Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2157/05-1
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: ASSISTENTE
LEGITIMIDADE
INTERESSE EM AGIR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/23/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO DA PARTE PENAL
PROVIDO A PARTE CÍVEL
Sumário: I – Pugnam os recorrentes/assistentes pela aplicação ao arguido de pena de prisão, em vez da pena de multa em que foi condenado na primeira instância, por entenderem que “a pena aplicada não é suficiente para assegurar as finalidades da prevenção especial”
II – Porém, no acórdão de fixação de jurisprudência 8/99 de 30-10-97 (DR Iª Série – A de 10-8-99), o STJ firmou jurisprudência no sentido de que «o assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do MP. Relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir».
III – Concretizando o que se deve entender pelo referido «concreto e próprio interesse em agir», escreveu-se naquele acórdão que “o processo penal não pode ser entendido como um corpo fechado em que as suas decisões não importem reflexos noutros campos de direito que não os estritamente penais (reflexos a manifestarem-se no próprio processo em curso, mas em matéria não penal, ou em processo de outra natureza). (…) Se a discordância deriva de causa que afectou o interesse do assistente e em razão da qual se possa achar vencido, tem este interesse em agir, pelo que pode recorrer”. Porém, “este interesse em agir tem de ser concreto e próprio, pelo que é insuficiente se o tribunal, concluindo que se não está face a um mero desejo de vindicta privada, nada mais encontrar”
IV – Ora, a prossecução dos fins visados com a prevenção especial com que os recorrentes fundamentam o seu recurso, nada tem a ver com a tutela dos interesses particulares dos ofendidos, mas com exigências de outra ordem, que os transcendem, e que apenas ao Estado incumbe tutelar.
V – Assim, não existindo aquele «concreto e próprio interesse em agir», não podem os assistentes recorrer - art. 401 n° 2 do CPP, pelo que, se conclui pela improcedência do recurso.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

No Processo comum com intervenção do tribunal singular 219/02.OTAFLG do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Felgueiras, foi proferida sentença que:
1 - Condenou o arguido, "A", como autor imediato de um crime de emissão de cheque sem provisão qualificado, p.p. pelo art.º 11.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do D.L. n.º 454/91, de 28 de Dezembro, na pena de trezentos e cinquenta dias de multa, à taxa diária de trinta e cinco euros;
2 - Condenou o arguido, "A", como autor imediato de um crime de emissão de cheque sem provisão qualificado, p.p. pelo art.º 11.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do D.L. n.º 454/91, de 28 de Dezembro, na pena de trezentos e cinquenta dias de multa, à taxa diária de trinta e cinco euros;

3 - Condenou o arguido "A", em cúmulo jurídico, na pena única de seiscentos dias de multa, à taxa diária de trinta e cinco euros, no total de vinte e um mil euros;

4 - Condenou o demandado "A" a pagar ao demandante "B" a quantia de cinquenta mil euros, acrescida de juros de mora, às sucessivas taxas legais de 7% (até 30 de Abril de 2003) e 4% (a partir de 1 de Maio de 2003), contados desde a data de vencimento do cheque até efectivo e integral pagamento;

5 - Condenou o demandado "A" a pagar ao demandante "C" a quantia de cinquenta mil euros, acrescida de juros de mora, às sucessivas taxas legais de 7% (até 30 de Abril de 2003) e 4% (a partir de 1 de Maio de 2003), contados desde a data de vencimento do cheque até efectivo e integral pagamento;

6 - Condenou o arguido "A" no pagamento das custas criminais, nos termos do art.º 514.º, n.ºs 1 e 3, do C.P.P., fixando-se a taxa de justiça criminal em 5 UC, de acordo com o disposto nos art.ºs 85.º, n.º 1, e 82.º, n.º 1, do Código das Custas Judiciais, e a procuradoria criminal, que se fixa em 1/2 da taxa de justiça - art.º 95.º, n.º 1, do C.C.J. - a que acresce 1% nos termos do disposto no art.º 13.º, n.º 3, do D.L. n.º 423/91, de 30 de Outubro; e

7 - Condenou os demandantes "B" e "C" no pagamento das custas cíveis.


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Os assistentes e demandantes cíveis "B" e "C" interpuseram recurso desta sentença.

