Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I.RELATÓRIO
Esta acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum foi intentada por C, viúva, R e esposa, MF, residentes na Rua do Baiunco, n.º 19, Sendim, MM e esposa MT, residentes na Avenida Monterreal, 5, P06, C1, Loureiral, Baiona, Pontevedra, contra A e marido, T, residentes na Praceta Egas Moniz, 164, 1.º Dtº, Porto os 1.ºs e 2.ºs pedindo a condenação dos réus a reconhecer os autores como donos e legítimos proprietários dos prédios identificados em 1.º e 7.º da pi; reconhecer que os 1.ºs e 2.ºs autores sempre fizeram o acesso aos seus prédios pela rodeira/caminho identificada em 24.º e 25.º da p.i; reconhecer que o seu prédio se encontra onerado com uma servidão por destinação de pai de família e confirmada por contrato na partilha; a recolocarem a rampa que liga a estrada nacional e os prédios todos refazendo a rodeira sempre existente e a absterem-se de praticar quaisquer actos que perturbem a posse ou violem o direito de passagem.
Subsidiariamente, e caso assim não se entenda sejam os RR condenados a Reconhecer o Direito de Passagem na forma referida atrás e nos termos previstos na lei para prédio encravado, conforme artigo 1550 do C. Civil.
Alegam para o efeito e, em síntese que são donos e legítimos proprietários dos prédios melhor identificados nos artigos 1.º e 7.º da p.i; que por si e seus antepossuidores, desde há mais de 50 e até 60 anos que estão na posse dos referidos prédios, tendo-os cultivado, semeado e colhido os frutos, ininterruptamente, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja e na convicção de exercerem um direito próprio e não lesarem direitos de outrem; os referidos prédios e o prédio da ré, identificado em 13.º, são todos contíguos entre si e tiveram origem num prédio único, propriedade de AJ, sogro da 1.ª A, avô dos autores R e Manuel e avô da ré; após a morte daquele os seus filhos partilharam o prédio em partes iguais, divisão que deu origem aos três prédios e que sempre respeitaram quer nas delimitações quer no acesso aos mesmos o qual sempre se fez por uma rodeira que por acordo dos três irmãos se manteve como entrada de todos, sendo que o acesso para os três prédios sempre se efectuou pela rodeira que confrontava com os três prédios no lado poente, onde confrontam com a antiga linha férrea, com cerca de 3 metros de largura e numa extensão de 130 metros, sempre visível; Em Maio de 2012, os réus retiraram a rampa descendente que ligava a EN e os prédios de todos e destruíram a rodeira em toda a sua extensão, impossibilitando os autores de acederem aos seus prédios.
E se assim não se entendesse, sempre teriam direito à constituição de servidão de passagem por que se trataria de prédio encravado ou por usucapião, pelo uso durante muito tempo de forma publica, sempre com o ânimo de quem exerce direito próprio, na convicção de tal passagem lhes pertencer e de serem os seus verdadeiros donos, como tal sendo reconhecidos por toda a gente, fazendo-o de boa-fé por ignorarem lesar terceiros ou direito alheio, pacificamente, porque sem violência, contínua e publicamente, à vista e com o conhecimento de todos e sem oposição de ninguém, sobre o prédio propriedade dos Réus.
Concluem pela procedência da acção.
Regularmente citados, os réus contestaram, impugnando o alegado pelos autores, alegando em síntese que nunca existiu nenhuma rodeira com as características descritas pelos autores e que o acesso aos prédios se efectuava por local diverso, sendo certo que após a desactivação da linha férrea do Sabor, os proprietários de prédios confinantes com os autores e réus passaram a aceder aos mesmos pela antiga linha férrea.
Concluem pela improcedência da acção.
Foi proferido despacho saneador no qual se julgou ser o tribunal o competente em razão da nacionalidade, matéria, e hierarquia, ser o processo o próprio e não enfermar de quaisquer nulidades que o invalidem, disporem as partes de personalidade e capacidade judiciárias e serem legítimas, encontrarem-se devidamente patrocinadas e inexistirem outras nulidades, excepções ou questões prévias de que cumprisse conhecer então. No final foi identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
Realizada audiência de julgamento foi no final proferida sentença que terminou com o seguinte dispositivo:
Face ao exposto, julgo a presente acção totalmente procedente, por provada e, em consequência:
1) Declaro que os autores C, viúva e R casado MF são donos e legítimos proprietários, sem determinação de parte ou direito, do prédio rústico sito em Bezindeira, com a área matricial inscrita de 2000 m2, a confrontar de Norte com MM, de sul com Amélia da Conceição Rodrigues Ferreira, de nascente Cândida Guilhermina de Castro Carção e de poente com Antiga Linha Férrea, encontra-se inscrito na matriz predial rústica da Freguesia de Sendim e Atenor sob o artigo nº …, constando como titular inscrito António Augusto Ferreira – cabeça de casal da herança de
2) Declaro que os autores MM casado com Maria Teresa Vicente Castaño são donos e legítimos proprietários do prédio rústico em Estação, com a área matricial inscrita de 2800 m2, a confrontar de Norte com Luís Bento, de sul com R, de nascente com Manuel Simões Falcão e de poente com Caminho-de-ferro, encontra-se inscrito na matriz predial rústica da Freguesia de Sendim e Atenor sob o artigo nº …, omisso na Conservatória do Registo Predial de Miranda do Douro, constando como titular inscrito Manuel Maria Ferreira.
3) Condeno os Réus a reconhecerem o decidido em 1) e 2) deste dispositivo.
4) Declaro constituída, a favor dos prédios identificados em 1) e 2) deste dispositivo, uma servidão de passagem por destinação de pai de família para o trânsito, durante todo o ano, de pessoas a pé, com ou sem cargas, com a largura de 3 metros e extensão de 130 metros sobre o prédio rústico sito em Bezindeira, a confrontar de norte com R, de sul com Estrada Nacional, de Nascente com Cândida Guilhermina Castro Carção e de poente com linha férrea, inscrito na matriz predial rustica da Freguesia de Sendim e Atenor sob o nº …, propriedade dos réus.
5). Condeno os réus a absterem-se de praticar quaisquer actos susceptíveis de impedir o exercício pelos autores do direito referido em 4) deste dispositivo.
Custas da acção a cargo dos réus – art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do NCPC e 6.º, n. º1 do RCP, por referência à Tabela I-A anexa.
Registe e notifique.
Inconformados com a sentença os AA e os RR apresentam recurso que terminam com as seguintes conclusões:
Dos Autores
1º O presente recurso é interposto na sequência da decisão proferida no Tribunal Judicial da Comarca de Bragança, instância local, secção cível J2, em que julgou totalmente procedente o pedido formulado pelos Autores, mas a referida sentença de que se recorre deixou de se pronunciar sobre questões que devia ter apreciado e conheceu de questões que não podia tomar conhecimento.
2. A sentença recorrida enferma de nulidade nos termos do artigo 615 nº1 d) do C.P.C.
3º A sentença Recorrida, apesar de ter sido totalmente procedente, não se pronunciou sobre o pedido dos Autores de condenar os Réus a recolocarem a rampa que liga a estrada nacional e os prédios de todos refazendo a rodeira sempre existente.
4. A falta de pronúncia sobre o pedido de Condenar os Réus a recolocarem a rampa que liga a estrada nacional e os prédios de todos refazendo a rodeira sempre existente, torna-a completamente inútil e inconsequente e não respeita a procedência total da sentença.
5. A sentença recorrida enferma ainda de nulidade porque conhece de questões que não podia tomar conhecimento, sendo que pode tratar-se de um lapso de escrita e até é logico que o seja.
6º Os Autores no seu pedido não especificam, nem o têm de fazer, se o trânsito se faz a pé ou em veículos a motor, se é feito por pessoas ou por animais guardados por pessoas, pois a largura de 3 metros que a referida servidão sempre teve, é para aceder de qualquer forma ou meio aos seus prédios.
