contido no artigo 334º, tem de haver um excesso manifesto, o que significa que a existência do abuso de di­reito tem de ser facilmente apreensível sem que seja preciso o recurso a extensas congemi­nações.
3. Sendo reduzida a gravidade dos defeitos existentes em que se analisa o cumprimento defeituoso da obrigação da autora e não atingindo o crédito desta números muito elevados, não se afigura desproporcionado e, por isso, abusivo o recurso pelos réus à figura da excepção de não cumprimento de contrato com o fim de assegurar o cumprimento simultâneo das obrigações.
4. Não podendo os réus ignorar que tinham encomendado determinados materiais de construção civil, terá de se concluir que, negando tal encomenda, deduziram oposição que sabiam destituída de fundamento, litigando, pois, de má fé.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª secção civil do Tribunal da Relação de Guimarães:

*
S… Cozinhas, Ldª” intentou a presente acção com processo comum e forma sumária contra José e mulher, Maria, pedindo a condenação dos Réus a pagarem-lhe a quantia de euros 7031,13, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal em vigor, até efectivo e integral pagamento, elevando-se os já vencidos em euros 117,19.
Alega, em síntese, que se dedica ao fornecimento e instalação de cozinhas, roupeiros, casas de banho e de mais móveis à medida, em madeira e no domínio da actividade comercial da Autora, os Réus solicitaram o fornecimento e instalação de diversos serviços e móveis, nomeadamente roupeiros, uma cama, banco de apoio, lacagem de portas e de corrimão, colocação de soalho flutuante e rodapé, conforme melhor descrito na factura n.º 17 junta aos autos.
Refere que entregou as mercadorias e acabou os serviços solicitados pelos Réus em 30 de Julho de 2008, tendo-se os Réus mostrado satisfeitos e entregue a quantia de euros 3.500,00 por conta do valor da factura.
Em 15/08/2008, a Autora emitiu a factura junta sob o documento n.º 1, cujo valor é de euros 10.531,13 que aqueles, face ao acordado com a Autora, deveriam ter pago no prazo de 30 dias, em 15/09/2008; uma vez que ainda estava e está em dívida a quantia de, euros 10.531,13 – euros 3.500,00 = euros 7.031,13, a Autora interpelou os Réus para pagar mas eles reclamaram que a lacagem não estava em conformidade e que não tinham encomendado qualquer cama e seus derivados.
Atesta que os Réus demonstraram uma total de falta de respeito, para com a Autora, uma vez que a cama fornecida foi solicitada à medida e na mesma matéria (tipo de madeira) que a existente no primeiro andar da moradia dos Réus e tinha sido entregue no passado dia 1 de Julho de 2008.
Garante também que a Autora ainda se deslocou à casa dos Réus para vistoriar os defeitos que os Réus alegavam, mas cedo se aperceberam que os mesmos não passavam de uma desculpa de mau pagador, uma vez que os Réus simplesmente se negaram a efectuar qualquer pagamento.
Assevera que a Autora comunicou que aceitava realmente que a lacagem das portas estava um pouco deficiente e comprometeu-se, mediante o pagamento da quantia em falta, a proceder à uma nova lacagem das portas, no entanto, os Réus continuam a não querer pagar o que está em dívida.
Os Réus foram regularmente citados para contestar, tendo apresentado contestação, onde pugnam pela improcedência da acção e a sua absolvição do pedido e deduziram reconvenção, pedindo a condenação da Autora
a) a proceder às obras necessárias e adequadas à eliminação dos defeitos e colocação dos materiais acordados e conclusão da obra no prazo de 1 mês, após decisão do tribunal, na casa dos requerentes;
b) a retirar da casa dos Réus a cama em cerejeira, colchão e acessórios identificados no articulado, declarando-se inexistente qualquer contrato de compra e venda entre as partes e fazê-lo no prazo de oito dia contados da decisão do tribunal;
c) a pagar aos Réus ora Reconvintes a quantia de euros 1000,00 a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos;
ou, para o caso de a Auora não o fazer,
d) a pagar aos requerentes a quantia de euros 5.000,00, acrescidos do IVA à taxa em vigor, custo provável da reparação e eliminação dos defeitos da obra, actualizados de acordo com o índice de preços existentes, bem como a pagar igualmente a quantia de 1.000,00 euros a título de indemnização, acrescida dos respectivos juros de mora contados à taxa legal de 7% ao ano, desde a citação da presente acção até efectivo pagamento, bem como em custas e procuradoria condigna;
e) a retirar da casa dos Réus a cama em cerejeira, colchão e acessórios identificados no articulado, declarando-se inexistente qualquer contrato de compra e venda entre as partes, e fazê-lo no prazo de oito dia contados da decisão do tribunal;
f) em qualquer dos casos a pagar aos Reconvintes a quantia de euros 200,00 por cada dia de atraso até conclusão da obra ou da retirada da cama da casa dos Réus, a título de sanção pecuniária compulsória;
g) e também em qualquer dos casos ser a Autora condenada como litigante de má fé, em multa e indemnização a favor dos Réus em montante nunca inferior a 1.000,00 euros.
Alegam para tanto e em síntese que os Réus solicitaram à Autora o fornecimento e colocação de banco de apoio janela em wengeu com acabamentos a verniz poliuterano mate, o fornecimento e colocação de roupeiro em carvalho com acabamentos a verniz poliuterano mate, o fornecimento e colocação de roupeiro em carvalho com acabamentos a verniz poliuterano mate, o fornecimento e colocação de cabeceira de cama com módulos de gavetas e mesas – de cabeceira (conforme projecto) em carvalho/secupira com acabamentos a verniz poliuterano mate, a lacagem de 6 portas, o envernizamento de escadas e lacagem do corrimão do rodapé das escadas, ascendendo o montante global dos serviços e bens encomendados a euros 5.430,00 (acrescido do IVA à taxa legal) de acordo com o orçamento apresentado pela Autora.