Suscitam as seguintes questões:

- a espécie de pena aplicada ao arguido, que defendem ser privativa da liberdade e não de multa; e

- a condenação dos assistentes nas custas dos pedidos cíveis, que defendem ser da responsabilidade do arguido.


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Respondendo, o magistrado do MP junto do tribunal recorrido defendeu a improcedência do recurso na parte criminal e a procedência na parte relativa à condenação das custas cíveis.

Nesta instância o sr. procurador-geral adjunto emitiu parecer no mesmo sentido, defendendo a rejeição do recurso na parte crime.

Cumpriu-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.

Colhidos os vistos, realizou-se a audiência.


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Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:

Até data concretamente não apurada, mas situada no ano de 2001, os assistentes "C" e "B" integravam os corpos gerentes do Futebol Clube de ....
No exercício de tais funções, os assistentes procederam ao desconto bancário de uma letra de câmbio que o arguido aceitou para pagamento dos direitos desportivos referentes a alguns atletas que aquele Clube lhe cedeu. A fim de proceder a tal desconto, a instituição bancária exigiu que os assistentes dessem o seu aval à mesma, garantindo o seu pagamento, facto que foi do conhecimento do arguido.
Porque na data do vencimento da aludida letra, o arguido não procedeu ao seu pagamento, foram os assistentes que, a título pessoal e como avalistas, efectuaram o pagamento do valor da letra junto da instituição bancária onde a mesma tinha sido descontada, o que também foi do conhecimento do arguido.
Para ressarcir os assistentes do valor por estes suportado com o sobredito pagamento, no dia 25 de Janeiro de 2002, o arguido "A", preencheu, datou (com a mesma data), assinou e entregou àqueles, em Braga, os seguintes cheques;
- n.º 9375425963, sacado sobre a conta n.º 991..., do Banco Montepio Geral, agência de Senhora-a-Branca, Braga, no valor de 50. 000, 00 euros; e
- n.º 6675425966, sacado sobre a conta n.º 991..., do Banco Montepio Geral, agência de Senhora-a-Branca, Braga, no valor de 50. 000, 00 euros.
Porém, no dia 28 de Janeiro de 2002, visando não pagar tais cheques, o arguido "A" enviou ao Banco Montepio Geral uma carta onde ordenou àquela instituição bancária que considerasse nulos e sem efeito os cheques supra descriminados.
Face a tal ordem, quando os ofendidos apresentaram os referidos cheques a pagamento na agência do Banco Nacional Ultramarino de ..., dentro do prazo legal de oito dias, a contar das suas datas de emissão, foram os mesmos devolvidos com a menção de “falta ou vício da vontade”, no dia 30/01/2002, conforme se comprova pelos carimbos apostos nos seus versos.
O arguido "A" agiu de forma livre, voluntária e consciente, querendo emitir os referidos cheques, apesar de bem saber que os mesmos não iriam obter pagamento, porque iria ordenar à instituição bancária sacada o seu cancelamento, como efectivamente ordenou, sendo certo que o mesmo tomou tal atitude com a intenção de causar prejuízo patrimonial aos queixosos, como efectivamente causou, em montante pelo menos equivalente ao aposto naqueles títulos cambiários, para além de o mesmo bem saber que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Mais se provou:
a) O arguido tem os antecedentes criminais constantes de fls. 291;
b) O arguido é empresário, sendo sócio-gerente ou administrador de pelo menos 4 sociedades das áreas do turismo, imobiliário e agenciamento de jogadores profissionais de futebol, tendo-se recusado a dizer quanto aufere mensalmente;
c) Possui habitação própria em Cascais, em Braga, na Quinta de Jós, e uma habitação arrendada na cidade de Braga;
d) É proprietário, por si ou através de uma das suas empresas, do Hotel de Ofir e do Hotel Turismo, em Braga.
e) Tem uma filha maior a seu cargo;
f) Tem a 4.ª classe e um curso intermédio de turismo, obtido em França;
g) Tem os antecedentes criminais constantes de fls. 291.

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Considerou-se não provado:
► que os cheques tivessem sido preenchidos e entregues aos ofendidos nas instalações do Futebol Clube de ..., nesta comarca.
► Os títulos em que se baseia o pedido de indemnização cível foram emitidos sob coacção.