7º A douta sentença recorrida deve, por todo o exposto, ser alterada e, com o sempre mui. Douto suprimento de Vossas Excelências.
14. E, em consequência, a decisão a proferir sobre a causa deverá incluir a condenação do Réus a recolocarem a rampa que liga a estrada nacional e os prédios de todos refazendo a rodeira sempre existente e,
15. Alterar a sentença na parte em que refere “de pessoas a pé, com ou sem cargas”, ficando somente fixada a largura de três metros para acesso aos prédios dos Autores com o fim dos mesmos serem trabalhados, como é natural por pessoas ou maquinas.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via disso, ser modificada a sentença recorrida nos termos referidos
No que farão V. Exs. a Sempre Inteira e Costumada, JUSTIÇA!
Dos Réus
1- Este processo não se destina a dirimir nenhuma discordância sobre o direito de propriedade que foi reconhecido aos recorridos sobre os terrenos que estes identificaram como dominantes, aparecendo os pedidos correspondentes a tal reconhecimento como pressuposto lógico para a discussão do que verdadeiramente divide as partes, que é a alegada servidão de passagem, e daí que, sendo o dito reconhecimento e a manutenção dessa parte da sentença indiferente para os recorrentes, estes não devam suportar as custas correspondentes;
2- Nessa senda, apesar de outras discordâncias a respeito da decisão sobre a matéria de facto, os apelantes discutem apenas alguns aspectos que lhes parece poderem interferir, ainda que longinquamente, na decisão do verdadeiro litígio;
3- Existem contradições insanáveis na matéria dada como provada exposta nos nº 14.º, 15.º, 17.º e 18.º que, segundo parece, advêm da utilização incoerente e confusa do termo "rodeira", quer na petição inicial quer na sentença, sem distinção clara dessa palavra com o significado de uma interrupção ou abertura numa parede ou qualquer outra vedação, com largura suficiente para permitir o trânsito de veículos, ou como designação de um troço de terreno por onde transitam veículos, fora dessa exacta zona de entrada e de saída.
4- Nos nº 17 e 18 diz-se que a rodeira / passagem se iniciava com uma rampa descendente da Estrada Nacional, no lado Sul do prédio referido em 9) - prédio dos Réus - e terminava no prédio referido em 9) - prédio dos Réus - sempre do lado poente dos três artigos matriciais (...) numa extensão de cerca de cento e trinta metros, entre a Estrada Nacional e o prédio referido dos 2ºs autores referido em 5) passando pelo prédio dos réus, identificado e dos 1.os autores identificado em1), discurso que é contraditório em sim mesmo;
5- Acresce que no n.º 11.º da matéria de facto já ficara assente que os três prédios referidos no processo "são todos contíguos entre si", mas essa afirmação não se coaduna com o conjunto desses outros factos;
6- A extensão de cento e trinta metros, aparece mencionada de forma incompreensível, pois não houve na prova produzida nenhuma alusão a tal extensão, nem a qualquer outra em concreto (nem os próprios AA. a invocaram) e ninguém disse que tivesse havido medição alguma;
7- Para o conjunto dos factos 14.º a 23.º, que centraliza a matéria de facto que interessa para a análise do problema, o Tribunal deu credibilidade a depoimentos inverídicos porque partiu, tal como os depoentes citados na respectiva motivação, de bases erradas, por não ter atendido às explicações da evolução cronológica, que eram fundamentais; trata-se de matéria probatória diluída no conjunto da prova ou que advém de omissão ou de mero raciocínio, pelo que não é possível expor com localização concreta os respectivos aportamentos;
8- Não teve em conta que com a construção da estrada actualmente confrontante com o prédio dos RR., o terreno público a partir do qual os AA. dizem que é feito o acesso ficou muito mais alto do que antes, criando um desnível entre a via pública e o terreno em questão, que antes não existia ou era desprezível para efeito de acesso, não existindo e não sendo necessária qualquer rampa;
9- Entretanto os terrenos em causa não foram cultivados, até que o A. R, aquando da construção da estrada designada por IC5 (em 2011/2012) colocou terra no prédio dos RR. em forma de rampa, para os camiões entrarem no seu próprio terreno, onde despejaram terra para aumentar a produtividade, tendo só então semeado o dito terreno com milho;
10- Essas realidades foram explicadas pelas testemunhas Ramiro do Nascimento Jantarada e António Augusto Peres nas fases dos depoimentos aludidas em concreto nesta alegação e sendo que a discrepância nas declarações quanto à época da construção da tal estrada confrontante com o prédio dos recorrentes, entre 1960/1965 e 1970/1975 não é relevante para o caso;
11- Assim, além do tema do desnível, é verdade que, pelo menos entre 1975 e 2011 não houve nenhum acesso pelo local referido na sentença;
12- Por isso resulta da prova produzida que, mesmo que os AA. tivessem passado pelo prédio dos RR., ninguém soube explicar coerentemente durante quanto tempo e de que modo isso teria acontecido;
13- Nem se sabe quando é que o dono primitivo António Ferreira faleceu nem quando os seus herdeiros, dividiram o prédio;
14- Esses dados da matéria de facto (inseridos nos nº 14.º a 23.º) devem ser retirados;
15- Sem prejuízo das conclusões anteriores, a discordância dos recorrentes centra-se na matéria de direito, porque lhes parece que a acção não pode ser julgada procedente, independentemente de se considerar que a matéria de facto não foi bem decidida, revelando a sentença uma leitura apenas superficial do disposto no artigo 1549.º do Código Civil;
16- A sentença concentra a sua atenção apenas em requisitos que preencheriam, apenas em parte, uma hipotética constituição de servidão com origem em usucapião e não na figura invocada da destinação de pai de família;
17- À constituição por destinação de pai de família interessam os sinais visíveis e permanentes que revelem serventia entre os prédios, criada ou seguida pela pessoa que era o dono de ambos (ou de todos, conforme o caso) ou suas fracções e que os sinais e a utilização em conformidade com o seu significado existam ao tempo da separação da titularidade, independentemente do tempo de duração dessa serventia e do modo como a mesma foi aproveitada após tal separação, sendo que nada se apurou neste caso a esse respeito;
18- Mesmo ao afirmar que o acesso aos três prédios sempre se fez por uma rodeira/passagem que se iniciava com uma rampa descendente da Estrada Nacional, no lado Sul do prédio referido em 9) - prédio dos Réus - e terminava no prédio referido em 9) - prédio dos Réus, refere-se ao período posterior à divisão do prédio primitivo, em coerência com o alegado nos artºs. 18.º a 20.º da petição inicial: - que três filhos do primitivo dono, António José Ferreira, partilharam o prédio que hoje se encontra dividido nos três prédios que se referiram atrás, (...) partilha que sempre foi respeitada, quer na posse dos prédios, quer nas delimitações entre eles, quer no acesso para os três que sempre foi feita por uma única rodeira passagem, e que por acordo dos três irmãos se manteve como entrada de todos - sem nenhuma alusão à situação existente em vida do dono primitivo, elemento essencial para basear o pedido;
19- Decorre da matéria apurada que se tratou simplesmente de dividir fisicamente em três partes um pequeno prédio rústico uniforme na sua composição, mais apto para pastagem mas que podia e terá sido igualmente utilizado algumas vezes para cultura de cereais, fruído pelo seu primitivo dono também uniformemente, ou eventualmente com culturas ou aproveitamento diferenciado de alguma parcela ou com alterações de ano para ano, mas sem dependência de espécie alguma entre partes inexistentes e por isso na motivação da decisão da matéria de facto apenas ficou dito que os depoentes explicaram a origem dos três prédios, que resultaram da divisão de um só prédio que há muitos anos pertenceu a um só dono (...) e que após a morte do primitivo proprietário foi dividido entre os filhos (...) e depois deles os herdeiros;
20- Mesmo que já existisse na época anterior à divisão alguma rampa implantada na parte do prédio primitivo que passou a integrar o actual prédio dos Réus (o que não foi apurado, mas é muito improvável) o lógico é que serviria para entrar no conjunto do prédio, sem distinção e nenhuma das pessoas ouvidas conseguiu dizer absolutamente nada sobre a forma como o dono primitivo actuava, não havendo também notícia nos autos de nenhum indício de serventia de uma parte para com outra ou outras, nesse tempo;
21- Estando, como está, assente que na divisão do prédio primitivo não foi observada a forma prescrita na lei (escritura pública) esses negócios foram nulos, a divisão não operou a transferência do domínio e não poderia ter a virtualidade de levar à constituição de servidão por destinação do pai de família;
22- O Tribunal não poderia ter declarado a constituição da servidão por usucapião neste caso, porque se depararia com a insuficiência de matéria de facto para esse efeito e porque essa figura apenas pode operar se for invocada pelo seu beneficiário, o que não aconteceu;
23- Foi violada na sua plenitude a norma do artigo 1549.º do Código Civil, que devia ter sido interpretada conforme se defende nas conclusões 15.º a 21.º desta alegação;
24- A acção deve ser julgada improcedente no essencial (que é a declaração da existência da servidão e a condenação dos demandados a reconhecê-la) com as custas a cargo dos demandantes. JUSTIÇA!