Mais alegam que nessa mesma data os Réus procederam ao pagamento à Autora, a título de sinal e princípio de pagamento, da quantia de euros 1500,00 e a Autora obrigou-se a completar aos trabalhos até ao dia 15 de Maio de 2008.
Referem que os Réus encomendaram posteriormente mediante prévio orçamento apresentado pela Autora a colocação de rodapé em mdf e colocação de soalho flutuante estratificado HDF; que sem qualquer explicação e fundamento a Autora prolongou a execução dos trabalhos e entrega dos materiais para além da data acordada, tendo os Réus, em Julho, pese os trabalhos não estivessem concluídos, realizado outro pagamento, desta vez no montante de euros 2.000,00 a solicitação da Autora que alegou estar a passar por muitas dificuldades financeiras.
Acrescentam que quando a Autora deu os trabalhos por concluídos, em Julho de 2008 – com mais de dois meses de atraso relativamente à data prevista − logo os Réus reclamaram quanto à qualidade dos mesmos, pois apresentavam os seguintes vícios e defeitos:
- o roupeiro do quarto simples apresentava uma lacagem defeituosa em vários pontos, com irregularidades, falta de pintura, diferentes tonalidades e brilho e outras;
- o roupeiro do quarto de casal apresentava igualmente lacagem defeituosa em vários pontos com irregularidades, falta de pintura, diferentes tonalidades e brilho e outras;
- o módulo da cama de casal tinha diversos problemas de acabamento quer ao nível da estrutura quer ao nível da pintura/cobertura;
- a lacagem das portas estava mal executada apresentando vários defeitos com irregularidades, falta de pintura, diferentes tonalidades e brilho e outras;
- o envernizamento das escadas estava defeituosamente realizado com irregularidades, falta de pintura, diferentes tonalidades e brilho e outras;
- o corrimão apresentava um trabalho de lacagem mal efectuado e com defeitos com irregularidades, falta de pintura, diferentes tonalidades e brilho e outras;
- o rodapé estava mal colocado e não lacado da forma acordada;
- portas de interior lacagem com cobertura insuficiente e porosa sendo camuflados com silicone não adequado; - Portas de roupeiros lacagem insuficiente e porosa, na parte inferior o MDF está a nu;
- o interior dos roupeiros com gavetas, porta calças danificadas a nível das furações, parafusos sem protecção, prateleiras irregulares;
- degrau de escadas danificado;
- envernizamento de escadas com deficiência e pouca cobertura, baixa qualidade para pisos com passagem frequente;
- limpeza de pintura nos pisos não efectuada no devido momento.
No decorrer dos trabalhos de lacagem, a Autora danificou diversos elementos da moradia, designadamente o soalho, degrau das escadas e ao colocar o soalho do Hall, que havia danificado, a Autora danificou os frisos respectivos.
A Autora incluiu abusivamente na factura serviços que não haviam sido contratados, designadamente a lacagem – alteração itens madeira LAC – dos móveis que foi realizada por sugestão da Autora e com a garantia de inexistência de acréscimo do preço acordado, incluiu ainda com a designação de Extra a colocação de puxadores em inox, quando aqueles nunca forma encomendados pelos Réus tendo sido colocados pela Autora sem qualquer comunicação ou acordo dos Réus e ainda, com a mesma designação de extras, inclui frisos para soalho em alumínio e cerejeira, quando se os colocou foi devido ao facto de a Autora ter causado danos no soalho do hall e ter sido necessário substituir o mesmo o que obrigou à colocação de novos frisos.
Afirmam que a Autora facturou ainda como extra – ver factura junta – uma cama em cerejeira, um estrado de lâminas e um colchão, que os Réus nunca encomendaram.
Face à inércia da Autora e porque a manutenção da cama em casa causava transtornos aos Réus por falta de espaço, estes interpelaram novamente a Autora para que a retirasse, advertindo-a que, caso tal não sucedesse, enviariam por transportadora a cama e acessórios para as instalações da Autora, mas a Autora não veio levantar a cama, tendo os Réus no dia 12 de Dezembro de 2008 contratado uma transportadora para enviar a cama para Ponte de Lima para as instalações da Autora, despendendo a quantia de euros 150,00.
Alegam também que, pese a muita insistência e diversas interpelações dirigidas pelos Réus à Autora, esta nunca solucionou nem resolveu ou eliminou os problemas e defeitos que os trabalhos efectuados apresentavam.
Referem que como os trabalhos não foram executados conforme acordado, os Réus nada devem à Autora e que, como a Autora não cumpriu o contrato, por não ter realizado os trabalhos previstos no mesmo, com a qualidade e materiais acordados e por não ter terminado a obra dentro do prazo estipulado, assiste aos Réus a excepção de não cumprimento do contrato – artigo 428º e seguintes do Código Civil.
Dizem igualmente que a Autora litiga com manifesta má fé, pois bem sabe que nada lhe é devido, e, como tal, terá de ser condenada em multa e indemnização a favor dos Réus que nunca deverá ser fixada em valor inferior a euros 1.000,00.
Concluem, dizendo que a conclusão dos trabalhos e a referida reparação dos defeitos ascendem a quantia nunca inferior a euros 5.000,00, a que acresce outros montantes que são da responsabilidade do Autora e que também se reclamam (euros 250,00 para a realização de peritagem/vistoria à obra, euros 150,00 pelo transporte da cama e euros 600,00 pelos danos não patrimoniais).