FUNDAMENTAÇÃO
1 - A espécie de pena
Pugnam os recorrentes pela aplicação ao arguido de pena de prisão, em vez da pena de multa em que foi condenado na primeira instância. Fazem-no por entenderem que “a pena aplicada não é suficiente para assegurar as finalidades da prevenção especial”.
Porém, o STJ, no acórdão 8/99 de 30-10-97 – DR Iª Série - A de 10-8-99 – , firmou jurisprudência no sentido de que «o assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do MP, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir».
Concretizando o que se deve entender pelo referido «concreto e próprio interesse em agir», escreveu-se naquele acórdão que “o processo penal não pode ser entendido como um corpo fechado em que as suas decisões não importem reflexos noutros campos de direito que não os estritamente penais (reflexos a manifestarem-se no próprio processo em curso, mas em matéria não penal, ou em processo de outra natureza). (...) Se a discordância deriva de causa que afectou o interesse do assistente e em razão da qual se possa achar vencido, tem este interesse em agir, pelo que pode recorrer”. Porém, “este interesse em agir tem de ser concreto e próprio, pelo que é insuficiente se o tribunal, concluindo que se não está face a um mero desejo de vindicta privada, nada mais encontrar”.
Como se referiu, são os próprios recorrentes que dizem que a pena põe «não assegura as finalidades da prevenção especial».
Mas a prossecução dos fins visados com a prevenção especial nada tem a ver com a tutela dos interesses particulares dos ofendidos, mas com exigências de outra ordem, que os transcendem, e que apenas ao Estado incumbe tutelar.
Não existindo aquele «concreto e próprio interesse em agir», não podem os assistentes recorrer – art. 401 nº 2 do CPP, pelo que, sem necessidade de outras considerações, se conclui pela improcedência, nesta parte.

2 – A condenação dos demandantes cíveis nas custas do pedido cível
Escreveu-se na sentença recorrida:
As custas do pedido civil - considerando que os cheques em apreço são, por si só, títulos executivos, não havendo, portanto, necessidade de os lesados deduzirem o pedido de declaração do direito - são a suportar pelos demandantes "B" e "C", de acordo com o disposto nos art.ºs 523.º do C.P.P. e 449.º, n.ºs 1 e 2, al. c), do C.P.C”.
Este entendimento não pode ser sufragado, porque a «causa de pedir» do pedido cível formulado em processo penal por crime de emissão de cheque sem provisão não é a relação cartular decorrente da emissão do cheque, mas os danos causados por uma conduta que, além de ilícita, é considerada como crime. O pedido de indemnização cível em processo penal tem sempre que ser fundamentado na prática de um crime (art. 71 do CPP), e na violação ilícita do direito de outrem que lhe é inerente (cfr. art. 483 do Cod. Civil). No processo penal não pode ser pedido o cumprimento de um contrato, ou uma indemnização pelo simples não cumprimento de um contrato, ainda que os factos possam ser parcialmente os mesmos e o efeito útil económico seja coincidente entre as duas acções. “A indemnização civil que interessa ao direito penal e ao processo penal só pode consistir (…) na indemnização de perdas e danos emergentes do crime, excluindo-se, portanto e claramente, a indemnização que resulte da responsabilidade contratual” – cfr. fundamentação do Assento n.º 7/99, de 17-06-1999 - D.R. I-A, n.º 179, de 03-08-99
Por outras palavras, a decisão cível deste processo penal, não consiste na declaração de que os demandantes têm direito a receber as quantias tituladas pelos cheques e respectivos juros (caso em que teria cabimento a norma do art. 449 nº 2 al. c) do CPC), mas na fixação de uma indemnização pela prática de factos ilícitos.
Tem, pois, nesta parte, que ser concedido provimento ao recurso.

DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães:
1 - Negam provimento ao recurso na parte relativa à decisão penal; e
2 – Concedendo provimento ao recurso, quanto ao demais, revogam a sentença recorrida na parte em que condenou os recorrentes nas custas do pedido cível, as quais, na primeira instância, serão suportadas pelo arguido.
Custas, na parte crime pelos recorrentes, fixando-se em 3 UCs a taxa de justiça devida por cada um deles.
Na parte cível, não são devidas custas nesta instância.