Contra-alegaram os Autores defendendo que deve ser negado provimento ao recurso interposto pelo Réus/Recorridos, com todas as consequências legais.
Apresentam as seguintes conclusões:
1- Invocam os recorrentes qua sentença enferma de facto e de Direito.
2- De facto, assentam a sua tese no testemunho de duas testemunhas, mas esquecem o que a Ré mulher confessou.
3 – Uma delas nunca foi ao local nem o conhece e a outra nada diz sobre a matéria em discussão.
4 – De direito, apesar de aceitarem (confessarem) que todos os requisitos necessários para averiguar da existência de servidão por destinação de pai de família se encontram preenchidos, querem acrescentar mais um requisito que é a falta de forma legal.
5 – Não existe requisito de forma legal que os recorrentes descobriram.
6 – Não enferma a sentença recorrida de qualquer dos vícios apontados pelos recorrentes
7 – Pelo que deverá sempre a mui douta sentença ser mantida em tudo o que os aqui
recorrentes contestam.
TERMOS em que deve ser negado provimento ao recurso interposto pelo Réus/Recorridos, com todas as consequências legais,
Como é de acostumada JUSTIÇA
Os recursos foram recebidos como de apelação, a subirem imediatamente e nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo, nos termos do disposto nos artigos 629º nº1, 631º nº1, 637º nº1, 638º nº1 e 7, 641º nº1 e 5, 644º nº1 alínea a), 645º nº1 alínea a), 647º nº1 e 2 (este último número do artigo a contrario sensu) do NCPC.
Antes de os autos subiram o tribunal “a quo” ao abrigo do artigo 617º do NCPC pronunciou-se sobre a invocada nulidade da decisão por excesso de pronuncia e omissão de pronúncia tendo sido proferida decisão nos seguintes termos:
Na verdade, a expressão, "de pessoas a pé, com ou sem cargas", tratou-se de um lapso de escrita, tendo em conta os factos provados e o peticionado pelos autores em C) e D) da petição inicial, o qual é passível de correcção, nos termos do disposto no artigo 6140 nº1 do NCPC.
Face ao exposto, nos termos dos artigos 614. °, n. o1, 615. °, nº1, alínea d) e 617. °, nº2 do NCPC, decide-se:
- julgar verificada a nulidade da sentença proferida por omissão de pronúncia, na parte em que omitiu a condenação dos réus a recolocarem a rampa que liga a estrada nacional e os prédios de todos refazendo a rodeira sempre existente e, em consequência, adita-se ao segmento decisório o seguinte:
6). Condeno os réus a recolocarem a rampa que liga a estrada nacional e os prédios referidos em 1), 5) e 9) refazendo a rodeira sempre existente.
- Corrigir o ponto 4) do decisório, determinando a eliminação da expressão «de pessoas a pé, com ou sem cargas.
Anote no local próprio, considerando-se o presente despacho complemento e parte integrante da sentença proferida.
Notifique.
Considerando que as nulidades invocadas no recurso apresentado pelos Autores foram apreciadas e resolvidas a apreciação de tal recurso fica prejudicada nada mais tendo este Tribunal a acrescentar ao decido.
Temos, pois, para apreciar o recurso apresentado pelos RR.
As questões a resolver, partindo das conclusões formuladas pelos réus/apelantes, como impõem os artºs. 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, do C.P.Civ, serão as seguintes:
I. Discordância por parte dos RR sobre o direito de propriedade invocado pelos AA;
II. Se existem as apontadas contradições na matéria de facto (mais concretamente nos pontos nº 14, 15º, 17º, 18º e 11 dos F.P);
III. Se deverá ser alterada a decisão quanto à matéria de facto nos termos impugnados;
IV. Se deverá ser alterada a decisão jurídica da causa. *
II.FUNDAMENTAÇÃO
OS Factos:
O Tribunal recorrido considerou provada e não provada a seguinte matéria de facto:
1. O prédio rústico sito em Bezindeira, com a área matricial inscrita de 2000 m2, a confrontar de Norte com MM, de sul com A, de nascente Cândida Guilhermina de Castro Carção e de poente com Antiga Linha Férrea, encontra-se inscrito na matriz predial rústica da Freguesia de Sendim e Atenor sob o artigo nº …, constando como titular inscrito AA – cabeça de casal da herança de – cfr. certidão matricial junta com a p.i.
2. O prédio referido em 1) adveio à posse, primeiro, da autora C ainda no estado de casada com seu marido, já falecido, AA, por herança do pai deste, AJ, há mais de 60 anos, o qual lhe foi adjudicado por partilha verbal efetuada com os seus restantes três irmãos e irmã, e depois da morte deste por herança deste, sem que tenha havido ainda partilha, para a C e seu filho R, casado com a MF, aqui autores.
3. Desde essa altura até à morte de seu marido, e depois da morte de este e até à presente data, em comum com o seu filho e esposa deste o referido prédio foi cultivado, semeado e colhidos os seus frutos, que consumiram e consomem.
4. Os primeiros Autores passaram a utilizar o referido prédio, gozando de todas as utilidades por ele proporcionados, guardando nele os seus haveres, efetuando regularmente obras de conservação e reparação, como limpezas, agindo assim, sempre com o ânimo de quem exerce direito próprio, na convicção de tal prédio lhes pertencer e de serem os seus verdadeiros donos, como tal sendo reconhecidos por toda a gente e de não lesarem terceiros ou direito alheio, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.
5. O prédio rústico sito na Estação, com a área matricial inscrita de 2800 m2, a confrontar de Norte com Luís Bento, de sul com R, de nascente com Manuel Simões Falcão e de poente com Caminho-de-ferro, encontra-se inscrito na matriz predial rústica da Freguesia de Sendim e Atenor sob o artigo nº …, omisso na Conservatória do Registo Predial de Miranda do Douro, constando como titular inscrito MM.
6. O prédio referido em 5) adveio à posse do 2º autor MM, ainda no estado de solteiro, há mais de 40 anos, o qual lhe foi adjudicado por partilha verbal efetuada com sua irmã, por morte de seu pai JJ, que por sua vez o herdou de seu pai, AJ há mais de 60 anos, o qual lhe foi adjudicado por partilha verbal efetuada com os seus restantes três irmãos e irmã.
7. Desde essa altura até à presente data, em comum com sua esposa, o referido prédio foi cultivado, semeado e colhidos os seus frutos, que consumiram, dando-o de arrendamento para que outros o cultivem de favor.
8. Os segundos Autores passaram a utilizar o referido prédio, gozando de todas as utilidades por ele proporcionados, guardando nele os seus haveres, efetuando regularmente obras de conservação e reparação, como limpezas, agindo assim, sempre com o ânimo de quem exerce direito próprio, na convicção de tal prédio lhes pertencer e de serem os seus verdadeiros donos, sendo reconhecidos por toda a gente, na convicção de exercerem um direito próprio e não lesarem direitos de outrem, à vista e com o conhecimento de todos e sem oposição de ninguém.