A Autora apresentou articulado de resposta nos termos exarados nos autos, onde conclui dizendo o seguinte: “Se requer à V. Ex.ª, se digne julgar totalmente improcedentes por não provadas as excepções e a Reconvenção deduzidas pelos RR, e em consequência condená-los no pagamento da quantia peticionada. Ou caso assim, V. Ex.ª, o entenda, se digne ordenar a suspensão da instância pelo prazo de 30 dias, porque continua a Autora disponível para proceder à lacagem das portas interiores, nos moldes descritos em 75º a 78º do presente articulado, devendo os Réus proceder ao pagamento imediato da quantia de 5931,13 euros acrescidos de juros vencidos e vincendos até ao seu efectivo pagamento e remeter o pagamento da quantia remanescente para o dia em que a nova lacagem das portas interiores seja realizada e entregue.”
Foi elaborado despacho saneador, tendo-se determinado a dispensa da fixação da base instrutória uma vez que, por um lado, não se realizou a audiência preliminar e, por outro, a selecção da matéria de facto controvertida se revestia de manifesta simplicidade.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância do formalismo legal.
O Tribunal respondeu à matéria de facto, sem reclamações.
Mais se determinou que se procedesse à notificação dos Réus para, no prazo de 10 dias, querendo, se pronunciarem sobre a sua eventual condenação em multa como litigantes de má fé, nos termos do disposto no artigo 456.º do Código de Processo Civil e artigo 27º do Regulamento das Custas Processuais (aplicável ao caso concreto por força do artigo 27º, n.º 3, c) do Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, na redacção dada pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro).
Os Réus pronunciaram-se dizendo, em síntese que, face à matéria de facto dada como provada e designadamente ao facto do Tribunal dar por assente a existência de defeitos e vícios da empreitada contratada com a Autora bem como todas as vicissitudes decorrentes da execução defeituosa da empreitada e atraso na entrega da obra, jamais se concebe que os Réus tenham feito um uso manifestamente reprovável do processo, com o fim de conseguir um objectivo ilegal ou impedir a descoberta da verdade.
Concluem dizendo que dos autos e da apreciação crítica às provas produzidas nada releva no sentido de indiciar sequer qualquer má-fé ou atitude reprovável dos Réus que fundamente qualquer litigância de má-fé.
A final, foi proferida sentença, que julgou a acção procedente e a reconvençaõ parcialmente procedente e, em consequência:
a) condenou os Réus a pagarem à Autora a quantia de euros 7.031,13, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal em vigor, até efectivo e integral pagamento, elevando-se os já vencidos em euros 117,19 à data da Petição Inicial.
b) condenou a Autora a proceder às obras necessárias e adequadas à eliminação dos defeitos, nos precisos termos referidos nos pontos n.ºs 25 e 56 dos factos assentes, no prazo de 1 (um) mês.
c) absolveu a Autora dos demais pedidos reconvencionais deduzidos pelos Réus.
d) condenou os Réus, como litigantes de má fé, no pagamento da multa processual que se fixa em 3 UCs (três unidades de conta) ao abrigo dos artigos 456º, n.ºs 1 e 2, alíneas a), b) e d), do Código de Processo Civil, e artigo 27º do Regulamento das Custas Processuais.
Desta sentença apelaram os Réus, que apresentaram alegações e formularam conclusões.
Não foram oferecidas contra alegações.
Cumpre-nos agora decidir.
*
Sabendo-se que o objecto dos recursos se encontra limitado pelas conclusões das alegações – artigos 684º, n.º 3 e 690º do Código de Processo Civil – são as seguintes as questões que nos são colocadas pelas formuladas pelos Apelantes:
I. averiguar se, em face da prova produzida, diversa deveria ter sido a decisão da 1ª instância acerca da matéria de facto;
II. saber se a sentença em recurso enferma de qualquer das nulidades previstas no artigo 668º do Código de Processo Civil;
III. apurar se a invocação da excepção do não cumprimento do contrato não configura qualquer abuso de direito;
IV. verificar se os Réus litigam de má fé.
*
I. Começando pela impugnação da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, de acordo com o disposto no artigo 712º do Código de Processo Civil, a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690º-A, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
Os depoimentos prestados em audiência de julgamento foram gravados e aos autos encontram-se também juntos documentos, pelo que estamos claramente perante a situação prevista na alínea a) segunda parte.
Mas importa referir que, como vem sendo repetidamente afirmado pela doutrina e também pela jurisprudência, nomeadamente a deste tribunal, se é certo que a Relação pode alterar a decisão da 1ª instância quanto à matéria de facto naqueles casos, não se segue daí que se imponha a realização de um novo julgamento em segunda instância.
É que tal possibilidade não derroga os princípios da imediação, no sentido de que “o julgador da matéria de facto deve ter o contacto mais directo possível com as pessoas e coisas que servem de fontes de prova”, da oralidade, “a produção dos meios de prova pessoal tem lugar oralmente perante os julgadores da matéria de facto” e da livre apreciação da prova, “porque há imediação, oralidade e concentração... ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que através delas se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas da experiência que forem aplicáveis” – ver Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, páginas 155 e seguintes.
Mas não se trata também de procurar substituir a livre apreciação da prova produzida do julgador da 1ª instância pela do da 2ª instância, mesmo porque este se encontra em manifesta desvantagem relativamente àquele, que se encontra em posição privilegiada para o efeito, em contacto directo com a mesma; com efeito, o sistema de registo da prova “transporta consigo o risco de se atribuir equivalência formal a depoimentos substancialmente diferentes, de se desvalorizarem alguns deles, só na aparência imprecisos, ou de se dar excessiva relevância a outros, pretensamente seguros, mas sem qualquer credibilidade”.
De facto, tal sistema não garante a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e de onde é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar de terminada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo”.
Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores” – Acórdão da Relação do Porto de 19 de Setembro de 2000, Colectânea de Jurisprudência, Ano XXV, Tomo IV, página 188, citando Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II Volume, página 263 e seguintes.
Entendendo-se o princípio da livre apreciação da prova como o poder que se atribui ao julgador de apreciar livremente as provas, decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, subordinada apenas à sua experiência e prudência, exprimindo sempre juízos de probabilidade resultantes de uma análise objectiva de todos os elementos de prova que foram levados a julgamento e não como expressão de um juízo arbitrário, de mero capricho ou de simples produto do momento, do que se trata verdadeiramente é de sindicar se esse poder foi usado pelo julgador da 1ª instância dentro daqueles limites ou se, ao invés, resvalou para a arbitrariedade, o capricho ou o produto do momento.
São os seguintes os factos em causa, que o tribunal considerou como provados:
Artigo 2º da petição inicial:
No domínio da actividade comercial da Autora, os Réus solicitaram o fornecimento e instalação de diversos serviços e móveis, nomeadamente roupeiros, uma cama, banco de apoio, lacagem de portas e de corrimão, colocação de soalho flutuante e rodapé, conforme melhor descrito na factura n.º 17, junta aos autos.
45º da matéria dada como provada (artigo 16º da resposta):
Os extras contratados, encomendados e fornecidos incluem também o fornecimento dos seguintes elementos:
- uma cama de casal em cerejeira, com o seu estrado de lâminas e o seu colchão;
- frisos para soalho em alumínio;
- frisos para soalho em cerejeira que, depois de colocados, foram mandados retirar para colocar os frisos em alumínio para combinar com as demais peças de madeira que foram lacadas;
- colocação de puxadores em inox nas portas interiores;
- lacagem de portas que inicialmente não estavam incluídas no orçamento junto aos autos.
E também os constantes dos seguintes artigos da contestação que o tribunal considerou como não provados e que os Réus entendem que deveriam ter sido dados como provados:
21º
Abusivamente a Autora incluiu na factura serviços que não haviam sido contratados, designadamente a lacagem – alteração itens madeira LAC – dos móveis que foi realizada por sugestão da Autora e com a garantia de inexistência de acréscimo do preço acordado.
22º
Incluiu ainda com a designação de Extra a colocação de puxadores em inox, quando aqueles nunca forma encomendados pelos Réus, tendo sido colocados pela Autora sem qualquer comunicação ou acordo dos Réus.
23º
E ainda com a mesma designação de extras inclui frisos para soalho em alumínio e cerejeira, quando se os colocou foi devido ao facto de a Autora ter causado danos no soalho do hall e ter sido necessário substituir o mesmo o que obrigou à colocação de novos frisos.
26º
Os Réus nunca encomendaram a referida cama e acessórios à Autora.
27º
A Autora colocou-a, por sua exclusiva vontade e iniciativa, no dia 5 de Julho de 2008, na casa dos Réus sem que estes a tivessem solicitado ou contratado a sua compra.
28º
Provavelmente para ver se era do agrado dos Réus e assim “forçá-los” à sua compra.
30º
Solicitando que a Autora fizesse imediatamente (o levantamento da cama) pois a manutenção da cama na moradia causava problemas de espaço.
31º
A Autora foi protelando o levantamento da cama e acessórios.
64º
Até à presente data tudo se encontra por fazer e os Réus ficaram impossibilitados de habitar na sua casa nas condições desejadas.
65º
A solução dos defeitos e vícios passa, em primeira linha, pela substituição de materiais, correcta lacagem dos mesmos e reposição e rectificação do pavimento, ou seja, a necessidade de serem efectuados conforme as normas técnicas e regras da arte, como contratado, com a desmontagem e limpeza do silicone, decapagem dos materiais existentes para uma nova lacagem.
66º
A conclusão dos trabalhos e a referida reparação dos defeitos ascendem a quantia nunca inferior a 5.000,00 euros.
72º
Os Réus ficaram nervosos e ansiosos com toda esta situação e sofreram o desgosto de ver a sua casa pior do que se encontrava antes das obras ali realizadas pela Autora.
Revisitámos todos os elementos de prova juntos ao processo e procedemos à audição da gravação dos depoimentos.
Em relação aos factos constantes dos artigos 2º da petição inicial e 16º da resposta, que o tribunal considerou como provados, referem os Réus que, no seu modesto entender, equacionando o teor da nota de encomenda nº 0832, datada de 14/04/2008 com os demais factos invocados pelos Réus o Tribunal “a quo” deveria ter respondido à matéria de facto constante do artigo 2º, provado que “No domínio da actividade comercial da Autora, os Réus solicitaram o fornecimento e instalação de diversos serviços e móveis, nomeadamente roupeiros, banco de apoio, lacagem de portas e de corrimão, colocação de soalho flutuante e rodapé … conforme melhor descrito na factura nº 17, junta aos autos e que aqui se considera reproduzida, com excepção de todos os itens referidos como Extra” e, em consequência, à matéria constante do ponto 45 da matéria dada como provada, deveria ter considerado como não provado que os Réus contrataram com a Autora a encomenda e fornecimento dos itens facturados como extra.
É que, acrescentam, da nota de encomenda nº 0832, datada de 14/04/2008, não consta a encomenda de qualquer cama em madeira, colchão e estrado de lâminas, nem quaisquer referências à lacagem dos móveis, nem aos puxadores em inox ou aos frisos dourados colocados pela Autora e cujo preço é reclamado na factura datada de 13/08/2008.
E, com efeito, assim é.