9. Os Réus herdaram da mãe da ré A, E, o prédio rústico sito Bezindeira, a confrontar de norte com R, de sul com Estrada Nacional, de Nascente com Cândida Guilhermina Castro Carção e de poente com linha férrea, inscrito na matriz predial rustica da Freguesia de Sendim e Atenor sob o nº 10095.
10. A E, mãe da ré, herdou o referido prédio de seu pai, AJ há mais de 60 anos, o qual lhe foi adjudicado por partilha meramente verbal efetuada com os seus restantes quatro irmãos.
11. Os prédios referidos em 1), 5) e 9) são todos contíguos entre si e tiveram origem num prédio único, propriedade de AJ, que foi sogro da primeira autora, C e avô dos Autores, R e Manuel e também avô da ré Amélia.
12. Por morte de AJ, os seus cinco filhos partilharam os prédios que àquele pertenciam e dividiram prédios em partes que na altura entenderam que seria mais justo, não tendo tido o cuidado de partilhar artigos matriciais completos para cada um, divisão essa que sempre foi respeitada e que, anos mais tarde, mercê da atualização de matrizes, acabaram por ser participados na Repartição de Finanças individualmente e por esse motivo encontram-se hoje separados e não num único artigo matricial.
13. Aquando da partilha por morte do AJ, os seus filhos, AA, E e JJ partilharam o prédio que hoje se encontra dividido nos três prédios referidos em 1), 5) e 9) e que hoje são propriedade dos autores e dos réus.
14. Partilha que sempre foi respeitada, quer quanto aos prédios, quer nas delimitações entre eles, quer no acesso para os três que sempre foi feita por uma única rodeira passagem e que por acordo dos três irmãos se manteve como entrada para todos.
15. A passagem para os três prédios sempre se fez por uma única rodeira ou passagem que confrontava com os três prédios no lado poente, onde confrontam com a antiga linha férrea.
16. O prédio dos réus confronta de sul com Estrada Nacional e de Norte com o prédio referido em 1), este confronta de Norte com o prédio referido em 5) e todos confrontam a poente com a antiga linha férrea.
17. O acesso aos três prédios sempre se fez por uma rodeira/passagem que se iniciava com uma rampa descendente da Estrada Nacional, no lado Sul do prédio referido em 9), e terminava no prédio referido em 9) sempre pelo lado poente dos três artigos matriciais.
18. Rodeira que ocupava cerca de três metros de largura e uma extensão de cerca de cento e trinta metros, entre a Estrada Nacional e o prédio referido dos 2.ºs autores referido em 5) passando pelos prédios dos réus, identificado e dos 1.ºs autores identificado em 1), rodeira essa que sempre foi visível.
19. Os Autores, por si e os seus antecessores, sempre por ali passaram, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja, convictos de exercerem um direito próprio e não lesarem direitos de outrém.
20. Os antecessores dos réus e estes sempre respeitaram aquela rodeira/caminho.
21. Sem que nada o fizesse prever, em Maio de 2012, retiraram a rampa descendente com mais de cem anos que ligava a Estrada Nacional e os prédios de todos e destruíram a rodeira em toda a extensão do seu prédio.
22. Impossibilitando assim os Autores de acederem aos seus prédios rústicos.
23. Os prédios referidos em 1) e 5) não comunicam com a via pública.
Factos Não provados:
Inexistem
O Direito
A) Discordância sobre direito de propriedade invocado pelos AA
Os réus/recorrentes começam a sua instância recursória afirmando que Este processo não se destina a dirimir nenhuma discordância sobre o direito de propriedade que foi reconhecido aos recorridos sobre os terrenos que estes identificaram como dominantes, aparecendo os pedidos correspondentes a tal reconhecimento como pressuposto lógico para a discussão do que verdadeiramente divide as partes, que é a alegada servidão de passagem, e daí que, sendo o dito reconhecimento e a manutenção dessa parte da sentença indiferente para os recorrentes, estes não devam suportar as custas correspondentes.
Porém a afirmação da inexistência de discordância acerca da propriedade dos imóveis não é verdadeira. Como bem sabem os réus na sua contestação apenas aceitam como verdadeira a afirmação correspondente à propriedade do seu prédio. No demais impugnam a factualidade alegada pelos Autores quer no referente à propriedade dos imóveis que os AA dizem serem seus quer no acesso aos mesmos.
Devido a esta defesa a questão da propriedade foi incluída nos temas de prova, objecto de prova e porque provada a propriedade foi reconhecido aos Autores o seu pedido com a consequente condenação dos réus nas devidas custas porque vencidos na sua pretensão de não reconhecimento de tal pedido.
B) Contradições na Matéria de Facto
Alegam os réus que existem contradições insanáveis na matéria dada como provada exposta nos nº 14.º, 15.º, 17.º e 18.º que, segundo parece, advêm da utilização incoerente e confusa do termo "rodeira", quer na petição inicial quer na sentença, sem distinção clara dessa palavra com o significado de uma interrupção ou abertura numa parede ou qualquer outra vedação, com largura suficiente para permitir o trânsito de veículos, ou como designação de um troço de terreno por onde transitam veículos, fora dessa exacta zona de entrada e de saída.
Nos nº 17 e 18 diz-se que a rodeira / passagem se iniciava com uma rampa descendente da Estrada Nacional, no lado Sul do prédio referido em 9) - prédio dos Réus - e terminava no prédio referido em 9) - prédio dos Réus - sempre do lado poente dos três artigos matriciais (...) numa extensão de cerca de cento e trinta metros, entre a Estrada Nacional e o prédio referido dos 2ºs autores referido em 5) passando pelo prédio dos réus, identificado e dos 1.os autores identificado em1), discurso que é contraditório em sim mesmo;
Acresce que no n.º 11.º da matéria de facto já ficara assente que os três prédios referidos no processo "são todos contíguos entre si", mas essa afirmação não se coaduna com o conjunto desses outros factos.
Vejamos se têm razão.
Logo na petição inicial os Autores utilizam o termo “rodeira” identificando como caminho (artigos 24º e 25º da p.i) que lhes permitia o acesso aos seus prédios nos termos pedidos na alínea C) da parte final da p.i.
Rodeira/caminho esse que definem em termos de largura e comprimento (três metros de largura e uma extensão de cerca de cento e trinta metros – artºs 25º da p.i).
Foi este o sentido que a sentença deu como provado nos artigos assinalados.
É certo que os réus já na contestação quiseram que a confusão se instalasse quanto ao termo rodeira vindo mesmo alegar a existência de um “boqueiro” - artº 7- e a possibilidade de a palavra “rodeira” na língua mirandesa ter dois sentidos – artº 12, afirmando aí não perceber qual o sentido usado pelos AA.
Todavia a “confusão” não passou e o Tribunal deu como provada a versão dos AA.
Diga-se ainda, que ao contrário do afirmado pelos réus em sede de recurso como já se referiu são os autores que alegam que a rodeira/caminho tem a extensão de cerca de cento e trinta metros – artº 25º da p.i.
Se foi feita prova ou não da alegada extensão será devidamente apreciada em sede própria (reponderação da prova).
A mesma apreciação será feita quanto à redacção do artº 17 do F.P.
Improcedem as apontadas contradições.
C) Reponderação da Prova
Os Apelantes, no essencial, dissentem da decisão no referente aos F.P nº 14º a 23º louvando-se na sua divergência sobre a apreciação do depoimento da prova testemunhal.
Ora a força probatória dos depoimentos das testemunhas é livremente apreciada pelo tribunal (artº396º do C. Civil).
Este princípio da livre apreciação da prova impõe que o julgador proceda a uma valoração de cada meio de prova produzido nos autos, interligando-o com os demais elementos probatórios do mesmo constantes, socorrendo-se dos conhecimentos científicos adquiridos e das regras de experiência comum da vida (Freitas, Lebre de in «Introdução ao Processo Civil, conceito e princípios gerais à luz do Código Revisto», Coimbra, 1996, pág. 157 e SS. E Abrantes Geraldes, in «Temas da Reforma do Processo Civil», vol. II, pág. 209).