No entanto, a circunstância de dessa nota não constar a encomenda desses artigos e serviços não impõe necessariamente que eles não possam ter sido encomendados e o seu fornecimento contratado entre as partes noutro momento e em relação aos “demais factos invocados pelos Réus” não passam disso mesmo, de factos alegados pelos Réus e que não constituem meio de prova.
Em relação aos demais factos, os Réus louvam-se nos depoimentos de parte dos Réus Maria Manuela Afonso Campos Peixoto e José Armando Fernandes Peixoto e suas testemunhas Cláudio Agostinho Cerqueira de Araújo, Joaquim Rodrigues Amorim, Secundino Sá Rodrigues e Letícia Campos Peixoto.
Em relação aos depoimentos de parte, uma vez que os mesmos não contêm qualquer confissão, os mesmos oferecem-se-nos inócuos e até inúteis, uma vez que se limitam a confirmar o que já haviam afirmado nos seus articulados.
Quanto aos depoimentos das testemunhas, o Secundino Sá Rodrigues referiu ter-lhe a Ré dito que havia encomendado à Autora a lacagem e que lhe não disse que ela se recusava a reparar os defeitos que se verificavam, o Joaquim Rodrigues Amorim, que lá andava a pintar paredes quando a cama foi entregue, referiu que a Ré lhe tinha dito não ter encomendado a cama, enquanto a testemunha Cláudio Agostinho, que também lá andava a executar o mesmo trabalho, refriu que a Ré teria dito que não foi aquilo que encoemndou.
Deste modo, dos depoimentos mencionados, teremos apenas o de Letícia Campos Peixoto, que começou por afirmar desconhecer o que os pais tinham encomendado, para depois dizer que a cama não tinha sido encomendada.
Este depoimento é contrariado pelos depoimentos das testemunhas Dina Salomé Lima e Salvador António Lima que, na altura, colaboravam com a Autora no exercício da sua actividade, designadamente no relacionamento entre ela e os Réus e que, apesar de familiares dos sócios da Autora, respectivamente mulher de um deles e pai deles, não temos qualquer especial razão para considerar menos que os restantes; perante depoimentos contraditórios sobre os mesmos factos, na ausência de outros elementos de prova que que permitissem dar mais relevo a uns em detrimento dos outros, ao tribunal não ficava outra saída que não considerar os factos como não provados pelo que, com excepção do referente à cama de casal em cerejeira, com o seu estrado de lâminas e o seu colchão que terá de se excluir das respostas aos pontos 2º e 45º, nenhuma outra censura se nos oferece fazer à decisão da 1ª instância em relação à sua decisão sobre a matéria de facto.
Acrescentam ainda que “a sentença recorrida cai em manifesta contradição no julgamento que efectuou entre os factos provados e até confessados pela Autora e os factos não provados”, mas não indica que factos provados estão em contradição com que factos não provados e nós não vislumbramos qualquer contradição, pelo que o recurso não poderá ser atendido nesta parte.
São, pois, os seguintes os factos provados:
1. A Autora “S…Cozinhas, Ldª” dedica-se ao fornecimento e instalação de cozinhas, roupeiros, casas de banho e demais móveis à medida, em madeira;
2. no domínio da actividade comercial da Autora, os Réus solicitaram o fornecimento e instalação de diversos serviços e móveis, nomeadamente roupeiros, uma cama, banco de apoio, lacagem de portas e de corrimão, colocação de soalho flutuante e rodapé, conforme melhor descrito na factura n.º 17, junta aos autos, com excepção da cama de casal em cerejeira, com o seu estrado de lâminas e o seu colchão;
3. a Autora entregou essas mercadorias e acabou os diversos serviços solicitados pelos Réus em finais de Julho de 2008;
4. os Réus entregaram à Autora a quantia de euros 3.500,00 por conta do valor da factura;
5. em 15/08/2008, a Autora emitiu a factura junta sob o documento n.º 1, cujo valor é de euros 10.531,13;
6. e que os Réus, face ao acordado com a Autora, deveriam ter pago no prazo de 30 dias, em 15/09/2008;
7. uma vez que ainda estava e está em dívida a quantia de euros 7.031,13 (10.531,13 - 3.500,00) a Autora interpelou os Réus para pagar;
8. mas os Réus reclamaram que a lacagem não estava em conformidade e que não tinham encomendado qualquer cama e seus derivados;
9. a cama fornecida foi solicitada à medida e na mesma matéria (tipo de madeira) que a existente no primeiro andar da moradia dos Réus e tinha sido entregue no passado dia 1 de Julho de 2008;
10. a Autora deslocou-se à casa dos Réus para vistoriar os defeitos que os Réus alegavam;
11. os Réus negaram-se a efectuar qualquer outro pagamento;
12. a Autora comunicou que aceitava realmente que a lacagem das portas estava um pouco deficiente e comprometeu-se, mediante o pagamento da quantia em falta, a proceder a uma nova lacagem das portas;
13. mas os Réus continuam a não querer pagar o que está em dívida;
14. apesar de diversas interpelações extrajudiciais nesse sentido;
15. os Réus solicitaram à Autora o fornecimento de bens e prestação de serviços a realizar na sua habitação;
16. os Réus inicialmente solicitaram à Autora o fornecimento e colocação de banco de apoio janela em wengeu com acabamentos a verniz poliuterano mate, o fornecimento e colocação de roupeiro em carvalho com acabamentos a verniz poliuterano mate, o fornecimento e colocação de roupeiro em carvalho com acabamentos a verniz poliuterano mate, o fornecimento e colocação de cabeceira de cama com módulos de gavetas e mesas – de cabeceira (conforme projecto) em carvalho/secupira com acabamentos a verniz poliuterano mate, a lacagem de 6 portas, o envernizamento de escadas e lacagem do corrimão do rodapé das escadas;
17. os Réus receberam o respectivo orçamento e assinaram a nota de encomenda em 14 de Abril de 2008; conforme documento n.º 1 junto aos autos pelos Réus e cujo conteúdo se considera aqui reproduzido.
18. ascendendo o montante global dos serviços e bens encomendados a euros 5.430,00 euros (acrescido do IVA à taxa legal) de acordo com o orçamento apresentado pela Autora; – conforme documento n.º 1 junto aos autos pelos Réus e cujo conteúdo se considera aqui reproduzido.
19. nessa mesma data, os Réus procederam ao pagamento à Autora, a título de sinal e princípio de pagamento, da quantia de euros 1500,00; – conforme documento n.º 1 junto aos autos pelos Réus e cujo conteúdo se considera aqui reproduzido.
20. a Autora obrigou-se a completar aos trabalhos até ao dia 15 de Maio de 2008; – conforme documento n.º 1 junto aos autos pelos Réus e cujo conteúdo se considera aqui reproduzido.
21. os Réus encomendaram posteriormente, mediante prévio orçamento apresentado pela Autora, a colocação de rodapé em mdf e a colocação de soalho flutuante estratificado HDF; – conforme documento n.º 2 junto aos autos pelos Réus e cujo conteúdo se considera aqui reproduzido.
22. a Autora prolongou a execução dos trabalhos e entrega dos materiais para além da data acordada;
23. os Réus, em Julho, pese os trabalhos não estivessem concluídos, realizaram outro pagamento, desta vez no montante de euros 2.000,00, a solicitação da Autora;
24. os Réus reclamaram por escrito para a Autora dizendo, nomeadamente, o seguinte:
“Venho confirmar por este meio os vários defeitos constatados na obra de carpintaria efectuada pela vossa empresa ao meu domicílio situado S. Cosme e S. Damião no lugar de Gerei, Arcos de Valdevez.
Os defeitos são os seguintes:
- roupeiro do quarto simples: problemas nas prateleiras, lacagem defeituosa em vários pontos;
- roupeiro quarto casal: lacagem defeituosa em vários pontos;
- módulo da cama de casal: vários problemas de acabamento;
- lacagem das portas mal elaborada, com vários defeitos;
- envernizamento das escadas mal elaborado;
- corrimão: lacagem mal elaborada;
- rodapé mal colocado e não lacado;
- no decorrer da lacagem dos aros das portas, foram danificados vários elementos do meu domicílio.
Se num prazo de 15 dias essas anomalias não forem corrigidas, serei obrigado a recorrer a outra empresa para resolver as mesmas. O valor relativo a essas correcções será deduzido do valor em dívida pela obra em geral.
Arcos de Valdevez, 9 de Setembro de 2008.”
25. verifica-se que as portas interiores apresentam fissuras na lacagem nas almofadas próprias da madeira ter “trabalhado” e quanto aos demais trabalhos efectuados e materiais fornecidos pela Autora, constata-se que apresentam os seguintes vícios:
- existem parafusos sem protecção e prateleiras irregulares (cfr. a 1.ª fotografia de fls. 164);
- na parte inferior de uma porta do roupeiro do quarto de casal, o MDF está a nu (cfr. a 2.ª fotografia de fls. 165);
- deficiente acabamento conforme 1ª fotografia de folhas 166 e fotografias 1 e 2 de folhas 132;
26. no decorrer dos trabalhos de lacagem, a Autora danificou uma parte do soalho do Hall, mas rectificou tal situação;
27. os Réus reclamaram junto da Autora verbalmente e por escrito a correcção de defeitos e vícios;
28. tendo a Autora assumido a responsabilidade e o compromisso de proceder às reparações necessárias;
29. a Autora enviou aos Réus carta com factura que correspondia aos trabalhos contratados;
30. os Réus reclamaram junto da Autora verbalmente e por escrito a correcção de defeitos e vícios;
31. a Autora facturou ainda como extra – ver factura junta com a petição inicial − uma cama em cerejeira, um estrado de lâminas e um colchão;
32. mas os Réus, após a sua entrega, disseram à Autora que não desejavam adquirir a cama e que a Autora devia proceder ao seu levantamento da moradia dos Réus;
33. a Autora foi interpelada por escrito para levantar a cama e acessórios, sendo advertida pelos Réus para que, caso tal não sucedesse, enviariam por transportadora a cama e acessórios para as instalações da Autora;
34. a Autora não foi levantar a cama;
35. os Réus, no dia 12 de Dezembro de 2008, contrataram uma transportadora para enviar a cama para Ponte de Lima para as instalações da Autora;
36. as instalações da Autora estavam encerradas e o funcionário da transportadora foi informado, depois de ter estabelecido contacto telefónico com a Autora, que a Autora não aceitava que a cama ali ficasse depositada;
37. razão pela qual voltou a transportar a cama e acessórios para a residência dos Réus;
38. no transporte da cama, os Réus despenderam a quantia de euros 150,00;
39. a cama e acessórios permanecem na residência dos Réus;
40. continuando à disposição da Autora para que esta a levante;
41. para a realização de peritagem/vistoria à obra, tiveram os requeridos de pagar euros 250,00;
42. os Réus sofreram incómodos diversos com esta situação;
43. os Réus tentam furtar-se ao pagamento do montante peticionado que sabem em dívida, alegando para o efeito factos que sabem não corresponder à verdade;
44. a Autora assumiu uma data para finalização dos seus serviços, mas tal data foi ultrapassada face aos extras solicitados pelos Réus, uma vez que estes tinham implicações lógicas na aplicação dos materiais, anteriormente encomendados;
45. os extras contratados, encomendados e fornecidos incluem também o fornecimento dos seguintes elementos:
- frisos para soalho em alumínio;
- frisos para soalho em cerejeira que, depois de colocados, foram mandados retirar para colocar os frisos em alumínio para combinar com as demais peças de madeira que foram lacadas;
- colocação de puxadores em inox nas portas interiores;
- lacagem de portas que inicialmente não estavam incluídas no orçamento junto aos autos.