Mas livre apreciação não se confunde com livre arbítrio.
De efeito o julgador deverá efectuar uma análise crítica de todos os elementos probatórios, independentemente da parte que os produziu e que tem o ónus de provar determinado facto, com o fim de motivar e justificar a sua decisão.
Nessa apreciação crítica irá valorar tanto individualmente como globalmente a prova produzida, operação na qual irá socorrer-se das regras da normalidade, da verosimilhança, do bom senso e experiência da vida. Os diversos elementos de prova devem assim ser apreciados em correlação uns com os outros, de forma a discernir aqueles que se confirmam e aqueles que se contradizem, possibilitando ou a remoção das dúvidas ou a constatação de que o peso destas é tal que não permite uma convicção segura acerca do modo como os factos se passaram e de quem foram os seus agentes.
Porém o julgador, no seu trabalho de valoração da prova e de reconstituição dos factos com o fim de atingir uma verdade, não está obrigado a aceitar ou recusar cada uma das declarações ou depoimentos na globalidade. Poderá extrair de cada um deles, o que lhe merece ou não crédito, tendo presente que a circunstância de uma versão dos factos não ser totalmente coincidente com outra ou outras apresentadas não significa necessariamente que a primeira seja falsa, podendo resultar de diferente percepção da realidade em relação a um ponto ou momento concreto da dinâmica da ocorrência ou menos precisão por falha de memória devido ao decorrer do tempo.
Conforme se defende no Ac. do TRL de 15.12.2011, “A decisão da matéria de facto deverá tentar demonstrar o processo de raciocínio do julgador, tarefa que é difícil, até porque há factores determinantes para a formação da convicção que não são documentáveis”. (Proferido no proc. nº 1375/08, acessível em www.dgsi.pt).
Também é certo que para que o Tribunal possa dar como provado um determinado facto não tem que se convencer da certeza absoluta da sua verificação, mas tem que se convencer com alguma segurança, tem que ocorrer pelo menos um alto grau de probabilidade suficiente de que determinados factos ocorreram ou não ocorreram.
Acresce que, não é por uma testemunha referir determinados factos como ocorridos que o tribunal tem que os dar como provados, ainda que nenhuma outra testemunha se tenha pronunciado sobre esses factos. A convicção do tribunal é formada, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, como referimos, pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em conjugação com a demais prova produzida (pericial e documental), em função das razões de ciência, das certezas e, ainda das lacunas, contradições, coerência de raciocínio e todo um comportamento não verbal como a ansiedade, embaraço, desamparo, serenidade, olhares para alguns dos presentes, sentido de responsabilidade manifestados, tudo valorado de acordo com as regras da experiência e da normalidade.
Presente deve ter-se, outrossim, que o sistema legal, tal como está consagrado, com recurso à gravação sonora dos meios probatórios oralmente produzidos, não assegura a fixação de todos os elementos susceptíveis de condicionar ou influenciar a convicção do julgador perante o qual foram produzidos os depoimentos em causa, sofrendo a apreciação da matéria de facto pela Relação, naturalmente, a limitação que a inexistência da imediação de forma necessária acarreta.
Na decisão proferida sobre a matéria de facto a Meritíssima Juiz que desenvolveu a fundamentação da sua decisão de modo criterioso e aprofundado, apreciando criticamente cada um dos depoimentos produzidos, deixou bem claros os motivos do seu julgamento referindo que lhe mereceram credibilidade e foram convincentes os depoimentos das testemunhas arroladas pelos autores.
Revisitada toda a prova produzida em audiência e conjugados com a razão de ciência de cada uma das testemunhas, tendo ainda em consideração os documentos juntos impõe-se-nos confirmar no essencial o julgamento do Tribunal a quo.
Com efeito, muito embora tenhamos uma imediação mitigada, tendo presente que nem sempre uma voz clara e bem colocada corresponde a uma convicção firme na veracidade das afirmações que transmite, do que nos foi dado ouvir fica a impressão de que as testemunhas António Augusto Peres, Francisco Trindade Mateus, António José Marcos, Ana da Ascensão Vinhão e Manuel de Castro Carção demonstraram conhecimento dos factos quer quanto à localização, divisão , utilização e propriedade dos prédios em causa bem como o seu acesso e respectivo forma.
Como acertadamente refere a Sra. Juiz:
Relativamente aos factos vertidos nos pontos 14) a 23), o Tribunal alicerçou a sua convicção nos depoimentos das testemunhas, António Augusto Peres, o qual referiu que o s filho pastoreou os terrenos em causa para os autores e para o 2.º réu, acrescentando que o autor R semeava milho e o terreno do autor Manuel sempre foi lameiro, Francisco Trindade Mateus, o qual com conhecimento directo explicou que existia uma rampa na zona onde o terreno faz esquina com a antiga linha férrea, confirmou a existência da rodeira por onde se acedia para os prédios, igualmente confirmado pelas demais testemunhas inquiridas, rodeira essa que o réu Telmo mandou destruir, e que teria pelo menos 3 metros de largura, porquanto a sua retroescavadora com 2,5 metros de largura efectuou lá trabalhos de corte de frexeiras e passava na rodeira; a testemunha António José Marcos explicou a localização dos terrenos, que chegou a ceifar o terreno do autor Manuel Ferreira, que o pai do autor R e o pai da ré Amélia tinham os terrenos lavrados, referindo igualmente o modo como se acedia aos terrenos e como sempre se acedeu, afirmando “era a entrada que havia”.
Por sua vez a testemunha Ana da Ascensão Vinhão, que foi empregada de José Ferreira, pai do autor Manuel, referiu que para acederem ao terreno entrava pela rodeira, em cima, junto à estrada para Atenor, acrescentando que a autora C semeava e colhia trigo no terreno dela e para aceder aos três prédios, outrora dos três irmãos, antecessores dos autores e ré, todos entravam pela rodeira.
Por último a testemunha Manuel de Castro Carção, afirmou que os terrenos ultimamente eram lavrados e o acesso efectuava-se pela rodeira, onde passavam os carros com os fenos dos lameiros e carros de mulas ou burras, acrescentando que do lado da antiga linha férrea havia talude alto e que do lado da estrada que vai para Atenor o terreno foi alteado.
Cumpre dizer que, os apelantes não podem limitar-se a invocarem apenas parte da prova que lhes é favorável em abono da alteração dos factos.
E, assim, querendo impor, em termos mais ou menos apriorísticos, a sua subjectiva convicção sobre a prova.
Antes para obter ganho de causa neste particular, devem eles efectivar uma concreta e discriminada análise objectiva, crítica, lógica e racional de toda a prova, de sorte a convencer o tribunal ad quem da bondade da sua pretensão.
A qual, como é outrossim comummente aceite apenas pode proceder se se concluir que o julgador apreciou o acervo probatório com extrapolação manifesta dos cânones e das regras hermenêuticas, e para além da margem de álea em direito permitida e que lhe é concedida. E só quando se concluir que a natureza e a força da prova produzida são de tal ordem e magnitude que inequivocamente contraria ou infirma tal convicção, se podem censurar as respostas dadas.
Sendo que, repete-se, a intolerabilidade destas tem de ser demonstrada pelos recorrentes através de uma concreta e dilucidada análise hermenêutica de todo o acervo probatório produzido ou, ao menos, no qual se fundamentou a resposta. – Cf. Ac. da RC de 29-02-2012, proc. nº 1324/09.7TBMGR.C1.
Muito menos podem os vários depoimentos ser entendidos isoladamente, retirando-os do respectivo contexto, apenas com base em frases transcritas num mero suporte documental e em certas imprecisões de algum dos testemunhos – por vezes justificáveis desde logo pelas circunstâncias dialécticas em que são produzidos, durante o interrogatório cruzado, formal, surgindo sempre um novo elemento em cada questão suscitada por cada um dos sujeitos processuais.