46. o que existe e foi reconhecido pela Autora é uma lacagem deficiente das portas interiores, que esta assumiu;
47. mas já antes de iniciar a sua prestação de serviço, a Autora avisou os Réus que as portas interiores iriam ficar com algumas imperfeições;
48. por se tratar de portas pré-existentes, que já tinham sido pintadas anteriormente, também com algumas imperfeições e que, como tal, a lacagem não iria corrigir os defeitos existentes;
49. as diferenças “de tonalidades de brilho” que o envernizamento não oculta tão só consegue disfarçar um pouco resultam da madeira ser antiga, como aliás a Autora avisou na fase de negociação da obra;
50. como é do perfeito conhecimento dos Réus, no início da obra, quando a Autora retirou o soalho do hall, deu conta que uma parte do remate da escada com o soalho já estava rachada, tendo chamado à atenção da Ré Manuela para essa situação;
51. como os frisos eram dourados e segundo os Réus não combinavam, estes pediram à Autora para alterar os frisos com a colocação de frisos em madeira/cerejeira, coisa que a Autora fez;
52. a lacagem dos móveis não foi realizado pela Autora, mas sim por uma empresa subcontratada;
53. no entanto, após a colocação dos frisos em cerejeira, os Réus não gostaram e pediram à Autora para colocar frisos em alumínio, porque combinavam melhor com os puxadores;
54. a cama foi desenhada e fabricada a pedido dos Réus, para combinar com a obra contratada;
55. no dia 12 de Dezembro de 2008, cerca de 6 (seis) meses após a sua montagem e entrega, a Autora recebe o telefonema de uma transportadora cujo motorista se encontrava à porta das instalações da Autora, para entregar a referida cama;
56. a Autora, apesar de entender não ter qualquer responsabilidade por algumas imperfeições da lacagem das portas interiores por estas anteriormente já terem sido pintadas de forma deficiente, assumiu que caso assim os Réus o entendessem, iriam proceder a uma nova lacagem das portas interiores, tendo para o efeito, os Réus que pagar a parte remanescente da obra que efectivamente não se encontra com defeitos, ou seja, no montante de euros 5.931,13.
*
II. Passando à questão de saber se a sentença em recurso enferma da nulidade prevista no artigo 668º do Código de Processo Civil, referem-se os Apelantes à circunstância de a sentença se não pronunciar acerca de cada um dos documentos juntos pelos Réus nem emitir qualquer juízo de valor ou referência aos depoimentos das testemunhas.
A confusão dos Apelantes parece-nos evidente.
É certo que o artigo 659º, n.º 3 do Código de Processo Civil impõe que “Na fundamentação da sentença, o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito e os que o tribunal colectivo deu como provados, fazendo o exame crítico das provas de que cumpre conhecer”.
Lebre de Freitas, Código de Processo Civil, Anotado, página 643º, pronunciando-se sobre a questão, refere: “Na anterior decisão sobre a matéria de facto (do tribunal colectivo ou do tribunal singular que presidiu à audiência final) foram dados como provados os factos cuja verificação estava sujeita à livre apreciação do julgador (ver o n.º 2 da anotação ao artigo 655º). Agora, na sentença, o juiz deve considerar, além desses, os factos cuja prova resulte da lei, isto é, da assunção dum meio de prova com força probatória pleníssima , plena ou bastante, independentemente de terem sido dados como assentes na fase da condensação. Ao fazê-lo, o juiz examina criticamente as provas mas de modo diferente de como fez o julgador da matéria de facto: não se trata já de fazer jogar a convicção formada pelo meio de prova mas de verificar atentamente se existiram os factos em que se baseia a presunção legal (lato sensu) e delimitá-los com exactidão para seguidamente aplicar a norma de direito probatório".
Significa isto que, como claramente resulta da norma, na fundamentação de facto da sentença o juiz terá de tomar em consideração não só os factos que o julgador da matéria de facto deu como provados em função da sua livre apreciação das provas oferecidas, mas ainda outros que se lhe impõem independentemente desta, mas por força da lei, quais sejam os admitidos por acordo, os provados por documento ou por confissão reduzida a escrito e é em relação a estes que o artigo 659º, n.º 3 do Código de Processo Civil lhe impõe que faça o exame crítico das respectivas provas já que, em relação às demais, essa tarefa fora já feita pelo julgador da matéria de facto, como sucedeu em relação aos documentos juntos pelos Réus e aos depoimentos das testemunhas pelo que, não o fazendo, a sentença não incorre em omissão alguma.
Referem ainda os Apelante que a incorre também em omissão de pronúncia ao abster-se e ignorar qualquer alusão à denúncia reiterada dos defeitos/vícios da empreitada realizada pela Autora; a esta objecção diremos apenas que são eles próprios que afirmam que “…na matéria de facto dada como assente o Tribunal “ a quo” tenha mencionado nos pontos 8, 24, 27 e 28 que os Réus reclamaram verbalmente e por escrito a existência e verificação dos defeitos da obra/empreitada.
Da mesma sorte, em relação às portas de lacar, a sentença apenas se refere e mais não podia fazer à factualidade que logrou provar-se e o que se provou foi o que consta dos nºs 25 e 56 do elenco dos factos provados.
*
III. passando a analisar a questão de saber se a invocação da excepção do não cumprimento do contrato não configura qualquer abuso de direito, refere-se na sentença em recurso que se provou que, dos serviços executados pela Autora, se verificam algumas imperfeições da lacagem das portas interiores e que, por essa razão, os Réus invocam em seu favor a chamada excepção de não cumprimento do contrato, recusando-se a pagar a quantia em dívida enquanto a Autora não procedesse à reparação de tais imperfeições, mas considerou que o seu exercício constituía manifesto abuso de direito, tendo em atenção reduzidíssima gravidade de defeitos efectivamente existentes.
E com efeito, já antes da entrada em vigor do actual Código Civil, Manuel de Andrade defendia a existência de abuso de direito quando este era exercido "em termos clamorosa­mente ofensivos da justiça", mostrando-se "gravemente chocante e reprovável para o sen­timento jurídico prevalecente na colectividade" e Vaz Serra, na mesma linha de pensa­mento, aludia à "clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante" – Teoria Geral das Obrigações, página 63 e BMJ 85, página 253.
Hoje, de acordo com o estabelecido no artigo 334º do Código Civil, "é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites im­postos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito".
Saliente-se que a nossa lei não se contentou, desta sorte, com qualquer excesso; o excesso cometido tem que ser manifesto para poder desencadear a aplicabilidade do artigo 334º, por isso, os tribunais só podem fiscalizar a "moralidade dos actos pratica­dos no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver mani­festo abuso" – Autores e obra citados.
De todo o modo, para que possa funcionar o comando contido no artigo 334º, tem de haver um excesso manifesto, o que significa que a existência do abuso de di­reito tem de ser facilmente apreensível sem que seja preciso o recurso a extensas congemi­nações.
De tudo o que se disse, que não deixa de estar em consonância com o que se defende na sentença em recurso verifica-se que se, efectivamente, é reduzida a gravidade dos defeitos existentes em que se analisa o cumprimento defeituoso da obrigação da Autora, a verdade é que o crédito desta também não atinge números muito elevados, pelo que se nos não afigura desproporcionado e, por isso, abusivo o recurso pelos Réus à figura da excepção de não cumprimento de contrato com o fim de assegurar o cumprimento simultâneo das obrigações.
Mas isso não significa que os Réus não sejam devedores da parte do preço ainda não paga e que, por isso, se não conheça da existência da sua obrigação e não tenham de ser condenados a satisfazer esse pagamento, mas tão só que, não sendo ainda a sua prestação exigível, os Réus não estão nem incorrem em mora enquanto a prestação da Autora se não mostrar integralmente cumprida – ver artigo 662º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
Como assim, tratando-se do preço do contrato celebrado entre as partes, em face dos factos provados e não estndo provado que os Réus tenham encomendado a cama, colchão e estrado de lâminas constantes da factura de folhas 13, no montante de euros 1.295,00 euros, a que acresce IVA no montante de euros 259,00 euros, sendo certo que o ónus respectivo impendia sobre a Autora, como facto constitutivo do direito invocado, deduzidos esses montantes, a quantia que se encontra por pagar ascende ao montante de euros 5.457,13.
*
IV. Analisando a conduta processual dos Réus, como se sabe, às partes exige-se sempre um dever geral de probidade, designadamente, que não articulem factos que saibam contrários à verdade – artigo 264º, nº 2 do Código de Processo Civil.
Assim, nos termos do artigo 456º, nº 2 desse diploma, litiga de má fé quem alterar conscientemente a verdade dos factos, deduzir oposição cuja falta de fundamento não desconhece, omitir factos essenciais à descoberta da verdade, fizer do processo um uso reprovável, visando um fim ilegal, entorpecer a acção da justiça ou impedir a descoberta da verdade, sendo certo que a simples circunstância de a parte não lograr fazer a prova dos factos que alega não se mostra suficiente para o efeito.
Mas, para que se verifique uma conduta de má fé e consequente condenação em multa e indemnização é suficiente, ao abrigo do citado preceito, que o agente actue com negligência grave, isto é, que tenha um comportamento leviano ou temerário, desde que grave, não se exigindo o dolo, seja instrumental, seja substancial.
No caso em apreço, não estamos claramente perante uma situação em que a Apelante simplesmente não logrou fazer a prova dos factos que alegou, mas da prova de outros incompatíveis com os alegados e que não podiam deixar de ser do conhecimento da Autora.
Com efeito, na sua contestação, alegam os Réus que a Autora incluiu com a designação de Extra a colocação de puxadores em inox, quando aqueles nunca forma encomendados pelos Réus tendo sido colocados pela Autora sem qualquer comunicação ou acordo dos Réus e incluiu ainda com a designação de Extra a colocação de frisos para soalho em alumínio cerejeira, quando se os colocou foi devido ao facto de a Autora ter causado danos no soalho do hall e ter sido necessário substituir o mesmo, o que obrigou à colocação de novos frisos, sendo certo que se veio a provar o contrário, isto é, terem sido por eles encomendados como resulta do ponto 2 dos factos provados, que remete para o documento de folhas 13 que constitui a mencionada factura pelo que, não podendo eles ignorar esse facto, se terá de concluir terem deduzido oposição que sabiam destituída de fundamento, litigando de má fé, pelo que bem andou o tribunal em tê-los condenado como tal.
Pelo exposto, acorda-se em conceder parcial provimento ao recurso e condenam-se os Réus a pagarem à Autora a quantia de euros 5.457,13 (cinco mil quatrocentos e cinquenta e sete euros e treze cêntimos, no mais se confirmando a sentença recorrida.
Custas por Autora e Réus, na proporção de ¼ pelo primeiro e ¾ pelos segundos.
Guimarães, 13.09.2012
Carvalho Guerra
Conceição Bucho
Antero Veiga