Também bem sabem os recorrentes que a testemunha Ramiro do Nascimento Jantarada de concreto nada ou pouco disse. É certo que disse que conhecia os terrenos, mas também disse que nunca entrou nos prédios que nunca lá tinha ido, que nunca por ali tinha passado. Daí que o seu depoimento, aliás impreciso e pouco conhecedor – referiu mesmo que a sua visão era pouca, não foi e bem relevado.
Compreende-se o desconhecimento desta testemunha da realidade em causa pois como referiu a sua mulher, a testemunha Lúcia de Ascensão, irmã da ré Amélia, ambos (ela e o marido) residem à 40 e tal anos no Porto, vêm a Sendim temporariamente nas férias, daí que também esta testemunha nada em concreto tenha contado.
Admitiu, porém, esta testemunha que “o caminho para chegar aos prédios detrás deve ser o mesmo por onde entra a irmã. É uma ideia que já era respeitada pelos Pais. Mas nunca vi lá entrarem” -disse.
Depoimento este que vai de encontro às demais provas produzidas inclusive ao depoimento da testemunha António Augusto Peres que de forma espontânea disse que a entrada para os três prédios pela rodeira existia antes de haver estrada e que depois de fazerem a estrada a entrada ficou na mesma, realidade esta que as testemunhas seguintes confirmaram.
Os demais argumentos tecidos pelos recorrentes no referente ao evoluir cronológico reportado á construção da estrada IC5 não passam de considerações e conclusões dos recorrentes uma vez que nenhuma prova se fez no sentido apontado nas conclusões 8º a 11º.
Têm, todavia, razão na afirmação feita na conclusão 6ª.
De efeito, a extensão de cento e trinta metros, apesar de invocada pelos autores na p.i nos termos já afirmados, aparece mencionada de forma incompreensível, pois não houve na prova produzida nenhuma alusão a tal extensão, nem a qualquer outra em concreto e ninguém disse que tivesse havido medição alguma nem foi efectuada em sede de processo.
Também a redacção do nº 17 do F. P não corresponde à prova produzida. De facto, da prova produzida (as testemunhas supra identificadas) e prova documental (fotografia do Google) resulta que o acesso aos três prédios sempre se fez por uma rodeira/passagem que se iniciava com uma rampa descendente da Estrada Nacional, no lado Sul do prédio referido em 9), e terminava no prédio referido em 5) e não em 9) sempre pelo lado poente dos três artigos matriciais.
Em consequência do exposto a redacção dos pontos 17 e 18 dos F.P é a seguinte:
17. O acesso aos três prédios sempre se fez por uma rodeira/passagem que se iniciava com uma rampa descendente da Estrada Nacional, no lado Sul do prédio referido em 9), e terminava no prédio referido em 5) sempre pelo lado poente dos três artigos matriciais.
18. Rodeira que ocupava cerca de três metros de largura e uma extensão entre a Estrada Nacional e o prédio referido em 5) dos 2.ºs autores passando pelos prédios dos réus, identificado em 9) e dos 1.ºs autores identificado em 1), rodeira essa que sempre foi visível.
D) Solução Jurídica
As servidões prediais (relativas a prédios) podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família – artigo 1547º do Código Civil, conforme de forma mais detalhada e com apelo á doutrina se descreve na decisão recorrida.
É relativamente fácil entender a constituição da servidão por contrato: o proprietário do prédio encravado negoceia directamente a passagem com o proprietário por onde ela vai ser exercida, pagando-lhe eventualmente um preço por isso.
A constituição de uma servidão de passagem por testamento ocorre, por exemplo, quando o testador estabelece que um determinado prédio seu, depois do seu óbito, passará a pertencer a 2 pessoas (herdeiros) diferentes, dividindo o referido prédio, mas esclarecendo que aquele que ficar encravado terá direito de passagem por aquele que confronta com o caminho.
Já as servidões de passagem que se constituem por usucapião ou por destinação do pai de família, que são as mais frequentes, levantam alguns tipos de problemas.
As que se constituem por usucapião, significa que, durante anos, alguém atravessou o prédio do vizinho, que confronta com o caminho, porque sempre foi assim, não existindo qualquer negócio entre ambos.
As servidões que se constituem por destinação do pai de família, surgem quando um prédio, propriedade de uma só pessoa se dividiu, por exemplo, por partilhas, por doação, etc e, ao existir tal divisão um dos prédios ficou encravado e, por tal razão começou a ser exercida passagem pelo outro (chamado prédio serviente). Para que este modo de constituição de servidões opere é, por conseguinte, necessário que estejam reunidos os seguintes requisitos:
● em primeiro lugar tem de haver uma relação de serventia entre dois prédios ou entre duas fracções do mesmo prédio.
●. É, depois, necessário que as fracções do que até então constituía um único prédio, ou os dois prédios já existentes, deixem de ser propriedade da mesma pessoa. A mudança de domínio pode ocorrer não apenas voluntariamente e através de um negócio jurídico (contrato ou testamento), mas também coactivamente (expropriação) ou por um meio de aquisição originária da propriedade (usucapião ou acessão).
●É ainda necessário para que a servidão se constitua que o proprietário não se oponha ao tempo da constituição da servidão, requisito que a nossa lei de algum modo refere ao dispor que pode declarar-se outra coisa ao tempo da separação “no respectivo documento”. Neste sentido Luís a. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais. Qui Juirs, 6ª edição pp 468.
A transformação da relação de facto de serventia em uma relação jurídica de servidão opera como se vê, por força uma fattispecie complexa (depende de um facto complexo de formação sucessiva) cuja qualificação sempre se revelou controversa.
No passado, imperou um entendimento desta servidão como sendo negocial ou quase negocial, sendo a não oposição do proprietário considerada uma espécie de acordo tácito deste à sua constituição. Superado este entendimento parece prevalecer hoje a perspectiva de que se trata aqui de uma tutela da aparência criada (recorde-se que os sinais têm que ser visíveis) concedida ope legis.
Tem vencido a orientação que tem qualificado esta servidão como voluntária e não deixa de ser exacto que subsiste um certo elemento de voluntariedade que se exprime tanto na conduta do proprietário em colocar os sinais (ou, pelo menos, em não os remover), como em não se opor à constituição da servidão (ao menos quando a separação dos prédios ou fracções se faz por documento).
Acontece que tanto as servidões constituídas por usucapião, como as constituídas por destinação do pai de família, têm que se revelar por «sinais visíveis e permanentes». E aqui é se levanta a questão. O que são sinais visíveis e permanentes? O que é que isto quer dizer? Quer dizer que qualquer um que chegue ao prédio serviente (aquele que confronta com o caminho) tem que notar a passagem, por exemplo, pela existência de uma rodeira, formada pelo constante pisoteio de um determinado espaço de passagem. Se essa rodeira existir há mais de 20 anos, pode-se dizer que se constituiu uma servidão de passagem por usucapião.
Isto dito, e revertendo ao caso dos autos, vista a factualidade apurada logo se conclui que não estamos perante uma situação de constituição por destinação do pai de família, posto que os prédios referidos em 1), 5) e 9) são todos contíguos entre si e tiveram origem num prédio único, propriedade de AJ, que foi sogro da primeira autora, C e avô dos Autores, R e Manuel e também avô da ré Amélia (FPnº11); Por morte de AJ, os seus cinco filhos partilharam os prédios que àquele pertenciam e dividiram prédios em partes que na altura entenderam que seria mais justo, não tendo tido o cuidado de partilhar artigos matriciais completos para cada um, divisão essa que sempre foi respeitada e que, anos mais tarde, mercê da atualização de matrizes, acabaram por ser participados na Repartição de Finanças individualmente e por esse motivo encontram-se hoje separados e não num único artigo matricial (F.P. Nº12). Aquando da partilha por morte do AJ, os seus filhos, AA, E e JJ partilharam o prédio que hoje se encontra dividido nos três prédios referidos em 1), 5) e 9) e que hoje são propriedade dos autores e dos réus (F.P nº 13º). Partilha que sempre foi respeitada, quer quanto aos prédios, quer nas delimitações entre eles, quer no acesso para os três que sempre foi feita por uma única rodeira passagem e que por acordo dos três irmãos se manteve como entrada para todos F.P nº 14). A passagem para os três prédios sempre se fez por uma única rodeira ou passagem que confrontava com os três prédios no lado poente, onde confrontam com a antiga linha férrea (F. P. nº 15).
Desta factualidade resulta com clareza que o pai de família (o titular comum) faleceu antes da divisão que os filhos fizeram do prédio único nada sabendo nem sequer destinando relativamente ao acesso que aos mesmos seria feito após a partilha. E assim os requisitos supra descritos exigidos para a reconhecida constituição deste tipo de servidão - Existência de dois bens (dois prédios ou duas fracções de mesmo prédio), com serventia patente por si mesma mediante “sinais visíveis e permanentes” e que o proprietário de ambos os bens não se oponha ao tempo da constituição da servidão- não se verificam no caso em apreço.
Nestes sentido ver acórdão desta Relação datado de 19.05.2016 e proferido no processo nº 144/14.1T8VRL:g1 disponível em www.dgsi.pt e na doutrina Antunes Varela, RLJ, ano 115º, pág. 222 segundo o qual: “A servidão constituir-se-á desde que exista uma relação de serventia entre os dois prédios que deixam de ter o mesmo dono, sendo indiferente o título (servidão, mera tolerância, licença administrativa, contrato com eficácia obrigacional, etc.) em que assenta a utilização dos prédios ou terrenos intermédios”.
Aliás a “servidão” nos termos reconhecidos na decisão recorrida viola o clássico principio que excluiu a servidão sobre coisa própria (nemini res sua serviti) ao reconhecer aos Autores uma servidão pelos seus próprios prédios.
Tendo, porém, em consideração a factualidade provada nos pontos 1º a 22 dos F.P não temos dúvidas em reconhecer a constituição por usucapião a favor do prédio de cada um dos autores por intermédio do prédio dos réus de uma servidão de passagem nos termos alegados pelos autores no artigo 32º da p.i e prevista no art. 1548º do C. Civil.
Como se referiu no Ac. da Relação de Coimbra de 02/10/2007, pretendendo ver declarada a constituição de uma servidão de passagem por usucapião, tem o autor que alegar, além do decurso do tempo, os factos integrados de uma posse pública, pacífica e de boa-fé. E, “no tocante ao animus, elemento intencional da posse, o mesmo presume-se, provada a materialidade dos actos possessórios; todavia o Autor não está dispensado de alegar tal facto”.
Ora os autores não só alegaram essa factualidade no artº 32º da p.i aonde pediram o reconhecimento de uma servidão de passagem por usucapião como da mesma fizeram prova.
É certo que no final na parte dos pedidos pediram a condenação dos Réus a reconhecer que o seu prédio se encontra onerado com uma servidão por destinação de pai de família e confirmada por contrato na partilha.
Subsidiariamente, e caso assim não se entenda sejam os RR condenados a Reconhecer o Direito de Passagem na forma referida atrás e nos termos previstos na lei para prédio encravado, conforme artigo 1550 do C. Civil.
Porém esta omissão não impede, o tribunal de apreciar a sua pretensão e de a enquadrar do ponto de vista jurídico, porquanto não está vinculado às alegações das partes no que respeita ao enquadramento jurídico, tal como decorre do artigo 5º n.º 3 do CPC.
Acresce que, a interpretação do pedido não deve cingir-se aos estritos dizeres da formulação do petitório, devendo antes ser conjugada com o sentido e alcance resultantes dos fundamentos da pretensão. Neste sentido, vide, por todos, o acórdão da Relação do Porto, de 11/06/1992, CJ Ano XVII, tomo 3.º, p. 308.
De facto, é certo que o artº 3º n.º 1 do C.P.C resulta consagrada a proibição para o tribunal de resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja chamada para deduzir oposição, emanação do princípio do dispositivo.
Implicando por tal ser às partes que incumbe o impulso processual bem como determinar quais os interesses que irão ser apreciados, aferidos estes pelo objecto processual conformado pelo pedido e causa de pedir delineados na petição inicial e em função do qual a parte contrária organiza e apresenta a sua defesa.
Consequentemente não podendo o tribunal condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir (vide os artigos 609º e 615º do CPC).
Todavia é hoje, entre nós, entendimento pacífico o de que não constituem desrespeito das exigências do princípio do dispositivo constantes do art. 609ºdo C.P.C. os casos em que o juiz, quando o impugnante, por deficiente explicitação jurídica, formula pedido inadmissível legalmente o juiz convola o pedido para um dos efeitos legais, desde que a vontade de o obter resulte inequivocamente da redacção da petição inicial. Nestas situações, o tribunal não condena em objecto diferente do peticionado, limitando-se a efectuar uma qualificação jurídica do conteúdo do pedido.
Na lição do prof. Anselmo de Castro, “Por pedido, porém, tanto se pode entender as providências concedidas pelo juiz, através das quais é actuada determinada forma de tutela jurídica (...), ou seja, a providência que se pretende obter com a acção [objecto imediato]; como os meios através dos quais se obtém a satisfação do interesse à tutela, ou seja, a consequência jurídica material que se pede ao Tribunal para ser reconhecida [objecto mediato]” in Direito Processual Civil Declaratório, vol. I, págs. 201 e seguintes.
Ponderando este autor que “o que interessará não é o efeito jurídico que as partes formulem, mas sim o efeito prático que pretendam alcançar”, conclui que “o objecto mediato deve entender-se como o efeito prático que o autor pretende obter e não como a qualificação jurídica que dá à sua pretensão” Ob. cit., pág. 203.
Numa outra formulação “o pedido, na sua vertente substantiva, consiste no efeito jurídico que o autor pretende obter com a acção, o que se reconduz à afirmação postulativa do efeito prático-jurídico pretendido, efeito este que não se restringe necessariamente ao seu enunciado literal, podendo ser interpretado em conjugação com os fundamentos da acção, com eventual suprimento pelo tribunal de manifestos erros de qualificação, ao abrigo do disposto no art. 664.º, 1.ª parte, do CPC, desde que se respeite o conteúdo substantivo da espécie de tutela jurídica pretendida e as garantias associadas aos princípios do dispositivo e do contraditório”. Neste sentido ver aresto da Rel. de Lisboa de 6/1/2010, proferido no âmbito do processo n.º 405/07.6 TVLSB.L1-7, sendo Relator o Exmº Sr. Desembargador Tomes Gomes, disponível em www.dgsi.pt e desta Relação proferido no processo nº 572/14.2 TBBRG.G1 de 15 Setembro de 2016 por nós relatado.
Não obstante, importa também referir que sobre este princípio do dispositivo tem vindo, quer jurisprudencialmente quer doutrinalmente, a ser defendida a necessidade de o mesmo ser interpretado em moldes mais flexíveis que sem violação dos limites expressos no artigo 609º do CPC, permita de forma definitiva dirimir o litígio entre as partes, nomeadamente quando o decidido se contenha ainda assim no âmbito da pretensão formulada [cf. neste sentido Ac. STJ de 11/02/2015 Relator Abrantes Geraldes in http://www.dgsi.pt/jstj ].
Pode ler-se no douto arresto citado que (…) tal como ocorre com outros preceitos do CPC, também o art. 609º, nº 1, carece de um esforço interpretativo, contando, além do mais, com os contributos de diversos Assentos e Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência do STJ.
Entre tais arestos, destaca-se o Assento nº 4/95, in D.R. de 17-5, ao admitir que numa acção em que seja deduzida uma pretensão fundada num contrato cuja nulidade seja oficiosamente decretada o réu seja condenado a restituir o que tenha recebido no âmbito desse contrato, por aplicação do art. 289º do CC, desde que do processo constem os factos suficientes.
A conjugação entre o princípio do dispositivo e os limites do pedido encontra também largo desenvolvimento na fundamentação do ACUJ nº 13/96, in D.R., I Série, de 26-11, ainda que no caso se tenha vedado ao tribunal a actualização oficiosa da quantia peticionada.
Outro importante elemento auxiliar da interpretação emerge do ACUJ nº 3/01, in D.R., I Série-A, de 9-2, que firmou a jurisprudência segundo a qual numa acção de impugnação pauliana em que tenha sido erradamente formulado o pedido de declaração de nulidade ou de anulação do acto jurídico impugnado o juiz deve corrigir oficiosamente esse erro e declarar a ineficácia que emerge do direito substantivo.
Assim, embora não possa questionar-se que, em regra, é ao autor que cabe a iniciativa processual e a delimitação da providência requerida (Ac. do STJ, de 4-2-93, BMJ 424º/568), a solução do caso concreto exige que se pondere o que dimana de arestos com a solenidade e com o valor persuasivo inerentes aos mencionados acórdãos de uniformização de jurisprudência.
Na integração do caso não podem ainda descurar-se os objectivos apontados pelas sucessivas reformas processuais, designadamente quando delas emerge a sobreposição de aspectos de ordem material a outros de ordem formal, ou a necessidade de atribuir ao processo a necessária eficácia que permita alcançar uma efectiva e célere resolução de litígios.
Importa ponderar também o que emana da doutrina que, fazendo coro com os referidos objectivos, aponta para a flexibilização do princípio do pedido, como é defendido por Miguel Mesquita, em anotação a um aresto sobre direitos reais, na RLJ, ano 143º, págs. 134 e segs. intitulada precisamente “A flexibilização do princípio do pedido à luz do moderno CPC”.
Assim, se é verdade que a sentença deve inserir-se no âmbito do pedido, não podendo o juiz condenar (rectius apreciar) nem em quantidade superior, nem em objecto diverso do que se pedir, tal não dispensa um esforço suplementar que permita apreender realmente o âmbito objectivo do pedido que foi formulado na presente acção.
Tomando de empréstimo as palavras de Miguel Mesquita na mencionada anotação em torno da necessidade de compreender o princípio do dispositivo de um modo mais flexível, ajustado à realidade social e aos avanços que se têm sentido também no processo civil, se acaso a Relação tivesse adoptado a mesma “postura rígida e inflexível relativamente ao pedido, bem ao estilo oitocentista”, acabaria por absolver os RR. do pedido, “decisão que seria, sem dúvida alguma, do imediato agrado dos RR., mas que redundaria numa vitória de Pirro” (pág. 147).
Ora, como refere o mesmo autor, “o interesse público da boa administração da justiça nem sempre coincide com os interesses egoístas das partes, fazendo, pois, todo o sentido, num processo moderno, a intervenção do juiz destinada a alcançar a efectividade das sentenças” (pág. 150).
Na mesma linha de raciocínio já o STJ se tinha pronunciado por Ac. de 05/11/2009, Relator Lopes do Rego (publicado no mesmo sítio), afirmando e tendo por referência os fundamentos do assento nº 4/85, de 28/3/95 que analisou: “Subjacente ao assento está, pois, não apenas o reconhecimento de que é lícito ao Tribunal convolar para uma qualificação jurídica da causa de pedir diferente da formulada pelo A. (…) mas também uma inovatória qualificação da pretensão material deduzida, cuja identificação não se faz apenas em função das normas e do instituto jurídico invocado pelo A., mas essencialmente através do efeito prático- jurídico que este pretende alcançar (…).
(…) veja-se, em clara aplicação deste entendimento, mais substancialista e flexível, o acórdão uniformizador 3/2001, em que se considerou legítima a convolação de um pedido reportado à invalidade do contrato para a respetiva declaração de ineficácia, típica da figura da impugnação pauliana, assim se corrigindo oficiosamente o erro do A. sobre a qualificação jurídica do efeito pretendido pelo demandante.”.
A permitir igual entendimento ver também Ac. TRP 13/06/2013, Relator Teles de Menezes in http://www.dgsi.pt/jtrp onde afirma em situação em que nenhuma das partes enquadrou (juridicamente) corretamente os factos “O que não impediu o Tribunal de os qualificar diversamente, com o argumento, que nos parece correto, de que é livre o enquadramento jurídico dos mesmos (art. 664.º do CPC).”]
Vertendo à sentença sob recurso e tendo presentes estes considerandos, concluímos ser de manter o reconhecimento aos Autores de uma servidão de passagem constituída não por destinação do pai de família, mas por usucapião não extravasando esta decisão o efeito prático-jurídico pretendido pelos autores o qual como os réus reconhecem é a declaração da existência da servidão e a condenação dos demandados a reconhecê-la (ver conclusão 24).
No que se refere ao “modo de exercício” desta servidão o mesmo também resulta alegado pelos Autores pois ao pedirem o reconhecimento de passagem com a largura de 3 metros estão a pedir uma passagem para trânsito a pé, com veículos com motor ou por animais guardados por pessoas.
Consequentemente tão pouco se verifica violação quer do dispositivo quer do contraditório, atento o pressuposto do decidido estar contido no pedido formulado pelos autores e contido na factualidade provada, após discussão entre as partes onde de forma livre e equitativa produziram as provas por si apresentadas.
Mais se diz que dos elementos processuais não se extrai tratamento diverso no exercício de faculdades ou uso de defesa por qualquer das partes e concretamente dos RR., a implicar a conclusão da improcedência da invocada servidão de passagem por usucapião.
Do exposto resulta a improcedência do recurso.
Considerando a diferente qualificação jurídica aplicada por este Tribunal e supra enunciada altera-se a decisão recorrida no seu ponto 4 nos seguintes termos:
4) Declara-se constituída, a favor dos prédios identificados em 1) e 2) dos F.P uma servidão de passagem constituída por usucapião para o trânsito, durante todo o ano, sobre o prédio rústico sito em Bezindeira, a confrontar de norte com R, de sul com Estrada Nacional, de Nascente com Cândida Guilhermina Castro Carção e de poente com linha férrea, inscrito na matriz predial rustica da Freguesia de Sendim e Atenor sob o nº …, propriedade dos réus, servidão constituída por :
a) rodeira/passagem que se inicia com uma rampa descendente da Estrada Nacional, no lado Sul do prédio descrito em 9) dos F.P.
b) rodeira que ocupa cerca de três metros de largura descendente da Estrada Nacional, no lado Sul do prédio propriedade dos Réus e supra identificado e se prolonga sempre pelo seu lado poente até ao inicio do prédio dos 1.ºs autores identificado em 1) dos F.P.
Sumário (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
- Não estando limitada pelos depoimentos e demais provas que lhe tenham sido indicados pelo recorrente, na reapreciação da matéria de facto a Relação avalia livremente todas as provas carreadas para os autos, valorando-as e ponderando-as com recurso às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus conhecimentos das pessoas e das coisas, socorrendo-se delas para formar a sua própria convicção.
- Deve evitar-se a introdução de alterações na decisão da matéria de facto quando, fazendo actuar o princípio da livre apreciação da prova, não seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação, relativamente aos concretos pontos de facto impugnados.
- A interpretação do pedido não deve cingir-se aos estritos dizeres da formulação do petitório, devendo antes ser conjugada com o sentido e alcance resultantes dos fundamentos da pretensão.
III. DECISÃO
Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente, alterando-se, porém, a decisão nos termos supra descritos.
Custas pelos apelantes.
Notifique.
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Guimarães, 23 de Março de 2017
(processado em computador e revisto, antes de assinado, pela relatora)
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(Maria Purificação Carvalho)
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(Maria dos Anjos Melo Nogueira)
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(José Cravo)
1 - Relator: Maria Purificação Carvalho
Adjuntos: Desembargadora Maria dos Anjos Melo Nogueira
Desembargador José Cravo
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